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I. O surgimento de cidades no antigo Oriente Próximo
Todos acham que sabem o que é uma cidade. Mas talvez tivessem
dificuldade em dar uma definição formal de cidade. Uma boa idéia é,
naturalmente, começar por procurar no dicionário a palavra que se quer definir.
“Cidade. [Do latim civitate.] S. f. 1. Complexo demográfico formado, social e
economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, i.e.,
dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural; urbe. ”
(FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, s.d., p. 325. Primeira edição, terceira impressão.)
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prestavam serviços religiosos), governantes e assim por diante. A separação
entre cidade e campo é o fundamento inicial de toda divisão social do trabalho.1
Não é difícil imaginar a fundação de cidades novas no mundo de hoje. As
cidades existem há muito tempo a primeira rede urbana apareceu, no que hoje
é o Iraque, há uns cinco mil e duzentos anos e o seu funcionamento é conhecido.
Existem, mesmo, cidades que foram criadas por decisão política, em lugares
onde não existiam antes aglomerações de seres humanos. Foi o que aconteceu,
por exemplo, quando uma nova capital para o Brasil, a cidade de Brasília,
começou a ser construída rapidamente, há pouco mais de quarenta anos, sendo
o governo do país transferido para ela, do Rio de Janeiro onde estava antes, em
1960.
É bem mais difícil, porém, imaginar como e por que surgiram as primeiras
cidades de todas, seja no Velho Mundo, onde já dissemos que as primeiras
apareceram no atual Iraque, uma região que na Antiguidade recebeu dos gregos
o nome de Mesopotâmia, seja no Novo Mundo, no continente americano, que
também teve muitas cidades, as quais apareceram sem que fosse pelo
conhecimento ou pela influência das cidades de outras partes do mundo.
Não é fácil estudar as condições necessárias para que uma cidade
apareça pela primeira vez, sem ter outra mais antiga como modelo. Quando
aconteceram as primeiras cidades, em épocas diferentes, no Velho Mundo e na
América, ninguém sabia ainda ler ou escrever. Não temos, por tal razão, escritos
que nos expliquem como as cidades mais antigas surgiram. Ao tratar de imaginar
em que condições isso foi possível, é preciso usar os ensinamentos que vêm da
Arqueologia. Os arqueólogos estudam o passado da humanidade procurando
artefatos objetos, ou seja, cultura material que ensinem sobre os homens de
antes: restos de edifícios, recipientes como cabaças ou vasos de barro, ossos
dos seres humanos e dos animais que eles criavam (ou caçavam) e consumiam,
o que restou de vegetais coletados na natureza selvagem ou plantados para a
alimentação das pessoas (grãos de cereais que foram queimados no fogo
quando uma refeição se preparava e que, endurecidos, se conservaram, por
exemplo) e muito mais coisas. Quando os restos dos grupos de pessoas do
passado estão enterrados, o arqueólogo faz escavações e os desenterra para
estudá-los.
Pois bem, usando o que os arqueólogos descobrem e também um pouco
de raciocínio, chegamos a definir o que deve ter acontecido para que as
primeiras cidades pudessem começar a aparecer. Em primeiro lugar, seria
preciso que as pessoas que viviam nas aldeias, trabalhavam a terra ou criassem
animais não comessem todos os alimentos por elas produzidos. Se o fizessem,
como poderiam existir outras pessoas que não plantavam nem colhiam, já que
não sobraria nada (em linguagem mais técnica, não haveria um excedente) da
comida que resultava do trabalho da terra e dos rebanhos? Em outras palavras,
o surgimento de cidades dependeu de uma tecnologia agrícola tal que permitisse
uma produção suficiente para que os camponeses gerassem comida para si
mesmos e para pessoas que não trabalhavam a terra nem criavam rebanhos (os
citadinos).
Em segundo lugar, as cidades apareceram onde, antes, havia acontecido
uma concentração anterior de aldeias e seus habitantes. A explicação deste
último ponto é que, ao surgirem cidades pela primeira vez, os instrumentos com
1
SOUTHALL, Aidan. The city in time and space. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 15.
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que os seres humanos contavam para tirar o alimento da terra as técnicas
agrícolas (entendidas como instrumentos ou ferramentas, enxada arado, foice,
por exemplo, e como os modos de fazer as coisas ao praticar a agricultura)
tinham níveis bastante baixos, apesar do que foi dito antes. Tanto no Velho
Mundo como neste continente, na época em que aparecem as primeiras cidades,
os instrumentos usados para trabalhar a terra ainda eram de madeira, pedra e
corda, mesmo onde já se conhecesse o uso do metal. Sendo assim, foram feitos
cálculos que indicaram no caso do continente americano a necessidade de que
existissem pelo menos cinco habitantes do campo produzindo um excedente de
comida para que pudesse existir cada habitante de cidade.
Por fim, mesmo com uma agricultura ainda atrasada, mas melhorada ao
ponto de produzir um excedente acima do consumo das pessoas das aldeias,
não teriam aparecido cidades sem que outras coisas acontecessem. Se as
famílias de cada aldeia continuassem, como no passado, muito semelhantes
umas às outras, um aumento de comida simplesmente levaria a que as pessoas
comessem mais e melhor e a população dessas aldeias aumentasse. As famílias
de agricultores de uma aldeia entravam em unidades maiores de organização:
linhagens ou grupos de famílias estabelecidos pelas regras de descendência que
definiam, pelos graus de parentesco, quem podia se casar com quem; tribos,
que reuniam várias linhagens. Famílias e linhagens estavam aos poucos se
tornando diferentes: algumas estavam ficando maiores e mais ricas e poderosas
nas aldeias do que outras.
Diversos caminhos puderam levar a uma diferenciação entre as famílias
e linhagens de uma mesma aldeia. Por exemplo, embora a terra, nas sociedades
organizadas em tribos e linhagens, seja um bem comum, distribuído entre as
famílias locais para que a trabalhem e obtenham sua subsistência desse
trabalho, algumas destas famílias podiam decidir realizar trocas, viajando até
outras aldeias: o que ganhassem desta maneira as tornaria, talvez, mais ricas
do que outras famílias que não escolhessem realizar as viagens para trocas,
longas, perigosas e difíceis numa época sem estradas e meios de transporte
eficientes. Também se pode imaginar que uma família (ou linhagem) que, por
razões genéticas, fosse mais resistente que as demais a doenças, tornar-se-ia
com o tempo mais numerosa do que as outras do lugar: se esta tendência se
mantivesse por muito tempo, receberia sempre, devido ao seu próprio tamanho,
mais lotes de terra para sustento do que outras; ou poderia pastorear rebanhos
maiores. Ficaria, então, mais rica do que outras. Famílias ou linhagens maiores
e/ou mais ricas tenderiam a pesar mais nas decisões que a aldeia tomava
coletivamente. O passo seguinte seria tentar transformar a riqueza e o poder
maiores em algo hereditário, ou seja, que passasse de pais para filhos.
Quando as cidades começam a aparecer e a multiplicar-se numa região,
isto se conhece como urbanização (do latim urbs, “cidade”). Ao acontecer em
uma dada parte do mundo, a urbanização traz consigo muitas consequências.
Numa aldeia, cada indivíduo goza da proteção da família, da linhagem, da tribo
inteira. Isto porque o próprio das sociedades organizadas em tribos e aldeias é
que todas as formas em que funcionam coletivamente (governo, religião,
produção de alimentos ou de objetos úteis) dependem dos laços de parentesco
de quem é filho ou filha de quem, irmão ou irmã de quem, tio ou tia e sobrinho
ou sobrinha de quem, sogro ou sogra e genro ou nora de quem, etc. Numa
cidade, quase sempre os laços de parentesco, de linhagem e de tribo se
enfraquecem. As ajudas com que cada pessoa podia contar na aldeia em épocas
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difíceis se enfraquecem também quando isso acontece. Fica mais difícil
enfrentar as épocas ruins, a fome e outras calamidades. Numa linguagem mais
complicada, diz-se que, na cidade, as relações entre as pessoas se tornam mais
anônimas, mais impessoais. Mas também é verdade que a divisão de tarefas
vimos que a isto se chama divisão social do trabalho entre campo e cidade abre
possibilidades também. Um artesão que ao mesmo tempo precisa trabalhar a
terra para sobreviver em sua aldeia, por exemplo (o que se chama de artesão de
tempo parcial) não pode chegar aos graus de habilidade profissional de alguém
que se dedica o tempo todo a ser artesão, ou seja, um artesão de tempo integral.
A divisão entre cidade e campo torna as sociedades mais complexas,
quase sempre contendo igualmente um número maior de pessoas do que no
passado, o que acaba por exigir formas também mais elaboradas de
administração e de governo.
Digamos que alguém viaje a um país estrangeiro muito diferente do Brasil
e queira saber, caso lhe venham dúvidas a respeito, se uma dada aglomeração
é uma cidade pequena ou uma aldeia grande. Não será tão difícil descobri-lo, se
se falar a língua local. Perguntas poderão ser feitas às pessoas e, assim,
descobrir se as atividades delas são, na maioria dos casos, urbanas típicas de
uma cidade ou rurais típicas do campo. Ou mesmo, percorrendo a aglomeração
em questão, será possível tratar de observar o que se faz, como e onde. Mas
como pode decidir um arqueólogo que está escavando, se o que está
descobrindo no momento é uma aldeia grande ou uma cidade pequena, quando
só dispõe de restos de edifícios, objetos, enterros, etc., sobretudo na ausência,
se for o caso, de textos escritos legíveis?
Embora sejam muitas as definições de cidade, é imprescindível, para
considerar como urbana uma aglomeração, que, entre os seus habitantes, uma
parte pelo menos não se dedique a atividades rurais. O arqueólogo Vere Gordon
Childe elaborou uma lista de dez pontos que, tomados em conjunto, permitiriam
resolver arqueologicamente a dúvida, digamos como exemplo, acerca de ser
uma aglomeração dada que se estivesse escavando uma aldeia grande ou uma
cidade pequena. Segundo ele, poder-se-ia definir uma cidade antiga pela
presença de dez características. Adotei a organização delas em dois grupos
efetuada por Charles Redman, que considera as cinco primeiras “primárias” e as
outras cinco, “secundárias”. Isto significa que o primeiro grupo refere-se a traços
sociais fundamentais, enquanto o segundo reúne várias formas de dados
capazes de indicar indiretamente a presença das características primárias.
Assim, a descoberta pelo arqueólogo de obras públicas de dimensões
monumentais − templos decorados de grandes dimensões, por exemplo −
provavelmente indique a existência de um artesanato especializado que
trabalhasse nessas obras e o acesso de quem as decidisse e supervisionasse a
excedentes suficientes para que elas se tornassem possíveis (extração e
transporte de pedra, alimentação dos trabalhadores, presença de artesãos de
alto nível empregados na decoração dos edifícios, etc.) − sendo estas duas
últimas características, em muitos casos, mais difíceis de documentar
arqueologicamente. Eis aqui as dez características arroladas por Gordon Childe,
tais como foram reordenadas por Redman:
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Características primárias:
3. concentração de excedentes: surgem meios sociais para recolher e gerir o excedente retirado
de agricultores e artesãos;
4. sociedade estruturada em classes: uma classe governante privilegiada de funcionários
religiosos, administrativos e militares organiza e dirige a sociedade;
Características secundárias:
10. início das ciências exatas e preditivas (Aritmética, Geometria, Astronomia): sua função
primeira, como a da escrita, foi como instrumentos de organização e gestão (calendário,
recenseamento, cálculo do imposto, etc.).2
2
CHILDE, Vere Gordon. “The urban revolution”. The Town Planning Review. 21, 1950, pp. 3-17;
REDMAN, Charles L. The rise of civilization: From early farmers to urban society in the ancient Near East.
San Francisco: W. H. Freeman, 1978, pp. 218-9.
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exemplo, houve monumentos funerários enormes, os megálitos, ou um templo
como o de Stonehenge, no sul da atual Inglaterra, que exigiram enorme
organização e incontáveis grupos de homens trabalhando por muitas horas. E,
há uns quinze mil anos atrás, no período que chamamos de Paleolítico Superior,
havia nas paredes de certas cavernas da Europa ocidental e central, até a região
dos montes Urais, uma arte que representava principalmente animais e tinha,
sem dúvida, estilos definidos e complexos, além de certamente expressar
identidades grupais em forma simbólica. Em defesa de Childe é bom lembrar ser
sua intenção que os elementos listados devessem ser levados em conta em
conjunto, não um a um. Os mais importantes desses elementos como critérios
sine qua non do urbano são − de longe − o 2 e o 4: não se pode chamar de
cidade uma aglomeração, a não ser que ali vivam pessoas que exerçam em
tempo integral atividades diferentes das rurais.
Livros falam de cidades que teriam existido muito antes das da Suméria,
onde uma rede urbana durável floresceu desde aproximadamente 3 200 a.C.
Assim, mencionam-se com insistência casos como Jericó, na Palestina, Hacilar
e Çatal Hüyük, na Ásia Menor, que datam do IXo ou VIIIo milênio a.C. Jericó, já
no Xo milênio a.C., atraiu caçadores mesolíticos que ali viveram em cabanas
aglomeradas; no milênio seguinte, construiu-se uma maciça muralha de pedra
com pelo menos uma torre, protegendo casas de tijolos redondas, com o teto
abobadado, contendo talvez a aglomeração uma população de duas a três mil
pessoas. Não se fabricava cerâmica; plantavam-se o trigo e a cevada. Tal
povoado, talvez merecendo já ser chamado urbano, ainda existia no VIIIo milênio
a.C., quando suas casas eram mais elaboradas, agora de forma retangular,
embora o assentamento ainda carecesse de cerâmica. No entanto, ocorreu a
seguir o seu abandono e a região não conheceu outras aglomerações urbanas
ou protourbanas por muitos milênios.
Analogamente, Hacilar, na parte sul-central da Anatólia, foi abandonada
após ter conhecido uma fase urbana ou protourbana, sem cerâmica mas com
casas dotadas de interiores caiados ou pintados.
O exemplo mais impressionante é Çatal Hüyük, que no VIIo milênio a.C.
tinha um denso assentamento amuralhado, produzindo têxteis e cerâmica,
verdadeira proto-cidade neolítica. Seus edifícios retangulares, de tijolos crus,
ocupavam uma inclinação, formando fileiras cerradas, tendo entrada pelos tetos
de troncos e palha. A aglomeração apresentava uma arte poderosamente simbólica e
original: cômodos decorados profusamente sugerem santuários ou oratórios numerosos
(1/3 a 1/6 de todos os edifícios até agora escavados: as opiniões variam sobre quais
sejam de fato santuários). O simbolismo manifesta um sistema cognitivo à base de
oposições complementares: natural/cultural, masculino/feminino, vida e fertilidade
criadora/destruição. Aparecem cenas como uma deusa-mãe (às vezes duplicada) ou
um par de leopardos dando à luz um touro, bem como seios modelados em argila com
chifres de touros no lugar dos mamilos. O motivo mais famoso é constituído por fileiras
de cabeças de touros com grandes chifres, decorando paredes e plataformas. Pinturas
murais policromadas representam cenas de caça, abutres atacando humanos sem
cabeça, motivos derivados dos têxteis, até mesmo um panorama da própria cidade com
um vulcão em erupção ao longe. Entretanto, também Çatal Hüyük foi abandonada e não
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mais ocupada, sem que em sua região surgissem, por milênios, outras aglomerações
que pudessem considerar-se urbanas ou proto-urbanas.
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característica parece poder comprovar-se estão Ur na primeira metade do IIo
milênio a.C. e, na mesa época, Nippur. Em algumas ocasiões, indícios materiais
indiretos (certos detritos de fabricação de artefatos de barro, por exemplo,
indicando a presença de oleiros) podem ajudar a formulação de hipóteses, na
falta de documentos escritos. Analogamente, é difícil identificar mercados ou
bairros onde se concentrassem comerciantes; até mesmo a noção de comércio
a varejo é controvertida (havia, entretanto, o que parecem ser lojas em Sippar
no início do IIo milênio a.C.). O cais ou karum está, entretanto, comprovado:
como os estabelecimentos comerciais assírios na Anatólia eram assim
chamados, pode ser que o cais atraísse à sua volta uma população de
comerciantes cuja existência, independentemente de determinar onde se
situavam dentro das cidades, está bem estabelecida desde o final do IVo milênio
a.C., quando agiam como funcionários da cidade.
Outro assunto difícil de abordar é o tamanho da população urbana. As
fontes escritas são parcas em informações a respeito; e, quando existem,
normalmente se referem a uma categoria específica de pessoas, não a todos os
habitantes (assim, temos listas de quantos amoritas viviam em cada bairro de
Eshnunna no início do IIo milênio a.C.). Alguns autores assumiram uma cifra que
variasse entre 100 e 400 habitantes por hectare para calcular a população
urbana, mas isto se baseou na observação de cidades atuais do Oriente
Próximo, um critério perigoso. Um enfoque derivado da etnografia comparada
consiste em atribuir 10 metros quadrados de espaço com teto, nas construções
residenciais, a cada pessoa. Só nos casos em que se escavam superfícies
amplas, com quarteirões e casas bem estabelecidos arqueologicamente, é
possível, levando em conta o detalhe das construções e seus tipos, diferenciar
os usos variados do espaço urbano com alguma base.
A cidade mesopotâmica era marcada pela presença de algumas
instituições. Thorkild Jacobsen mostrou a existência de uma “democracia
primitiva” na Baixa Mesopotâmia, com um conselho de anciãos e uma
assembléia dos homens mais jovens, capazes de serviço militar: com perda
progressiva de poderes políticos efetivos, mas conservando atribuições
judiciárias, tais organismos permaneceram em existência pelo menos até a
primeira metade do IIo milênio a.C. Mais ao norte, na Assíria, os poderes
políticos do conselho de anciãos se mantiveram por muito mais tempo. Não
sabemos onde se reuniam assembléia ou conselho: alguns afirmam que junto
aos portões das cidades; mais provavelmente, no pátio do templo principal. É
possível que tais órgãos coletivos, nos períodos imperiais, assessorassem os
prefeitos na administração urbana.
Do ponto de vista administrativo, diferentes setores da cidade eram
percebidos como unidades, chamados de “bairros” ou “vizinhanças”. Uma
hipótese atual afirma que sua organização copiava a das aldeias. Há autores
que postulam uma longa dependência deste tipo de organização para com as
estruturas do parentesco; outros, pelo contrário, enxergam uma tensão entre
ambos os níveis ou instituições. No Período Dinástico Primitivo, em certos casos
os bairros ou vizinhanças aparecem separados por muralhas. Percebem-se
sinais da persistência de grupos de parentesco (famílias extensas) pelo menos
até finais do IIIo milênio a.C. Quando Gudea de Lagash construiu o templo
Eninnu em Girsu, uma dependência de Lagash, usou o trabalho de três
entidades chamadas de clãs (im-ru em sumério), com nomes de deuses
(Ningirsu, Nanshe e Inanna) e estandartes próprios, que parecem representar
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grupos de parentes. Alguns outros documentos restaram que nomeiam clãs: por
exemplo, em Shuruppak, no Período Dinástico Primitivo, um texto menciona 539
rapazes de sete clãs. A pouca presença deste último termo nos documentos
oficiais poderia indicar ter caráter mais consuetudinário do que legal.
Cada cidade tinha seu campo à volta, dela dependente
administrativamente e mantendo com ela estreita simbiose. Os arquivos da
cidade de Girsu, subordinada a Lagash, tratavam, no IIIo milênio a.C.,
majoritariamente de assuntos agrários. A cidade de Shuruppak, em meados do
mesmo milênio, possuía suas próprias equipes de pessoas destinadas a arar a
terra. Sabemos que as aldeias, embora dependentes da administração urbana,
tinham instituições específicas, de alcance local, com autonomia relativa para
assuntos internos. Uma das dificuldades ao estudar as fontes é que, em
acadiano, o termo alum se aplica por igual a cidades e aldeias. No Código de
Hammurabi se lê (no parágrafo 36) que cada aldeia seria tornada responsável
pelos crimes cometidos em seu território. Cada uma delas tinha um prefeito,
assessorado por um conselho de anciãos. Adicionalmente a atribuições
judiciárias de primeira instância, as instituições aldeãs cuidavam dos direitos
sobre a água, do pousio (descanso do solo) e de outros assuntos agrários.
Além das aldeias sedentárias, a cidade mesopotâmica com muita
freqüência estava em contato ou tratava de governar também comunidades de
nômades ou seminômades. Estes podiam eventualmente sedentarizar-se, ou
buscavam trabalho militar, doméstico e rural nas zonas sedentárias. Criavam
gado para seu próprio uso, mas também para vender aos sedentários. Tais
grupos tinham estrutura tribal e a descendência patrilinear era, neles, da maior
importância na classificação social. A nomenclatura aplicada nos documentos
escritos aos grupos beduínos é confusa e mutável, como eles próprios talvez
fossem. Alguns dos grupos tribais tinham uma porção sedentária e outra nômade
ou seminômade (os textos de Ur III mostram que era o caso dos amoritas no final
do IIIo milênio a.C.).
As cidades da Baixa Mesopotâmia formavam verdadeiras redes urbanas.
Um dos métodos utilizados para estudá-las arqueologicamente é o do geógrafo
alemão Walter Christaller para explicar a distribuição dos negócios num
ambiente urbano moderno, num raciocínio baseado no número mínimo de
pessoas necessário para sustentar cada tipo específico de estabelecimento.
Esta teoria prevê o aparecimento de hierarquias de comunidades, formando
padrões hexagonais. Uma aldeia tenderá a localizar-se num ponto eqüidistante
de seis aglomerações menores, um povoado num ponto eqüidistante de seis
aldeias e uma cidade num ponto eqüidistante de seis povoados. Naturalmente,
o padrão hexagonal de distribuição espacial só pode ser uma aproximação
grosseira, mas o mais importante é mostrar a existência de certa regularidade
previsível na espacialidade das redes integradas de aglomerações de diferentes
tamanhos, provedoras de bens e serviços variados. Um exemplo da aplicação
do modelo de Christaller à Antiguidade próximo-oriental foi o estudo de Gregory
Johnson sobre a relação hierárquica de Uruk com o território à sua volta entre
3300 e 3100 a.C., quanto ao fluxo de objetos (menos ou mais raros) trocados ao
longo de certas rotas em que certos lugares podem identificar-se como pontos
hierarquizados de distribuição, levando em conta 95 sítios distribuídos em quatro
níveis de tamanho: 54 aldeias menores, 28 aldeias maiores, 8 centros menores
e 5 centros maiores (incluindo a cidade de Uruk).
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Que idéia faziam de suas cidades os próprios habitantes da Mesopotâmia
antiga? Em uns poucos casos, temos a sorte de contar com espécies de mapas
ou plantas de aglomerações urbanas, em certos casos bastante confiáveis
(mostra-o a Arqueologia) na representação do espaço organizado.
Existia íntima ligação, na Antiguidade, entre a identidade urbana e a
presença de um deus no templo principal da cidade; e, mais em geral, havia forte
noção de que, de certo modo, a cidade “pertencia” ao deus local ou étnico. Tal
idéia era especialmente forte na Mesopotâmia. Ali, predominava a idéia de que
os homens foram criados para o serviço dos deuses. Já antes do dilúvio, o deus
supremo (neste caso, provavelmente Enlil) fundara pessoalmente as cinco
primeiras cidades-Estado, dando-lhes os seus nomes e atribuindo cada uma a
uma divindade como centro de seu culto:
A primeira destas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud (isto é, Enki), o líder; a
segunda, Badtibira, ele deu a Latarak; a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag; a
quarta, Sippar, ele deu ao herói Utu; a quinta, Shuruppak, ele deu a Sud [isto é, Ninlil,
esposa de Enlil].
Que teus vergéis sejam empilhados como poeira. (...) Que teus tijolos de barro
voltem às profundezas do solo. (...) Que teu palácio, construído com coração alegre,
torne-se uma ruína desolada. (...) Que, no lugar onde teus ritos e rituais eram realizados,
a raposa, que habita as cidades arruinadas, agite sua cauda. (...) Que nenhum ser
humano caminhe (ali) devido às cobras, insetos e escorpiões. (...)
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Outro episódio pertinente refere-se ao derradeiro rei mesopotâmio da
Babilônia, Nabonido (555-539 a.C.), na época final do efêmero Império
Neobabilônico. Nabonido não pertencia à família real. Sua mãe, Adda Guppi, era
sacerdotisa ou, pelo menos, fora consagrada ao deus lunar Sin em Harrã.
Nabonido, aparentemente criado por sua mãe em íntima relação com o culto de
Sin em sua modalidade de Harrã, teve um sonho em que Marduk e Sin em
conjunto lhe ordenaram (mais adiante no reinado, atribuiu a ordem a Sin sozinho)
que reconstruísse o templo de Sin em Harrã, chamado Ehulhul ou “casa de
alegria”, destruído quando dos combates dos medos e babilônios para a
derrubada do Império Assírio em 612 a.C. O monarca não deixou de afirmar em
sua inscrição que, previamente à queda da cidade e do santuário, Sin
abandonara seu templo e subira ao céu.
A cidade, na Mesopotâmia e, mais em geral, na Ásia ocidental, tal como a viam
os que a habitavam e a descreveram, tinha três presenças mais características:
muralha, templo e palácio. Embora houvesse assentamentos fora dos muros, as
muralhas defensivas, que separavam a cidade interior do território não fortificado
de seus arredores, era condição sine qua non para que uma aglomeração
pudesse ser considerada urbana. Pela mesma razão, as muralhas estão sempre
presentes na iconografia das cidades do oeste da Ásia. Quanto ao templo e ao
palácio, são tão importantes quanto as muralhas na determinação do espaço da
cidade. Segundo Marc van de Mieroop, em seu livro sobre a antiga cidade
mesopotâmica:
...no conceito mesopotâmico de cidade duas idéias predominavam: ela era ao mesmo
tempo um centro religioso e um centro político. O templo e o palácio eram instituições
urbanas básicas e eram as instituições que definiam uma cidade. Na mente
mesopotâmica, a cidade fazia contraste com a estepe e com o deserto, onde um
assentamento permanente era impossível. Muitos governantes tinham antepassados
nômades, mas tal passado não era razão de orgulho muito pelo contrário.3
3
3 DE MIEROOP, Marc van. The ancient Mesopotamian city. Oxford-New York: Oxford University Press,
1999, p. 52.
12
4. Um exemplo egípcio: Akhetaton (Amarna), capital do século XIV a.C.
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construíam e decoravam as tumbas reais, neste caso situadas no oriente (e não
no ocidente, como em Tebas ou Mênfis).
Outra concepção que foi preciso abandonar refere-se à “segregação
social” que estaria presente na estrutura espacial da cidade. Com exceção do
povoado dos construtores de tumbas, realmente segregado, de fato as mansões
dos exaltados personagens da corte e dos templos mesclavam-se com ou talvez,
mais exatamente, eram cercadas por casas de pessoas humildes que lhes
proviam mão-de-obra, bens e serviços.
Isto foi estudado em detalhe por Barry J. Kemp no concernente aos bairros
residenciais o “subúrbio do norte” e o “subúrbio do sul”. Ele mostrou que esses
bairros na verdade podem ser divididos em complexos formados, cada um, por
uma mansão e pelas pequenas casas que a cercavam por nela acharem
remuneração para trabalhos diversos. Tais mansões de tamanho bastante
variável possuíam grandes celeiros para armazenagem de cereais, muito
maiores do que os achados em Tebas Ocidental. Assim, eram, claramente,
centros de concentração/redistribuição de excedentes agrícolas, do mesmo tipo
(só que, claro, em escala muito menor) daqueles constituídos pelo palácio real e
pelos templos. Os grandes funcionários e sacerdotes que viviam nas mansões
entravam sem dúvida, por sua vez, nos sistemas de rações estatais; mas
dispunham também de domínios rurais próprios (privados ou de função), além
de provavelmente arrendarem terras dos templos. Nestas condições, cada uma
das mansões era como o centro de uma espécie de “aldeia”, formando o conjunto
uma unidade quase autônoma, mesmo estando situada dentro do espaço
urbano.
No tocante à composição da população de Akhetaton, calcula-se que os
grupos dominantes formassem de 7 a 9 % dela, os burocratas menores,
sacerdotes de hierarquia mais baixa e artesãos qualificados, entre 34 e 37%, e
os populares, entre 54 e 59%.
Estes complexos concentravam também atividades artesanais,
paralelamente às grandes oficinas dos templos e palácios; a Arqueologia o
demonstra, além de sugerir a existência de algum artesanato independente.
Kemp acredita que os magnatas que estavam à frente dos mencionados
complexos negociavam excedentes agrícolas para obter lucros, vendendo-os à
população urbana. No entanto, é difícil segui-lo neste particular, já que, dada a
estruturação econômico-social do Egito antigo, tal população era composta, ou
por pessoas que tinham acesso (através de propriedade, usufruto ou
arrendamento) à terra, ou por aqueles que viviam da distribuição de rações.
Embora tal estrutura não elimine a possibilidade de um mercado, certamente a
limita.
A interpenetração do rural e do urbano em Akhetaton é vividamente retratada na
iconografia amarniana. Um bom exemplo é a representação, na tumba do chefe
de polícia Mahu, de uma procissão de camponeses e camponesas que,
diariamente, traziam aos policiais suas provisões perecíveis: verduras, peixes,
leite, etc.
Os arquivos diplomáticos escritos em cuneiforme e descobertos em Tell el-
Amarna permitem, entre outras coisas, vislumbrar alguns aspectos do comércio
que unia a cidade com o Mediterrâneo e a Ásia Ocidental. Condutores de
caravanas e mercadores podiam ser usados também para missões diplomáticas
pelos reis asiáticos. Como sempre ocorria no Egito do Reino Novo, os
comerciantes que eram com freqüência estrangeiros residentes trabalhavam
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para os templos, sob estreita supervisão. O Egito não conhecia um grande
comércio privado como o que se desenvolveu na Mesopotâmia.
Um caso especial a considerar em Amarna é o que se poderia chamar de
“circuito real”. O rei e sua família tinham residências privadas (palácios situados
ao norte, longe do centro, uma casa no próprio centro) e um palácio “oficial” ou
público no centro da cidade. A vida privada da família real se situava,
espacialmente ao norte, separada da vida pública que tinham o faraó e a rainha
no contexto da burocracia estatal e de corte. A passagem de um espaço ao outro
se fazia com aparato: cavalgadas em carros puxados por cavalos, levando o rei
e a rainha, ocasionalmente com suas filhas, da residência setentrional ao centro
para adorar publicamente o Aton ou disco solar (havia também espaços íntimos
de culto nas residências reais e nas mansões de personagens da corte, nas
quais o culto à própria família real se juntava ao do Aton), ou para outras
ocasiões de Estado. Ao contrário do que se pensa comumente, a reforma de
Akhenaton não era “monoteísta”, mas sim, baseada num dualismo em que havia
um só deus celeste e um só deus terrestre (o rei), segundo outros, numa tríade
divina reunindo o Aton (pai e mãe de tudo o que existe), o rei e a rainha. O caráter
altamente abstrato da divindade solar de Amarna necessariamente levava a que
grande ênfase fosse posta nas aparições públicas do governante divino e sua
família, ou mesmo nos aspectos da vida privada de tal família que se escolhesse
divulgar iconograficamente.
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Indicações bibliográficas:
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