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DISCIPLINA: HISTÓRIA ANTIGA

Docente: Ciro Flamarion Cardoso

Primeiro módulo: ORIENTE PRÓXIMO ANTIGO

Página:

I. Acerca das cidades do antigo Oriente Próximo 2


1. O que é uma cidade? 2
2. Os primórdios da cidade no Oriente Próximo 7
3. As cidades iniciais da Baixa Mesopotâmia 8
4. Um exemplo egípcio: Akhetaton (Amarna), capital do século XIV a.c. 13
Indicações bibliográficas 16

1
I. O surgimento de cidades no antigo Oriente Próximo

1. O que é uma cidade?

Todos acham que sabem o que é uma cidade. Mas talvez tivessem
dificuldade em dar uma definição formal de cidade. Uma boa idéia é,
naturalmente, começar por procurar no dicionário a palavra que se quer definir.
“Cidade. [Do latim civitate.] S. f. 1. Complexo demográfico formado, social e
economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, i.e.,
dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural; urbe. ”
(FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, s.d., p. 325. Primeira edição, terceira impressão.)

Trocando em miúdos: cidade é um grande número de pessoas que moram


umas perto das outras, isto é, que formam uma aglomeração e que, se forem
vistas no seu conjunto (como um grupo e, não, indivíduo a indivíduo), se
caracterizam pelo fato de não serem agricultores, isto é, desempenharem
atividades diferentes das que são típicas do campo. Nas cidades de hoje em dia,
que são aquelas em que a definição do dicionário está pensando, essas
atividades seriam por exemplo: governar, comerciar, prestar serviços variados,
fabricar objetos, lidar com dinheiro (como nos bancos), lidar com ideias
(ensinando e estudando, escrevendo e lendo jornais e livros, desenhando casas
ou planejando viadutos, compondo músicas ou pintando quadros, etc.)
O que surgiu primeiro, o campo (e, portanto, a agricultura e a criação de
gado, entre outras atividades) ou a cidade? A resposta correta seria: o campo.
Se os moradores das cidades não plantam nem colhem, se não produzem
alimentos, alguém tem de produzi-los para eles, já que os seres humanos
precisam de comida e bebida para continuar vivendo. Por tal motivo, é
perfeitamente possível imaginar o campo funcionando sem cidades. Aquilo que
o campo recebe das cidades pode ser muito interessante, mas é possível viver
sem isso. Não é possível, porém, imaginar uma cidade funcionando sem que o
campo exista, a não ser que ela comprasse os seus alimentos do estrangeiro.
Mas isto só quer dizer que, num caso desses, o campo de onde viria a comida
que alimenta a cidade estaria localizado mais longe, em outro país. Antes de
surgir a primeira cidade, entretanto, não havia algo a ser chamado de “campo”.
“Campo” e “cidade” só podem ser definidos um em relação ao outro.
Antes de existirem cidades, não haveria razão para inventar uma palavra
que definisse aquilo que não é a cidade. Antes de haver cidades, todas as coisas
que deveriam ser feitas o eram em centros residenciais ou aglomerações,
normalmente não muito grandes, conhecidos como aldeias, ou seja, lugares
onde moram agricultores, pessoas que trabalham a terra ou criam animais.
Nessas aldeias tudo o que devia ser feito se fazia, incluindo a fabricação de
objetos e as trocas que fossem necessárias. Desde que apareceram as primeiras
cidades, porém, passou a haver o que se conhece como uma divisão social do
trabalho. As pessoas do campo deixaram de desempenhar certas tarefas
embora em muitos casos, na Antiguidade, continuassem a desenvolver
atividades artesanais para seu próprio uso para dedicar-se principalmente à
produção de alimentos, enquanto, na cidade, as atividades das pessoas diferiam
daquelas da gente do campo: os que viviam nas cidades eram fabricantes de
objetos (artesãos especializados), comerciantes, sacerdotes (pessoas que

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prestavam serviços religiosos), governantes e assim por diante. A separação
entre cidade e campo é o fundamento inicial de toda divisão social do trabalho.1
Não é difícil imaginar a fundação de cidades novas no mundo de hoje. As
cidades existem há muito tempo a primeira rede urbana apareceu, no que hoje
é o Iraque, há uns cinco mil e duzentos anos e o seu funcionamento é conhecido.
Existem, mesmo, cidades que foram criadas por decisão política, em lugares
onde não existiam antes aglomerações de seres humanos. Foi o que aconteceu,
por exemplo, quando uma nova capital para o Brasil, a cidade de Brasília,
começou a ser construída rapidamente, há pouco mais de quarenta anos, sendo
o governo do país transferido para ela, do Rio de Janeiro onde estava antes, em
1960.
É bem mais difícil, porém, imaginar como e por que surgiram as primeiras
cidades de todas, seja no Velho Mundo, onde já dissemos que as primeiras
apareceram no atual Iraque, uma região que na Antiguidade recebeu dos gregos
o nome de Mesopotâmia, seja no Novo Mundo, no continente americano, que
também teve muitas cidades, as quais apareceram sem que fosse pelo
conhecimento ou pela influência das cidades de outras partes do mundo.
Não é fácil estudar as condições necessárias para que uma cidade
apareça pela primeira vez, sem ter outra mais antiga como modelo. Quando
aconteceram as primeiras cidades, em épocas diferentes, no Velho Mundo e na
América, ninguém sabia ainda ler ou escrever. Não temos, por tal razão, escritos
que nos expliquem como as cidades mais antigas surgiram. Ao tratar de imaginar
em que condições isso foi possível, é preciso usar os ensinamentos que vêm da
Arqueologia. Os arqueólogos estudam o passado da humanidade procurando
artefatos objetos, ou seja, cultura material que ensinem sobre os homens de
antes: restos de edifícios, recipientes como cabaças ou vasos de barro, ossos
dos seres humanos e dos animais que eles criavam (ou caçavam) e consumiam,
o que restou de vegetais coletados na natureza selvagem ou plantados para a
alimentação das pessoas (grãos de cereais que foram queimados no fogo
quando uma refeição se preparava e que, endurecidos, se conservaram, por
exemplo) e muito mais coisas. Quando os restos dos grupos de pessoas do
passado estão enterrados, o arqueólogo faz escavações e os desenterra para
estudá-los.
Pois bem, usando o que os arqueólogos descobrem e também um pouco
de raciocínio, chegamos a definir o que deve ter acontecido para que as
primeiras cidades pudessem começar a aparecer. Em primeiro lugar, seria
preciso que as pessoas que viviam nas aldeias, trabalhavam a terra ou criassem
animais não comessem todos os alimentos por elas produzidos. Se o fizessem,
como poderiam existir outras pessoas que não plantavam nem colhiam, já que
não sobraria nada (em linguagem mais técnica, não haveria um excedente) da
comida que resultava do trabalho da terra e dos rebanhos? Em outras palavras,
o surgimento de cidades dependeu de uma tecnologia agrícola tal que permitisse
uma produção suficiente para que os camponeses gerassem comida para si
mesmos e para pessoas que não trabalhavam a terra nem criavam rebanhos (os
citadinos).
Em segundo lugar, as cidades apareceram onde, antes, havia acontecido
uma concentração anterior de aldeias e seus habitantes. A explicação deste
último ponto é que, ao surgirem cidades pela primeira vez, os instrumentos com

1
SOUTHALL, Aidan. The city in time and space. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 15.

3
que os seres humanos contavam para tirar o alimento da terra as técnicas
agrícolas (entendidas como instrumentos ou ferramentas, enxada arado, foice,
por exemplo, e como os modos de fazer as coisas ao praticar a agricultura)
tinham níveis bastante baixos, apesar do que foi dito antes. Tanto no Velho
Mundo como neste continente, na época em que aparecem as primeiras cidades,
os instrumentos usados para trabalhar a terra ainda eram de madeira, pedra e
corda, mesmo onde já se conhecesse o uso do metal. Sendo assim, foram feitos
cálculos que indicaram no caso do continente americano a necessidade de que
existissem pelo menos cinco habitantes do campo produzindo um excedente de
comida para que pudesse existir cada habitante de cidade.
Por fim, mesmo com uma agricultura ainda atrasada, mas melhorada ao
ponto de produzir um excedente acima do consumo das pessoas das aldeias,
não teriam aparecido cidades sem que outras coisas acontecessem. Se as
famílias de cada aldeia continuassem, como no passado, muito semelhantes
umas às outras, um aumento de comida simplesmente levaria a que as pessoas
comessem mais e melhor e a população dessas aldeias aumentasse. As famílias
de agricultores de uma aldeia entravam em unidades maiores de organização:
linhagens ou grupos de famílias estabelecidos pelas regras de descendência que
definiam, pelos graus de parentesco, quem podia se casar com quem; tribos,
que reuniam várias linhagens. Famílias e linhagens estavam aos poucos se
tornando diferentes: algumas estavam ficando maiores e mais ricas e poderosas
nas aldeias do que outras.
Diversos caminhos puderam levar a uma diferenciação entre as famílias
e linhagens de uma mesma aldeia. Por exemplo, embora a terra, nas sociedades
organizadas em tribos e linhagens, seja um bem comum, distribuído entre as
famílias locais para que a trabalhem e obtenham sua subsistência desse
trabalho, algumas destas famílias podiam decidir realizar trocas, viajando até
outras aldeias: o que ganhassem desta maneira as tornaria, talvez, mais ricas
do que outras famílias que não escolhessem realizar as viagens para trocas,
longas, perigosas e difíceis numa época sem estradas e meios de transporte
eficientes. Também se pode imaginar que uma família (ou linhagem) que, por
razões genéticas, fosse mais resistente que as demais a doenças, tornar-se-ia
com o tempo mais numerosa do que as outras do lugar: se esta tendência se
mantivesse por muito tempo, receberia sempre, devido ao seu próprio tamanho,
mais lotes de terra para sustento do que outras; ou poderia pastorear rebanhos
maiores. Ficaria, então, mais rica do que outras. Famílias ou linhagens maiores
e/ou mais ricas tenderiam a pesar mais nas decisões que a aldeia tomava
coletivamente. O passo seguinte seria tentar transformar a riqueza e o poder
maiores em algo hereditário, ou seja, que passasse de pais para filhos.
Quando as cidades começam a aparecer e a multiplicar-se numa região,
isto se conhece como urbanização (do latim urbs, “cidade”). Ao acontecer em
uma dada parte do mundo, a urbanização traz consigo muitas consequências.
Numa aldeia, cada indivíduo goza da proteção da família, da linhagem, da tribo
inteira. Isto porque o próprio das sociedades organizadas em tribos e aldeias é
que todas as formas em que funcionam coletivamente (governo, religião,
produção de alimentos ou de objetos úteis) dependem dos laços de parentesco
de quem é filho ou filha de quem, irmão ou irmã de quem, tio ou tia e sobrinho
ou sobrinha de quem, sogro ou sogra e genro ou nora de quem, etc. Numa
cidade, quase sempre os laços de parentesco, de linhagem e de tribo se
enfraquecem. As ajudas com que cada pessoa podia contar na aldeia em épocas

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difíceis se enfraquecem também quando isso acontece. Fica mais difícil
enfrentar as épocas ruins, a fome e outras calamidades. Numa linguagem mais
complicada, diz-se que, na cidade, as relações entre as pessoas se tornam mais
anônimas, mais impessoais. Mas também é verdade que a divisão de tarefas
vimos que a isto se chama divisão social do trabalho entre campo e cidade abre
possibilidades também. Um artesão que ao mesmo tempo precisa trabalhar a
terra para sobreviver em sua aldeia, por exemplo (o que se chama de artesão de
tempo parcial) não pode chegar aos graus de habilidade profissional de alguém
que se dedica o tempo todo a ser artesão, ou seja, um artesão de tempo integral.
A divisão entre cidade e campo torna as sociedades mais complexas,
quase sempre contendo igualmente um número maior de pessoas do que no
passado, o que acaba por exigir formas também mais elaboradas de
administração e de governo.
Digamos que alguém viaje a um país estrangeiro muito diferente do Brasil
e queira saber, caso lhe venham dúvidas a respeito, se uma dada aglomeração
é uma cidade pequena ou uma aldeia grande. Não será tão difícil descobri-lo, se
se falar a língua local. Perguntas poderão ser feitas às pessoas e, assim,
descobrir se as atividades delas são, na maioria dos casos, urbanas típicas de
uma cidade ou rurais típicas do campo. Ou mesmo, percorrendo a aglomeração
em questão, será possível tratar de observar o que se faz, como e onde. Mas
como pode decidir um arqueólogo que está escavando, se o que está
descobrindo no momento é uma aldeia grande ou uma cidade pequena, quando
só dispõe de restos de edifícios, objetos, enterros, etc., sobretudo na ausência,
se for o caso, de textos escritos legíveis?
Embora sejam muitas as definições de cidade, é imprescindível, para
considerar como urbana uma aglomeração, que, entre os seus habitantes, uma
parte pelo menos não se dedique a atividades rurais. O arqueólogo Vere Gordon
Childe elaborou uma lista de dez pontos que, tomados em conjunto, permitiriam
resolver arqueologicamente a dúvida, digamos como exemplo, acerca de ser
uma aglomeração dada que se estivesse escavando uma aldeia grande ou uma
cidade pequena. Segundo ele, poder-se-ia definir uma cidade antiga pela
presença de dez características. Adotei a organização delas em dois grupos
efetuada por Charles Redman, que considera as cinco primeiras “primárias” e as
outras cinco, “secundárias”. Isto significa que o primeiro grupo refere-se a traços
sociais fundamentais, enquanto o segundo reúne várias formas de dados
capazes de indicar indiretamente a presença das características primárias.
Assim, a descoberta pelo arqueólogo de obras públicas de dimensões
monumentais − templos decorados de grandes dimensões, por exemplo −
provavelmente indique a existência de um artesanato especializado que
trabalhasse nessas obras e o acesso de quem as decidisse e supervisionasse a
excedentes suficientes para que elas se tornassem possíveis (extração e
transporte de pedra, alimentação dos trabalhadores, presença de artesãos de
alto nível empregados na decoração dos edifícios, etc.) − sendo estas duas
últimas características, em muitos casos, mais difíceis de documentar
arqueologicamente. Eis aqui as dez características arroladas por Gordon Childe,
tais como foram reordenadas por Redman:

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Características primárias:

1. tamanho e densidade populacionais importantes (quando comparados aos de uma aldeia da


mesma sociedade): o tamanho e a densidade maiores de uma população organizada numa
aglomeração significam um nível ampliado de integração social;

2. aparecimento de especialistas de tempo integral especificamente urbanos: institucionaliza- se a


especialização da produção entre os trabalhadores, bem como sistemas de troca e distribuição;

3. concentração de excedentes: surgem meios sociais para recolher e gerir o excedente retirado
de agricultores e artesãos;
4. sociedade estruturada em classes: uma classe governante privilegiada de funcionários
religiosos, administrativos e militares organiza e dirige a sociedade;

5. organização estatal: surge uma organização propriamente política, separada do parentesco;


as pessoas fazem parte de um Estado por nele residirem, não pelos laços de parentesco.

Características secundárias:

6. empreendimento de obras públicas monumentais: a construção de templos, palácios, certas


tumbas, depósitos, etc., estabelece-se como empreendimento coletivo;

7. existência do comércio de longa distância sob controle da classe governante;

8. surgimento de uma arte com estilos definidos e sofisticados: as formas altamente


desenvolvidas da arte expressam identificação simbólica, além de gozo estético;

9. existência da escrita: sua função primeira é facilitar a organização e a gestão;

10. início das ciências exatas e preditivas (Aritmética, Geometria, Astronomia): sua função
primeira, como a da escrita, foi como instrumentos de organização e gestão (calendário,
recenseamento, cálculo do imposto, etc.).2

Ao criar grande número de critérios, Childe estava provavelmente


querendo facilitar as coisas para os arqueólogos, nos casos em que não fossem
ajudados, em sua decisão acerca de ser ou não urbana uma aglomeração, por
documentos escritos abundantes que encontrassem, ou já estivessem
disponíveis para aquele povo e região. No entanto, nem todos os critérios de que
fez a lista são da mesma importância − daí a iniciativa de Redman de separá-los
em dois grupos de relevância desigual −, ou, mesmo, igualmente convincentes.
O primeiro, por exemplo, é fraco: as aldeias podem chegar a ser muito grandes
e densas, além de que, pelo contrário, uma pequena aglomeração será de
qualquer modo uma cidade se contiver funções especialmente urbanas que o
campo não apresente naquela parte do mundo na mesma época em que a
cidade existir (no Egito antigo, a pequena cidade funerária da rainha Khentkaues,
em Giza, tinha uma extensão de somente 0,65 hectares; Elefantina, importante
cidade fronteiriça, tinha só 4,5 hectares de superfície, em contraste com os 460
hectares de Mênfis). Os pontos 6 e 8 são falsos se forem apresentados como
características exclusivamente urbanas: em plena Pré-História européia, por

2
CHILDE, Vere Gordon. “The urban revolution”. The Town Planning Review. 21, 1950, pp. 3-17;
REDMAN, Charles L. The rise of civilization: From early farmers to urban society in the ancient Near East.
San Francisco: W. H. Freeman, 1978, pp. 218-9.

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exemplo, houve monumentos funerários enormes, os megálitos, ou um templo
como o de Stonehenge, no sul da atual Inglaterra, que exigiram enorme
organização e incontáveis grupos de homens trabalhando por muitas horas. E,
há uns quinze mil anos atrás, no período que chamamos de Paleolítico Superior,
havia nas paredes de certas cavernas da Europa ocidental e central, até a região
dos montes Urais, uma arte que representava principalmente animais e tinha,
sem dúvida, estilos definidos e complexos, além de certamente expressar
identidades grupais em forma simbólica. Em defesa de Childe é bom lembrar ser
sua intenção que os elementos listados devessem ser levados em conta em
conjunto, não um a um. Os mais importantes desses elementos como critérios
sine qua non do urbano são − de longe − o 2 e o 4: não se pode chamar de
cidade uma aglomeração, a não ser que ali vivam pessoas que exerçam em
tempo integral atividades diferentes das rurais.

2. Os primórdios da cidade no Oriente Próximo

Livros falam de cidades que teriam existido muito antes das da Suméria,
onde uma rede urbana durável floresceu desde aproximadamente 3 200 a.C.
Assim, mencionam-se com insistência casos como Jericó, na Palestina, Hacilar
e Çatal Hüyük, na Ásia Menor, que datam do IXo ou VIIIo milênio a.C. Jericó, já
no Xo milênio a.C., atraiu caçadores mesolíticos que ali viveram em cabanas
aglomeradas; no milênio seguinte, construiu-se uma maciça muralha de pedra
com pelo menos uma torre, protegendo casas de tijolos redondas, com o teto
abobadado, contendo talvez a aglomeração uma população de duas a três mil
pessoas. Não se fabricava cerâmica; plantavam-se o trigo e a cevada. Tal
povoado, talvez merecendo já ser chamado urbano, ainda existia no VIIIo milênio
a.C., quando suas casas eram mais elaboradas, agora de forma retangular,
embora o assentamento ainda carecesse de cerâmica. No entanto, ocorreu a
seguir o seu abandono e a região não conheceu outras aglomerações urbanas
ou protourbanas por muitos milênios.
Analogamente, Hacilar, na parte sul-central da Anatólia, foi abandonada
após ter conhecido uma fase urbana ou protourbana, sem cerâmica mas com
casas dotadas de interiores caiados ou pintados.
O exemplo mais impressionante é Çatal Hüyük, que no VIIo milênio a.C.
tinha um denso assentamento amuralhado, produzindo têxteis e cerâmica,
verdadeira proto-cidade neolítica. Seus edifícios retangulares, de tijolos crus,
ocupavam uma inclinação, formando fileiras cerradas, tendo entrada pelos tetos
de troncos e palha. A aglomeração apresentava uma arte poderosamente simbólica e
original: cômodos decorados profusamente sugerem santuários ou oratórios numerosos
(1/3 a 1/6 de todos os edifícios até agora escavados: as opiniões variam sobre quais
sejam de fato santuários). O simbolismo manifesta um sistema cognitivo à base de
oposições complementares: natural/cultural, masculino/feminino, vida e fertilidade
criadora/destruição. Aparecem cenas como uma deusa-mãe (às vezes duplicada) ou
um par de leopardos dando à luz um touro, bem como seios modelados em argila com
chifres de touros no lugar dos mamilos. O motivo mais famoso é constituído por fileiras
de cabeças de touros com grandes chifres, decorando paredes e plataformas. Pinturas
murais policromadas representam cenas de caça, abutres atacando humanos sem
cabeça, motivos derivados dos têxteis, até mesmo um panorama da própria cidade com
um vulcão em erupção ao longe. Entretanto, também Çatal Hüyük foi abandonada e não

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mais ocupada, sem que em sua região surgissem, por milênios, outras aglomerações
que pudessem considerar-se urbanas ou proto-urbanas.

Assim, mesmo sem desprezar estes ensaios muitos antigos e outros,


como Jarmo, imediatamente ao norte da Baixa Mesopotâmia, ou ainda,
exemplos reivindicados pelos arqueólogos da Síria , até o presente não se
descobriram redes urbanas, nem continuidade no desenvolvimento urbano,
antes daquelas observadas na Suméria a partir de aproximadamente 3 200 a.C.
O caso do Egito, no tocante à urbanização, é um pouco posterior e apresenta
numerosas peculiaridades quando comparado ao da Baixa Mesopotâmia, por ter
a urbanização completa ocorrido já sob o domínio de um Estado monárquico
centralizado.
3. As cidades iniciais da Baixa Mesopotâmia

Duas características marcantes da Baixa Mesopotâmia dos IVo/IIIo


milênios a.C. eram: 1) a escrita; 2) a urbanização. Existe estreita ligação entre
tais características: toda a documentação escrita (e a maior parte da
arqueológica também) deriva da cidade. Daí resulta uma visão orientada em
favor da cidade e expressam-se preconceitos, pois vemos o campo por olhos de
citadinos, que falam só do que, no rural, lhes interessa.
O levantamento arqueológico (survey) permite distinguir uma hierarquia
de assentamentos em que se diferenciam cidades e aldeias. Naturalmente, a
hierarquia diz respeito a grandezas diferentes em distintos períodos, mas o que
importa é a posição relativa de cada assentamento na mencionada escala. Na
visão dos próprios mesopotâmios, uma cidade deveria ter certas características:
1) possuir um ou mais santuários de importância no mínimo regional (identidade
religiosa); 2) ser cercada por uma muralha (simbolizando sua identidade como
centro de poder). Estes pontos são amplamente confirmados pela Arqueologia.
Os modernos acrescentam que as cidades com freqüência funcionavam como
centros econômicos e políticos.
As dimensões das cidades, em qualquer período que se tomar, variavam
muito quando as comparamos entre si. Por exemplo, no Período Dinástico Inicial
do IIIo milênio a.C., num extremo teríamos, por exemplo, Uruk cujas muralhas
tinham uma extensão de 9 km e cercavam 400 hectares; no outro, Abu Salabik,
cuja porção murada o é por uma muralha de 1,3 km de extensão que cercava 10
hectares. As muralhas, com o tempo, confinaram excessivamente as cidades em
expansão. Duas soluções básicas foram adotadas: a criação de bairros extra-
muros (como em Sippar no início do IIo milênio a.C.); ou a demolição da muralha
antiga e sua substituição por outra que cercasse um terreno maior (como em
Eshnunna na mesma época). A descrição das muralhas de Uruk na epopéia de
Gilgamesh mostra, outrossim, que as muralhas urbanas podiam proteger
também elementos rurais (no caso, bosques de tamareiras e ainda,
provavelmente, pastos para ovelhas, já que um dos 8 epítetos da cidade era
“Uruk, redil de ovelhas”), bem como poços de argila para fabricar tijolos.
Os conhecimentos acerca da disposição interna do espaço na zona
urbana têm grandes lacunas. Por exemplo, embora muitos manuais afirmem
categoricamente a existência de bairros ou ruas onde se agrupavam as pessoas
segundo as profissões e os artesãos por ofícios, isto não tem base arqueológica
firme para os primeiros tempos: entre os primeiros casos em que tal

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característica parece poder comprovar-se estão Ur na primeira metade do IIo
milênio a.C. e, na mesa época, Nippur. Em algumas ocasiões, indícios materiais
indiretos (certos detritos de fabricação de artefatos de barro, por exemplo,
indicando a presença de oleiros) podem ajudar a formulação de hipóteses, na
falta de documentos escritos. Analogamente, é difícil identificar mercados ou
bairros onde se concentrassem comerciantes; até mesmo a noção de comércio
a varejo é controvertida (havia, entretanto, o que parecem ser lojas em Sippar
no início do IIo milênio a.C.). O cais ou karum está, entretanto, comprovado:
como os estabelecimentos comerciais assírios na Anatólia eram assim
chamados, pode ser que o cais atraísse à sua volta uma população de
comerciantes cuja existência, independentemente de determinar onde se
situavam dentro das cidades, está bem estabelecida desde o final do IVo milênio
a.C., quando agiam como funcionários da cidade.
Outro assunto difícil de abordar é o tamanho da população urbana. As
fontes escritas são parcas em informações a respeito; e, quando existem,
normalmente se referem a uma categoria específica de pessoas, não a todos os
habitantes (assim, temos listas de quantos amoritas viviam em cada bairro de
Eshnunna no início do IIo milênio a.C.). Alguns autores assumiram uma cifra que
variasse entre 100 e 400 habitantes por hectare para calcular a população
urbana, mas isto se baseou na observação de cidades atuais do Oriente
Próximo, um critério perigoso. Um enfoque derivado da etnografia comparada
consiste em atribuir 10 metros quadrados de espaço com teto, nas construções
residenciais, a cada pessoa. Só nos casos em que se escavam superfícies
amplas, com quarteirões e casas bem estabelecidos arqueologicamente, é
possível, levando em conta o detalhe das construções e seus tipos, diferenciar
os usos variados do espaço urbano com alguma base.
A cidade mesopotâmica era marcada pela presença de algumas
instituições. Thorkild Jacobsen mostrou a existência de uma “democracia
primitiva” na Baixa Mesopotâmia, com um conselho de anciãos e uma
assembléia dos homens mais jovens, capazes de serviço militar: com perda
progressiva de poderes políticos efetivos, mas conservando atribuições
judiciárias, tais organismos permaneceram em existência pelo menos até a
primeira metade do IIo milênio a.C. Mais ao norte, na Assíria, os poderes
políticos do conselho de anciãos se mantiveram por muito mais tempo. Não
sabemos onde se reuniam assembléia ou conselho: alguns afirmam que junto
aos portões das cidades; mais provavelmente, no pátio do templo principal. É
possível que tais órgãos coletivos, nos períodos imperiais, assessorassem os
prefeitos na administração urbana.
Do ponto de vista administrativo, diferentes setores da cidade eram
percebidos como unidades, chamados de “bairros” ou “vizinhanças”. Uma
hipótese atual afirma que sua organização copiava a das aldeias. Há autores
que postulam uma longa dependência deste tipo de organização para com as
estruturas do parentesco; outros, pelo contrário, enxergam uma tensão entre
ambos os níveis ou instituições. No Período Dinástico Primitivo, em certos casos
os bairros ou vizinhanças aparecem separados por muralhas. Percebem-se
sinais da persistência de grupos de parentesco (famílias extensas) pelo menos
até finais do IIIo milênio a.C. Quando Gudea de Lagash construiu o templo
Eninnu em Girsu, uma dependência de Lagash, usou o trabalho de três
entidades chamadas de clãs (im-ru em sumério), com nomes de deuses
(Ningirsu, Nanshe e Inanna) e estandartes próprios, que parecem representar

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grupos de parentes. Alguns outros documentos restaram que nomeiam clãs: por
exemplo, em Shuruppak, no Período Dinástico Primitivo, um texto menciona 539
rapazes de sete clãs. A pouca presença deste último termo nos documentos
oficiais poderia indicar ter caráter mais consuetudinário do que legal.
Cada cidade tinha seu campo à volta, dela dependente
administrativamente e mantendo com ela estreita simbiose. Os arquivos da
cidade de Girsu, subordinada a Lagash, tratavam, no IIIo milênio a.C.,
majoritariamente de assuntos agrários. A cidade de Shuruppak, em meados do
mesmo milênio, possuía suas próprias equipes de pessoas destinadas a arar a
terra. Sabemos que as aldeias, embora dependentes da administração urbana,
tinham instituições específicas, de alcance local, com autonomia relativa para
assuntos internos. Uma das dificuldades ao estudar as fontes é que, em
acadiano, o termo alum se aplica por igual a cidades e aldeias. No Código de
Hammurabi se lê (no parágrafo 36) que cada aldeia seria tornada responsável
pelos crimes cometidos em seu território. Cada uma delas tinha um prefeito,
assessorado por um conselho de anciãos. Adicionalmente a atribuições
judiciárias de primeira instância, as instituições aldeãs cuidavam dos direitos
sobre a água, do pousio (descanso do solo) e de outros assuntos agrários.
Além das aldeias sedentárias, a cidade mesopotâmica com muita
freqüência estava em contato ou tratava de governar também comunidades de
nômades ou seminômades. Estes podiam eventualmente sedentarizar-se, ou
buscavam trabalho militar, doméstico e rural nas zonas sedentárias. Criavam
gado para seu próprio uso, mas também para vender aos sedentários. Tais
grupos tinham estrutura tribal e a descendência patrilinear era, neles, da maior
importância na classificação social. A nomenclatura aplicada nos documentos
escritos aos grupos beduínos é confusa e mutável, como eles próprios talvez
fossem. Alguns dos grupos tribais tinham uma porção sedentária e outra nômade
ou seminômade (os textos de Ur III mostram que era o caso dos amoritas no final
do IIIo milênio a.C.).
As cidades da Baixa Mesopotâmia formavam verdadeiras redes urbanas.
Um dos métodos utilizados para estudá-las arqueologicamente é o do geógrafo
alemão Walter Christaller para explicar a distribuição dos negócios num
ambiente urbano moderno, num raciocínio baseado no número mínimo de
pessoas necessário para sustentar cada tipo específico de estabelecimento.
Esta teoria prevê o aparecimento de hierarquias de comunidades, formando
padrões hexagonais. Uma aldeia tenderá a localizar-se num ponto eqüidistante
de seis aglomerações menores, um povoado num ponto eqüidistante de seis
aldeias e uma cidade num ponto eqüidistante de seis povoados. Naturalmente,
o padrão hexagonal de distribuição espacial só pode ser uma aproximação
grosseira, mas o mais importante é mostrar a existência de certa regularidade
previsível na espacialidade das redes integradas de aglomerações de diferentes
tamanhos, provedoras de bens e serviços variados. Um exemplo da aplicação
do modelo de Christaller à Antiguidade próximo-oriental foi o estudo de Gregory
Johnson sobre a relação hierárquica de Uruk com o território à sua volta entre
3300 e 3100 a.C., quanto ao fluxo de objetos (menos ou mais raros) trocados ao
longo de certas rotas em que certos lugares podem identificar-se como pontos
hierarquizados de distribuição, levando em conta 95 sítios distribuídos em quatro
níveis de tamanho: 54 aldeias menores, 28 aldeias maiores, 8 centros menores
e 5 centros maiores (incluindo a cidade de Uruk).

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Que idéia faziam de suas cidades os próprios habitantes da Mesopotâmia
antiga? Em uns poucos casos, temos a sorte de contar com espécies de mapas
ou plantas de aglomerações urbanas, em certos casos bastante confiáveis
(mostra-o a Arqueologia) na representação do espaço organizado.
Existia íntima ligação, na Antiguidade, entre a identidade urbana e a
presença de um deus no templo principal da cidade; e, mais em geral, havia forte
noção de que, de certo modo, a cidade “pertencia” ao deus local ou étnico. Tal
idéia era especialmente forte na Mesopotâmia. Ali, predominava a idéia de que
os homens foram criados para o serviço dos deuses. Já antes do dilúvio, o deus
supremo (neste caso, provavelmente Enlil) fundara pessoalmente as cinco
primeiras cidades-Estado, dando-lhes os seus nomes e atribuindo cada uma a
uma divindade como centro de seu culto:

A primeira destas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud (isto é, Enki), o líder; a
segunda, Badtibira, ele deu a Latarak; a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag; a
quarta, Sippar, ele deu ao herói Utu; a quinta, Shuruppak, ele deu a Sud [isto é, Ninlil,
esposa de Enlil].

A íntima ligação entre o deus e a cidade tornava necessário e difícil


explicar que as cidades, contando com tal presença permanente do divino em
seu interior, pudessem cair em mãos inimigas mesmo assim; ainda mais, que
tais inimigos se apossassem também dos santuários e, eventualmente, das
imagens sagradas e outros objetos de culto, que pudessem até saquear e
destruir os templos em questão. Como se trata, nos textos próximo-orientais, do
tema da queda das cidades? A regra geral é que o deus local, ou os deuses
locais, se retiram antes que os inimigos terminem de apossar-se da cidade e do
templo. Um deus não podia ser vencido ou conquistado, sendo preciso, portanto,
elaborar a ficção de que, pela razão que fosse infrações rituais, a iniqüidade dos
homens , ou mesmo sem uma razão clara, a divindade havia deixado o templo
e a cidade antes que o inimigo pudesse penetrar no santuário.
Para dar um exemplo, Naram-suen (2254-2218 a.C.), neto de Sargão, o
Antigo, foi o fundador do Império de Akkad, cuja capital era Agadé. Um poema
muito posterior aos fatos, relativo à maldição da cidade de Agadé e sua queda
em mãos dos gútios dos Zagros, no século XXII a.C. portanto, muito depois da
morte de Naram-suen , atribuía tais fatos a ter este monarca saqueado Nippur,
a cidade de Enlil e centro legitimador do poder sobre a Baixa Mesopotâmia. Em
tal ocasião, os deuses se reuniram em assembléia e apoiaram o ofendido Enlil,
lançando sobre Agadé terrível maldição:

Que teus vergéis sejam empilhados como poeira. (...) Que teus tijolos de barro
voltem às profundezas do solo. (...) Que teu palácio, construído com coração alegre,
torne-se uma ruína desolada. (...) Que, no lugar onde teus ritos e rituais eram realizados,
a raposa, que habita as cidades arruinadas, agite sua cauda. (...) Que nenhum ser
humano caminhe (ali) devido às cobras, insetos e escorpiões. (...)

A partir do IIo milênio a.C., a cidade de Babilônia e seu deus Marduk


passaram a reivindicar uma autoridade religiosa e política semelhante à que, no
passado, fora de Nippur e de Enlil. Entretanto, em função da queda de sua
cidade, Marduk (isto é, sua estátua de culto) iria sofrer períodos de cativeiro e
exílio estrangeiro. O primeiro ocorreu após o saque de Babilônia pelos hititas
(1595 a.C.), Marduk amargou um quarto de século de cativeiro entre os
vencedores, sendo resgatado pela nova dinastia cassita de Babilônia.

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Outro episódio pertinente refere-se ao derradeiro rei mesopotâmio da
Babilônia, Nabonido (555-539 a.C.), na época final do efêmero Império
Neobabilônico. Nabonido não pertencia à família real. Sua mãe, Adda Guppi, era
sacerdotisa ou, pelo menos, fora consagrada ao deus lunar Sin em Harrã.
Nabonido, aparentemente criado por sua mãe em íntima relação com o culto de
Sin em sua modalidade de Harrã, teve um sonho em que Marduk e Sin em
conjunto lhe ordenaram (mais adiante no reinado, atribuiu a ordem a Sin sozinho)
que reconstruísse o templo de Sin em Harrã, chamado Ehulhul ou “casa de
alegria”, destruído quando dos combates dos medos e babilônios para a
derrubada do Império Assírio em 612 a.C. O monarca não deixou de afirmar em
sua inscrição que, previamente à queda da cidade e do santuário, Sin
abandonara seu templo e subira ao céu.
A cidade, na Mesopotâmia e, mais em geral, na Ásia ocidental, tal como a viam
os que a habitavam e a descreveram, tinha três presenças mais características:
muralha, templo e palácio. Embora houvesse assentamentos fora dos muros, as
muralhas defensivas, que separavam a cidade interior do território não fortificado
de seus arredores, era condição sine qua non para que uma aglomeração
pudesse ser considerada urbana. Pela mesma razão, as muralhas estão sempre
presentes na iconografia das cidades do oeste da Ásia. Quanto ao templo e ao
palácio, são tão importantes quanto as muralhas na determinação do espaço da
cidade. Segundo Marc van de Mieroop, em seu livro sobre a antiga cidade
mesopotâmica:

...no conceito mesopotâmico de cidade duas idéias predominavam: ela era ao mesmo
tempo um centro religioso e um centro político. O templo e o palácio eram instituições
urbanas básicas e eram as instituições que definiam uma cidade. Na mente
mesopotâmica, a cidade fazia contraste com a estepe e com o deserto, onde um
assentamento permanente era impossível. Muitos governantes tinham antepassados
nômades, mas tal passado não era razão de orgulho muito pelo contrário.3

Ambos os níveis institucionais o templo como sede da divindade, o palácio


como residência do rei mantinham múltiplas ligações, sustentadas por elementos
míticos. Por exemplo, no IIIo milênio a.C., a teoria da monarquia afirmava, na
Baixa Mesopotâmia, que o rei era nomeado para seu ofício pelo deus de sua
cidade de nascimento, numa assembléia dos deuses reunida em Nippur (onde
ficava o Ekur, templo de Enlil). Como, na mente mesopotâmica, a cidade e seu
deus eram equivalentes, o conselho dos deuses equivalia a um conselho das
cidades e, ao mesmo tempo, Nippur tinha um status diferente das outras
cidades- Estado do Sul da Mesopotâmia, como centro da legitimação dos reis de
Sumer e Akkad. A posse de Nippur permitia que um rei adotasse certos títulos e
assumisse um status hegemônico, pelo menos virtual, sobre Sumer e Akkad.
Sendo a cidade ao mesmo tempo o símbolo e a condição da vida civilizada, os
citadinos do oeste da Ásia, quando se referiam aos nômades circundantes,
sempre apontavam, pejorativamente, o fato de não terem muralhas, palácios e
templos não terem cidades, portanto.

3
3 DE MIEROOP, Marc van. The ancient Mesopotamian city. Oxford-New York: Oxford University Press,
1999, p. 52.

12
4. Um exemplo egípcio: Akhetaton (Amarna), capital do século XIV a.C.

No quarto ano de seu reinado (por volta de 1347 a.C.), o faraó e


reformador religioso Akhenaton, da XVIII dinastia, começou a construção de uma
nova capital consagrada ao seu deus - Akhetaton (, em transcrição fonética Axt-
itn) ou “Horizonte do disco solar” -, no local hoje chamado Tell el-Amarna (há
autores que preferem dizer simplesmente Amarna), no Médio Egito, onde passou
a residir a partir do seu sexto ano de reinado.
Embora situada junto à margem leste do Nilo, numa planície
grosseiramente retangular enquadrada por colinas rochosas, trata-se de uma
região desértica, o que complicava a questão do abastecimento de água: por
isto, a cidade se estende de nordeste a sudoeste por uns sete quilômetros, ao
longo e na proximidade imediata do Nilo. Outrossim, no caso dos bairros situados
mais longe do rio, cavaram-se grandes poços, às vezes muito profundos.
Construída numa área não cultivável e vasta, Akhetaton não tinha o problema
das outras cidades egípcias do Vale, nas quais o espaço urbano competia com
as atividades rurais pelo rico solo aluvial, o que levava a uma concentração
vertical (casas com mais de um andar, celeiros no teto) e a que as residências
se amontoassem umas sobre as outras. Em Amarna, pelo contrário, a cidade
pôde espraiar-se livremente, em especial as residências dos ricos com seus
jardins e silos.
Como era de regra nas cidades egípcias, as ruas não tinham calçamento.
Inexistia uma rede de esgotos. O lixo era amontoado no deserto, a leste da
cidade, ou em terrenos baldios, sendo às vezes cremado. Também se usou, para
depositá-lo, um conjunto de grandes buracos abertos para obter areia para as
construções.
Na margem oposta do Nilo ficavam as explorações agrícolas de onde vinham,
principalmente, as provisões que abasteciam a cidade. Maciças doações de
terras foram feitas, ali, aos templos solares de Akhetaton, os quais,
provavelmente, como era usual no Reino Novo egípcio, arrendavam a
particulares boa parte de seus domínios rurais.
Abandonada depois de poucas décadas de uso, Akhetaton, também pelo
fato de ter sido fundada em terra desértica, é uma mina de informações sobre a
urbanística egípcia. Foi escavada em diversas ocasiões e, recentemente, voltou
a atrair uma nova expedição egiptológica (britânica). Embora o sítio tenha sofrido
muitas depredações (antigas e modernas), a estrutura urbana aparece com
grande clareza.
Certas concepções tradicionais acerca de Akhetaton vêm sendo
abandonadas com o avanço das pesquisas. Assim, por exemplo, a idéia de se
tratar de uma aglomeração totalmente planificada e regular. Pelo contrário, se
alguma planificação se percebe em sua parte central religiosa, real,
administrativa e militar (além de conter uma importante manufatura estatal de
vidro) , chamada hoje de “cidade central” e, pelos egípcios antigos, de “a ilha”
(ou, foneticamente, iw), o mesmo não se pode dizer dos principais bairros
residenciais, batizados pelos modernos de “subúrbio do norte” e “subúrbio” ou
“cidade do sul”. Havia um bloco claramente planificado de casas contíguas para
pessoas pobres no centro urbano (chamado de “aldeia central” pelos modernos)
e outro longe do resto da cidade, na direção leste, também planificado, onde
viviam, cercados de muralhas e muito vigiados, os artesãos e artistas que

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construíam e decoravam as tumbas reais, neste caso situadas no oriente (e não
no ocidente, como em Tebas ou Mênfis).
Outra concepção que foi preciso abandonar refere-se à “segregação
social” que estaria presente na estrutura espacial da cidade. Com exceção do
povoado dos construtores de tumbas, realmente segregado, de fato as mansões
dos exaltados personagens da corte e dos templos mesclavam-se com ou talvez,
mais exatamente, eram cercadas por casas de pessoas humildes que lhes
proviam mão-de-obra, bens e serviços.
Isto foi estudado em detalhe por Barry J. Kemp no concernente aos bairros
residenciais o “subúrbio do norte” e o “subúrbio do sul”. Ele mostrou que esses
bairros na verdade podem ser divididos em complexos formados, cada um, por
uma mansão e pelas pequenas casas que a cercavam por nela acharem
remuneração para trabalhos diversos. Tais mansões de tamanho bastante
variável possuíam grandes celeiros para armazenagem de cereais, muito
maiores do que os achados em Tebas Ocidental. Assim, eram, claramente,
centros de concentração/redistribuição de excedentes agrícolas, do mesmo tipo
(só que, claro, em escala muito menor) daqueles constituídos pelo palácio real e
pelos templos. Os grandes funcionários e sacerdotes que viviam nas mansões
entravam sem dúvida, por sua vez, nos sistemas de rações estatais; mas
dispunham também de domínios rurais próprios (privados ou de função), além
de provavelmente arrendarem terras dos templos. Nestas condições, cada uma
das mansões era como o centro de uma espécie de “aldeia”, formando o conjunto
uma unidade quase autônoma, mesmo estando situada dentro do espaço
urbano.
No tocante à composição da população de Akhetaton, calcula-se que os
grupos dominantes formassem de 7 a 9 % dela, os burocratas menores,
sacerdotes de hierarquia mais baixa e artesãos qualificados, entre 34 e 37%, e
os populares, entre 54 e 59%.
Estes complexos concentravam também atividades artesanais,
paralelamente às grandes oficinas dos templos e palácios; a Arqueologia o
demonstra, além de sugerir a existência de algum artesanato independente.
Kemp acredita que os magnatas que estavam à frente dos mencionados
complexos negociavam excedentes agrícolas para obter lucros, vendendo-os à
população urbana. No entanto, é difícil segui-lo neste particular, já que, dada a
estruturação econômico-social do Egito antigo, tal população era composta, ou
por pessoas que tinham acesso (através de propriedade, usufruto ou
arrendamento) à terra, ou por aqueles que viviam da distribuição de rações.
Embora tal estrutura não elimine a possibilidade de um mercado, certamente a
limita.
A interpenetração do rural e do urbano em Akhetaton é vividamente retratada na
iconografia amarniana. Um bom exemplo é a representação, na tumba do chefe
de polícia Mahu, de uma procissão de camponeses e camponesas que,
diariamente, traziam aos policiais suas provisões perecíveis: verduras, peixes,
leite, etc.
Os arquivos diplomáticos escritos em cuneiforme e descobertos em Tell el-
Amarna permitem, entre outras coisas, vislumbrar alguns aspectos do comércio
que unia a cidade com o Mediterrâneo e a Ásia Ocidental. Condutores de
caravanas e mercadores podiam ser usados também para missões diplomáticas
pelos reis asiáticos. Como sempre ocorria no Egito do Reino Novo, os
comerciantes que eram com freqüência estrangeiros residentes trabalhavam

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para os templos, sob estreita supervisão. O Egito não conhecia um grande
comércio privado como o que se desenvolveu na Mesopotâmia.
Um caso especial a considerar em Amarna é o que se poderia chamar de
“circuito real”. O rei e sua família tinham residências privadas (palácios situados
ao norte, longe do centro, uma casa no próprio centro) e um palácio “oficial” ou
público no centro da cidade. A vida privada da família real se situava,
espacialmente ao norte, separada da vida pública que tinham o faraó e a rainha
no contexto da burocracia estatal e de corte. A passagem de um espaço ao outro
se fazia com aparato: cavalgadas em carros puxados por cavalos, levando o rei
e a rainha, ocasionalmente com suas filhas, da residência setentrional ao centro
para adorar publicamente o Aton ou disco solar (havia também espaços íntimos
de culto nas residências reais e nas mansões de personagens da corte, nas
quais o culto à própria família real se juntava ao do Aton), ou para outras
ocasiões de Estado. Ao contrário do que se pensa comumente, a reforma de
Akhenaton não era “monoteísta”, mas sim, baseada num dualismo em que havia
um só deus celeste e um só deus terrestre (o rei), segundo outros, numa tríade
divina reunindo o Aton (pai e mãe de tudo o que existe), o rei e a rainha. O caráter
altamente abstrato da divindade solar de Amarna necessariamente levava a que
grande ênfase fosse posta nas aparições públicas do governante divino e sua
família, ou mesmo nos aspectos da vida privada de tal família que se escolhesse
divulgar iconograficamente.

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Indicações bibliográficas:

ADAMS, Robert McC. The evolution of urban society: Early Mesopotamia


and Prehispanic Mexico. Chicago: Aldine, 1966.
DE MIEROOP, Marc van. The ancient Mesopotamian city. Oxford-New
York: Oxford University Press, 1999.
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mundo antiguo. Madrid: Instituto Español de Arqueología, 1966.
HUDSON, Michael e LEVINE, Baruch A. (orgs.). Urbanization and land
ownership in the ancient Near East. Cambridge (Mass.): Peabody Museum of
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SAGGS, H. W. F. Civilization before Greece and Rome. New Haven-
London: Yale University Press, 1989.
SÉE, Geneviève. Grandes villes de l’Égypte antique. Ivry: Serg, 1974.

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