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IDÉIAS

PENSAMENTO. ESTUDOS. SUGESTÕES PARA A REFORMA ADMINISTRATIVA

As funções do Estado e o
papel da Administração Pública
Clóvis Ferro Costa (*)
tema que me foi proposto é uma esfera alheia à adm inistração

O por demais abrangente e,


por uma questão de meto­
dologia, è necessário situá-
lo, primeiro, no quadro ge­
em si.
Conform e Spiegel, a ciência do
Direito Político pretende investigar
o direito vigente; enquanto a Teoria
ral e, após, na realidade brasileira. da Adm inistração visa a descobrir
Desta maneira poderemos ter o sob que forma deve organizar a ad­
enfoque genérico e, em seguida, ex­ ministração para atingir a seus fins.
trair as conclusões que resultem do Gaston Jèze, o célebre professor
estudo das nossas condições inter­ da Universidade de Paris e tão co­
nas e da nossa cultura política. nhecido entre nós, tem uma visão
Não cabe, em seus limites, ques­ prática da Adm inistração Pública.
tionar em si a própria natureza do Para ele o Direito Adm inistrativo
Estado, levar as investigações ao es­ tem por objeto form ular as re g ra i
tudo do nascimento, do desenvolvi­ especiais que convenham para o
mento, da decadência, do fim e da bom funcionam ento dos serviços
justificação, em suma do Estado, públicos. Os tempos modernos se
pois tais temas, de grande profundi­ distinguem pela criação dos serviços
dade, são relativos propriamente à públicos, pelo seu desenvolvimento,
teoria política, não à adminisrtração Trata-se sempre, dizia, de delimitar pela sua adaptação contínua à vida
em si. as esferas jurídicas entre o Chefe de econômica e social. Diferente do d i­
Segundo Ludwig Spiegel, mestre Estado e os Estamentos, ou as clas­ reito privado, que m uda lentamen­
da Universidade de Praga, ao se es­ ses sociais, entre os príncipes e os te, o direito público tem necessidade
tudar o Direito Adm inistrativo è su­ súditos, mas não um estudo científi­ de uma flexibilidade m uito m aior.
ficiente tomar como referência a co das normas materiais pelas quais Diz Jèze: A adm inistração, cuja
constatação de que o Estado moder­ se rege o ramo correspondente da principal missão é a de fazer funcio­
no, o direito político atual, formou- Adm inistração. nar os serviços públicos, tem à sua
se depois da Revolução Francesa e O objeto da investigação científi­ disposição, para cumprir a sua tare­
sob o influxo de seus grandes lideres ca, é ainda Mayer quem o diz, não ê fa, duas séries de procedimentos téc­
e pensadores. o que o príncipe faz no interesse da nicos: os de direito público e os de
Todavia, destaca Spiegel, “ não é salus p u b lica , mas o que tem direito direito privado. Ela se serve de a m ­
à Revolução que devemos o nosso a fazer a esse respeito, até que ponto bos, conforme os casos e segundo as
Direito Adm inistrativo, senão ao alcança o seu ju s p ro m o v e n d i salu- necessidades, correspondendo-lhe
desenvolvimento e à elaboração tem p u b lica e até que ponto pos­ eleger os que melhor lhe convém.
constante das normas jurídicas, ao suem os súditos um ju s contradicen- Assim, empregará seja o procedi­
fortalecimento e à expansão do po­ di, um ju s quaesitum , para limitar o mento da compra e venda, seja a re­
der do Estado, à atuação cada vez m andato do príncipe. quisição ou a expropriação. Do
maior em relação aos fins e às exi­ Spiegel, todavia, contesta essa d i­ mesmo m odo celebrará um contrato
gências da Adm inistração P úb li­ retriz do Direito Adm inistrativo, de locação de serviços ou de coisas,
ca” . (Derecho Adm inistrativo, v. pois desta maneira teríamos de con­ ou bem usará de um contrato de for­
esp., pg. 14 e 15). siderar como o seu objetivo prim a­ necimento, de requisição, ou no­
O tto Mayer entende que a con­ cial o estudo das liberdades funda­ meará um funcionário.
cepção do direito político como um mentais do cidadão, a delimitação Q uando a adm inistração decide
direito subjetivo implica em abordar da esfera livre do poder do Estado, utilizar o procedimento técnico de
os problem as ad m inistrativo s. a qual, propriamente falando, seria direito privado para obter o fim per­
seguido, não há razão, segundo o
(*)Advogado e administrador de empresas, Clóvis Ferro Costa é atualmente diretor tiatadista francês, para excluir a
da Itaipu Binacional. Foi deputado federal pelo Pará, na legenda da antiga União De­ aplicação do direito privado. O ato
mocrática Nacional, UDN. jurídico não será dirigido pelo direi-

r e v is t a d o s e r v iç o p ú b l ic o
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IDÉIAS
to administrativo: não existem m oti­ “ Mediante a atividade legislativa, o etc. etc). (Instituciones de Derecho
vos para aplicar regras especiais. Estado responde à sua missão de Administrativo, Barcelona, pg. 4).
O princípio fundam ental é, pois, criar o direito. A definição do que, Este singular momento da vida
que o direito administrativo com ­ segundo a lei vigente, seja o direito e brasileira, em que o Governo está a
preende as regras especiais estabele­ cada conflito jurídiço, incumbe à cortar fundo, certos hábitos enrai­
cidas para os procedimentos técni­ justiça” . zados, apresenta-se, pois, extrema­
cos de direito público e unicamente A legislação e a administração da mente rico para compreender as es­
estas regras. O c rite riu m de direito justiça constituem os fins específi­ feras de armação e as linhas de de­
adm inistrativo fixa a natureza cos do Estado, mas não são as úni­ marcação entre o interesse público e
jurídica das regras especiais e não a cas funções do mesmo. o privado.
qualidade dos autores de tais atos. Um Estado que se limitasse so­ O poder de intervenção do Estado
Um contrato de compra e venda mente a produzir leis e a editar sen­ não desnatura, porém, os institutos
celebrado pela administração rege- tenças caminharia rapidamente para tradicionais de direito.
se pelo direito privado e não pelo di­ a sua destruição. Desde que com a A cada instante, pela própria ne­
reito administrativo. A o inverso, publicação de leis e de sentenças não cessidade de manter a vida civil na
um procedimento de direito público se esgota a sua atividade” . sua naturalidade e associá-la organi­
não se acha regido pelo direito pri­ A função executiva, registra Flei­ zada, deve poder o Estado agir co­
vado: tem regras especiais. (Princí­ ner, não se esgota no círculo de ne­ mo árbitro, para coibir os excessos e
pios Generales dei Derecho A d m i­ gócios que competem ao Estado, restabelecer o equilíbrio, contra a
nistrativo, vol. 1, versão argentina, além da legislação e da jurisprudên­ força dos cartéis, dos oligopólios ou
De Palm a, 1948, Introdução, pg., cia, pois também lhe incumbem o u­ dos grupos econômicos.
X X IX e X X X ) . tras tarefas, ainda mesmo quando Se estes fossem totalmente livres
Essa distinção substantiva é extre­ de agir, a liberdade de cada qual pa­
mamente importante levar-se em receria, se transformaria em sujei­
conta num a hora com o esta de rele­ Vivemos, hoje, no ção a interesses não lícitos.
vante significação para a vida políti­ Daí a aparente contradição de o
ca, econômica e administrativa do Brasil, uma aparente
Estado moderno intervir para libe­
País, quando se retoma a norm ali­ contradição, quando rar, como se observa da lei de inqui­
dade da vida jurídica e se recoloca a a administração pública linato, da proteção dos contratos de
moeda estável com o um valor de re­ trabalho, do controle dos juros, da
ferência insubstituível no m undo
usa poderes excepcionais
defesa do meio ambiente, do com ­
jurídico. para o retorno à bate ao latifúndio, da reforma agrá­
Estamos a viver uma aparente normalidade. A o utilizar ria etc, etc.
contradição, em que a adm inistra­ a Lei-delegada n9 4, usa Tais intervenções se fazem pelo
ção pública está a psar de poderes braço longo da administração públi­
excepcionais para o retorno à nor­ a coerção, mas no
ca, todavia dentro dos limites cons­
malidade. campo estrito do direito titucionais e em respeito aos direitos
Essa hora histórica encerra uma constitucional, para fundamentais do homem, que, na
lição prática do sentido e do valor sua essência, não podem colidir com
da adm inistração pública conto fa­ tornar possíveis o
os institutos de direito privado pra­
tor de equilíbrio e de desenvolvi­ desenvolvimento da vida ticados na sociedade.
mento nacional, orientada por inte­ civil c os fins do Estado. Dwight W aldo, professor da U ni­
resses coletivos e não privados, no versidade de Berkeley, escreveu um
sentido individualista da palavra. dos mais lúcidos e atuais trabalhos
A o utilizar-se da lei delegada n-' 4 nenhuma lei as im ponham especifi­ sobre a teoria política da adm inis­
e do Decreto-lei ns 2.284, a adm inis­ camente. tração pública.
tração pública usa a coerção, mas A função executiva e o governo A seu ver, a organização científi­
no cam po estrito do direito constitu­ representam duas facetas da terceira ca e a administração pública são as­
cional, para tornar possível a exc- função política, isto é, da adm inis­ pectos correlatos do mesmo fenô­
qüibilidade dos contratos, o desen­ tração no sentido próprio. E desta meno: um movimento geral para es­
volvimento da vida civil e os pró­ maneira tudo que esteja fora das tender os métodos e o espírito de
prios fins do Estado. atribuições d o legislador e dos tribu­ ciência a uma ordem de interesses
Neste m om ento, o direito público nais situa-se no âm bito estrito da humanos que se am plia constante­
intervém para que as regras de direi­ administração. mente.
to privado, na sua fluência norm al,
Daí definir Fleiner a adm inistra­ Tanto quanto a administração
voltem a prevalecer, sem as distor­
ção com o um conjunto de funções pública está baseada na ciência
ções da hiperinflação e da desmora­
de natureza técnica, intelectual e política e que vem intentando situar
lização da moeda, que ê o valor de
jurídica, cada uma das quais tende a as relações políticas sobre uma base
referência da vida moderna e da for­
alcançar resultados úteis para o bem objetiva e científica, a organização
ça dos contratos.
comum (im posição de tributos; esta­ científica não ê senão um m ovimen­
Dir-se-á que o direito público belecimento de prioridades; licença to geral que tem por finalidade colo­
está a atuar para o retorno ao direi­ para abertura de estabelecimento de car a vida econômica do homem, es­
to privado, ameaçado pela teoria da bebidas; construção de estradas e pecialmente a produção, sobre uma
imprevisão. pontes; regulamentação do pessoal base racional.
Daí ser de todo oportuna a lição de serviço; conclusão de contrato de Lembra W aldo que o sistema
do mestre alemão Fritz Fleiner: compra, alugueres e arrendamento. cientifico positivista da adm inistra­

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ção pública pressupõe administra­
dores especializados.
Na verdade, as necessárias condi­
ções de coordenação, de harmonia,
de eficácia, de economia, embora se
apóiem em leis naturais ou científi­
cas, tornam-se realidade e se m an­
tém mediante a ação hum ana.
Em ambos os movimentos, orga­
nização científica e administração
pública, esta noção de “ Adm inistra­
ção: uma ciência” é conseqüência
da expansão horizontal e vertical da
idéia fundamental de estender a
perspectiva objetiva ou científica ao
contorno. (Teoria Política da A d m i­
nistração Pública, pg. 94).
W illoughby, estudando a adm i­
nistração pública sob a visão da rea­
lidade norte-americana, salientava
que, para a solução de seus proble­
mas, é necessário admitir a concor­
rência de duas coisas: primeiro, um
volume de inform ação exata maior
do que o existente até o momento; Protege-os, intervém para salvar
segundo, a form ulação e a adoção a infância desamparada, para sepa­
de princípios de organização e de Este singular momento da! rar os lares desunidos, assegurar a
procedimentos administrativos cien­ instrução dos adolescentes, garantir
vida brasileira, em que o
tificamente estabelecidos. a fortuna dos incapazes, lim itar a
No Brasil, esses critérios foram
Governo corta fundo certos duração do trabalho, fixar o nível
perseguidos através da reforma ad­ hábitos, apresenta-se dos salários, indenizar os acidentes,
ministrativa, mas o aprimoramento extremamente rico para supervisionar a troca dos produtos,
das informações teve apenas uma la­ impedir a lesão ou a fraude, assegu­
mentável contrafação, que foi a ins­
compreender as esferas de rar a transmissão de bens, regular a
tituição das divisões de segurança e armação e as linhas de im portação e a exportação de mer­
informações, infelizmente ainda ho­ demarcação entre o cadorias, que direi mais? pergunta
je existentes, como o braço e a mão Ripert.
interesse público e o N ão se lhe pede simplesmente
forte da ditadura e da delação.
Um falso conceito de segurança privado. O poder de harmonizar a concorrência das ati­
nacional, politicamente aviltado, intervenção do Estado não vidades; é necessário que ele dirija
passou a oprim ir a administração cada uma dessas atividades, ou em
desnatura os institutos qualquer caso, todas aquelas que
pública brasileira sob a ótica m ilita­
rista e sem nenhum critério científi­ tradicionais de direito, são incapazes de se dirigir elas pró­
co. Em poucas palavras, entroniza­ via administração pública. prias e todas aquelas que são dema­
mos uma contrafação. siadamente poderosas para que se
Na verdade, as funções do Estado lhe possa aceitar um a atuação inde­
não se contrapõem, os poderes sim; gócio e eram bastante fortes para pendente.
tendo em vista o equilíbrio político, proteger os seus próprios interesses. O Estado se esgota assim nessa ta­
à perseguição dos objetivos, o Tal doutrina hoje perdeu todo o fa­ refa arrasadora, mas o retoma sem
exercício democrático e a defesa dos vor público: “ Os Fracos” , diz Vau- cessar, sem jam ais encontrar a una­
direitos fundamentais do homem. vernagues” , querem depender a fim nimidade da aprovação.
Daí porque uma das melhores vi­ de serem protegidos” . Toda intervenção em favor de uns
sões da função do Estado vem-nos Não ê mais bastante que o Estado é para os outros objeto de recrimi­
do grande civilista Georges Ripert, assegure a administração e a Justi­ nação, porque a luta dos interesses
em grande síntese. ça. Pode-se-lhe proteger as ativida­ privados tornou-se mais áspera por
Premidos, diz o notável professor des débeis, impedir os abusos da força do excesso de regulamenta­
da Universidade de Paris, uns çon- concorrência, reparar os infortúnios ção. É difícil contentar ao mesmo
tra os outros na vida ardente das imerecidos. De todos os lados uma tempo os proprietários e os locatá­
grandes cidades, os homens apelam queixa ou um reclamo se dirige a rios, os agricultores e os parceiros
incessantemente para a força do Es­ ele, reclamo de uma minoria sofre­ ou arrendatários, os viticultores e os
tado a fim de os proteger dos riscos dora e que não quer mais, não sabe mercadores de vinho, os segurados e
que os faz correr à luta nas suas ati­ mais sofrer. os seguradores, os comerciantes e os
vidades. O Estado é o grande suzerano; co­ consumidores. Se um grupo obteve
O individualism o liberal foi ou- mo o senhor de outrora exige o ser­ um voto de um a lei favorável, o o u ­
trora a doutrina favorita dos notá­ viço militar e o imposto; e com o ele tro protesta ou resiste ou pede q ual­
veis que se enriqueciam do livre ne- protege os seus subordinados. quer coisa em compensação. (Le Ré-

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IDÉIAS
gime Démocratique et Le Droit Civil niente, no litoral e à margem dos para a alimentação dos presos e sua
M oderne, L ib . G énérale, pg. rios navegáveis. condução etc.
37/38). N o sertão, só poderia erigir vilas a Cabia-lhes a nomeação de empre­
Essa é a impressionante tarefa do uma distância de seis léguas, uma gados, de juizes, almotacés, dos re­
Estado e do seu veículo de ação, que das outras. Podia criar e prover o cebedores de sisas, dos depositários
é a Adm inistração Pública. lugar de tabeliães do público e ju d i­ públicos, dos avaliadores dos bens
A primeira fase da história do ciais e exercitar toda a jurisdição penhorados, dos alcaides, dos
Brasil não oferece muitos subsídios cível e criminal. capitães-mores, dos sargentos-
para os temas da atualidade, senão O regime tributário era de percep­ mores, dos juizes de vintena, além
para confronto e meditação. ção direta, no sistema de dízimos. de outras atribuições.
A estrutura era absolutista e o ta­ Os donatários pagariam o quinto do Salienta ainda R odolfo Garcia
m anho dos encargos de desenvolver produto das minas e do comércio de que as Câmaras Municipais, “ não
uma colônia do porte do Brasil le­ ouro e prata. satisfeitas com as atribuições que
vou Portugal a optar pelo sistema de De certos produtos haveria a par­ lhes davam as leis e pelo concurso de
delegação de poderes. tilha entre o donatário e o rei. Daí a diversas causas, arrogaram-se ou­
Era impossível a administração expressão repartição, que era onde tras que de m odo algum se podiam
direta, não só pela extensão do terri­ se deveriam fazer tais partilhas, conciliar com a natureza e a índole
tório, como pela ausência de recur­ expressão hoje assimilada por evo­ do poder m unicipal” .
sos humanos e financeiros e a inexis lução semântica a dependências pú­ Assim é que promoviam a guerra
inexistência de comunicações fáceis. blicas. e assentavam a paz com os gentios,
Dessa maneira, já pelo regime decretavam a criação de arraiais,
político então dominantes em Por­ convocavam juntas para discutir e
tugal, já pelas contingências mate­ Um falso conceito de deliberar sobre negócios da capita­
riais, a situação das populações era nia, exigiam que os governadores
da mais inteira e completa depen­
segurança nacional,
comparecessem pessoalmente no
dência. politicamente aviltado, Paço da Câm ara para com ela tratar
Castro Rebello registra assim as passou a op rim ir a dos negócios públicos, chegando
suas impressões sobre os primeiros administração pública até, mais uma vez, a suspendê-lo e
tempos da colônia: “ Foi, portanto, nomear outros que os substituíssem
o enfeudamento da terra o meio que brasileira, sob a ótica enquanto o governo da metrópole
empregou sabiamente a Coroa Por­ m ilitarista e sem nenhum providenciasse a respeito” . (O p. cit.
tuguesa para se assegurar de seu critério científico. Na pg.. 94 e 95).
dom ínio e dc sua exploração. Todavia, o Brasil moderno come­
Nomeiam-se, então, os primeiros prática, entronizamos çou com o evento da mudança da
donatários com quem divide ela uma contrafação. Na família real e daí para a nossa inde­
aquele dom ínio e seus proventos. As verdade, as funções do pendência.
capitanias são inalienáveis, trans­ A nossa estrutura era extrema­
missíveis por herança, respeitado o
Estado não se
mente atrasada, debruçada quase
m orgadio. Os donatários são, des­ contrapõem, os poderes exclusivamente sobre a exploração
tarte, de “ jú ri e herdade", os senho­ é que se contrapõem. rural e com uma terrível distribuição
res de suas terras. (In Max Fleuss, de terras, cujas desigualdades se
História Adm inistrativa do Brasil, projetam até os dias atuais, im pon­
pg. X II). Q uando o regime político passou do o ingente esforço da reforma
Sabe-se, todavia, que o regime de­ da atuação direta dos donatários pa­ agrária, de dificílim a execução.
m orou pouco tempo, revertendo as ra o Governador Geral, as Câmaras Primeiro Chagas disse que a inva­
capitanias à adm inistração da C o ­ M unic ipais assum iram enorme são francesa a Portugal, em 1807, te­
roa. proeminência durante o período co­ ve como conseqüência, em primeiro
Operou-se aí a delegação política lonial. lugar, a inversão política dos papéis,
necessária desde que o Governador Elas eram um poder representati­ transmudando-nos de colônia em
Geral do Brasil não tinha a menor vo, tinham o governo econômico da metrópole, o que Sylvio Romero
possibilidade efetiva de ter o com an­ capitania e acumulavam ainda cer­ chamou de a inversão b ra sile ira ; em
do de todo o extensíssimo território. tas funções judiciais. segundo lugar, a transição como
R o dolfo Garcia, na sua famosa O estudo, assim, das Câmaras conseqüência natural dos fatos, em
História Política e Adm inistrativa M unicípios tem significativa im por­ surpreendente antítese com o que se
do Brasil, diz que a adoção das capi­ tância na form ação da nacionalida­ passava ao mesmo tempo com os
tanias foi feita quase a esnio, com de brasileira e no desenvolvimento outros países da América espanho­
m uito pouco conhecimento da ex­ da nossa estrutura política. la.
tensão doada e sem outra lim itação Tratam as Ordenações Filipinas E opinião dom inante dos historia­
além da m unificência do règio doa­ das atribuições das Câm aras e dos dores e políticos de que essa transi­
dor. Estabelecia-se um contrato en- deveres dos vereadores. ção natural propiciou a instauração
fitêutico em virtude do qual se cons­ Podiam impor posturas, fixar ta­ do regime m onárquico brasileiro e
tituíam em perpétuos tributários da xas, dispor sobre a jornada dos tra­ possivelmente terá preservado a
Coroa. balhadores, a soldada dos criados, nossa unidade.
A o C apitão incum bia criar vilas, as cobranças extraordinárias, cha­ A inda que essa matéria seja sedu­
com seu termo, jurisdição, liberda­ madas de fintas, quando as rendas tora e relevante, não é o objeto da
des, insígnias, onde julgasse conve­ não fossem suficientes; de impostos presente palestra.

2b REVISTA DO SERVIÇO PÚBLICO


IDÉIAS
Somos por isso obrigados a reto­
mar o fio das nossas modestas con­
siderações dentro do objetivo pro­
posto.
A tarefa do Império e posterior­
mente da República foi praticamen­
te de construir uma nação, em face
da estrutura extremamente deficien­
te com que a independência nos en­
contrara.
A indústria fora reprimida, salvo
a da cana-de-açúcar e os pequenos
mistêres de ofício; os portos eram
m onopólio dos portugueses até o
ato da abertura em 1808, por in­
fluência inglesa e como contraparti­
da ao apoio à fam ília real em sua fu­
ga. Só então criaram-se os correios,
abriram-se bancos, instalou-se a jus­
premo Tribunal Federal, que são a
tiça superior, que até o vice-reinado
expressão máxima do judiciário, pe­
dependia de Portugal. Estradas, A modernização da la sua natureza, não pode depender
praticamente não havia, senão em
função da exportação e da ligação
administração pública de concurso.
passará necessariamente Mas a vaga expressão “ salvo os
dos centros de m ineração.
casos indicados em lei” , deve ser ba­
Tudo praticamente por construir. pela democratização das nida do texto constitucional, pelas
Essa foi a tarefa m onum ental dos oportunidades e pelo facilidades que enseja, pelos abusos
nossos políticos do Império e da Re­
rigoroso princípio da que propicia.
pública. A inda agora, recentissimamente,
Agora nos cumpre, num salto da seleção através do mérito, no meu Estado, penosamente a As­
História, a visão da modernização p o r meio de concurso de sembléia Legislativa aprovou uma
da adm inistração pública segundo a lei de exceção permitindo o provi­
entendemos.
títulos e de provas,
mento no Tribunal de Contas do Es­
acessível a todos, sem as tado de cargos de altíssima remune­
ELEMENTO HUMANO facilidades da vaga ração, independentemente de con­
E surpreendente registrar que o regra geral atual, curso. A conseqüência foi que pa­
elemento hum ano no Brasil somente rentes próximos das autoridades fo­
mantida a respeitabilidade ram aquinhoados à margem do cri­
começou a ter expressão efetiva a
partir da revolução modernizadora do Serviço Público. tério do mérito.
de 1930. Esses exemplos tendem a medrar
Sob o im pacto das pregações da e o oportunismo político afeta o
Aliança Nacional Libertadora, no nhou a matéria do funcionalismo conceito, a eficiência e a isenção na
conflito das idéias, desenvolveram- público a tutela constitucional. administração pública pela opção
se tanto o direito social dos traba­ do uso imoderado do poder transi­
Sucessivamente todas as outras
lhadores, como o dos funcionários tório.
Constituições vêm dispondo sobre o Tenho, assim, como um dos pres­
civis. tema e é claro que a futura Consti­ supostos da respeitabilidade da ad­
Themistocles Brandão Cavalcanti tuinte manterá e am pliará o capítulo
faz o histórico do Estatuto dos Fun­ ministração pública a adoção de cri­
pertinente aos servidores públicos. térios neutros, igualitários e acima
cionários Públicos Civis, cujas ten­ A disciplina atual acha-se no A rti­ das contingências de grupos ou de
tativas remontaram desde 1907 com go 97 da presente Carta.
o projeto Justiniano Serpa; depois o momentos.
de Alcindo G uanabara, de 1910, o Entendemos que a modernização
de Graccho Cardoso de 1911, o de da administração pública há de pas­
M oniz Sodré em 1913, o de C am ilo sar necessariamente pela democrati­ A ESPECIALIZAÇÃO DAS
de H olanda de 1914, e vários outros zação das oportunidades e pelo rigo­ FUNÇÕES
que seria tedioso insistir. roso princípio da seleção através do
mérito, por meio de concurso publi­ M uitas instituições brasileiras
Na verdade, a disciplina da maté­ cresceram ao sabor de conveniênçias
ria veio a partir da revolução de 30, co de títulos e de provas, acessível a
todos. As exceções devem ser previs­ momentâneas. Passada, porém, a
como se disse. justificativa inicial, ao invés de de-
Surpreendentemente a C onstitui­ tas constitucionalmente e para os
ção de 1891, apesar da liderança de casos restritos de investidura de na­ s a p a r e c e r e m , cresceram,
tureza política ou de alta especiali­ perpetuaram-se.
Ruy Barbosa, nada dispunha a res­ Outras atenderam a objetivos es­
peito do funcionalism o público. zação, sem as facilidades da vaga re­
gra geral atual. pecíficos, a ênfase dada a certos
Também sobre os seus direitos silen­ problemas. Perpetuaram-se tam ­
ciava a Constituição do Império e É óbvio que o provimento de t un­
ções tais com o a de Ministro do Su­ bém, sem a visão de conjunto.
somente a partir da Carta de 34 ga-

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REVISTA DO SERVIÇO PÚBLICO
IDÉIAS
A conseqüência ê que ora há ca- lares da administração pública e res­ No campo econômico, deve ser
rênçia de atuação do Estado em de­ ponsabilidade civil. posta em prática a regra de que, sal­
terminados setores, pelo excesso de A atual Constituição adotou o vo a hipótese de m onopólio ou de
organismos tópicos; ora há superpo­ princípio da responsabilidade direta alto interesse nacional, a liberdade
sições inconcebíveis. do Estado, mas apenas subsidiária de iniciativa deve ser reconhecida.
Citarei alguns exemplos: do funcionário responsável pelo A administração pública se alivia­
A Fundação Serviços de Saúde ilícito, nos casos de culpa ou dolo. rá do encargo inútil de decidir sobre
Pública — FSESP nasceu do esfor­ E evidente que essa norma é insa­ atividades que nada têm com estas
ço de guerra, em 1942, se não me en­ tisfatória e que a responsabilidade hipóteses, extinguindo o rendoso
gano. civil do funcionário deve ser solidá­ comércio de patentes.
O Brasil engajou-se ao lado dos ria. Uma administração moderna de­
Aliados, havia enorme carência de ve ser, assim, simples, aberta e des­
borracha natural e a América do vinculada de atividades ociosas.
Norte por todos os meios e modos Qual a razão de ordem pública,
necessitava aumentar a sua produ­ A Constituição de 1981, por exemplo, que ainda justifica a
ção. Sabidamente a A m azônia era a apesar da liderança de concessão de licença para postos de
região onde tais recursos poderiam gasolina?
ser desenvolvidos de forma emer-
Ruy Barbosa, nada
A remota história absolutista bra­
gencial, já que é o “ habitat” da bor­ dispunha sileira ainda não perdeu de todo as
racha natural. a respeito do suas raízes e o Estado moderno deve
Em 1912 a produção atingira o ter a coragem de enfrentar tal voca­
seu clímax, quando foram exporta­
funcionalismo público.
ção cartorial.
das 42 mil toneladas. Depois veio o A Constituição do Império São centenas de milhares, talvez,
declínio, com a brutal queda dos também silenciava sobre os os alvarás, licenças que cobrem o
preços, e a plantação racional e sis­ seus direitos. Somente a nosso patrimônio mineral. Um regi­
temática na Malásia. me escandaloso, que ainda sobrevi­
A Fundação Sesp foi criada como p a rtir da Carta de 34 ve, da chamada Lei do Protocolo
esforço de guerra para assistir às po­ ganhou a matéria do assegura prioridade a quem chegar
pulações nordestinas convidadas a funcionalismo público no segundo que antecede ao çoncor-
se transladar para a A m azônia, na rente. Aí prevalece o formalismo e a
maior migração oficial prom ovida a tutela constitucional.
falsa eqüidade, em detrimento do
no Brasil e tinha por objetivo asse­ Todas as outras interesse coletivo. Mas, em seguida,
gurar as condições de saúde que constituições o Estado se omite e permite que as
possibilitassem a reocupação ime­ concessões sejam negociadas, sem a
diata dos seringais nativos.
vêm focalizando o tema
menor visão do interesse coletivo.
Passada a guerra, a Fundação Trata-se de um dos grandes e mais
continuou e hoje trata concorrente- vergonhosos negócios da República
mente de abastecimento de água por Juntamente com o Estado, o res­ e que prospera à sombra de uma ad­
este Brasil afora, em superposição a ponsável direto pela lesão deve po­ ministração omissa, por força de he­
outros programas. der ser dem andado de imediato. Tal rança recebida do regime anterior e
Mas, há também deficiências e providência aumentará a noção do cuja m odificação tarda.
covardias. A Previdência Social, cu­ dever, servirá de coibição forte aos Na verdade, os corretos adm inis­
jos prim órdios remontam à Lei Eloy tão freqüentes abusos da adm inis­ tradores atuais, sobre os quais não
Chaves, em 1923, ainda hoje é de- tração pública. pesa a menor suspeita, não têm pos­
sarmônica e está longe de ser univer­ Isso não impede a prática da dele­ sibilidade material de defender de
sal. O tratamento no cam po é desi­ gação, que se impõe como norma de forma eficaz o interesse público em
gual e os funcionários públicos esta­ agilizar as decisões. tal emergência.
duais e municipais dela estão ex­ A responsabilidade civil aqui pre­ A modernização da administra­
cluídos, a depender da iniciativa dos vista é da ocorrência de culpa pro­ ção pública passaria pela proibição
respcçtivos organismos públicos. vada do funcionário e não na h ipó­ da alienação de cartas-patentes, des­
Faltou a ação corajosa de estabe­ tese de responsabilidade apenas o b­ de que não se pode negociar a von­
lecer a convergência de esforços, de jetiva. tade do Estado, cabendo ao particu­
çriar um organismo verdadeiramen­ lar alienar tão-só o seu fundo de co­
te universal, convergente, embora A LIBERDADE DE INICIATIVA mércio.
com a coparticipação de todos os se­ Por outro lado, impor-se-ia a co­
tores. O Poder Público, no Brasil, ao participação da sociedade através de
Temos, assim, ora superposições, longo da história ora ocupou espa­ seus representantes, no controle de
ora carências, e è evidente que a m o­ ços vazios, por omissão da iniciativa tais concessões. Jamais poderá sei
dernização da adm inistração p úb li­ privada, ora interveio em setores em ato de arbítrio, ou de restrito ou de
ca teria de passar pela adoção de so­ crise; ora ainda passou a explorar um grupo fechado, sem responsabi­
luções lógicas, abrangentes, dem o­ atividades econômicas sujeitas a re­ lidade civil.
cráticas e fiscalizadas. gime de m onopólio por força de de­
cisão política, visando a preservar A INTEGRAÇÃO NACIONAL
A RESPONSABILIDADE CIVIL os superiores interesses nacionais. E
o caso do Petróleo e da Energia As decisões nacionais não devem
Trata-se de uma das pedras angu­ Atôm ica. ser concorrentes e sim convergentes.

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IDÉIAS
Q uando os interesses disserem res­
peito também os Estados e M u ­
nicípios, obviamente, essas unida­
des devem participar da decisão, em
busca da eficácia, do impedimento
do desperdício, da cor -
responsabilidade, do maior controlé
A atualização da Administração
e da convergência de vontades.
A Previdência Social, a Saúde, o
Ensino, os Transportes são exem­
Pública e suas implicações
plos eloqüentes dessa integração in­
dispensável.

A DEFESA DA Sebastião M edeiros da Silva (*)


TRANSPARÊNCIA
E DA PROBIDADE
ivemos um momento extre­
E indispensável uma tutela efi­
ciente dos direitos das minorias, às
quais deve ser assegurada a faculda­
de de veto em decisões qualificadas
V mamente importante da his­
tória da Adm inistração P ú­
blica brasileira. Pela pri­
meira vez, neste País, tem
e que atentem contra as normas le- início uma reforma administrativa
gais. sob a égide de um Governo dem o­
Necessariamente, as atividades crático. Nos últimos 20 anos, o cen­
econômicas exploradas pelo Estado tralismo administrativo, aliado a
ou por delegação deste deveriam sê- um çentralismo político jamais ex­
lo sob a forma de companhias aber­ perimentado em nosso Pais, gerou
tas e delas o Estado deve retirar-se
Um tal quadro de disfunções que
tanto quanto o objetivo colimado
acabou levando a um modelo de ad­
tenha sido atingido.
A responsabilidade civil pelos ministração pública perigosamente
distanciado da realidade nacional.
ilícitos não pode ficar circunscrita à
reposição proporcional ao erário. Atendendo a compromissos assumi­
Em situações tais, no caso de lesão dos com a Nação, o Governo da N o­
ao erário, além da inabilitação va República deu início a uma refor­
ma administrativa caracterizada por para o exercício de suas funções.
política, o perdimento de bens do
infrator deve ser total. objetivos que devem reverter com ­ Finalmente, a melhoria dos pa­
Nos países socialistas, a punição pletamente este quadro. Restaura­ drões de desempenho tem com o im
chega até a pena de morte; nas de­ ção da çidadania, democratização, plicação significativa a alocação
mocracias, a defesa do erário, que descentralização e desconcentração, mais eficiente de recursos.
não pode chegar a tais extremos, de­ revitalização do serviço público e Desta form a, os princípios que es­
ve, pelo menos, consignar uma pena valorização de seu servidor, melho­ tão a guiar esta reforma, se observa­
econômica de tal monta que jamais ria dos padrões de desempenho são dos,“- como certamente o serão,
estimule a apropriação de recursos os princípios norteadores desta re­ constituem-se num excelente refe
públicos por ato ilícito de quem forma. Com a restauração da cida­ rencial para a adoção de um a adm i­
quer que seja. dania, teremos cidadãos providos de nistração pública capaz de atender,
C om o bem acentua Oswaldo A ra­ meios para a prática da exigência de com eficiênçia e eficácia, à dinâm ica
nha Bandeira de Melo, “ o Estado- das demandas da sociedade brasilei­
seus direitos. Com a democratiza­
poder estabelece normas jurídicas ra.
ção da ação administrativa do G o ­
sobre a conduta dos indivíduos, de Com estes princípios com o guia, a
verno, teremos am pliada a garantia
que se compõe o povo do questão que se coloca a seguir pode
Estado-sociedade, isoladamente ou de incorporação das posições dos d i­
versos segmentos da sociedade. A ser expressa com o nas palavras do
em comunidades por eles criadas,
descentralização e a desconcentra­ prof. Gerald E. Caiden(*): reformar
facultando-lhes poderes e
ção da ação administrativa im pli­ o quê? Por que, quando, com o, em
reconhecendo-lhes direitos, de m o­
do a desfrutarem a melhor vida so­ cam no reestabelecimento do fede­ que proporção, com que êxito?
cial, ao mesmo tempo que lhes veda ralismo e do municipalism o. Em de­
O C a id e n , üerald E.: Administração
a prática de determinados atos, con­ corrência da revitalização do serviço do Desenvolvimento e Reforma Adminis­
siderados contrários à ordem social público e valorização de seu servi­ trativa. Coletânea Inovação na Adminis­
c lhes impõe a consecução de o u­ dor, teremos servidores motivados tração Pública. Fundação Getúlio Var­
tros, havidos com o condizentes com gas.
que envolvem deveres e obrigações. i ■' 1 ............................ui.mi.i. i. ..... ii ■» .q
Na verdade, o Estado-Poder só se "Doutor em Administração Pública pela Universidade de São Paulo e secretário-geral
justifica pela busca do bem comum da Secretaria de Modernização e Reforma Administrativa do Ministério da Adminis­
e da igualdade social. tração

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