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Vivendo no Campo Minado: Riscos, Apostas e Sobrevivências em uma favela do


Rio de Janeiro

Tássia Mendonça1
Doutoranda do PPGAS/Museu Nacional

Zona Oeste do Rio de Janeiro, década de 80. Numa madrugada qualquer, mais
uma vez rola o baile funk da Vila Vintém. Cássia não tem mais do que 15 anos. Ela põe
seu vestidinho branco, seu salto alto, faz a maquiagem, pede a benção à mãe e com a irmã
sai da sua casa no Batan para curtir o baile. Elas seguem andando pelo acostamento da
Avenida Brasil, até a passarela construída na altura da Vila Vintém, onde atravessam para
mais uma noitada. Era só mais um baile, como tantos outros antes e tantos outros depois.

Encontram as amigas e os pentes2, bebem cerveja, dançam e a noite parece não


ter fim. Com o dia quase amanhecendo, Cássia decide que já é hora de ir, a irmã, no
entanto, quer ficar. No impasse cada uma segue seu próprio rumo. Cássia tira o salto. Faz
o caminho de volta. Ela o conhece como a palma da mão: a madrugada, as ruas vazias, a
estrada sem carros não a amedrontam. Essa estrada, essa avenida, essa travessia eram, e
continuam sendo, suas velhas conhecidas.

Com o dia amanhecendo no horizonte da Avenida ela atravessa de novo a mesma


passarela. Dessa vez, ouve passos. Olha para trás. Ela reconhece aquele homem. Isso, é
ele mesmo! Ela aperta o passo, afinal já cansou de dizer não, ele parece não entender o
recado. Ele grita: Espera! Não vou fazer nada contigo! Fica tranquila! Ela espera. Ele se
aproxima. Está armado. Ainda na passarela ele a rende, a obriga a descer lentamente as
escadas e nas margens da Avenida Brasil se senta com ela à sombra de uma árvore.

É ali, com o dia amanhecendo, na beira da estrada, que Cássia o enfrenta. Ele
insiste, descrevendo o que vai fazer com ela, ameaçando, ofendendo, batendo, rasgando
seu vestido, sujando o branco da barra da saia com o próprio sangue dela. Ela resiste.
Não. Não. Não. Grita. Ameaça de volta. Diz que para ter o que ele quer, ele vai ter de
matá-la antes. Ele se irrita. Cada grito de Não! é devolvido com uma porrada. Cássia não
chora, não pede por favor. Ela demanda. Me deixa ir, agora! Você não vai fazer nada
comigo! Eu vou gritar até você me deixar ir! Não. Não. Não.

1
E-mail: tassia_sm@hotmail.com
2
Peguetes, pegações ou pentes/pentadas, são termos que identificam relações afetivo-sexuais.
2

O sol vai aos poucos se levantando. O movimento dos carros na Brasil


aumentando. Em algum momento ele desiste, a deixa ir. Mas não antes de fazê-la jurar
que não vai contar para ninguém, do contrário, ele irá matá-la. Cássia faz sua promessa.
A pé, com o vestido rasgado, sujo com seu próprio sangue, ela segue até a casa da mãe.
Entra em casa e pega o dinheiro para a passagem. Não toma banho, não troca de roupa.
Vai sair. A mãe fica em desespero. Minha filha, o que fizeram com você?! Onde você vai
assim?! Vai fazer o quê?! Cássia olha para sua mãe, e com calma lhe responde: Fica
tranquila, mãe. Está tudo certo. Eu vou ali na Vintém rapidinho resolver um problema e
já volto.

E ela foi. A sensação de andar em segurança por aquelas ruas não era apenas uma
questão de costume, mas também de conhecimento. Cássia frequentava os bailes da
Vintém e, por conseguinte conhecia e era conhecida por quase todos os moradores dali,
inclusive pelas pessoas do movimento3. Cássia segue reto, sabe exatamente onde precisa
ir. Chegando lá os meninos assustados com o seu estado perguntam o que lhe aconteceu,
quem fez aquilo com ela. Ela descreve a cena, o homem. Sai da boca. Seu problema foi
resolvido, ela nunca mais o vê.

Com o restante do dinheiro que pegou para a passagem atravessa mais uma vez a
Brasil, volta enfim para casa.

__________________________

Este é um dos muitos fragmentos que compõe esse texto, tratam-se de trechos,
memórias e relatos das sobrevivências cotidianas de Cássia: mulher negra moradora da
favela do Batan4. O leitor pode se perguntar o que haveria de tão especial ou único sobre
essa mulher. A despeito de quaisquer antecipações teórico-metodológicas, gostaria de
começar com algo que, não obstante parecer banal, se tornou crucial, tanto em campo,
quanto durante a escrita: Cássia é dona de um raro dom, ela sabe contar sua própria
história.

3
Movimento é um dos termos utilizado em referência ao grupo de pessoas que vende drogas dentro da
favela, o tráfico/os traficantes, em alusão direta ao intenso fluxo no qual se passa sua estrutura de poder e
de funções. Sobre o tema vale conferir Barbosa (1998) e Biondi (2009).
4
O Batan é uma favela localizada às margens da Avenida Brasil, em Realengo na Zona Oeste do Rio de
Janeiro. Entre 2010 e 2013 fiz trabalho de campo no Batan, etnografia que culminou em um período de
quatro meses no qual ali residi. A partir desta pesquisa foi elaborada a dissertação “Batan: Tráfico, Milícia
e Pacificação na Zona Oeste do Rio de Janeiro” realizada no PPGAS/Museu Nacional, sob orientação do
Prof. Marcio Goldman, com apoio da CAPES. Parte das reflexões realizadas no presente texto se encontram
no primeiro capítulo da mesma.
3

Dona de uma oralidade invejável, ao recontar suas memórias, ela não encapsula a
conversa num tempo remoto e irrelevante. Cássia extrai do momento presente um passado
que se precipita sobre o agora, que o invade. Seus relatos não começam com “era uma
vez”, suas lembranças podem ser de três décadas atrás, mas ao contá-las as mesmas vêm
carregadas com as cores e os sons de uma memória que parece acontecer novamente todas
as vezes que revisitada. Não se trata de nostalgia, nem mesmo de uma dificuldade em
superar acontecimentos traumáticos, tratam-se mesmo de “virtualidades” que
atravessando sua história se “atualizam” no recontar, conectando-se com o presente na
mesma medida em que nele se precipitam. Essa constituição mútua entre temporalidades
distintas também atravessa Cássia em sua relação com o lugar onde mora, em suas
histórias corpo e território se pertencem mutuamente.

Conheci Cássia no período em que morei no Batan, entre março e junho de 2013.
Naqueles meses eu passei muito tempo na Associação de Moradores e nos encontramos
quando ela ali foi para pegar sua correspondência. Cássia é muito simpática, logo se
interessou pelo meu trabalho, queria entender o que eu estava fazendo morando no Batan.
Quando percebeu que eu ainda estava me encontrando, de imediato me convidou para o
aniversário de sua irmã que seria naquele final de semana. Ao longo dos próximos meses
fomos passando cada vez mais tempo juntas. Almoçávamos, víamos novela, eu ajudava
com o dever de casa de sua filha e ela me convidava para jantar em sua casa. Ela me
apresentou a todos os seus amigos e familiares, por fim eu já tinha alguma autonomia de
circulação, mas procurava estar sempre com ela, nos fins de semana a cerveja, o pagode
e o funk eram sempre certos.

Cássia nasceu na década de 70. Vinda do interior de São Paulo a família de seu
pai migrou para o Rio de Janeiro na década anterior. É na Zona Oeste que seus pais se
conhecem e um pouco antes de Cássia nascer, a família se muda para a área hoje
conhecida como Batan. Cássia é a primeira filha do casal, depois dela nasceram Carla e
um terceiro irmão, Castilho. Cássia e a irmã são muito próximas, tal como seus filhos.

Carla tem dois filhos, um casal, Jaqueline (23) e Lucas (21), e ambos já lhe deram
netos. Ela mora sozinha, no terreno da família de seu pai, já falecido. Cássia por sua vez
mora em outro terreno, numa casa que comprou com o dinheiro da separação. Ela se
separou há quatro anos, e desde então vive com os dois filhos, Wallace (19) e Rebeca (7).
Além deles, Cássia teve outros dois meninos, Dinho e Rafa, cujas vidas e histórias me
4

foram contadas por sua mãe, tia e irmão. Garotos que conheci pelas fotos espalhadas pela
casa, pelas piadas que os lembravam, pelo choro e pelo riso de sua mãe.

Esses são alguns dos principais personagens dos fragmentos que se seguem. As
histórias são narradas a partir ora da perspectiva direta de Cássia, ora com inserções
indiretas, que suspendem a mediação da narrativa dela, tornando o relato mais dinâmico.
Há trechos da vida de Dinho e Rafa, que ela não presenciou, o que não a impede de narrar
com detalhes os acontecimentos, e também como seus filhos vivenciaram essas
experiências, o que estavam sentindo ou pensando. De modo que utilizei algumas vezes
recursos narrativos que suspendem a mediação de Cássia, como se fosse um flashback da
lembrança de alguém. Ainda que estejamos acessando aquela história por meio da
memória e da percepção de outra pessoa, ou seja, com o filtro da experiência de outrem,
esses personagens não deixam de ter sua própria perspectiva enquanto o flashback
acontece.

Esse movimento tem como referência as percepções e a fala de Cássia, mas


incorpora igualmente ecos e falas de amigos e parentes. Se a experiência do outro é do
campo do “inalcançável”, ou seja, esbarra sempre no limite e no “perigo da
representação”, a questão que esse movimento levanta é menos a de que eu estaria
sobrepondo as “reais” sensações de pessoas que nem mesmo conheci e mais a de que
estou pondo em evidência o caráter ficcional dessas memórias. Não no sentido de que
elas não seriam reais ou verdadeiras, mas de que se trata mesmo de uma certa “potência
do falso” que esses relatos possuem, na medida em que são narrativas em devir e não
história5.

5
Utilizo aqui alguns dos conceitos de Deleuze (2007; 2008), notadamente na distinção (de tratamento e
intenção) que o autor estabelece entre a história e o conceito de devir: a primeira ocupa-se da reconstrução
do passado à luz daquilo que efetivamente aconteceu, operando com a oposição entre real e possível. Já o
devir opera pelo agenciamento entre o virtual e o atual. A realidade está em ambas às esferas e os
movimentos efetuados entre elas constituem zonas indiscerníveis. Assim, os movimentos de atualização e
de efetuação são contínuos, que arrastam consigo a dimensão da virtualidade não-atualizada. Enquanto a
história aciona a distinção entre verdade e mentira, o devir, por sua vez, possibilita a “falsificação” enquanto
sua potência criativa, isso é, em virtualidades, atualizadas ou não.
A operação de falsificação implica na criação daquilo que Deleuze (2010: 155) chama de “intercessores”.
Esses sãos os meios através dos quais se cria, ao falsificar o outro, faço dele meu “intercessor” num
agenciamento criativo. Assim, trata-se de possibilitar a relação entre diferentes em sua potência criativa e
não mediada pela representação ou imitação. Pode-se então falar diante dos intercessores que se falsifica,
posto que a preocupação não é com a tensão entre verdadeiro/mentiroso que atravessa toda a fala que é
sobre. Antes, falar diante implica uma ética/estética pautada numa relação ressonante e não representativa.
O intercessor é assim o falsário por excelência, que fazendo fugir a relação verdade/mentira, abre a
possibilidade de falar diante daqueles que se falsifica e não sobre aqueles que se representa.
5

Dinho

Dinho é o segundo filho de Cássia, nascido em 1992. Foi batizado Eduardo, mas
quase nunca o chamam assim. Em campo não o conheci, mas aprendi sobre sua vida e
suas histórias, seja nas memórias dele carregando a caçula na corcunda, dando dor de
cabeça para a mãe ou no cheiro de seu perfume preferido. Dinho está sempre presente.

Dinho deu muito trabalho. Cássia diz que não era bandido, afinal com aquela
idade e aquele tamanho não dava para ser bandido completo, era no máximo aprendiz!
Ele era esperto, sempre soube se cuidar

Na adolescência Dinho começou a andar com o pessoal da boca do Batan. Nessa


época os meninos da boca eram todos muito novos, a maioria dos seus nomes é no
diminutivo, como do próprio Flavinho, o chefe6. Começou a andar é uma forma
interessante de dizer, sem precisar explicar, que é nesse momento que Dinho começa a
fazer o que os meninos da boca faziam.

Entre Meninos e Traficantes

A partir da noção de conhecimento, podemos entender tanto a relação de Cássia


com a(s) boca(s) – no Batan e na Vintém – quanto o movimento que Dinho realiza de
entrada para o tráfico no Batan. No primeiro caso ser conhecida não implica um
pertencimento, mas possibilita que Cássia recorra à boca em determinadas situações,
como no episódio de violência descrito anteriormente. No caso de Dinho, o conhecimento
da infância é um dos elementos que permite sua circulação pelo/com o movimento, em
ambos os casos o conhecimento cria conceito, isto é, determinada reputação positiva, que
possibilita tanto o pertencimento quanto um território de boas relações.

A expressão meninos da boca/do movimento é largamente utilizada por Cássia e


sua rede de amigos e familiares quando se referem a esses moleques do Batan, a última
geração de jovens envolvidos no tráfico antes da chegada da milícia. A intimidade com
que se referem a eles e a maneira como até mesmo os momentos de tensão e conflito estão
atravessados por um certo tom de piada, diferencia esses moleques de tantos outros,
chamados de bandidos ou traficantes.

6
Chefe ou patrão é o primeiro homem na estrutura de comando do tráfico. Para uma análise mais
aprofundada das diferentes funções que compõe essa estrutura, vale conferir: para o contexto do Rio,
Barbosa (1998); para o contexto de São Paulo, Biondi (2009).
6

Um exemplo é a história de quando Cássia bateu de frente com o chefe. Certo dia,
Dinho chegou em casa com o rosto marcado por um tapa. Numa discussão com Flavinho,
Dinho o havia desafiado e o chefe lhe bateu. Cássia não aceita. Para ela só a mãe tem o
direito de dar na cara do filho! O chefe cruzou uma linha e Cássia vai até a boca ensinar-
lhe uma lição, lhe devolvendo o tapa na cara que seu filho havia levado. Às gargalhadas,
ela, a irmã e as amigas contam que, naquele dia, Flavinho aprendeu que podia até ser o
chefe, mas que todo mundo tem mãe e que não se bate na cara de filho dos outros.

A curta adolescência de Dinho foi um período de muita preocupação para Cássia,


de noites mal dormidas, de brigas para que o filho não fizesse escolhas irreversíveis, de
incontáveis preocupações e anseios, os quais inevitavelmente tiveram um fim.

Mãos na Cabeça!

2007. Dinho tem apenas 15 anos. Era mais um dia como outro qualquer. Ele foi
de manhã cedo na padaria, comprou R$1 real de pão. Deu uma volta na favela com Rebeca
presa aos ombros.

A tarde chegou e Dinho foi encontrar o pessoal, os meninos, ali mesmo no Batan.
Eles tinham uma ideia, algo que já vinham discutindo há um tempo. Seria esse o dia
certo?! Será que conseguiriam?! Parecia que sim, tinham todos os elementos armados. E
tudo aconteceu num piscar de olhos. A decisão, o roubo, encontrar o carro certo, no lugar
certo. Render a motorista, deixá-la ir. Entrar no carro e levá-lo para o desmanche7.

Era sua primeira vez, Dinho no banco de trás estava ainda um pouco perdido, sem
saber como tinham chegado até ali. Com ele, mais três rapazes no carro e a sensação de
que tudo acabaria em instantes. Já estavam quase dentro do Batan.

O que eles não sabiam era a variável que não havia como ser calculada. Aquela
mulher era casada, e seu marido era policial. Pelo GPS8 eles foram rastreados,
encontrados, caçados e perseguidos. Com a ameaça iminente da morte, aceitaram.
Haviam perdido.

7
É possível encontrar diversos relatos – Feltran (2011); Biondi (2009) – de como os movimentos de entrada
para o tráfico, isto é, o período em que se está virando bandido, é marcado por um (ou mais) primeiro(s)
trabalho(s): um assalto, um homicídio (em geral um acerto de contas, como a morte de um delator por
exemplo), etc.
8
GPS é a sigla para Global Positioning System, isto é Sistema de Posicionamento Global, e consiste num
sistema de navegação por satélite o qual permite a localização de veículos e celulares, por exemplo.
7

Pararam o carro e de dentro dele saíram apenas dois moleques, correndo e


entrando para dentro do Batan, despistaram enfim os policiais. No banco de trás
permanece Dinho. Ele não corre, teme a morte. Tem medo que ao correr morra com um
tiro nas costas. Se rende. Sai do carro com as mãos para o alto. Vozes ordenam: ajoelha
no chão, mãos na cabeça! Dinho obedece. É executado com um único tiro de fuzil9.

Meu menino na pedra

O telefone toca e Carla atende distraída. É do IML10, avisando que alguém da


família deve ir até lá, algo sobre reconhecer um corpo. Ela demora a entender e quando
a ficha cai não quer acreditar. Como ela vai contar para a própria irmã que seu menino,
que seu pequeno morreu?!

Cássia recebe a ligação da irmã dizendo que tem que ir em algum lugar no centro
pegar Dinho. De cara a irritação, sempre acompanhada do seu humor ácido característico.
Esse menino só faz merda! Ah, mas ele não escapa de uma coça dessa vez! Cássia segue
na viagem falando de Dinho, narrando a conversa séria que terão, segue acreditando que
seu menino ainda está vivo.

Chegam ao IML. Cássia não entende muito bem porque estão ali, na sala de espera
interroga o marido e a sobrinha que foram lhe acompanhar. Reticentes em lhe dar uma
resposta direta, ela vai ao balcão. Exige ver o filho, quer ser levada até ele imediatamente.
A recepcionista aponta uma porta entreaberta no final de um corredor. Ela grita por
Dinho. Na frente da sala está um policial, ela pede para passar, quer ver o filho. Num tom
frio, o policial responde: ‘E mãe de vagabundo agora tem direito?!’ Seu marido se

9
Para montar esse relato a partir da perspectiva de Dinho eu parti da narrativa de Cássia sobre como foi o
dia da morte de seu filho, sobre o roubo do carro e a execução, como ele estava se sentindo e os cálculos
que fez. Não é difícil encontrar relatos similares, nos quais os familiares (mais notadamente as mães) dão
detalhes dos momentos finais da vida de seus filhos, do que sentiram, falaram e pensaram minutos antes da
morte. Entendo que esse é o momento no qual esses filhos se tornam intercessores (no sentido elaborado
por Deleuze (2010) e discutido acima), dos afetos e da luta política de suas mães. Os momentos nos quais
Cássia faz esse movimento político com/através dos filhos serão analisados mais à frente. Um outro
exemplo são as mães de vítimas de violência inseridas nos movimentos sociais, as quais operam nesse outro
território de lutas e enfrentamentos, movimentos de interseção com seus próprios filhos. Em espaços como
a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência (do Rio de Janeiro) ou as Mães de Maio (de São
Paulo) é possível encontrar relatos de mães que acionam, de maneira análoga a de Cássia, seus filhos
enquanto intercessores de sua luta política. Os relatos das mães inseridas em ambos os movimentos, que
descrevem de maneira detalhada os minutos que antecederam a execução de seus filhos podem ser vistos,
respectivamente, nos documentários “Entre Muros e Favelas” (2005) e “Mães de Maio: Um Grito por
Justiça” (2009).
10
Instituto Médico Legal
8

enfurece, grita de volta com o policial: ‘Ela é mãe, respeita ela! ’ Em meio à confusão, a
discussão com o marido distrai o policial e Cássia consegue vislumbrar dentro da sala.

Eu vi. Só o pezinho dele. O tênis que eu tinha dado de presente. Só vi o tênis do


meu menino. Na hora soube, era o meu Dinho, ali na pedra fria. Meu menino na
pedra!
Cássia não entra na sala. Não tem forças. Não tem nada. Paralisada, cai
inconsciente.

Rafa

Em setembro de 2007 um grupo de policiais civis, militares e bombeiros, a milícia,


expulsou o tráfico11, dando início a um período curto, porém muito significativo na
história tanto de Cássia quanto do Batan. Esse período, seus desdobramentos e mudanças
serão aqui descritos e analisados através dos fragmentos que Cássia reconta, dos cálculos
que ela e seu filho, Rafael, fizeram (ou deixaram de fazer) e como se relacionaram (ou
evitaram se relacionar) com a Milícia.

O exercício que farei nesta seção é análogo à seção na qual falei de Dinho. Trata-
se de um close aproximado, de um recorte que ora fala de como alguém se torna(va) ou
é(era) identificado como parte do tráfico12, ora fala das relações entre moradores e
milicianos. A narrativa de Cássia sobre esse momento se cola, obviamente, a outras
dezenas de relatos contados e recontados. Estes últimos ganham mais força à medida que
são rebatidos sobre a história específica de Rafael - contada por sua mãe.

A entrada da Milícia implicou em uma série de mudanças na rotina e no cotidiano


dos moradores do Batan. O controle moral sobre o uso e comércio de drogas é um dos
principais vetores que diferenciam a ação da milícia em relação ao tráfico. Assim, o grupo
miliciano não apenas expulsou ou executou bandidos, mas também aplicava severas
punições contra seus amigos, identificados como viciados e vagabundos. Essas categorias

11
Ao acionar a expressão expulsão do tráfico, me refiro a um movimento de tomada de poder muito mais
complexo do que uma simples troca de comando. Essa expressão é frequentemente acionada por moradores
(quando o tráfico foi expulso, quando a milícia chegou, etc.), muito mais para localizar/qualificar espaço-
temporalmente os eventos a que se referem do que para “resumir” ou “simplificar” os acontecimentos
daquele período.
12
Me refiro a esses processos de separação e aderência em relação ao tráfico no presente pois durante o
campo movimentos análogos eram feitos em relação aos crackudos (usuários de crack) e às crackolândias
(locais reconhecidos como territórios desses usuários), em outras palavras, aos viciados e seus territórios.
Nesse sentido as narrativas sobre a experiência de Dinho como usuário de drogas (notadamente da
maconha) próximo ao tráfico, como aprendiz de bandido, podem ajudar a pensar o que se fala sobre certas
práticas da juventude hoje, seu comércio varejista de pequeno porte, os pequenos furtos que comete e sua
relação com agentes do Estado, notadamente os policiais.
9

se referem a jovens que mesmo que não estejam envolvidos diretamente com o tráfico,
possuem características que os qualificam como “indesejáveis”. O uso de drogas, as
músicas que ouvem (notadamente os funks conhecidos como proibidões13), se tem os
cabelos pintados de loiro e até mesmo o não exercício de uma profissão formal,
identificou (e ainda identifica) alguns jovens do Batan como um problema a ser resolvido
ou eliminado.

Em 2007 Rafael tem 18 anos. Diferente de Dinho, Rafa podia até fazer uso de
alguma droga, mas não é visto como viciado por Cássia, e mesmo por sua rede de
familiares e amigos. Ele tampouco andava com os meninos da boca, e jamais se envolveu
com o tráfico no Batan. De modo que na rede de Cássia ele não é referido nem como
viciado, nem como vagabundo. Entretanto, para a milícia essas categorias eram pensadas
de outra forma, o uso de drogas é em si vício, e vagabundos eram todos aqueles jovens
negros e funkeiros, que foram perseguidos, torturados e executados. Rafa podia não ser
bandido nem menino da boca, mas sem dúvida ele era um desses jovens: viciados,
vagabundos, esculachados. E como todos os outros, Rafa recebeu recados.

Os milicianos o perseguiram, diziam que não queriam vagabundo na área deles.


Rafael não pensou duas vezes. Ouviu o recado e como muitos outros jovens decidiu que
não dava mais para ficar no Batan. Era preciso sair, mas para onde?!

Do Outro Lado

O Batan cresceu às margens da pista direita da Avenida Brasil. De lá viu serem


construídos, ali em frente, às margens da pista esquerda, do outro lado da Avenida, um
conjunto de prédios verdes claros, um loteamento14 feito pelo Estado que mais tarde ficou
conhecido como Fumacê.

Para além das pistas da Avenida Brasil que separam as duas favelas, bem como
suas histórias distintas de surgimento e ocupação, há também uma guerra entre facções
rivais que sempre atravessou esses territórios, transformando o Fumacê senão numa zona
proibida ou perigosa, ao menos num lugar onde para um morador do Batan circular, certos
cálculos e precauções devem ser feitos.

13
O proibidão é um estilo do funk que canta elementos da Vida Loka, isto é, narra as imagens da
bandidagem. Além disso também são proibidões os funks de putaria, que cantam a sexualidade de forma
explícita e jocosa.
14
Para uma análise mais extensa do processo de formação dos loteamentos da Zona Oeste, bem como de
suas particularidades políticas ver Siqueira (2013).
10

É com esse horizonte de variáveis em mente que vários jovens moradores do Batan
decidem atravessar a Brasil. É frente à rivalidade histórica entre grupos de traficantes de
um lado e a invasão da milícia de outro que Rafael decide cruzar as pistas que separam
aquelas favelas e ir morar do outro lado.

Havia a sensação de que se para a milícia eles eram todos iguais, não importa qual
era a facção que dominava o lugar onde eles moravam, eles eram vistos acima de tudo
como viciados, vagabundos, marrentos, esculachados. Eles fizeram um acordo com o
gerente do tráfico no Fumacê, conhecido como Saldanha, e por muitos meses aquela
parecia mesmo ter sido a melhor decisão.

Rafael tinha uma namorada no Fumacê, Mariana, com quem teve uma filha
naquele mesmo ano. Sua sogra, Nilza, também foi um fator decisivo na escolha que ele
faz de atravessar definitivamente a Brasil. Ela tinha conhecimento no Fumacê, ela
garantiu a sua mudança, afirmou para o Saldanha que ele não era do tráfico no Batan, que
não era X-9, que estava sendo perseguido pelos milicianos e queria se mudar. Nilza tinha
o conceito que Rafa precisava.

Durante o ano em que ele morou no Fumacê, era Cássia que atravessava para ver
o filho e a neta. Os riscos que Rafa estava correndo lhe tiravam o sono e sua insistência
não descansou durante todo aquele ano. Para ela, havia muitas variáveis que não
dependiam de seu filho e que poderiam subitamente se voltar contra ele. Se houvesse
alguma suspeita de um X-9 infiltrado, Cássia duvidava que o conhecimento que a sogra
tinha seria o suficiente para proteger seu filho.

Uma última aposta

Era madrugada, Rafael acordou com sua sogra batendo à porta. Ela trazia um
recado do Saldanha. O chefe estava chamando todos os meninos do Batan para uma
conversa. Se não fosse sua sogra a dar o recado ele não teria descido. Não assim, no meio
da noite, com a favela toda dormindo. Ele confiava em Nilza, tinha certeza que se
Saldanha tivesse alguma suspeita, ela o avisaria antes, ela daria tempo para ele fugir ou
se esconder. Ela não o entregaria assim, no meio da madrugada, não ele, o pai da sua neta.
Por mais estranho que aquela convocação parecesse, Rafael confiou. Deu um beijo na
mulher e na filha, e se foi.
11

De Gritos

Na manhã daquela terça-feira Cássia acordou com a nora batendo em sua porta.
Mariana segurava a filha num dos braços, gritando pela sogra que ainda dormia. Ela
acordou num pulo. Pegaram o Rafa, Cássia! Mataram ele!

Cássia correu. Atravessou o Batan e depois a Brasil. Não pediu explicação, não
perguntou quem matou, nem como e nem o porquê. Ela já sabia, sempre soube. Nilza
nunca iria se arriscar para proteger Rafael.

No Fumacê, Saldanha estava de arma em punho, comemorando a morte dos sete


alemães. Ele dava ordens e um recado para toda a favela. Os moleques iam ser picados e
jogados no mato. Ele mandou trazer uma carroceria, estavam empilhando os corpos
quando Cássia chegou. Ela gritava sem querer acreditar na imagem do filho, corpo no
chão, dentes quebrados. Não! Cássia se jogou no corpo do filho e quando Saldanha
mandou tirarem ela de lá, ela lhe deu o seu próprio recado: Se levar meu filho, vai ter que
me picar também! Vai me levar junto com ele!

Os outros seis corpos foram retalhados e jogados no mato. O corpo de Rafael


permaneceu como e onde estava, no colo de sua mãe.

Das Dores

O que mais cortou meu coração foram os dentes quebrados do meu filho. Ele tinha
muito orgulho deles. Era um garoto tão bonito! Quando eles foram mandados para
o Saldanha e começaram a ser esculachados, meu filho não aceitou. O Saldanha
mandou todo mundo calar a boca. O Rafa gritou! Por isso morreu com um tiro na
boca.
De Raça, Gênero e Violência

Há várias formas de analisar os enfrentamentos de Cássia frente ao(s) poder(es)


políticos e armados que atravessam o Batan. Ao pensar essas questões em termos das
problemáticas de gênero e raça, me volto primeiramente para a análise dos processos
mesmos de diferenciação dos corpos, espaços e ações.

Entendendo gênero e raça desde uma perspectiva interseccional e articulada é


imprescindível pensar que para além das genealogias ocidentais da separação
público/privado que encontra no binarismo de gênero sua contraparte, há outras
experiências coletivas que concernem aos significados e pertencimentos possíveis tanto
do doméstico quanto do público, pondo em cheque até mesmo sua subsumida oposição
12

hierarquizada15. De modo que a fim de analisar os trânsitos de Cássia entre sua casa, as
ruas e vielas do Batan e do Fumacê, as travessias na Avenida Brasil e os corredores do
IML é preciso não apenas localizar que locais “públicos” são esses, se correspondem ou
não às formas masculinistas brancas (no sentido de Avtar Brah, 2006) e de que maneira
se relacionam/se opõe ou não ao doméstico habitado por Cássia.

Nos fragmentos que compõem essa etnografia os locais públicos pelos quais
Cássia transita são todos de enfrentamento contra distintos poderes políticos e armados.
Se partirmos de sua experiência a fim de dar sentido a esse público encontramos
ressonância na reflexão de bell hooks e Angela Davis quando as autoras tratam da rua,
menos como um território masculino por oposição a feminilidade doméstica, e mais como
o local da desumanização e da violência na experiência da diáspora negra.

Aqui podemos expandir essa reflexão - para além das genealogias que as autoras
tecem no sentido de recuperar historicamente o período da escravidão dos povos negros
- para a compreensão da rua como o território de desumanização de pessoas negras na
atualidade. Dinho é morto com um tiro de fuzil na rua da favela onde foi criado. Rafael e
seus amigos são todos mortos na rua principal da favela onde moravam. As execuções
são públicas e anunciadas, trata-se mesmo da feitura de poderes políticos e armados, de
formas-Estado que se fazem no tombamento de cada corpo negro em via pública.

Frente à rua como território inegável de desumanização de pessoas negras bell


hooks (1990) opõe o doméstico como “site of resistance”, e a feitura da casa e do lar pelas
mulheres negras menos como submissão a uma forma consolidada de relação hierárquica
entre os gêneros e mais como resistência no estabelecimento de um território possível de
cuidado mútuo.

Como hooks, Angela Davis (1981) também entende o doméstico e a família negra
enquanto o lugar da possibilidade de uma (re)existência em liberdade. A autora
demonstra como nas comunidades negras durante a escravidão a feminilidade (tal qual
experimentada pelas mulheres brancas) não existia para os corpos das mulheres que nunca
foram “femininos demais para o trabalho nas minas de carvão” (1981: 10) e, por
conseguinte, as relações de gênero não poderiam funcionar da mesma forma.

15
Strathern (2006) aponta para a concepção implícita do espaço doméstico como “menos social” porque
feminino nas relações de gênero ocidentais e em como em outras dinâmicas de gênero – especificamente
nos povos das terras altas da Papua Nova-Guiné, a separação mulheres:doméstico::homens:privado não
necessariamente corresponde a hierarquia ou opressão.
13

De maneira análoga, o trabalho de Maria Lugones (2008; 2011) pode nos ajudar
a mapear a racialização do gênero como parte endêmica do projeto político de poder dos
Estados (pós) coloniais. Lugones trabalha com a noção de colonialidade do gênero16, isto
é, o conjunto de diferentes práticas e discursos colonizadores que operam por meio da
inserção das relações de gênero (ocidentais) nas culturas/territórios colonizados, de modo
que gênero é entendido enquanto marcador civilizatório, como signo de humanidade.
Lugones avança falando sobre como a racialização dos corpos não-brancos (negros e
indígenas) não possibilita que os mesmos se engatem na diferenciação de gênero
ocidental sem antes alguma outra transformação, afinal gênero é uma característica
humana e a racialização bestializa. É nesse ponto que corpos racializados são
identificados como possuidores de uma sexualidade selvagem e incontrolável, o gênero
de corpos negros e indígenas é feito no cruzamento com a animalização produzida pela
raça.

Tal como Lugones, Davis (1991) não apenas reconhece o lugar da raça na
inscrição do gênero nos corpos das mulheres negras escravizadas, como também mapeia
os momentos nos quais os mesmos foram “feminizados”. Para a autora, os corpos fortes
que suportavam o trabalho braçal tanto quanto o dos homens, ao mesmo tempo que teciam
a resistência familiar (da mesma maternidade negra a que se refere bell hooks) se tornam
um desafio a ordem patriarcal branca, de modo que a resposta a sua força é a intensa
brutalização dos corpos das mulheres negras através da violência sexual. Tendo em vista
a reflexão de Lugones, podemos concluir que no caso da experiência da diáspora das
mulheres negras, raça fez gênero através da violência e animalização.

Destarte, raça faz gênero através da brutalização dos corpos e que o espaço público
é o território da desumanização dos corpos racializados. Se Rafa e Dinho são mortos no
espaço público, é nele, na passarela de uma avenida que o gênero é inscrito de maneira
violenta no corpo de Cássia. Ser mulher não impede que ela transite a noite pela via
pública, não impede que ela ande sozinha, muito pelo contrário, ela possui o
conhecimento e o pertencimento necessário para tal. Mas é nesse mesmo território que
ela conhece como a palma da mão que ela é violentada, por alguém da sua própria
comunidade.

16
Lugones (2008) parte da noção de “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano (2000) para estendê-la às
dinâmicas de gênero da colonização, como parte essencial no exercício do poder colonial.
14

É aqui que se faz necessário um entendimento mais amplo do doméstico, para


além de um território de resistência oposto ao espaço público desumanizador. “Site of
resistance” não se restringe a casa, lar de um núcleo familiar burguês. No Batan, por
exemplo, as festas são feitas na calçada, comemora-se datas religiosas e feriados na beira
da rua, os fins de tarde nos dias quentes do verão são apreciados com as cadeiras para
fora do portão. A favela é ela mesma “site of resistance”, ao mesmo tempo pública – posto
que é o local da morte e da violência – e doméstica na medida em que possibilita o cuidado
mútuo e a humanização (a música, a festa, o funk, o pagode). Cássia pode transitar sozinha
pela Avenida Brasil pois “se sente em casa”, anda sozinha pelos becos e vielas pois os
conhece como quem ali mora desde que nasceu. No entanto, como nos chama atenção a
autora chicana Gloria Anzaldua (1987: 21), para as mulheres o lar, a sua própria cultura,
pode ser também o lugar do medo e da traição17.

É nessa dicotomia intrínseca ao espaço público favelado de um lado e o doméstico


que é resistência e risco do outro, que Cássia realiza os enfrentamentos às forças
“masculinas” – notadamente as da guerra e do poder armado – através de uma deformação
do próprio gênero que atravessa o corpo dela, de seus filhos e algozes. Assim, é menos
uma entrada dela “enquanto mãe” num território público e masculinizado, e mais um
movimento que na mesma medida em que “extrai” as forças masculinas do corpo dela
(do grito, do não, da força enquanto imposição), “torna conhecido”, por sua vez, as linhas
femininas e familiares que compõem esse polo masculino do político e do público.

O doméstico, o privado e o familiar racializados estão assim necessária e


intrinsecamente conectados a rua e ao espaço público. De modo que os homens que ela
enfrenta reconhecem, não tanto a posição dela enquanto mãe e mulher, e mais os próprios
elementos femininos que os compõem, bem como os elementos masculinos – da guerra e
do poder – que compõe Cássia. Não lhes resta, por conseguinte, outra saída a não ser se
submeter.

É por submissão à soberania dela (que extrapola os limites do doméstico) que os


mesmos se rendem a força política que tem sua voz. É nesse movimento que ela inscreve
o feminino no corpo deles, que nada podem fazer frente à sua força (notadamente

17
No caso etnográfico específico me refiro não apenas às violências domésticas que Cássia sofreu ao longo
da vida e que criaram momentos de grande perturbação, na medida em que impedem que ela e os filhos
possuam qualquer espaço de cuidado mútuo (no sentido proposto por bell hooks), mas também à violência
sexual sofrida no espaço público por homens conhecidos – como no caso que Cássia conta.
15

feminina), no momento mesmo em que ela invade o político e o masculino, o deforma e


o conquista. É o que torna possível ela dizer não frente a uma arma; ela dar tapa na cara
de chefe de boca, lembrando-o que ele também é menino, também é filho. É o movimento
que contra efetua a ordem de Saldanha; é o território que ela cria no grito. No grito de
mulher, negra e mãe que se compõe pelo seu poder de fala para expulsar, mandar matar
e invadir. O mesmo movimento que por um lado conquista o masculino, por outro
desterritorializa as zonas duras de brutalização do feminino racializado, ela é mulher
negra na rua, no grito, na guerra. É no deturpar a forma-Estado em sua voz que seu
grito ganha mais força que o de Saldanha, que o corpo por ele transformado em cachorro
despedaçado, jogado no mato – torna-se novamente o corpo a ser velado de Rafael.

Há diferenças constitutivas de cada uma das formas-Estado contra as quais Cássia


se confronta, na mesma medida em que é composta por elas. Obviamente, as próprias
deformações de gênero possíveis a cada um desses poderes – tráfico, milícia, polícia –
tem suas especificações. Se com Saldanha a força de seu grito deturpa a ordem
estabelecida, frente ao policial no IML não resta nada a fazer a não ser desmaiar. É o
irrefutável do poder, aquele contra o qual não há nada a se dizer. Talvez apenas a
lembrança tímida de seu marido: Ela é mãe, respeita ela!

Em meio a tantas sentenças de morte que incidem sobre seu corpo e o corpo de
seus filhos, Cássia por vezes responde de maneira surpreendente a perguntas como: e a
vida no Batan? Melhorou? A essas questões, Cássia diz: A gente vive muito bem, quer
dizer, quem sabe viver. É, quem sabe viver sempre viveu bem. Esse saber, inscrito em seu
corpo, consiste tanto na sobrevivência, nos trânsitos entre os diferentes territórios,
poderes e inscrições de gênero, quanto na criação da vida frente a tantas sentenças de
morte.

De Linhas, Fissuras e Fronteiras

O saber viver de Cássia é esse jogo entre riscos, aposta e sobrevivências, dos
movimentos possíveis e das precauções a serem tomadas a fim de passar por entre as
distintas formas de poder político e armado. Viver bem é a arte de passar entre, talvez
seja a capacidade mesmo de encontrar as fissuras nas quais é possível habitar, tal como
sugere Lugones (2014).

A autora explora tanto os mecanismos que fizeram funcionar internamente às


culturas colonizadas as dinâmicas hierárquicas de gênero, quanto as fissuras, as ranhuras
16

da colonialidade do gênero, os momentos/espaços nos quais a produção de subjetividades


femininas racializadas encontra resistência. Não se trata de ignorar o uso rotineiro e
cotidiano dos gêneros e dos binarismos civilizatórios, mas de perceber suas fissuras e
ranhuras nas resistências epistemológicas. Talvez o saber viver de Cássia seja
precisamente a capacidade de habitar e sobreviver nas fissuras das feridas de um Estado
colonial Brasileiro que mata seus filhos e violenta seu corpo.

Um saber que é exercitado na fissura e também na fronteira, tal como concebido


por Gloria Anzaldua. A fronteira como o espaço por excelência da mulher chicana e
negra, na medida em que ela pertence a uma cultura que a trai. Trata-se de habitar uma
casa, um site of resistance, compreendendo os riscos que ele mesmo lhe coloca. Sem se
aliar a nenhum dos poderes políticos e armados que atravessam seu território (seja tráfico,
polícia ou milícia) Cássia passa entre as formas-Estado enrijecidas, escapando de sua
captura, sendo ela mesma ponte, lugar de passagem e travessia.

Por fim, trata-se de um saber feito na linha das diferentes composições que
atravessam Cássia, linhas de força que compõem seu corpo na mesma medida em que
atravessam os corpos de seus filhos e o território do lugar onde mora. Cássia é
personagem-território, na medida em que sua corporalidade está indexada no local onde
ela (re)existe. Esse jogo de pertencimentos múltiplos se evidencia seja na filiação dos
muitos meninos moradores do Batan, que ela chama de filhos por afinidade e semelhança
com os seus, seja na segurança com a qual ela anda pelas ruas que conhece como seu
próprio corpo, sobrevivendo cotidianamente à violência.

Avtar Brah (2006) ao tratar da problemática da diferença no contexto da luta


feminista e antirracista fala sobre distintas formas de diferenciação. Dentre elas a noção
da experiência e da relação social como diferenças são interessantes para pensar a
composição mútua entre corpo e território que a experiência coletiva da diáspora e da
racialização provocam no que Rolnik (1989) chamou da conformação de territórios
negros. A composição mútua entre corpo e território constitui Cássia num verdadeiro
personagem-território cuja história reverbera para além do que se poderia entender como
sua experiência “localizada” ou “individual”. É nessa constituição, na racialização de
corpos e territórios que habita o saber viver de Cássia, na fissura como a possibilidade de
resistir ao poder armado/masculino/violento seja das formas-Estado, seja da cultura que
a trai.
17

Cássia não faz uso das “ferramentas do senhor”, como diz Audre Lorde, ela muda
o jogo e penetra a ferida da diferença colonial para desfazer os enquadramentos
racializados de gênero. Ela não absorve as formas estanques de diferenciação, ela se
permite transitar entre os diferentes poderes sem por eles ser capturada. Ela reinscreve
seus filhos em seu próprio corpo e enfrenta o inevitável de sua morte sem ser silenciada.
Ela transforma silêncio em linguagem, em memória contada e recontada, e em ação, em
grito, em choro, em festa. O poder que a paralisa no corredor do IML é o mesmo frente
ao qual Dinho nada tem a fazer, como seu filho ela se rende. E é esse silêncio, o da
execução que é transformado no grito que ecoa um ano depois pelas vielas do Fumacê.
Grito que sai primeiro pela boca de Rafael que não morre acuado em silêncio e termina
na boca de Cássia que prefere a morte do que não enterrar seu próprio filho.

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