Você está na página 1de 17

VIOLÊNCIA E POLÍTICA*

Luis Felipe Miguel


Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF, Brasil. E-mail: luisfelipemiguel@gmail.com

DOI: http//dx.doi.org/10.17666/308829-44/2015

“Última razão dos reis”, “parteira da história”, a teoria política preferem ver a política sob o prisma da
violência permanece sendo o coração oculto da políti- produção de consensos e do reconhecimento inter-
ca. No entanto, a relação entre uma e outra é pouco subjetivo recíproco, exilando as noções de conflito de
explorada na maior parte da reflexão acadêmica, per- interesses e disputa pelo poder. Há pouco espaço para
manecendo como um fato desagradável sobre o qual é que a violência, que é a expressão final deste confli-
melhor não pensar. As correntes hoje predominantes da to e desta disputa, seja tematizada. Por mais que a
violência política esteja presente, que faça parte dos
* Este artigo integra a pesquisa “Desigualdades e democra- embates cotidianos, ela é sempre marcada com os
cia: as perspectivas da teoria política”/“Teoria democráti- signos da excepcionalidade, do desvio. Portanto, não
ca, dominação política e desigualdades sociais”, apoiada
pelo CNPq. Uma versão anterior foi apresentada no IX precisa ser incorporada nas matrizes que elaboramos
Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política para pensar a política e suas possibilidades.
(ABCP), ocorrido em Brasília, de 4 a 7 de agosto de
2014. Agradeço aos participantes do encontro pelas crí- Uma exceção, parcial, está nos estudos de rela-
ticas, comentários e sugestões, apresentados na hora ou ções internacionais e, em especial, nas reflexões sobre
em outras ocasiões; especialmente Flávia Biroli, Gonzalo a guerra. Nesses casos, a teoria política arrisca-se a
Rojas, Luciana Ballestrin, Pedro Villas Boas Castelo
Branco e Ricardo Fabrino Mendonça. Agradeço tam- quase oximoros, como a discussão sobre a “guer-
bém a Regina Dalcastagnè e aos pareceristas anônimos ra justa” e o “uso da força com fins humanitários”.
da RBCS pelos comentários ao texto. Evidentemente, É razoável pensar que isso ocorre porque, entre as
permaneço o único responsável por seus erros e omissões.
nações, ainda vigoraria algo próximo ao estado da
Artigo recebido em 02/06/2014 natureza, como postulam as correntes autodenomi-
Aprovado em 15/08/2014 nadas “realistas” das relações internacionais. A for-
RBCS Vol. 30 n° 88 junho/2015
30  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

mação da comunidade política – em particular, da A segunda seção do texto aborda concepções


comunidade política democrática – resolveria o pro- opostas, que promovem o elogio da violência na
blema da violência que, dessa forma, tornar-se-ia um política, passando por pensadores como Geor-
não problema.1 ges Sorel, Frantz Fanon, Ulrike Meinhof e Slavoj
É claro que a questão não é resolvida por meio Žižek. É fácil descartá-los ou folclorizá-los, em par-
desta estratégia de avestruz.2 Ao arrepio das cons- te pelo tom provocativo que muitas vezes adotam,
truções idealistas, a violência continua presente na em parte porque estão na contramão da crença ar-
política, de forma aberta ou velada, como acon- bitrária de que “só o amor constrói”, alimentada
tecimento ou como ameaça. Eliminá-la de nossa pelo imaginário cristão e romântico. O reconheci-
reflexão é eliminar um componente central dos mento da positividade do momento destrutivo da
processos políticos, bloqueando o acesso a uma política, porém, não deve abafar uma compreensão
compreensão realista deles. clara dos muitos efeitos colaterais, imediatos ou a
Neste artigo, desenvolvo a ideia de que a ques- médio e longo prazos, da introdução da violência
tão do uso da violência amplifica o drama maquia- aberta na luta política, mesmo quando voltada à
veliano da política: a busca de efetividade na ação em emancipação ou pretensa emancipação dos grupos
tensão com a observância de princípios normativos. dominados.
O banimento do recurso à violência representou A terceira seção avança na discussão entre vio-
um passo crucial na “civilização” da luta política; e a lência e instituições políticas. A “institucionaliza-
ideia de que os conflitos de interesses e a disputa pelo ção do conflito” é a fórmula convencional para es-
poder podem ser resolvidos por outros meios repre- conjurar a violência da política, uma solução que
senta, em si mesma, um valor não negligenciável. No remonta ao pensamento de Maquiavel, no século
entanto, a afirmação deste valor não anula o fato de XVI. No entanto, as próprias instituições podem
que a violência continua sendo capaz de influenciar ser percebidas como vetores da violência (estrutural
a interação entre os agentes políticos; de que a ca- ou sistêmica) contra determinados grupos sociais.
pacidade diferenciada de mobilizá-la ou de ameaçar Longe de serem neutras, elas codificam padrões de
convincentemente com seu uso é um recurso políti- dominação. Assim, a institucionalização é uma res-
co de primeira grandeza; ou de que o acesso ao exer- posta apenas parcial ao problema, incapaz de resol-
cício legítimo da violência é um dos bônus cruciais vê-lo quando são as próprias instituições que são
da conquista das posições de poder. colocadas em questão.
Na primeira seção do texto, discuto brevemen- Por fim, uma breve conclusão indica alguns
te as correntes teóricas que promovem uma cisão pontos de chegada provisórios – e, a bem da verda-
absoluta entre política e violência, detendo-me em de, também insatisfatórios. Em particular, defendo
particular em sua expressão mais emblemática, a o entendimento de que a relação entre violência e
obra de Hannah Arendt. Argumento que, além de política nos coloca em face de um conjunto de dile-
gerar uma percepção que é inútil para o entendi- mas que devemos continuar a tratar como dilemas,
mento dos processos políticos reais – e portanto em vez de postular soluções que ou bem são me-
para a intervenção neles, inclusive com o objetivo ramente verbais, ou bem traçam linhas divisórias
de restringir o apelo à violência nos confrontos insustentáveis, do ponto de vista de uma teoria crí-
políticos –, esta cisão exige a redução da política a tica, entre o que conta ou não conta como violência
uma atividade autocentrada e de baixa relevância e como política.
social, o que acontece, uma vez mais e apesar dos
protestos grandiloquentes em contrário, no pen-
samento arendtiano. Em especial, a ampliação do Violência aberta e violência estrutural
conceito de violência, para abranger também suas
manifestações estruturais ou sistêmicas, revela a Um movimento central na teoria política das
inadequação dessa estratégia, do ponto de vista de últimas décadas é a redução da centralidade do
uma teoria da política que se queira crítica. conflito, no entendimento dos processos políticos,
Violência e política  31

e sua substituição pela busca do consenso (Miguel, O trabalho, voltado a garantir a subsistência, essen-
2014a). Rawls, Habermas e, mais recentemente, cial para a sobrevivência dos indivíduos e da espécie,
Honneth capitanearam esse processo, no qual con- não nos diferencia dos outros animais – na verdade,
ceitos como “poder” e “interesses” cedem lugar ao quando o realizamos, estamos na condição de ani-
acordo produzido pela equidistância em relação a mal laborans. Ele é cuidadosamente diferenciado da
todas as posições sociais, pelo diálogo racional desa- obra, que modifica o mundo e preserva o registro
paixonado ou pelo reconhecimento intersubjetivo. de nossa passagem pela Terra. É a oposição entre
Há um trânsito constante entre o ideal axiológico trabalho e obra que permite a Arendt, num só mo-
e a compreensão da realidade, pelo qual esta últi- vimento, denunciar o capitalismo de sua época e
ma se torna cada vez mais impalpável e o papel da refutar a ontologia histórica marxista. Sua crítica,
ciência política teoricamente orientada não é mais no entanto, é nostálgica e regressista.
entendê-la, mas, quando muito, medir o quanto ela São questões de fundo. Mas, para a presente
se aproxima dos preceitos normativos adotados. discussão, é mais importante sua caracterização do
No que diz respeito especificamente à nega- terceiro e mais elevado elemento da tríade, a ação,
ção da relação entre política e violência, é central crucial para a delimitação da esfera da política:
a contribuição de Hannah Arendt. É uma posição
que aparece salpicada em muito de seus escritos; e A ação, única atividade que ocorre diretamente
ela publicou um longo ensaio sobre o tema, depois entre os homens, sem a mediação das coisas ou
incluído no volume Crises da república (Arendt, da matéria, corresponde à condição humana da
[1970] 1973). Mas “Da violência”, em que pese sua pluralidade, ao fato de que os homens, e não o
erudição ostensiva, pouco mais é que um texto de Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.
conjuntura, voltado a exorcizar a tentação da ação Embora todos os aspectos da condição huma-
violenta por parte dos dominados, que na época en- na tenham alguma relação com a política, essa
contraria expressão teórica em Fanon (referendado pluralidade é especificamente a condição [...]
por Sartre) e manifestação prática nos movimentos de toda a vida política (Arendt, [1958] 2010,
juvenis e pelos direitos dos negros. Pouco avança pp. 8-9).
na discussão, para além da reafirmação da diferen-
ça entre poder e violência, baseada, sobretudo, na Mais adiante, num trecho célebre, esta plurali-
ideia de que a violência é “muda”, ao passo que a dade é explicada como um efeito da dupla circuns-
política e o poder são, como quase todas as ativi- tância da vida dos homens (e mulheres) na Terra,
dades especificamente humanas, mediadas pelo uso marcada simultaneamente por sua igualdade e des-
da fala. Segundo a fórmula usada em obra anterior, semelhança:
“a violência, distinguindo-se do poder, é muda; a
violência tem início onde termina a fala” (Arendt, A pluralidade humana, condição básica da ação
[1953] 1993, p. 40). e do discurso, tem o duplo aspecto da igual-
Embora esteja presente ao longo de toda a sua dade e da distinção. Se não fossem iguais, os
obra, essa ideia de uma distância entre violência e homens não poderiam compreender uns aos
poder ou política encontra sua formulação mais outros e os que vieram antes deles, nem fazer
elaborada na obra principal de Arendt, aquela que planos para o futuro, nem prever as necessi-
certamente lhe garante uma posição entre os no- dades daqueles que virão depois deles. Se não
mes centrais da teoria política do século XX: A fossem distintos, sendo cada ser humano dis-
condição humana. Sua distinção entre os três gran- tinto de qualquer outro que é, foi ou será, não
des tipos da atividade humana – trabalho, obra e precisariam do discurso nem da ação para se
ação3 – é o que fundamenta a total insolubilidade fazerem compreender (Idem, pp. 219-20).
de política e violência.
No modelo arendtiano, quando mais funda- Os trechos assinalam a pluralidade humana
mental o tipo de atividade, menor a sua valoração. como a condição da política, conforme a autora
32  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

frisa, o que é uma formulação bastante sedutora. que escapam da política tal como institucionalizada
Mas realizam também dois outros movimentos. No em determinado momento. É essa dinâmica que
primeiro deles, ao afastar a política da mediação do marca a mobilização de interesses antes impedidos
mundo material, isolando-a como uma relação que de se manifestar, sendo coextensiva, portanto, à
se dá “apenas” entre os homens, contribui para pro- busca de democratização da própria política.
duzir a visão de um mundo político que se conecta A negação idealista da presença da violência
muito frouxamente com o social e o econômico. na política, que Arendt eleva ao maior grau de so-
Afinal, os seres humanos que fazem a política não fisticação teórica e de brilho retórico, não resolve
existem como abstrações, mas em suas condições nenhum dos nossos problemas. Na verdade, acaba
materiais; e a efetividade de sua ação política é tam- por nos remeter a um faz de conta que impede uma
bém condicionada pelos recursos que são capazes crítica consequente da política real das sociedades
de manejar. O discurso da ausência de “mediação humanas. É possível, por outro lado, dizer que a
das coisas” se estabelece, na verdade, como a ponte ordem política se constitui tendo como objetivo es-
para o isolamento normativo entre a política e as conjurar a violência, como faz René Girard ([1972]
questões sociais. É um tema que Arendt desenvolve 1990). O fato de que a política busca prevenir a ir-
no próprio A condição humana, encarnado na de- rupção daquilo que está em seu substrato reforça a
núncia da “fabricação” – quando a política, em vez tensão referida antes, entre a busca por efetividade
de simplesmente celebrar a liberdade, aparece como e o respeito à norma.
um meio de encaminhar soluções aos problemas Mesmo que a política tenha por fim impedir
coletivos (Idem, pp. 274-287). E que é central em a eclosão da violência, nada garante que o obje-
sua invectiva contra a ação revolucionária, quando tivo seja alcançado. Basta lembrar que a ordem
esta ação incide no “erro fatal” de tentar enfrentar econômica visa superar a escassez, mas a escassez
os problemas sociais, em particular a miséria, uma continua presente, atuante e devendo ser levada em
“maldição” com a qual a humanidade, ao que pa- conta em nossa compreensão da economia. A po-
rece, está fadada a conviver (Arendt, [1963] 2011, lítica seria mais bem entendida, assim, como uma
pp. 154-155). tentativa sempre renovada e sempre, ao menos em
O segundo movimento é a equivalência entre parte, frustrada, de evitar que os conflitos se expres-
a ação, em particular a ação política, e o discur- sem em violência. No entanto, é exatamente por
so. Como a violência já fora antes definida como isso que aqueles que são capazes de demonstrar da
muda, seu afastamento da política está garantido. maneira mais convincente a faculdade e a dispo-
No entanto, nenhuma das duas premissas está isen- sição de mobilizar a violência são também os que
ta de questionamento. É razoável aceitar que a ação estão em condição de obter maiores vantagens das
política é sempre enquadrada por discursos que barganhas políticas.
dão sentido aos agentes e aos conflitos, mas isso, Seja em Arendt, seja em Girard, o foco está na
além de não singularizá-la em meio a muitos outros violência aberta, aquela que é reconhecida social-
tipos de atividade humana, não equivale a reduzi- mente, de forma imediata, como tal. A violência
-la ao momento discursivo (cf. Miguel, 2000, cap. estrutural ou sistêmica, vinculada às formas de do-
2). Por outro lado, algumas manifestações de vio- minação e opressão vigentes, é deixada de lado e
lência podem ser bastante eloquentes, desde que não é marcada como um desvio em relação às ma-
compreendidas no contexto em que ocorrem – o neiras consideradas aceitáveis do fazer político. Mas
que, aliás, é uma condição para o entendimento de seus efeitos materiais são tão claros quanto os da
qualquer discurso. violência aberta. O funcionamento combinado das
O que Arendt faz, assim, é reduzir a política às estruturas do mercado e do Estado leva muitas pes-
interações ocorridas no espaço idealizado de uma soas a privações que anulam a possibilidade de exer-
polis inspirada na Antiguidade. Essa abordagem cício da autonomia individual, que as impedem de
congela a política e não permite apreender a dinâ- perseguir ou mesmo de formular suas próprias con-
mica de politização de diferentes fenômenos sociais cepções de bem, que por vezes as condenam à des-
Violência e política  33

nutrição, à doença e à morte. Tais privações estão var as filhas na escola e chegar no emprego a tempo.
na base de muitas das manifestações de violência A não ser que compre um carro, mas aí não poderá
aberta, na medida em que promovem a frustração arcar nem mesmo com o aluguel mais barato. Es-
e mesmo o desespero daqueles que a sofrem. Le- premida entre tantas dificuldades, ela acaba viven-
vam também, como reação a tais ações, à violência do com sua família na rua (Young, 2011, cap. 2).
aberta legitimada, das forças repressivas que têm a O senhorio, o empregador, o diretor da escola
obrigação de manter a ordem excludente. e a loja de automóveis usados podem ter sido com-
Não se trata, porém, de ver apenas Estado e preensivos e mesmo solidários. O drama de Sandy
mercado gerando violência. É necessário entender não está relacionado a vantagens que uma ou outra
que a violência sistêmica e estrutural é em si mes- pessoa busca extrair diretamente dela. Está ligado
ma violência, na medida em que impede formas de a vulnerabilidades que afetam os não proprietá-
ação e acesso a bens e espaços, por meio da coer- rios, os assalariados e as mulheres; à forma como
ção física ou da ameaça de seu uso. Seus efeitos são está organizado o sistema de transportes, a oferta
talvez menos espetaculares, mas certamente mais de moradia e educação, o cuidado com as crianças.
disseminados, profundos e duradouros, algo que é Young usa o exemplo para discutir a injustiça como
captado pela conhecida boutade brechtiana: “O que fenômeno estrutural, mas é igualmente razoável
é um assalto a um banco comparado à fundação de descrever como violência o processo que leva a uma
um banco?” (Brecht, [1928] 1988, p. 103). opção impraticável entre moradia, emprego e esco-
Na peça teatral, a frase é pronunciada pelo por- la, culminando na impossibilidade de manter um
ta-voz dos artesãos e pequenos comerciantes, cujos teto para a família.
negócios estavam sendo destruídos pela ação do ca- Assim, não há como discutir a relação entre
pital financeiro. Combinados, as flutuações do mer- violência e política sem introduzir a violência es-
cado, a dependência em relação aos empréstimos trutural, que, como será discutido adiante, muitas
bancários e o respeito imposto a contratos firmados vezes está incorporada nas próprias instituições que
por partes tão desiguais levavam à imposição de um devem prevenir a violência aberta. A desatenção à
resultado que os próprios pequenos-burgueses vi- violência estrutural faz com que a reação contra a
venciavam como inaceitável, mas contra o qual não opressão transite simbolicamente como violenta,
dispunham de recursos para resistir. Todo o apara- mas a própria opressão, não.
to da lei e de sua proteção – o direito, a polícia, os A violência estrutural é um componente per-
tribunais – torna-se uma engrenagem de imposição manente da política, afirmação que pode ser enten-
desta vontade alheia sobre os derrotados. dida de três formas complementares. Em primeiro
A violência estrutural é camuflada por sua con- lugar, os constrangimentos que ela impõe afetam
formidade às regras; é naturalizada por sua presença diferentemente os diferentes grupos sociais, distri-
permanente na tessitura das relações sociais; é invi- buindo de forma muito desigual os recursos neces-
sibilizada porque, ao contrário da violência aberta, sários para a ação política. Em segundo lugar, é o
não aparece como uma ruptura da normalidade. poder político que mobiliza as forças da ordem,
Em particular, a violência estrutural tem beneficiá­ que simultaneamente buscam impedir a violência
rios, mas não tem necessariamente perpetradores aberta e evitar a oposição à violência estrutural. Por
particularizáveis. fim, os mecanismos que geram tal violência são – a
Um exemplo concebido por Iris Marion Young despeito do que gostaria Hannah Arendt – uma das
ajuda a entender a impessoalidade da violência es- questões centrais da luta política.
trutural. Sua personagem é Sandy, mãe solteira de
duas crianças. Obrigada a sair do apartamento em
que mora, para que sejam realizadas reformas ne- Positividade da violência?
cessárias no prédio, ela descobre que não consegue
continuar residindo na mesma região. Caso more A relação íntima entre violência e política
onde consegue pagar aluguel, não será capaz de le- nasce da compreensão do caráter conflitivo da po-
34  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

lítica. A política é uma atividade humana que se mento das grandes mudanças históricas. Recuando
estabelece a partir dos conflitos entre pessoas que um pouco, é possível chegar a Thomas Müntzer,
vivem em sociedade. Mas como compatibilizar o no século XVI, dizendo aos camponeses revoltosos
“reconhecimento da legitimidade do conflito”, que, como o Senhor se alegrava ao ver “as velhas cabeças
dizia Claude Lefort, é fundante da possibilidade esmagadas com uma barra de ferro” (apud Bloch,
da democracia, com a ilegitimidade da violência? [1921] 1973, pp. 25-26), ou ao Terror jacobino,
Afinal, a violência é o horizonte final do conflito. durante a Revolução Francesa.
Se permitirmos que o conflito se manifeste livre- Mas os camponeses alemães da época da tran-
mente, ao fim acabaremos por chegar ao exercício sição da Idade Média para a Idade Moderna, assim
da violência. como o Terceiro Estado francês sob o absolutismo,
É possível observar “realisticamente” o papel viviam sob regimes em que o exercício do poder
desempenhado pela violência. Como disse Marx, político assumia a forma da violência aberta. As
de forma memorável, “a violência é a parteira de declarações de Müntzer não são mais chocantes
toda sociedade velha que está prenhe de uma socie- do que as dos teólogos que apoiavam a repressão
dade nova” (Marx, [1867] 2013, pp. 821). A frase à rebelião camponesa: “Apunhale, bata, estrangu-
indica que a violência não produz a transformação le quem puder”, escrevia Martinho Lutero ([1525]
histórica, sendo antes um elemento secundário. A 2000, p. 172) aos senhores em luta contra os revol-
violência-parteira seria um sintoma do agravamen- tosos. Em especial, os dominados não tinham outra
to das contradições e também uma lembrança do forma de expressão, exceto a violência. É mais com-
fato de que os beneficiários de uma determinada plexa a situação quando nos defrontamos com a
ordem social não assistem passivamente à supressão democracia liberal, a forma de organização política
de suas vantagens. As transformações históricas le- que se apresenta como a solução para o problema
vam à violência aberta para sobrepujar a resistência da violência e o meio de garantir a atenção equâni-
dos privilegiados ou, ainda mais, das estruturas de me a todas as demandas dos grupos sociais.
dominação imperantes. Mas a violência não faz a No final do século XIX e começo do século
história, apenas a acompanha. XX, a violência política no contexto de regimes
Assim, Arendt está correta quando observa formalmente democráticos foi tematizada sobre-
que, para Marx, o papel da violência era secundá- tudo por autores vinculados ao marxismo, em
rio, pois “o que traria o fim da velha sociedade não particular em torno de dois eixos de polêmica. O
era a violência, mas as contradições inerentes a essa primeiro dizia respeito à possibilidade de uma su-
sociedade” (Arendt, [1970] 1973, p. 100). Porém, peração “pacífica” do capitalismo, por via eleitoral
em seu afã de deslegitimar os movimentos radicais e parlamentar, tal como preconizado por líderes
que eclodiram no final dos anos de 1960 utilizando da social-democracia alemã – sobretudo Eduard
contra eles o que seria sua própria inspiração, o mar- Bernstein ([1899] 1997) e, depois, Karl Kautsky
xismo, ela deixa de lembrar que, para Marx, a violên- ([1919] 2002). Contra tal possibilidade, a esquer-
cia é congênita à dominação de classe – e a violência da marxista enfatizava não apenas os vieses das “de-
do opressor, bem como a reação a ela, atravessam mocracias burguesas”, que seriam mais propícias a
as relações entre as classes. Em outro texto, aliás, conservar a dominação do que a permitir sua supe-
com exagero na direção inversa, ela denunciou a ração (cf. Lênin, [1918] 1985), mas também o fato
“glorificação da violência por Marx”, que julgaria de que uma vitória eleitoral do partido proletário
que “a ação violenta [é] a mais honrada de todas não evitaria uma guerra civil, já que a classe capi-
as formas de ação humana” (Arendt, [1961] 1988, talista não aceitaria ser privada de seus privilégios
pp. 50-51). (Trótski, [1920] 2005, p. 69).
Sem chegar à “glorificação”, pensadores incon- Trótski escrevia, em resposta a Kautsky, para
formistas deram uma ênfase maior à necessidade de defender o governo revolucionário da Rússia, o que
quebrar a resistência dos opressores e, portanto, ao já nos situa no segundo eixo da polêmica: a legiti-
papel da violência dos oprimidos no desencadea- midade (ou não, e em que medida) do uso da vio-
Violência e política  35

lência para garantir o triunfo de uma revolução que chamo aqui de “momento destrutivo” da política. O
já chegou ao poder. No caso da Revolução Russa, a mito político revolucionário, do qual os dois exem-
dura guerra civil e o cerco das potências europeias plos centrais são a “revolução catastrófica” prevista
pareciam justificar medidas extremas, sem as quais por Marx e sua própria greve geral, promete um
o governo operário dificilmente sobreviveria. Ao mundo novo que certamente não virá, já que qual-
mesmo tempo, os bolcheviques, fascinados com o quer antecipação do futuro está fadada ao fracasso.
Terror revolucionário francês, tendiam a julgar que (Por isso, também, a menção de Furet à “parteira
a transformação das velhas estruturas exigiria um da historia” está deslocada, uma vez que a metáfora
recurso bastante livre à violência. E o apego à vio- marxiana da sociedade velha grávida da nova não
lência como forma de resolução dos conflitos, após casa com a reflexão soreliana.) Mas o mito é capaz
a tomada do poder, contribuiu para o rápido desva- de impulsionar a ação que promove a derrubada da
necimento das esperanças revolucionárias. ordem dominante. Essa derrubada, que abre cami-
Neste percurso, a obra de Georges Sorel, um nho não para um projeto fechado, mas para a inde-
marxista invulgar, é incontornável. Ele foi um au- terminação do novo, é em si mesma valiosa.
tor inclassificável, que combinou o marxismo com A transformação do mundo não passaria por
a influência de Proudhon e de Nietzsche. Teórico projetos prévios, mas seria empurrada pela dinâmi-
do sindicalismo revolucionário, flertou também ca dos conflitos efetivos. Assim como a burguesia
com a Action Française, grupo monarquista reacio- teria revolucionado o mundo sem qualquer plano
nário liderado por Charles Maurras: suas posições para orientá-la, a classe operária não precisaria da
políticas ziguezaguearam da extrema esquerda à planta baixa de uma nova sociedade para demolir
extrema direita, sem jamais passar pelo centro. Por a atual (Sorel, [1914] 1981, p. 65). Uma ilustração
isso, foi muitas vezes folclorizado e, ao final, era eloquente da positividade do momento destrutivo
desprezado por todos. Em sua época, Lênin dizia da ação política, que faz lembrar a visão soreliana,
que ele era “capaz de pensar unicamente o absurdo” aparece na obra fílmica de Quentin Tarantino, so-
(apud Angel, 1936, p. 314). A baixa sofisticação de bretudo em suas realizações mais recentes, Bastardos
seu pensamento é assinalada por Hannah Arendt inglórios (2009) e Django livre (2012). A violência
([1970] 1973, p. 101). Segundo François Furet, desenfreada contra os dominadores cumpre não
sua obra ilustra toda a malevolência do marxismo, apenas um papel catártico, mas também impede a
caracterizando-se pelo “desprezo do direito como reprodução de uma determinada ordem – e abre
um disfarce formal da dominação burguesa, [e] a caminho para a reorganização das relações sociais4.
apologia da força como parteira da história” (Furet, O pensamento de Sorel é tingido por um forte
1995, p. 206). irracionalismo, efeito da influência combinada de
Furet trai uma leitura superficial e enviesada Nietzsche e Bergson. A razão bloqueia a ação, con-
de Sorel. Longe de desprezar o direito, ele sempre duz à acomodação e à aceitação de barganhas com
esteve preocupado com os aspectos jurídicos do so- ganhos secundários. É um empecilho à manifesta-
cialismo; e a violência que ele exalta é diferenciada ção da violência revolucionária necessária à demar-
meticulosamente da força bruta, o que é condizen- cação da separação entre as classes (Sorel, [1908]
te com sua repulsa pelo jacobinismo e pelo Terror. 1990, p. 106) e à destruição da opressão existente.
Segundo ele, o mito da greve geral, que advogava, Sorel identifica a violência como sendo sem-
tinha o mérito de tornar “a manutenção do socialis- pre revolucionária, diferente da força que impõe a
mo compatível com o mínimo de brutalidade pos- manutenção da ordem (Idem, p. 169), uma distin-
sível” (Sorel, [1908] 1990, p. 186). ção retórica artificial e que, curiosamente, lembra
Sorel é importante para a discussão menos por as manobras de Hannah Arendt para manter um
sua exaltação da violência proletária, que ele lê, em conceito de política imaculado. Sem essa violência,
chave nietzscheana, como aquilo que resiste à do- a revolta dos oprimidos não tem como fazer fren-
mesticação imposta pelas instituições burguesas (cf. te aos mecanismos de apaziguamento e cooptação
Idem, p. 254), e mais por sua valorização do que presentes na ordem instituída.
36  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

Frantz Fanon, que nos anos de 1950 e 1960 Ao lado de Fanon e dos Panteras Negras, os
emergiu como o profeta da violência libertado- anos de 1950 a 1970 viram a irrupção de movi-
ra dos colonizados, coincide no entendimento de mentos radicais de esquerda, com estratégia ba-
que a desorganização de qualquer sociedade, “por seada centralmente no uso da violência. O rótulo
primitiva que ela seja”, exige disposição para a des- de “terroristas” ou “guerrilheiros urbanos” engloba
truição de todos os obstáculos e, logo, para o exer- grupos muito diversificados entre si. Em comum,
cício da violência (Fanon, [1961] 2011, p. 453). tinham a sensação de que o sistema político era
Tal como em seu antecessor francês, na obra do re- impermeável a demandas que viessem dos grupos
volucionário martinicano o foco está na destruição dominados. Portanto, apenas ações disruptivas se-
de uma ordem iníqua. riam capazes de dar voz a tais demandas e promo-
Seus escritos são marcados por uma consciên- ver as transformações necessárias. Em grande parte
cia muito clara de que o colonialismo é uma re- dos casos, uma opção inicial pelo uso limitado da
lação de violência permanente, dos colonizadores violência, voltado exclusivamente à propriedade e
sobre os colonizados. Tal violência inclui, inextri- evitando danos a pessoas, foi suplantada por uma
cavelmente entrelaçadas, uma dimensão ideológi- escalada de brutalidade desencadeada pelo confron-
ca, pela qual o colonizado é levado a interiorizar to com as forças de segurança.
o sentimento de sua própria inferioridade, e outra Movimentos independentistas, como a Fren-
material, que consiste na despossessão, agressão e te de Libertação Nacional argelina, a Organização
humilhação sistemáticas às quais estão condenados. para a Liberação da Palestina ou o Exército Repu-
A violência dos dominados é a reação a ambas as blicano Irlandês partiam do entendimento de que
dimensões; em primeiro lugar, ela despe o povo de apenas a ampliação dos custos do colonialismo po-
seu complexo de inferioridade, indica que o colo- deria afastar seus opressores. Nos países da Amé-
nizador não é superior, nem invulnerável. É por rica do Sul, a ascensão das ditaduras de segurança
isso que “a violência desintoxica” (Idem, p. 496). nacional justificaria tal sentimento, embora grupos
Por conta disso, sua valorização da violência reativa como os Tupamaros uruguaios tenham iniciado
dos oprimidos é bem mais ampla e menos cautelosa suas ações desde antes, movidos pela ideia de que
que a de Sorel. era necessário romper com o jogo fechado de eli-
A elaboração de Fanon, voltada às sociedades tes que caracterizava a política local (cf. Weschler,
africanas sob o jugo do colonialismo europeu, foi 1990). Nos países centrais, o clima ideologicamen-
facilmente transplantada para a situação de grupos te repressivo e o fechamento das opções políticas,
dominados das próprias metrópoles – a começar pe- próprios do auge da Guerra Fria, jogaram muitos
los negros dos Estados Unidos. Não por acaso, Fa- jovens radicalizados na luta armada.
non foi uma das principais inspirações teóricas para Sempre denunciada pela esquerda tradicional, a
o Partido dos Panteras Negras (cf. Bloom e Martin participação dos organismos de segurança da Otan
Jr., 2013). A política de autodefesa armada, volta- no estímulo e sustentação a vários desses grupos
da a impedir os abusos perpetrados por brancos e, está hoje comprovada (Ganser, 2005). Tampouco é
em particular, por uma polícia abertamente racista, possível eliminar da equação a mistura entre radica-
indicava a relação entre capacidade de resistência lização política e consumo de drogas alucinógenas,
à opressão e possibilidade de uso da violência. No central na emergência de grupos como o Exército
caso dos Panteras Negras, o discurso era contami- Simbionês de Libertação, que teve seu momento de
nado também por uma ideologia de valorização da glória ao sequestrar e “converter” a milionária her-
masculinidade, apresentada como naturalmente deira Patricia Hearst (Graebner, 2008), ou mesmo
agressiva. Resistir contra o racismo e afirmar a pró- a principal organização terrorista estadunidense ju-
pria condição de homem aparecem como as duas fa- venil da época, o Weather Underground.
ces da mesma moeda, o que é um tema dominante, O ponto de partida para a radicalização de boa
por exemplo, na autobiografia de um dos principais parte da juventude dos Estados Unidos, porém, foi
líderes do partido, Huey Newton ([1973] 2009). a impermeabilidade do sistema político, que se re-
Violência e política  37

cusava a ouvi-la. É emblemática a marcha de 500 numa loja de departamentos não residem na des-
mil opositores da Guerra do Vietnã a Washington, truição de produtos, mas no ato criminoso, em vio-
em 15 de novembro de 1969 – quando eles chega- lar a lei” (Meinhof, [1968] 2008b, p. 246). Assim,
ram à frente da Casa Branca, o presidente Richard a violência dos oprimidos transita como demons-
Nixon se fez filmar assistindo a um jogo de futebol tração de uma inconformidade que não tem como
universitário na televisão, para demonstrar a com- se expressar de outra forma, pois, quando se expres-
pleta desimportância que atribuía à manifestação. sa de forma “aceitável”, está endossando exatamen-
O choque de ver como as instituições ignoravam te as estruturas que precisaria combater.
suas demandas, mesmo quando expressadas com Cabe perguntar em que o “ato criminoso pro-
tamanha força, foi crucial para a radicalização do gressista” resulta. De acordo com a célebre fórmula
movimento juvenil, o que levou à formação do We- de Carlos Marighella, a guerrilha urbana tinha por
ather Underground e outros grupos armados (Gi- objetivo “transformar a situação política em situa-
tlin, 1987; Varon, 2004). ção militar” (Marighella, [1968] 2004). O revolu-
O mesmo sentimento de impotência grassava cionário baiano imaginava expor o caráter opres-
na Europa Ocidental, sobretudo após o refluxo dos sivo da dominação, ampliando os custos de sua
movimentos iniciados em maio de 1968, alimen- reprodução, uma estratégia que fracassou. No caso
tando o terrorismo juvenil. É significativo que, em de Meinhof, tal meta se combina com outra, que
1971, um em cada quatro alemães ocidentais com faz lembrar Fanon: a violência revolucionária marca
menos de 30 anos expressasse simpatia pela Fac- a ruptura subjetiva com a aceitação da ordem e in-
ção do Exército Vermelho, organização que ficou dica o compromisso radical com a mudança.
conhecida como “bando Baader-Meinhof ” (Aust, De outra maneira, a mesma compreensão
[1985] 2008, p. 119). No epicentro do confronto aparece nos escritos de Slavoj Žižek, para quem a
entre o comunismo e o “mundo livre”, com uma violência é a única forma de romper a inércia e a
elite política engessada, influência avassaladora dos acomodação promovidas pelas atuais sociedades
Estados Unidos, crescente repressão policial e mí- “democráticas” de consumo. Ele observa como a
dia retrógrada, a Alemanha Federal era a melhor anatemização da violência é uma manobra ideo-
ilustração do conformismo repressivo que, segundo lógica que separa a violência subjetiva da violên-
vinham denunciando os teóricos da contracultura, cia estrutural (Žižek, [2008] 2009, p. 244). Se a
envenenava a alma das democracias liberais. violência transita como sendo uma perturbação da
Uma defesa circunstanciada do uso da violência normalidade, a violência cotidiana de que é teci-
política aparece nos escritos de Ulrike Meinhof, que da essa própria normalidade não aparece como tal
foi uma pensadora radical algo mais sofisticada do (Idem, p. 10). Em vez de reproduzirmos o discurso
que a estratégia do grupo ao qual pertenceu – a Fac- humanitário que prega o fim da violência, devemos
ção do Exército Vermelho – permitiria supor. Seu es- buscar entender o encadeamento complexo entre as
crito mais célebre é certamente o que codifica a dis- diversas formas de violência (Idem, p. 22)5.
tinção entre protestar e resistir: “Protesto é quando Dessa constatação, o filósofo esloveno passa à
eu digo que não gosto disso. Resistência é quando eu exaltação da violência que expressaria a inconfor-
coloco um fim naquilo de que eu não gosto. Protesto midade com a dominação. Assim, o lamento pelas
é quando eu digo que me recuso a continuar com vítimas dos atentados de 11 de setembro poderia
isso. Resistência é quando garanto que todo mundo ser respondido com as palavras de Robespierre,
também pare com isso” (Meinhof, [1968] 2008a, p. “deixem de sacudir diante do meu rosto o manto
239). O protesto, fica claro em seguida, é “verbal”, ensanguentado do tirano” (Idem, p. 12). Ele chega,
ao passo que a resistência é “física”. enfim, a uma definição de “violência” (dos domi-
Quando seu futuro parceiro Andreas Baader nados) como “o distúrbio radical das relações so-
foi preso, pelo incêndio com motivação política de ciais básicas”, para, bem a seu estilo, produzir um
uma loja em Frankfurt, ela analisou o caso, con- arremate chocante: “por muito disparatado ou de
cluindo: “Os aspectos progressistas de pôr fogo mau gosto que pareça, [devemos concluir que] o
38  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

problema dos monstros históricos que assassinaram de violência estejam minimizadas. A experiência
milhões de pessoas é que não foram suficientemen- das revoluções vitoriosas mostra como, uma vez
te violentos” (Idem, p. 256). que a força se mostrou efetiva para promover uma
A formulação de Žižek, deliberadamente exa- transformação, é difícil abrir mão dela como meio
gerada, destinada a “épater le bourgeois”, é útil para privilegiado de manter uma nova ordem.
iluminar os problemas da posição com a qual ele se Por outro lado, recusar a compreensão da
alinha. O passo que leva da denúncia da violência opressão e dominação como formas ativas de vio-
estrutural à absolvição da violência dos dominados lência também nos leva somente à acomodação
não é simples. É necessária uma crença fanática na fácil com as assimetrias vigentes. O recurso dos
correção da própria posição para que manifestações dominados à violência aberta se coloca como um
de violência aberta possam ser aceitas com tamanha problema a ser enfrentado – e não um caso a ser
leviandade. Sobretudo quando – como nos exem- submetido a uma percepção normativa já pronta –
plos de Žižek – a violência dos dominados não exatamente porque estes grupos sofrem sistematica-
possui um caráter reativo, de resistência imediata, mente com estas formas invisibilizadas de violência.
e sim um caráter ofensivo.
Se é possível aceitar Che Guevara quando diz
que o ódio é um “fator de luta” e que “um povo sem Violência e instituições
ódio não pode triunfar sobre um inimigo brutal”, é
difícil subscrever a noção de que esse ódio leva o re- O Maquiavel de O príncipe é aquele que colo-
volucionário “para além das limitações naturais do ca, com maior nitidez, a violência como elemento
ser humano e o converte em uma efetiva, violenta, central da vida dos Estados. E o Maquiavel dos Dis-
seletiva e fria máquina de matar” (Guevara, [1967] corsi é o que indica, com absoluta clareza, o cami-
2013). São formulações pouco atraentes porque nho mais apontado para a superação da violência
tentam negar o valor da anulação da violência aber- aberta: a institucionalização do conflito. Devemos
ta como avanço civilizatório. E também porque a produzir instituições que canalizem o conflito, si-
admissibilidade do apelo à violência aberta tende multaneamente permitindo sua expressão e, na
a favorecer a perpetuação da dominação, não sua medida do possível, impedindo sua manifestação
superação. Os grupos em posição de desvantagem violenta.
tendem a controlar também menos recursos para o A ideia de institucionalização do conflito é
exercício da violência. O reclamo moral por redu- importante, sobretudo, para as visões da política
ção do uso da violência trabalha, na maior parte das que negam o horizonte do consenso. É necessário
vezes, a seu favor. garantir que a expressão dos interesses em conflito
A relação entre violência e política nos con- não coloque em risco a continuidade dos laços so-
duz a dilemas exatamente porque a “civilização do ciais. Assim, ainda que a competição permanente
conflito” é um valor do qual dificilmente podemos marque a política, há uma adesão geral às “regras
abrir mão. Também porque, como o Maquiavel dos do jogo” (Bobbio, [1984] 1986), isto é, uma acei-
Discorsi já indicava, entre meios e fins não há uma tação unânime das instituições e dos procedimen-
cesura absoluta: como esperar que a prática con- tos que permitem a solução (sempre provisória) das
tinuada do mal leve ao bem, como esperar que a diferenças. As instituições, assim, enquadram e li-
predisposição para praticar o mal esteja presente mitam a manifestação do conflito. Não devem ser
naqueles que almejam o bem (Maquiavel, [1517] imutáveis, mas espera-se que as mudanças também
2007, p. 75)? O vocabulário do “bem” e do “mal”, sejam processadas por elas.
que o florentino utiliza, não nos seduz mais, mas Essa ideia de institucionalização está presente
é possível colocar o problema em outros termos: o mesmo em concepções que se apresentam como
apelo à violência aberta como resposta à violência mais radicais, em que a redução liberal do conflito
estrutural dificilmente contribui para a construção à mera concorrência é questionada, como na obra
de um mundo social futuro em que todas as formas de Chantal Mouffe. Ela anota que o antagonismo
Violência e política  39

não pode ser eliminado, mas apenas “sublimado” ação cumulativa das pequenas vantagens do algo-
– mas em seguida indica que “é necessário consen- ritmo institucional faz com que, a despeito de sua
so a respeito das instituições” e dos “valores ético- neutralidade ostensiva (a igualdade de todos peran-
-políticos” de base, ainda que, como permaneçam te a lei, a impessoalidade burocrática), as institui-
discordâncias sobre o sentido destes valores e as vias ções favoreçam de forma sistemática determinados
de implementá-lo, o arranjo seja batizado com o interesses.
nome de “consenso conflituoso” (Mouffe, 2013, p. Embora formulado com base em outra tradição
8). Uma estratégia de “engajamento agonístico com teórica, o conceito de campo político, no sentido
as instituições” seria a única alternativa factível para de Bourdieu (1979, 1981), permite vislumbrar o
a transformação social, em vez de formas de ação funcionamento dessa seletividade. Além de se con-
antissistêmica cuja “recusa a participar das eleições” figurar como espaço hierarquizado e excludente, o
impediria que influenciassem efetivamente o curso campo impõe ônus àqueles que não agem de acor-
das ações (Idem, pp. 75-76). do com suas regras. Há padrões de comportamento
É notável que mesmo a autora que se apresenta e de discurso, que estão objetivamente ligados às
como a voz da democracia radical na teoria política posições privilegiadas e que são exigidos de quem
abrace de tal maneira o receituário da instituciona- busca agir com efetividade no campo político. As-
lização do conflito e de sua resolução provisória por sim, instituições formalmente neutras convivem
meio do processo eleitoral. No entanto, instituições com práticas que filtram o acesso ao campo políti-
em geral – e eleições em particular – não são ca- co, forçando os representantes dos grupos subalter-
nais neutros por onde o conflito se expressa. Não nos a assumir formas expressivas e procedimentos
é razoável pensar nelas como se operassem em um que os afastam de sua origem – por exemplo, ado-
vácuo de poder. Elas são ativas, beneficiando alguns tando um vocabulário e uma sintaxe diferenciados
dos interesses em disputa, prejudicando outros. As ou aceitando as barganhas com a moderação e o
instituições são seletivas, no sentido de que são mais “realismo” que a política impõe (cf. Miguel, 2014b,
permeáveis a determinados tipos de interesse, favo- capítulo 7).
recendo de maneira objetiva a continuidade da do- O processo eleitoral, em particular, ao mesmo
minação. A seletividade operaria simultaneamente tempo que obriga a abertura do campo político à
no nível das estruturas (o espaço que é passível de influência dos cidadãos comuns, gerando ruídos
decisões políticas), da ideologia (que reduz o espaço e, eventualmente, surpresas que desorganizam
da política “estruturalmente possível”), do processo o jogo das elites, contribui para o esvaziamento
(as regras que favorecem grupos, temas e interesses) de formas mais efetivas de luta. O próprio Offe
e da repressão (Offe, [1972] 1984, pp. 152-153). observou como a eleição, nas democracias libe-
Em vez de imaginar o funcionamento da sele- rais, é fortemente “seletiva”. Cada cidadão é cha-
tividade como um portão que se abre ou fecha, é mado a participar como indivíduo isolado, o que
mais interessante vê-la como uma espécie de algo- favorece a expressão de interesses particulares, em
ritmo incrustado na estrutura institucional. Assim vez de interesses construídos coletivamente, como
como o algoritmo de um programa de computador os de classe (Offe e Wiesenthal, [1980] 1984). E,
gera resultados aparentemente únicos, a partir da como disse Albert Hirschman, o sufrágio univer-
filtragem dos dados por meio da aplicação combi- sal retira legitimidade de formas mais coletivas de
nada e automática de um conjunto de regras que ação política, como manifestações de rua ou bar-
se sobrepõem, as instituições filtram reivindicações ricadas. Elas aparecem como pressão de minorias,
utilizando critérios implícitos, relacionados com ao passo que o resultado eleitoral seria a expressão
sua origem social, com a radicalidade das deman- da vontade de todo o povo (Hirschman, [1982]
das, com o tipo de transformação que projetam e 1983, pp. 121-126).
com o modo pelo qual são expressas. E assim como Da mesma forma como podem, de quando em
a programação do algoritmo do Google é capaz de quando, produzir surpresas que fazem a política
enviesar todas as nossas pesquisas na internet, a sair do script esperado, as eleições operam no sen-
40  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

tido de restabelecer a normalidade em momentos O caráter violento do aparelho estatal, que boa
de agitação. O chamado às urnas tende a canali- parte do debate acadêmico recupera de maneira es-
zar as energias dos agentes políticos para a disputa quemática e abstrata, é percebido diretamente pelos
eleitoral, esvaziando outras formas de pressão. Ao mais pobres, pelos moradores das periferias e pelos
contrário do que diz Chantal Mouffe, a recusa a negros. O Estado, diante desses grupos, manifesta-
participar do pleito não é o abandono da tentativa -se sobretudo por meio de seu aparelho coercitivo –
de influência, mas a busca da possibilidade de ma- que pode faltar, quando se trata de protegê-los, mas
nutenção de uma agenda radical. está sempre presente, quando é para reprimi-los.
A institucionalização, assim, muitas vezes se Cumpre lembrar que o respeito à lei, que inclui a
revela como mecanismo de cooptação, deixando aceitação da distribuição assimétrica de vantagens,
o conflito real exilado e impedido de se expressar. impõe custos mais elevados para aqueles que se en-
Ao exigir o respeito aos rituais e prazos embutido contram em situação de maior precariedade. Isso
no próprio funcionamento das instituições, anula reforça a identificação estereotipada dos “crimino-
o sentimento de urgência que está associado à força sos”, alimentando o viés discriminatório da polícia.
moral de muitos reclamos por justiça (cf. Young, No caso do Brasil, o cotidiano de violência dos
2001). Como indicou James Scott, analisando o grupos subalternos, produzido em grande medida
movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos pelos agentes da lei, já foi amplamente estudado
dos anos de 1960 e 1970, “desordem em massa e (Alves e Evanson, 2013). Mas o foco despropor-
violência obtiveram, em curto espaço de tempo, o cional da repressão do Estado (polícias, tribunais,
que décadas de organização pacífica e lobby falha- prisões) em minorias, imigrantes, pobres e jovens é
ram em alcançar” (Scott, 2012, pp. 21-22). Des- percebido em todo o canto – nos Estados Unidos,
cartar a pressão extrainstitucional é abandonar es- na Inglaterra, na França, no Canadá, mesmo na in-
tratégias que, por vezes, se mostram muito eficazes suspeita Noruega.6
de mudança social. Em suma, a violência organizada do Estado,
O que se está tentando indicar aqui é que as que é produzida e sancionada institucionalmen-
instituições não podem ser simplesmente aceitas te, age no sentido de reprimir formas cotidianas
como meios de superação da expressão violenta do de conflito, produzidas pela concentração de po-
conflito porque elas não são externas a este conflito. der político e econômico. A lei codifica e limita,
Elas nascem do conflito e agem sobre o conflito, via mas também avaliza e estimula esta violência. E,
de regra privilegiando, com seus vieses, os interesses muitas vezes, ela ocorre às margens da própria lei,
dominantes e contribuindo para anular, marginali- graças à ativação de vieses que estão na base das
zar ou moderar as reivindicações de mudança. Elas hierarquias sociais legitimadas, mas que foram eli-
reforçam as interdições e assimetrias que definem a minados das normas oficiais, como o preconceito
violência estrutural. racial e de classe.
Nesse sentido, vale recuperar a análise de Nicos
Poulantzas sobre a lei. Ao vetar e punir as formas de
violência que tipifica, a ordem jurídica, no mesmo Conclusões
movimento, estabelece as modalidades de violên-
cia legítima, isto é, legitimada. Assim a lei ocupa Não há como discutir a relação entre violên-
a posição de organizadora da violência do Estado cia e política focando apenas na violência aberta.
(Poulantzas, [1978] 2013, p. 144): ela é “o código Isso é deixar de fora metade da história. A violência
da violência pública organizada” (Idem, p. 124). É estrutural é tão discricionária, tão física, tão mate-
possível dizer que essa violência legitimada é a face rial e tão prenhe de consequências quanto a vio-
aberta da violência estrutural, que, embora se utili- lência aberta – ou ainda mais. Fazem parte dela,
ze dos mesmos recursos e assuma formas similares. de maneira central, os mecanismos ideológicos que
transita socialmente como prevenção ou punição a invisibilizam. Da violência policial e da violên-
da violência condenável. cia produzida pelas desigualdades estruturais, nós
Violência e política  41

lembramos só de vez em quando e, muitas vezes, E como enfrentar a questão relativa às reações
encontramos motivos para desculpá-las ou natura- violentas (abertas) à violência (estrutural) de uma
lizá-las. No entanto, elas estão em funcionamento sociedade injusta? Não é razoável apenas inverter a
todos os dias, 24 horas por dia, incidindo sobre os positividade e passar a glorificar automaticamente
grupos em posição social subalterna. São centrais a violência dos dominados (por ser “dos domina-
à operação das formas de dominação política, em dos”), da mesma forma como ela é, em geral, au-
qualquer sociedade. tomaticamente condenada (por ser “violência”). É
Creio que não é difícil sustentar tal posição, uma posição que associa, de maneira ingênua, in-
que se ampara em um entendimento da violência – sustentável e com consequências potenciais nefas-
definida como um constrangimento físico exercido tas, a condição dominada de um grupo (ou indiví-
com a intenção de submeter um agente à vontade duo) com alguma posição de pureza moral, que lhe
de outro – que é amplamente aceito, seja na dis- franquearia o direito absoluto de agir como melhor
cussão teórica, seja na linguagem corrente. O ou- lhe conviesse.
tro passo, indicado também neste artigo, é resistir Também é insuficiente absolver apenas os atos
à tentação de esvaziar a política de seu elemento com caráter reativo, como as respostas à repressão
conflitivo, colocando em seu lugar a relação inter- policial, posição que acaba por obscurecer a vio-
pessoal desinteressada ou a busca do consenso. O lência estrutural. Se ela entra no raciocínio, toda a
conflito nasce da dinâmica social e substituí-lo pelo violência dos dominados pode contar como reativa,
consenso implica simplesmente em retirar de nossa e recaímos na posição anterior. A diferenciação entre
visão não apenas uma parte, mas a quase totalidade violência contra o patrimônio e contra a pessoa, posi-
da política real. Se o conflito é recolocado no cen- ção capaz de angariar simpatias, possui problemas
tro da nossa compreensão da política, então a vio- um pouco mais complexos. Por um lado, a reflexão
lência necessariamente precisa ser levada em conta. sobre a violência estrutural contribui para esmaecer
E qualquer desenho consequente da situação exige a fronteira entre bens materiais e pessoa: a negação
que incluamos a violência estrutural e sistêmica na sistemática ou a retirada do acesso a determinadas
equação. Sem isso, estamos apenas contribuindo riquezas está na raiz do dano causado às pessoas. A
para naturalizar ou invisibilizar os padrões de do- violência sobre os dominados não discrimina entre
minação e opressão vigentes. patrimônio e pessoa e a autorrestrição na resposta
Mas alcançar um entendimento mais realista significa, também, colocar-se de partida em uma
da presença da violência na política é mais fácil do posição de inferioridade.
que adotar uma posição normativa clara. Se recusa- Por outro lado, é difícil negar legitimidade a
mos – como inalcançável ou como indesejável – a certas ações de grupos dominados, em situação
utopia de um mundo perfeitamente reconciliado de desespero, que envolvem a violência cometida
consigo mesmo e em que todas as contradições contra pessoas. Penso em rebeliões escravas, no se-
estarão superadas, somos levados a concluir que questro de funcionários governamentais por tribos
manifestações de violência estrutural continuarão indígenas, em guerras de libertação nacional, na re-
existindo. As instituições e as práticas sociais con- sistência contra regimes policiais. A questão passa a
tinuarão regulando o acesso a bens simbólicos e ser, então, de entender o peso diferenciado de ações
materiais, ou seja, vedando o acesso de alguns que contra patrimônio e ações contra pessoas, aceitan-
eventualmente desejariam obtê-los. O que é neces- do que medidas mais extremas precisam de justifi-
sário investigar, então, é o quanto a “estrutura bá- cativas mais fortes para serem legitimadas.
sica” desta sociedade é justa, logo, o quanto desta Há, por fim, um elemento crucial vinculado às
violência estrutural seria justificável. Afastadas as consequências: o resultado líquido da violência dos
ilusões relativas a um padrão universal, silogístico, dominados é, muitas vezes, a ampliação da repressão
de justiça, o que se tem é uma situação em que o sobre eles. Justamente por isso, como indicou James
debate sobre concepções de justiça encapsula as re- Scott (1985, 1990), sua ação política costuma ser
ações relativas à violência estrutural. camuflada por manifestações ostensivas de aquies-
42  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

cência à ordem instituída e deferência aos superio- 4 Em entrevistas, Tarantino expressou sua admiração
res sociais. Se não é possível adotar uma visão cínica por John Brown, o abolicionista radical que foi enfor-
e pragmática, em que o mérito da ação é medido cado em 1859 devido a seu projeto de distribuir ar-
exclusivamente pelos fins que alcança, abdicando mas aos escravos do Sul dos Estados Unidos e, assim,
proporcionar um levante sangrento contra o regime
da pretensão de fazer uma crítica normativa da po-
escravocrata. Ver a entrevista a Charlie Rose, conce-
lítica (o “maquiavelismo” no sentido pejorativo da dida em 2009, em http://www.charlierose.com/view/
palavra), muito menos o é prescindir da dimensão interview/10567.
consequencialista, festejando a violência dos domi- 5 Žižek trabalha com uma categorização tríplice, dis-
nados apenas pelo elemento de inconformismo que tinguindo “violência subjetiva” (que corresponde,
se identifica nela (a postura que só é factível a partir em linhas gerais, ao que estou chamando de violên-
do lugar protegido do intelectual “radical”). Algumas cia aberta), “violência sistêmica” (similar à violência
formas de violência aberta dos dominados são prova- estrutural) e a “violência simbólica”, encarnada na
velmente aceitáveis a partir de um determinado qua- linguagem. Julgo que a inclusão desta última catego-
dro normativo. Aquelas que não contribuem para ria enfraquece a discussão, ao estender em demasia o
reduzir a dominação, nem no curto nem no longo conceito de violência, que passa a englobar qualquer
prazos, certamente não estão entre elas.7 forma de opressão e/ou discriminação.
A posição de quem condena toda forma de 6 O assassinato pela polícia de Eugene Obiora, norue-
violência é cômoda – é uma posição que ou está guês de origem nigeriana, em Trondheim, em 2006,
causou comoção no país.
cega à violência estrutural ou não se preocupa em
indicar como combatê-la. Para uma compreensão 7 É claro que esse critério é um guia muito frágil para a
mais matizada e complexa da dinâmica que inter- ação, uma vez que as consequências da ação não são
transparentes para quem a inicia – e essa indetermina-
-relaciona dominação, violência e política, não há
ção é, aliás, uma das características da própria política.
posição confortável. O dilema que caracteriza a re- Meu ponto aqui é apenas me contrapor à ideia de que
lação entre política e violência precisa ser mantido a violência dos dominados seria um fim em si mesmo.
como dilema. Não existe uma posição normativa
absoluta, muito menos uma solução prática. Deve-
mos lidar com essa tensão, reencenando-a perma-
BIBLIOGRAFIA
nentemente, mantendo a sensibilidade para as dife-
rentes facetas que se recombinam nas conjunturas
ALVES, Maria Helena Moreira & EVANSON,
particulares, sem congelá-la em “soluções” que se
Philip. (2013), Vivendo no fogo cruzado: mora-
mostram ilusórias.
dores de favela, traficantes de droga e violência
policial no Rio de Janeiro. São Paulo, Editora
Unesp.
Notas
ANGEL, Pierre. (1936), Essais sur Georges Sorel:
vers un idéalisme constructif. Paris, Marcel Ri-
1 Para uma ampla revisão da literatura que aponta a
emergência da sociedade civil como a solução para o
vière, vol. 1.
problema da violência, ver Ballestrin (2010, cap. 1). ARENDT, Hannah. ([1970] 1973), “Da violên-
2 Uso a expressão por comodidade, aderindo ao folclo-
cia”, in _______, Crises da república, São Pau-
re, mas sabendo que ela atribui um comportamento lo, Perspectiva.
que não corresponde àquele efetivamente adotado _______. ([1961] 1988), Entre passado e futuro.
pelo simpático estrutionídeo. São Paulo, Perspectiva.
3 No Brasil, circulou por muitos anos a tradução “labor, _______. ([1953] 1993), “Compreensão e políti-
trabalho e ação”, cujos inconvenientes eram notáveis. ca”, in _______, A dignidade da política, Rio
Para não introduzir ainda mais confusão, sigo aqui a de Janeiro, Relume Dumará.
opção da versão corrigida (Arendt, [1958] 2010), ain- _______. ([1958]2010), A condição humana. 11 ed.,
da que, a meu ver, a versão ideal do primeiro termo da revista. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
tríade arendtiana fosse “labuta”.
Violência e política  43

_______. ([1963] 2011), Sobre a revolução. São GUEVARA, Ernesto Che. ([1967] 2013). “Cre-
Paulo, Companhia das Letras. ar dos, tres... muchos Vietnam: mensaje a los
AUST, Stefan. ([1985] 2008), Baader-Meinhof: the pueblos del mundo a través de la Tricontinen-
inside history of the R.A.F. Oxford, Oxford Uni- tal”. Disponível em marxists.org.: http://www.
versity Press. marxists.org/espanol/guevara/04_67.htm,
BALLESTRIN, Luciana. (2010), Com quantas ar- consultado em 26 mar. 2014.
mas se faz uma sociedade “civil”? Controles so- HIRSCHMAN, Albert. ([1982] 1983]), De consu-
bre armas de fogo na governança global, Brasil e midor a cidadão: atividade privada e participa-
Portugal (1995-2010). Tese de doutorado em ção na vida pública. São Paulo, Brasiliense.
ciência política, Belo Horizonte, Universidade KAUTSKY, Karl. ([1919] 2002), Terrorism and
Federal de Minas Gerais. communism: a contribution for the natural
BERNSTEIN, Eduard. ([1899] 1997), Socialismo history of revolution. Disponível em marxists.
evolucionário. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. org.: http:// http://www.marxists.org/archive/
BLOCH, Ernest. ([1921] 1973), Thomas Münzer, kautsky/1919/terrcomm/, consultado em 16
teólogo da revolução. Rio de Janeiro, Tempo ago. 2014.
Brasileiro. LÊNIN, Vladimir I. ([1918] 1985), A revolução
BLOOM, Joshua & MARTIN Jr., Waldo E. proletária e o renegado Kautsky, in _______,
(2013), Black against Empire: the history and Obras escolhidas em seis tomos, vol. 4. Moscou/
politics of the Black Panther Party. Berkeley, The Lisboa, Progresso/Avante.
University of California Press. LUTERO, Martinho. ([1525] 2000). “Contra as
BOBBIO, Norberto. ([1984] 1986), O futuro da hordas salteadoras e assassinas dos campone-
democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio ses”, in Luis Alberto de Boni (org.), Escritos
de Janeiro, Paz e Terra. seletos de Martinho Lutero, Thomas Müntzer e
BOURDIEU, Pierre. (1979), La distinction: criti- João Calvino. Petrópolis, Vozes.
que sociale du jugement. Paris, Minuit. MAQUIAVEL. (2007 [1517]), Discursos sobre a
_______. (1981), “La représentation politique: primeira década de Tito Lívio. São Paulo, Mar-
éléments pour une théorie du champ politi- tins Fontes.
que”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, MARIGHELLA, Carlos. ([1968] 2004). “Cha-
36-37: 3-24. mamento ao povo brasileiro”. Disponível em
BRECHT, Bertolt ([1928] 1988), “A ópera de três marxists.org.: http://www.marxists.org/portu-
vinténs”, in _______, Teatro completo, Rio de gues/marighella/1968/12/chamamento.htm,
Janeiro, Paz e Terra, vol. 3. consultado em 24 mar. 2014.
FANON, Frantz. ([1961] 2011), Les damnés de la MARX, Karl. ([1867] 2013), O capital. São Paulo,
terre, in _______, Œuvres, Paris, La Découverte. Boitempo, livro I.
FURET, François. (1995), Le passé d’une illusion: MEINHOF, Ulrike. ([1968] 2008a), “From protest
essai sur l’idée communiste au XXe siècle. Paris, to resistance”, in Karin Bauer (ed.), Everybody
Robert Laffont/Calmann-Lévy. talks about the weather … we don’t: the writings
GANSER, Danielle. (2005), Nato’s secret armies: of Ulrike Meinhof, Nova York, Secen Stories.
Operation Gladio and terrorism in Western Eu- _______. ([1968] 2008b), “Setting fire to depart-
rope. Nova York, Frank Cass. ment stores”, in Karin Bauer (ed.), Everybody
GIRARD, René. ([1972] 1990), A violência e o sa- talks about the weather … we don’t: the writings
grado. São Paulo, Editora da Unesp. of Ulrike Meinhof, Nova York, Secen Stories.
GITLIN, Todd. (1987), The sixties: years of hope, MIGUEL, Luis Felipe. (2000), Mito e discurso polí-
days of rage. Nova York, Bantam. tico. Campinas, Editora da Unicamp.
GRAEBNER, William. (2008), Patty’s got a gun: _______. (2014a), “Consenso e conflito na teoria
Patricia Hearst in 1970s America. Chicago, The democrática: para além do ‘agonismo’”. Lua
University of Chicago Press. Nova, 92: 13-43.
44  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 30 N° 88

_______. (2014b), Democracia e representação: terri-


tórios em disputa. São Paulo, Editora da Unesp.
MOUFFE, Chantal. (2013), Agonistics: thinking
the world politically. Londres, Verso.
NEWTON, Huey P. ([1973] 2009), Revolutionary
suicide. Nova York, Penguin.
OFFE, Claus. ([1972] 1984). “Dominação de clas-
se e sistema político: sobre a seletividade das
instituições políticas”, in _______, Problemas
estruturais do Estado capitalista, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro.
OFFE, Claus & WIESENTHAL, Helmut. ([1980]
1984), “Duas lógicas da ação coletiva: anota-
ções teóricas sobre classe social e forma organi-
zacional”, in Claus Offe, Problemas estruturais
do Estado capitalista, Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro.
POULANTZAS, Nicos. ([1978] 2013), L’État, le pou-
voir, le socialisme. Paris, Les Prairies Ordinaires.
SCOTT, James C. (1985), Weapons of the weak:
everyday forms of peasant resistance. New Ha-
ven, Yale University Press.
_______. (1990), Domination and the arts of re-
sistance: hidden transcripts. New Haven, Yale
University Press.
_______. (2012), Two cheers for anarchism. Prince-
ton, Princeton University Press.
SOREL, Georges. ([1914] 1981), Matériaux d’une
théorie du prolétariat. Paris, Slaktine.
_______. ([1908] 1990), Réflexions sur la violence.
Paris, Seuil.
TRÓTSKI, Leon. ([1920] 2005), Terrorismo y co-
munismo. Madri, Fundación Frederico Engels.
VARON, Jeremy. (2004), Bringing the war home:
the Weather Underground, the Red Army Faction,
and revolutionary violence in the sixties and seven-
ties. Berkeley, University of California Press.
WESCHLER, Lawrence. (1990), A miracle, a uni-
verse: settling accounts with tortures. Chicago,
The University of Chicago Press.
YOUNG, Iris Marion. (2001), “Activist challenges
to deliberative democracy”. Political Theory, 29
(5): 670-690.
_______. (2011), Responsibility for justice. Oxford,
Oxford University Press.
ŽIŽEK, Slavoj. ([2008] 2009). Sobre la violencia:
seis reflexiones marginales. Barcelona, Paidós.
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 

VIOLÊNCIA E POLÍTICA VIOLENCE AND POLITICS VIOLENCE ET POLITIQUE

Luis Felipe Miguel Luis Felipe Miguel Luis Felipe Miguel

Palavras-chave: Violência; Política; Con- Keywords: Violence; Politics; Conflict; Mots-clés: Violence; Politique; Conflit;
flito; Dominação; Resistência. Domination; Resistance. Domination; Résistance.

A relação entre violência e política tem For most of the political theory, the re- La relation entre la violence et la poli-
sido deixada de lado pela maior parte da lationship between violence and politics tique a été mis à l’écart par une grande
teoria política, como um fato desagradá- has been left aside as an unpleasant fact partie de la théorie politique en tant que
vel sobre o qual é melhor não pensar. O about which it is better not to think. The fait désagréable qu’il vaut mieux oublier.
artigo discute essa relação, tomando três article discusses this relationship, by tak- L’article discute cette relation à partir de
pontos de partida. (1) A questão do uso ing three points of departure. (1) The trois points de départ. (1) La question de
da violência amplifica o drama maquia- question of the use of violence amplifies l’usage de la violence amplifie le drame
veliano da política: a busca de efetividade the Machiavellian drama of politics: the machiavélien de la politique : la recherche
na ação em tensão com a observância de search for effectiveness in action in ten- de l’effectivité dans l’action en tension
princípios normativos. (2) É possível dizer, sion with the observance of normative avec l’observation de principes normatifs.
como Girard, que a ordem política se principles. (2) It is possible to say, with (2) Il est possible, ainsi comme Girard,
constitui tendo por objetivo esconjurar a Girard, that the political order is consti- d’affirmer que l’ordre politique se consti-
violência. O fato de que a política busca tuted to exorcise violence. The fact that tue ayant pour objectif de mettre fin à la
prevenir a irrupção daquilo que está em politics seeks to prevent the irruption violence. Le fait que la politique vise à
seu substrato reforça a tensão referida an- of what is in its substrate reinforces that prévenir l’irruption de ce qui fait partie
tes. (3) Em toda essa discussão, porém, o tension. (3) In all this discussion, how- de son substrat renforce la tension men-
foco está na violência aberta. A violência ever, the focus is on open violence. The tionnée. (3) Néanmoins, dans le cadre
estrutural ou sistêmica, vinculada às for- structural or systemic violence, linked to de cette discussion, l’accent est mis sur la
mas de dominação e opressão vigentes, é the current forms of domination and op- violence ouverte. La violence structurelle
deixada de lado e não é marcada como pression, is set aside and is not marked ou systémique, liée à des formes existantes
um desvio em relação ao fazer político as a deviation from the acceptable politi- de domination et d’oppression, est laissée
aceitável. Mas seus efeitos materiais são cal modes. But their material effects are de côté et n’est pas considérée comme une
tão claros quanto os da violência aberta. as clear as those of open violence. Thus, déviation par rapport à la politique accep-
Assim, não há como discutir a relação en- there is no way to discuss the relationship table. Mais leurs effets matériels sont aussi
tre violência e política sem introduzir a between violence and politics without clairs que ceux de la violence ouverte.
violência estrutural, que muitas vezes está introducing structural violence, which is Ainsi, il n’est pas possible de discuter la
incorporada nas próprias instituições que often embedded in the very institutions relation entre la violence et la politique
devem prevenir a violência aberta. that should prevent overt violence. sans introduire la violence structurelle,
qui est souvent incorporée aux propres
institutions qui doivent empêcher la vio-
lence ouverte.

Você também pode gostar