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ARTIGO ARTICLE 2643

A avaliação de programas e serviços de saúde


no Brasil enquanto espaço de saberes e práticas

The evaluation of health programs and services in


Brazil as a space for knowledge and practice

La evaluación de los programas y servicios de


salud en Brasil como un espacio de
conocimiento y práctica

Juarez Pereira Furtado 1


Ligia Maria Vieira-da-Silva 2

Abstract Resumo

1 Departamento de Políticas This social and historical study drew on Bour- Com o objetivo de analisar a constituição e o
Públicas e Saúde Coletiva,
Universidade Federal de São
dieu’s genetic sociology to analyze the establish- desenvolvimento de um espaço social especiali-
Paulo, Santos, Brasil. ment and development of a specialized space for zado na produção de saberes e práticas sobre a
2 Instituto de Saúde Coletiva,
the production of knowledge and practices in avaliação em saúde no Brasil, foi realizado um
Universidade Federal da
Bahia, Salvador, Brasil. health evaluation in Brazil. The study analyzed estudo sócio-histórico apoiado na sociologia ge-
the trajectories of 28 researchers and policymak- nética de Bourdieu. Para isso, foram analisadas
Correspondência
ers and the historical conditions that allowed es- as trajetórias de 28 agentes selecionados entre
J. P. Furtado
Departamento de Políticas tablishing this space, using in-depth interviews, pesquisadores e gestores, bem como as condições
Públicas e Saúde Coletiva, document analysis, and a literature review. The históricas de possibilidade de constituição do es-
Universidade Federal de São
resulting material was analyzed according to paço, por meio de entrevistas em profundidade,
Paulo.
Rua Silva Jardim 136, Santos, SP Bourdieu’s concepts of field, habitus, and capi- análise de documentos e revisão bibliográfica.
11015-020, Brasil. tal. The results point to the constitution of a O material gerado foi analisado à luz dos con-
juarezpfurtado@hotmail.com
sub-space for evaluation within Public Health, ceitos de campo, habitus e capital propostos por
resulting from interaction between actors from Bourdieu. Os resultados apontam para a consti-
the administrative and scientific fields, respec- tuição de um subespaço da avaliação no interior
tively, represented by management institutions da Saúde Coletiva, resultado da interação entre
in the Brazilian Unified National Health System agentes dos campos burocrático e científico, res-
at its various levels and research groups affiliat- pectivamente representados pelas instituições
ed with public universities. No common habitus de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) em
was found between the interviewees and the in- seus vários níveis e grupos de pesquisa inseridos
herent issues and disputes in this sub-space. em universidades públicas. Não foi identificado
habitus comum entre os agentes entrevistados e
Program Evaluation; Health Evaluation; as questões e disputas inerentes a esse subespaço.
Sociology
Avaliação de Programas e Projetos de Saúde;
Avaliação em Saúde; Sociologia

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00187113 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(12):2643-2655, dez, 2014


2644 Furtado JP, Vieira-da-Silva LM

Introdução ções e desconsidera o papel das instituições e dos


agentes individuais nesse percurso.
No Brasil, a avaliação em saúde constituiu-se Outras abordagens do desenvolvimento his-
como objeto de interesse em vários momentos tórico da avaliação nos Estados Unidos apresen-
históricos, seja no interior da Saúde Pública ins- tam limitações ao utilizarem, como eixo de análi-
titucionalizada 1, seja nos momentos que ante- se, polarizações restritas a aspectos metodológi-
cederam imediatamente a implementação do cos 8, equivalendo o percurso histórico a estágios
Sistema Único de Saúde (SUS) 2. O estímulo à de desenvolvimento teórico e seus respectivos
utilização de práticas avaliativas pela Organiza- autores 9 ou se atendo aos aspectos factuais de
ção Mundial da Saúde (OMS) a partir da declara- seu desenvolvimento 10. São também frequentes
ção de Alma-Ata encontrou eco tardiamente no a caracterização da avaliação com base em dis-
país devido a dois fatores interdependentes: por tintas tipologias e modelos, agrupando autores,
um lado, as características do Estado autoritário, práticas e referenciais, porém desarticulados de
vigente no início dos anos 1980, avesso a subme- referencial teórico explicativo.
ter suas incipientes políticas sociais à avaliação A avaliação tem sido ainda analisada sob as
ou a qualquer outro tipo de análise 3, e, por ou- perspectivas de disciplina acadêmica e/ou âm-
tro lado, a sociedade brasileira estava longe de bito de práticas, sendo raras as iniciativas que
reivindicar responsabilidade e transparência nas procuram abordá-la como espaço social ou co-
políticas públicas de seus programas e serviços 4. mo campo. Exceção feita a dois números espe-
Na contracorrente, no final dos anos 1980 e início ciais de diferentes revistas francesas, respectiva-
dos 1990, contribuíram, para o ingresso da temá- mente de Sociologia e Filosofia que, em dezenas
tica da avaliação na agenda sanitária brasileira, de artigos, abordam questões ideológicas, do-
as políticas de valorização do planejamento em mínios e perspectivas críticas relativas às con-
saúde 5 e as políticas voltadas para a unificação cepções e práticas da avaliação em diferentes
e descentralização do sistema de saúde, como setores 11,12.
as Ações Integradas de Saúde (AIS) e os Sistemas Se insuficientes para a compreensão da ori-
Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS) 6. gem e desenvolvimento da avaliação no plano
Essa contínua expansão e relativa autonomiza- internacional, as abordagens aqui apresentadas
ção do espaço da avaliação em saúde faz emer- tornam-se ainda mais limitadas quando apli-
gir questões sobre a sua constituição no interior cadas alhures, como no caso brasileiro. Com o
do setor Saúde no Brasil. Afinal, como e por que objetivo de investigar a constituição do espaço
determinados agentes e instituições intervieram da avaliação em saúde no Brasil, foi realizado
nesse processo? Como e por que foi estruturado estudo apoiado na sociologia genética de Pierre
o espaço da avaliação em saúde no Brasil, confi- Bourdieu, com o propósito de integrar as tradi-
gurando o perfil atual? ções que preconizam a objetivação metodológi-
Quando se pretende localizar a evolução do ca com aquelas que privilegiam a subjetividade
pensamento e das práticas da avaliação de pro- dos agentes na produção de suas representações,
gramas e serviços no tempo, o histórico proposto crenças e orientações práticas. Especialmente,
por Guba & Lincoln 7, no final dos anos 1980, é re- no caso de Bourdieu, o modelo de relações pro-
corrente na literatura especializada. É frequente posto entre as noções de habitus e campo possi-
encontrar, em textos nacionais ou recentemente bilita reintroduzir os agentes e suas ações singu-
traduzidos, referência à metáfora das gerações de lares, estabelecendo relações com as estruturas
avaliação, criada pelos dois autores 7. A partir de sociais.
críticas às três gerações anteriores, caracteriza- Considera-se que, tal como a Saúde Coletiva
das, respectivamente, pela mensuração, descri- na qual está inserida, a avaliação em saúde cons-
ção e julgamento, os autores 7 formularam uma tituiu-se em espaço de saberes e práticas, confi-
nova proposta, na qual a ênfase estaria no caráter gurando um microcosmo social em busca de au-
construtivista da avaliação por meio da inclusão tonomia em relação às subáreas que compõem a
dos agentes sociais envolvidos com a interven- Saúde Coletiva. Essa noção de espaço particula-
ção em todos os momentos da avaliação e na rizado e objetivamente estruturado de relações,
utilização de técnicas qualitativas de investiga- composto por agentes portadores de recursos
ção, configurando a chamada “avaliação de quar- materiais e simbólicos desiguais, mas que ainda
ta geração”. Essa formulação contribuiu para o assim compartilham questões, regras e crenças
debate na área ao introduzir a importância das (illusio) no “jogo” que se pratica no interior des-
abordagens qualitativas e participativas para a se mesmo espaço, perseguindo fins específicos,
avaliação. No entanto, a periodização proposta 7 pode corresponder numa primeira aproximação
configura-se como um artifício ao pressupor ho- ao conceito de campo proposto por Bourdieu 13.
mogeneidade em cada uma das fases ou gera- Esse autor considera os diferentes campos como

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A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE 2645

resultantes da diferenciação do mundo social em sistema e o caráter indutor que a administração


redes de relações entre agentes, com habitus e federal cumpre diante dos demais.
illusio comuns, detentores de questões e objetos Foram analisadas as trajetórias (profissional,
de interesse específicos. A estrutura dos campos social e política) dos diversos agentes, bem como
é influenciada pelas lutas e disputas entre agen- as posições atualmente ocupadas no interior do
tes posicionados segundo suas diversas espécies espaço da avaliação. Os campos e espaços sociais
de capital 13. Capital é aqui compreendido para são redes de relações entre agentes, relações es-
além de seu sentido estritamente econômico, sas que podem ser de dominação, homologia ou
agregando bens de ordem simbólica e da rede de subordinação. Dependendo do volume do capi-
relações sociais 14. Será utilizada, para a avaliação tal global acumulado, os agentes situam-se em
em saúde, a noção de espaço social no sentido de posições dominantes (membros de comissões
um âmbito de relações que não apresenta todas avaliadoras, dirigentes institucionais, dirigentes
as características de um campo consolidado 15. de associações) ou em posições dominadas (re-
cém-ingressos no campo, em início de carreira
etc.) 13,14,15.
Metodologia A trajetória social foi analisada por meio da
ocupação dos pais e avós; a trajetória política e
Foi realizado estudo sócio-histórico sobre a profissional, por meio da formação (títulos), car-
constituição e o desenvolvimento do espaço da gos ocupados e tomadas de posição em momen-
avaliação em saúde no Brasil no período compre- tos específicos pelos entrevistados. A posição de
endido entre 1990, ano da Lei Orgânica da Saúde cada entrevistado no espaço da avaliação – se no
que instituiu o SUS, e a criação do Grupo Técni- polo dominado ou dominante – foi definida por
co de Monitoramento e Avaliação de Programas meio da análise da composição e do volume das
e Políticas de Saúde da Associação Brasileira de diversas espécies de capital apresentados por ca-
Saúde Coletiva (GT-Avaliação da Abrasco), em da um dos agentes: capital científico, político e
2006, durante o VIII Congresso Brasileiro de Saú- burocrático que foram classificados em pequeno
de Coletiva, no Rio de Janeiro, Brasil. (P), médio (M), alto (A) e muito alto (AA). Os cri-
Para análise das trajetórias dos agentes, bem térios utilizados e classificação dos capitais estão
como para a recuperação dos principais fatos detalhados nas Tabelas 2 e 3, respectivamente. O
relacionados com a constituição do espaço da capital simbólico que corresponde ao reconhe-
avaliação, foram utilizadas fontes primárias, cimento dos agentes pelos seus pares foi aferido
oriundas de 28 entrevistados (que serão aqui de- a partir de referências espontaneamente feitas
signados pela inicial “E”, seguida de um número pelos entrevistados. Foram ainda analisadas as
segundo a ordem cronológica das entrevistas), condições de possibilidade históricas apoiadas
todas conduzidas pelo pesquisador principal no em fontes bibliográficas e documentais.
período compreendido entre o segundo semes- Os conteúdos apreendidos por meio das en-
tre de 2012 e primeiro semestre de 2013. Os agen- trevistas foram complementados com livros e
tes entrevistados que compuseram a amostra in- artigos indexados de autoria dos entrevistados,
tencional preencheram, ao menos, dois dos se- manuais institucionais do Ministério da Saúde
guintes critérios: vinculação ao GT-Avaliação da referentes à avaliação em saúde, currículos dos
Abrasco; produção escrita e indexada relevante entrevistados constantes na plataforma Lattes
sobre a temática da avaliação em saúde; integrar do CNPq, documentos da Associação Brasileira
grupo de estudo de avaliação em saúde inseri- da Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)
do em diretório específico do Conselho Nacio- e relatórios do GT-Avaliação (arquivos pesso-
nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico ais dos entrevistados). Os livros e artigos fo-
(CNPq); ocupação de cargos na administração ram selecionados a partir do Currículo Lattes
federal em saúde nos quais a avaliação constitui dos entrevistados.
objeto central. Eles eram oriundos de diversas Para análise do campo cientifico, além das
profissões de saúde ou das Ciências Sociais, na trajetórias dos agentes, foi realizada revisão dos
sua maioria docentes vinculados a universida- artigos publicados no período compreendido en-
des, mas, também, gestores e técnicos vincula- tre 1990 e 2006, com as palavras-chave “avaliação
dos aos serviços de saúde (Tabela 1). O local das em saúde”; “avaliação de programas em saúde”;
entrevistas foi definido pelos entrevistados, ten- “avaliação de programas e projetos de saúde”
do ocorrido em suas salas de trabalho na maioria na base SciELO, nos índices de título e assunto.
das vezes. As análises de iniciativas relativas ao Os artigos localizados foram analisados quanto
SUS ficaram circunscritas ao Ministério da Saú- ao número e objeto das publicações. O objeti-
de, dada as limitações para uma abordagem dos vo dessa revisão parcial foi verificar a evolução
níveis estaduais e municipais que compõem esse quantitativa da produção nacional sobre avalia-

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Tabela 1

Perfil dos entrevistados.

Entrevistado Sexo Graduação Ano da Formação em Vinculação institucional Atuação profissional


graduação Saúde Coletiva

E1 M Medicina 1971 ES, MT, DT Universidade Ensino & pesquisa


E2 F Medicina 1971 MT, DT, PD Universidade Ensino & pesquisa
E3 F Medicina 1983 ES, MT, DT Universidade Pesquisa
E4 F Medicina 1974 ES, MT, DT, PD Universidade Ensino & pesquisa
E5 F Medicina 1975 MT, PD Universidade Pesquisa
E6 F Psicologia 1993 ES, MT, DT Instituição de pesquisa Pesquisa
E7 F Medicina 1979 R, MT, DT, PD Universidade Gestão
E8 F Medicina 1976 ES, MT, DT Universidade Ensino & pesquisa
E9 F Medicina 1977 MT, DT Universidade Pesquisa
E10 F Nutrição 1986 ES, DT Instituição de pesquisa e Pesquisa
assistência
E11 M Medicina 1984 R, MT, DT Secretaria de Estado da Gestão
Saúde
E12 F Medicina 1993 MT, DT Instituição de pesquisa e Ensino & pesquisa
assistência
E13 F Medicina 1986 ES, MT, DT Universidade Ensino & pesquisa
E14 M Medicina 1979 MT, PD Universidade Ensino & pesquisa
E15 M Medicina 2003 ES Ministério da Saúde Gestão federal
E16 M Fisioterapia 1988 R Ministério da Saúde Gestão federal
E17 M Medicina 1985 R, MT Ministério da Saúde Gestão federal
E18 F Odontóloga 1981 ES, MT Universidade Ensino & pesquisa
E19 F Enfermagem 1986 ES Universidade Ensino & pesquisa
E20 F Sociologia 1990 MT, DT Universidade Pesquisa
E21 F Medicina 1983 ES, MT, DT Universidade Ensino & pesquisa
E22 M Medicina 1970 MT Instituto de pesquisa Pesquisa
E23 M Medicina 1981 ES, MT, DT Universidade Ensino & pesquisa
E24 M Administração de 1975 PD Universidade Ensino & pesquisa
Empresas
E25 F Enfermagem 1992 MT, DT Universidade Ensino & pesquisa
E26 M Ciências Econômicas 1973 MT Universidade Gestão municipal
E27 M Medicina 1975 Ministério da Saúde Gestão federal
E28 F Medicina 1979 ES, MT, DT, PD Universidade Ensino & pesquisa

DT: doutorado; E: entrevistado; ES: especialização; F: feminino; M: masculino; MT: mestrado; PD: pós-doutorado; R: residência.

ção em saúde ao longo do período analisado. O Resultados e discussão


presente estudo limitou-se à análise do espaço
da avaliação de políticas e programas de saúde. Condições de possibilidade históricas
Outros subespaços, a exemplo daquele que toma
por objeto a avaliação de tecnologias de saúde, A constituição do espaço social de relações entre
não foram incluídos, tendo, em vista, a delimita- pesquisadores, técnicos e gestores interessados
ção do escopo da investigação. Essa pesquisa foi em realizar avaliações de programas de saúde foi
aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade favorecido por três processos sociais concomi-
Federal de São Paulo sob o parecer de número tantes. Por um lado, a organização e estruturação
56658/12. do SUS no país, que resultou na formulação e
implantação de políticas setoriais e globais que
requeriam avaliação dos seus resultados, ao la-
do da própria constituição do espaço da Saúde

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A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE 2647

Tabela 2

Critérios para análise dos capitais científico, político e burocrático por referência ao espaço da avaliação em saúde no Brasil.

Critérios
Muito alto (AA) Alto (A) Médio (M) Pequeno (P)

Capital científico Reconhecimento internacional Reconhecimento nacional Reconhecimento local Sem indicadores de
reconhecimento
Produtividade CNPq-1 Produtividade CNPq-2 1 artigo/ano (últimos 3 anos) Publicação irregular
Editor de periódico de Saúde Editor de periódico de Saúde Parecerista ad hoc de Parecerista ad hoc de
Coletiva (Qualis-A) Coletiva (Qualis-B) periódicos de Saúde Coletiva periódicos de Saúde Coletiva
(Qualis-A) (Qualis-B ou C)
Prêmios internacionais Prêmios nacionais Prêmios locais Sem premiação
Capital político
SUS Ministro ou secretário no Secretário estadual ou Secretário Municipal de Saúde Integrante de colegiados de
Ministério da Saúde, presidente municipal (capitais) de saúde (não capitais) ou secretário gestão regional; cargos técnicos
de agência adjunto de capitais ou de indicação política
Secretarias Estaduais de Saúde
Partidos Dirigente nacional de partido Dirigente estadual de partido Dirigente municipal de partido Filiado a partido político
políticos político político político
Capital
burocrático
Universidade Cargos de primeiro escalão na Cargos de segundo escalão Chefe de departamento, Coordenador de disciplina
universidade (reitoria e na universidade (chefias de coordenador de pós-graduação
pró-reitorias) departamentos e unidades)
SUS Cargos de direção no Ministério Cargos de direção Cargos de direção Cargos técnicos (assessor,
da Saúde, órgãos internacionais intermediários e técnicos em intermediários e técnicos em consultor)
e secretarias estaduais Secretarias Estaduais de Saúde Secretarias Municipais de
(secretário e secretário adjunto) Saúde
e internacionais
Outros Consultorias internacionais, Consultorias nacionais, direção Consultorias regionais, Consultorias locais,
direção da Abrasco do GT-Avaliação da Abrasco fundador do GT-Avaliação da integrante do GT-Avaliação
Abrasco da Abrasco

CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; GT-Avaliação da Abrasco: Grupo Técnico de Monitoramento e Avaliação
de Programas e Políticas de Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
Fonte: adaptado de Vieira-da-Silva & Pinell 36 e Bourdieu 37.

Coletiva, que aglutinou pesquisadores e gestores rida anos mais tarde, no âmbito do Ministério
em torno dessa temática. Por outro lado, a indu- da Saúde. Cabe destaque ao Reforsus (Reforço e
ção exercida pelo financiamento de instituições Reorganização do SUS), programa governamen-
internacionais expressa nas exigências de avalia- tal instituído em 1996, envolvendo repasses de
ção de projetos constituiu outro fator importante 650 milhões de dólares do Banco Internacional
para a inserção de práticas avaliativas no interior para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e
do SUS, em geral, e na atenção básica, em parti- do Banco Interamericano de Desenvolvimento
cular 16,17. O envolvimento pessoal de alguns dos (BID) que teve, entre outros objetivos, o de in-
entrevistados nesse processo foi enfatizado: crementar a qualidade da assistência e da gestão
“O projeto Reforsus do Banco Mundial inje- 18, incorporando o uso da avaliação tanto para

tou muito dinheiro nesse país, durante quase se- liberação de financiamentos como para aprecia-
te anos. Ele foi impulsionando a necessidade de ção do impacto dos projetos. Segundo um entre-
avaliar, e eu participei pessoalmente de algumas vistado, que participou como consultor de um
tarefas como essa” (E1, médico, docente). desses projetos:
Tais exigências foram não só atendidas co- “...Sem dúvida, para mim, esse movimento in-
mo incorporadas e fomentadas, por meio da ternacional de financiadores externos tinha como
busca de institucionalização da avaliação, ocor- pressuposto obrigar que os financiados usassem as

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Tabela 3 para desenvolver a capacidade de gestão, com


ênfase no planejamento e na avaliação dos pro-
Capitais científico, burocrático e político *.
jetos 19, tendo sido previstos com essa finalidade
a quantia de 545 mil dólares.
Agente Científico Burocrático Político

No campo burocrático
E1 A A M
E2 AA M P
Por meio das trajetórias dos agentes, recupera-
E3 M M P das a partir das entrevistas, percebeu-se que as
E4 M M P interações entre agentes dos campos científico
E5 AA P P e burocrático são imbrincadas. Ainda que seja
E6 A A P possível caracterizar alguns agentes com trajetó-
E7 A A P ria predominante no interior de cada um desses
E8 A P P campos, científico ou burocrático, é o trânsito
E9 AA A M entre esses dois universos que se constitui marca
E10 M P P fundamental do espaço da avaliação em saúde
E11 A AA M aqui investigado. Dessa forma, diversos agentes
E12 M P P cuja inserção principal é a universidade, como
E13 A M P docentes e pesquisadores, já ocuparam um car-
E14 AA A M
go como gestores ou assessores nos diversos ní-
veis do SUS, o que também explica a variação na
E15 P AA M
composição dos capitais científico, burocrático e
E16 P M M
político (Figura 1).
E17 P M P
A relação entre os grupos de pesquisa em
E18 A P P
avaliação e as iniciativas ministeriais a esse res-
E19 AA A P
peito ilustra essa interação. Os primeiros gru-
E20 A M P
pos de pesquisa foram organizados nos anos
E21 M A P 90, no interior dos Departamentos de Medicina
E22 M M P Preventiva e Social, bem como em Escolas de
E23 M A M Saúde Pública (E4, E7, E9). Naquele período, es-
E24 M A P ses grupos universitários forneceram, em parte,
E25 A P P os consultores requeridos para desenvolverem
E26 P A M os compromissos de avaliação firmados entre
E27 P A M o Ministério da Saúde e o BIRD e o BID. Já no
E28 A P P início do século XXI, verificou-se maior prota-
gonismo por parte do Ministério da Saúde. Ain-
AA: muito alto; A: alto; M: médio; P: pequeno.
da que continuando a contratar consultorias, o
* Vide critérios.
Ministério da Saúde passou também a conduzir
processos avaliativos com pessoal próprio ou a
fomentar ações avaliativas pelas universidades,
por meio de editais.
mesmas regras dos países de origem. (...) É preciso Cabe um destaque ao Programa de Expansão
pensar que o Banco Mundial é um dos melhores e Consolidação da Saúde da Família (PROESF)
produtores de publicação na área de avaliação” que, com financiamento do BIRD e do governo
(E7, médico, pesquisador). brasileiro, apoiou, a partir de 2003, transferências
Os financiadores sugeriram parcerias com de recursos financeiros, fundo a fundo, para a
universidades e o terceiro setor para a realização expansão da cobertura, qualificação e consoli-
de avaliações. dação da Estratégia Saúde da Família em muni-
“6.33 - Evaluation. The Project Management cípios com população superior a 100 mil habi-
Unit would retain the services of an independent tantes. O PROESF apresentou três componentes
research organization, such as a university or a centrais, sendo que dois deles diziam respeito,
research oriented nongovernmental organization direta ou indiretamente, à avaliação 20. Nesse
(NGO), to carry out an ex-post evaluation of a caso, as interações entre agente e estrutura são
sample of completed projects” 16 (p. 29). emblemáticas: a oportunidade propiciada pelo
Além do desenvolvimento específico de PROESF foi potencializada pelo coordenador de
ações avaliativas, o Reforsus possibilitou o inves- acompanhamento e avaliação da atenção bási-
timento indireto na prática avaliativa por meio ca, vinculado à diretoria de atenção básica do
de ações, junto às Secretarias Estaduais de Saúde, Ministério da Saúde, entre 2003 e 2006. Tratava-

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A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE 2649

Figura 1

Agentes do espaço da avaliação de políticas e programas de saúde segundo o volume de capitais científico, burocrático e
simbólico.

AA: muito alto; A: alto; M: médio; P: pequeno.

se de um médico, com residência em medicina (c) edital de pesquisa, agenciado pelo CNPq, para
preventiva e mestrado em saúde pública, cuja realização de dezenas de pesquisas avaliativas na
formação em avaliação, iniciada em 1994, decor- atenção básica 22.
reu da necessidade de a instituição, a qual estava Diferentemente do momento referente à pri-
vinculado, elaborar um plano de avaliação para meira etapa do Reforsus, no qual o protagonismo
obter empréstimo do BID. Por essa razão, ele po- dos financiadores denotava unilateralidade de
de aproveitar a oportunidade que se apresentava, interesses, na conjuntura de operacionalização
ou seja, um agente, com trajetória dominante no do PROESF, a presença de agentes com formação
campo burocrático e sensibilizado com a temáti- na área, com trajetória política ligada à Reforma
ca pelo acúmulo técnico na área da avaliação, foi Sanitária, quer inseridos no governo, quer como
decisivo para a institucionalização da avaliação consultores, levou à busca de consolidação da
nas secretarias estaduais de saúde em articula- avaliação no interior da gestão do SUS (E7, E11,
ção com o fomento à criação de centros colabo- E26, E27). Sob a bandeira da institucionalização
radores em avaliação na maioria das instituições da avaliação, houve contraponto à pretensão dos
de Ensino Superior do país 21. A relação entre o financiadores externos em estabelecer autono-
PROESF e o campo científico, representado pelas mamente quais seriam os agentes realizadores e
universidades brasileiras, foi profícua e se deu a metodologia da avaliação (E11). Os agentes do
por meio de três vias: (a) realização de estudo de Ministério da Saúde passaram a procurar privile-
“linha de base”, a partir de 2005, para estabele- giar a capacidade nacional na área.
cer parâmetros a serem acompanhados com a “...Na avaliação do PROESF, (...) nós tivemos
implementação do PROESF em 168 municípios; uma batalha muito grande, (...), com o Banco
(b) indução de criação de cerca de vinte centros Mundial, que queria abrir um processo licitatório
colaboradores em avaliação para elaboração e para a contratação de uma instituição única para
implementação de projetos voltados à institucio- fazer os estudos no Brasil inteiro. Então, uma das
nalização da avaliação nas secretarias estaduais; questões que a gente colocou na mesa foi o fortale-

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cimento das instituições brasileiras no campo da de publicações, como ilustrado na Figura 2. Tal
avaliação” (E.11, médico, gestor e pesquisador). crescimento encontrou paralelo nos congressos
Essa forte interação entre agentes que ocupa- realizados pela Abrasco no período aqui conside-
vam posições dominantes no campo burocrático rado (1990-2006): a partir do sexto congresso, no
com aqueles do campo científico gerou contri- ano 2000, há significativo incremento no núme-
buições importantes ao desenvolvimento do es- ro de trabalhos apresentados em comunicações
paço da avaliação de políticas e programas de coordenadas e temas livres, conforme pudemos
saúde no Brasil, no início dos anos 2000. constatar revisando a programação e os anais
desses encontros.
No campo científico O estímulo do Ministério da Saúde aos gru-
pos de pesquisa de universidades públicas, por
O espaço da avaliação no interior do campo meio de contratação de consultorias e editais
científico desenvolveu-se principalmente a par- de pesquisa, pode explicar a simultaneidade
tir dos anos 90, como revela o aumento da pro- entre a curva ascendente de publicações apre-
dução de artigos na primeira década do século sentadas na Figura 2 e as várias investigações
XXI (Figura 2). Também a expansão do interesse financiadas com os recursos do PROESF para a
pela temática da avaliação na academia é evi- atenção básica. Outro fator adveio da prática de
denciada pelo significativo crescimento de gru- gestão de sistemas e implantação de políticas e
pos de pesquisa de avaliação em saúde na base programas de saúde, gerando problemas e in-
de diretórios do CNPq. Consulta realizada pelo dagações das quais alguns agentes envolvidos
GT-Avaliação da Abrasco a essa base de dados nessas mesmas práticas partiram em direção ao
revelou a existência de 202 grupos distribuídos campo científico, na busca de respostas e escla-
entre 76 diferentes instituições de Ensino Supe- recimentos 23,24,25. Na maioria das vezes, tratava-
rior, sendo que dois terços desse total surgiram a -se de agentes inseridos na gestão de redes ou
partir do ano 2000, coincidindo com o aumento serviços do SUS, porém oriundos ou que manti-

Figura 2

Publicações sobre avaliação em saúde, segundo ano, na base SciELO (1990-2008).

Fonte: base SciELO.

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A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE 2651

veram vinculação paralela a grupos de pesquisa reção às concepções presentes em torno da cha-
em universidades. mada Program Evaluation. Um dos méritos do
Na revisão bibliográfica realizada na base grupo canadense, que escreveu um dos capítulos
SciELO, foram localizados 835 artigos distribuí- do referido livro 34, foi justamente o de articular
dos entre vinte diferentes periódicos, incluindo as diversas propostas de origem americana à área
números especiais dedicados ao tema, sendo que da saúde, rompendo com a hegemonia de mo-
três revistas de Saúde Coletiva (Cadernos de Saú- delos experimentais e dicotomias, tais como es-
de Pública, Ciência & Saúde Coletiva e Revista de tudo descritivo versus estudo analítico, avaliação
Saúde Pública) são responsáveis por 287 artigos formativa versus somativa, referencial quantita-
desse total, no período de 1990-2006 (Figura 2). tivo versus qualitativo, valorizando os estudos de
Os resultados diferentes daqueles encontrados caso. Nesse sentido, a inflexão demarcada pela
por Fernandes et al. 26, que localizaram apenas 42 publicação citada 34 é justamente a de ampliação
artigos, podem relacionar-se com o uso de mais do objeto da avaliação para além da categoria
palavras-chave referentes à avaliação de temas qualidade da atenção médica em senso estrito
específicos como a Saúde Bucal 27, a Nutrição 28 presente na obra de Donabedian 33; de extensão
e a Atenção Básica 29. do leque de possibilidades metodológicas; o des-
Dois autores foram invariavelmente citados taque para as análises de implantação dos pro-
pela totalidade dos entrevistados como referen- gramas fugindo dos modelos denominados de
cias fundamentais no desenvolvimento da ava- black box e, finalmente, o propósito em subsidiar
liação em nosso país. Avedis Donabedian (1919- a tomada de decisão.
2000), médico radicado nos Estados Unidos, foi Duas questões emergiram das entrevistas no
um estudioso do cuidado médico, com destaque que tange às relações entre o espaço da avaliação
para a noção de qualidade, sintetizada nos cha- e o campo científico. A primeira delas diz respei-
mados sete pilares da qualidade 29 e com influ- to à diferenciação entre pesquisa avaliativa e ava-
ência teórica reconhecida 2,5. Zulmira Hartz, mé- liação para gestão. Nesse sentido, há diferentes
dica, pesquisadora titular em Epidemiologia na visões, que correspondem a diferentes tomadas
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, de posição, entre os entrevistados. Por um lado,
Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), além situam-se aqueles que diferenciam pesquisa
de contribuições teóricas, articulou agentes e es- avaliativa (para gerar novos conhecimentos) de
tabeleceu relações de impacto na constituição outros tipos de avaliação, e, de outro lado, os que
da avaliação como um espaço social específico. identificam fronteiras cada vez mais fluidas entre
No início dos anos 1990, alguns autores a- gestão e avaliação. No primeiro grupo, encon-
pontaram as insuficiências de processos avalia- tram-se pesquisadores e docentes, e, no segun-
tivos centrados em indicadores de qualidade 30, do, os agentes ligados à gestão ou vinculados a
havendo tentativas de aproximação entre pes- atividades de prestação de assessoria. A segun-
quisa de qualidade e Antropologia ou mesmo da questão diz respeito à utilização de técnicas
a proposição do uso exclusivo de abordagens quantitativas ou qualitativas em avaliação. Nesse
antropológicas em avaliação de serviços de saú- caso, podem ser agrupadas três concepções dis-
de 31. O artigo intitulado Avaliação em Saúde: Li- tintas: de complementaridade entre os dois refe-
mites e Perspectivas 32 pode ser considerado co- renciais, de definição por um ou outro de acordo
mo a transição entre o pensamento donabediano com o objeto avaliado e, finalmente, de crítica à
e a avaliação de programas e serviços em saúde hegemonia do referencial quantitativo e/ou epi-
no Brasil, herdeira da Program Evaluation ame- demiológico. No dizer de um entrevistado:
ricana. O referido artigo 32 contém uma crítica à “Agora, acho que... ainda tem uma certa hege-
concepção de harmonia presente no referencial monia no campo avaliativo que desconhece (...) as
sistêmico usado por Donabedian 33, como na inúmeras contribuições que a Antropologia pode-
tríade estrutura-processo-resultado, desenhada ria estar dando para o campo da avaliação” (E20,
para o âmbito clínico. Naquele texto 33, outras sociólogo, pesquisador).
possibilidades e novas abordagens em avalia- E em outra perspectiva:
ção oriundas da Antropologia, Epidemiologia “É muito frágil a abordagem qualitativa pa-
ou mesmo mistas são consideradas, ainda que ra o gestor. Veja o IDSUS, quarenta indicadores
predomine, no artigo, a interlocução com a Epi- totalmente quantitativos. (...) a abordagem qua-
demiologia, área hegemônica à época. litativa do sujeito (...) não tem repercussão” (E1,
O livro Avaliação em Saúde: Dos Modelos médico, docente).
Conceituais à Prática na Análise da Implantação
de Programas, organizado por Zulmira Hartz 34,
publicado em 1997, constitui marco e ponto de
inflexão da avaliação em saúde no Brasil em di-

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2652 Furtado JP, Vieira-da-Silva LM

O GT-Avaliação Abrasco como interface agentes cujo interesse surgiu a partir da gestão e
dos dois campos que, mais tarde, fixaram-se em instituições aca-
dêmicas e vice-versa. Há ainda casos nos quais
A criação do primeiro fórum oficial brasileiro, houve equilíbrio na inserção nos dois campos
para a congregação de pesquisadores e demais considerados, ou seja, o agente ocupou cargos
interessados em avaliação, ocorreu durante o oi- e cumpriu funções relevantes e/ou extensas no
tavo congresso da Abrasco, em 2006, no Rio de Ja- campo burocrático e também desenvolveu ativi-
neiro, quando foi criado o GT-Avaliação. A oficina dades de importância no campo científico.
para estruturação desse grupo foi apoiada finan- Quando perguntados sobre a relação entre
ceiramente pelo Ministério da Saúde, por meio perspectivas de gestão e pesquisa, certa polari-
do PROESF (E9, E11). Com o objetivo explícito de zação se estabeleceu entre as opiniões dos en-
fomentar a cooperação entre universidades e a trevistados. Na Figura 3, o posicionamento no
articulação entre academia e serviços de saúde, centro indica os agentes que realizam clara dis-
no que tange à avaliação, o GT-Avaliação estru- tinção entre avaliação para gestão e pesquisa
turou suas perspectivas de ações em torno dos avaliativa, ou seja, consideram os dois elementos
eixos de produção de conhecimento, formação como componentes da área, porém com funções
e aplicação do conhecimento. O contexto inter- e justificativas de utilização distintas. O posicio-
nacional de institucionalização da avaliação, o namento próximo a um dos polos corresponde
crescimento da produção científica sobre o tema ao ponto de vista dos entrevistados que definem
no país e as diversas iniciativas ministeriais fo- a avaliação como uma atividade voltada para a
ram justificativas utilizadas para a constituição gestão, e, no polo oposto, estão aqueles que re-
desse grupo. duzem a avaliação à pesquisa avaliativa. Final-
Embora a iniciativa tenha sido de agente mente, o posicionamento no exterior da figura,
situado no campo burocrático, dentre os trin- destacado por uma elipse, indica os agentes que
ta participantes que subscreveram a oficina de consideram a avaliação um conjunto de ações
criação do GT-Avaliação, 27 eram pesquisadores de monitoramento para a gestão e pesquisa si-
ligados a universidades públicas ou institutos de multânea e articuladamente sem fronteiras de-
pesquisa e três ao Ministério da Saúde. Naquele finidas. Nesse último grupo, concentram-se, so-
congresso da Abrasco, no qual foi discutido e lan- bretudo, agentes profundamente envolvidos na
çado o GT-Avaliação, ocorreu o lançamento do gestão do SUS.
número especial de avaliação, da revista Ciência Os agentes pertencentes ao espaço da ava-
& Saúde Coletiva 35, cujo eixo central era a Ava- liação possuem uma composição variada de
liação Como Estratégia de Mudança na Atenção capitais, sendo que a situação mais frequente é
Básica, composto por vários artigos originados aquela da composição mista de capitais burocrá-
de pesquisas financiadas por editais oriundos do tico e científico entre médio e alto (Figura 1). O
PROESF cujos autores participaram da reunião posicionamento dos agentes em um campo está
de criação do GT-Avaliação. relacionado com o acúmulo de capitais valoriza-
Mesmo na atualidade, o GT-Avaliação conti- dos naquele espaço. No caso da avaliação, o polo
nua refletindo estreita ligação e relativa depen-
dência do espaço da avaliação em relação ao
campo burocrático, sendo o seu financiamento
exclusivamente oriundo de fontes institucionais Figura 3
estatais. A criação do GT-Avaliação no interior
da Abrasco não foi pacífica. Houve resistências Concepções de avaliação segundo sua vinculação com a
oriundas de representantes tanto da Epidemio- pesquisa e gestão.
logia como das Ciências Sociais com argumen-
tos baseados, sobretudo, no ponto de vista de
que a avaliação seria transversal ao conjunto
das três áreas. Posteriormente, o GT-Avaliação
passou a compor a comissão de políticas daque-
la instituição.

Os agentes do espaço da avaliação

O fato de o interesse pela avaliação ter surgido


por questões práticas ou movido por questões
acadêmicas não significou a fixação dos agentes
no campo que originou esse mesmo interesse. Há

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A CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE 2653

dominante pode ser considerado como compos- mestrados profissionalizantes também voltados
to pelos agentes que compuseram as coordena- para essa temática são indícios do aumento de
ções do GT-Avaliação da Abrasco ou editorias de sua autonomia relativa.
revistas de avaliação ou coordenaram programas Paradoxalmente, seu ganho de autonomia
de pós-graduação específicos, estando cons- no interior da área de Política e Planejamento da
tituído por agentes que acumulavam capitais Saúde Coletiva se fez por meio do aumento da
científico e burocrático elevados. Nesse sentido, dependência externa em relação ao Estado. Es-
a importância dos dois campos na constituição se significativo aporte de demandas e recursos
do espaço pode ser ilustrada pelo fato de que os oriundos de gestores situados em diversos níveis
agentes com maior capital simbólico são justa- do SUS pode ser compreendido como condição
mente aqueles que conseguiram conciliar maior de possibilidade histórica ao efetivo desenvolvi-
capital científico e burocrático simultaneamente mento da pesquisa e das práticas avaliativas em
(Figura 1). saúde.
É significativo que nenhum dos entrevista- A peculiar proximidade entre os espaços de
dos se identifique como avaliador ou, ao menos, gestão e academia na avaliação em saúde faz
como integrante do espaço “da avaliação”, o que emergir uma das disputas presentes no espaço
revela a situação incipiente e ambivalente em em relação às fronteiras entre pesquisa, avaliação
relação à constituição desse mesmo espaço. In- e gestão. A importância da avaliação para agen-
dagados sobre como se identificavam profissio- tes do campo burocrático os leva a disputar com
nalmente, os agentes responderam explicitando agentes do campo científico a definição do que é
sua formação na graduação ou, a menor parte, e de como se desenvolvem processos avaliativos.
referindo sua condição de docente e pesquisa- Os achados do presente estudo são indicati-
dor. As trajetórias híbridas, com trânsito entre vos da existência de um processo de constituição
os campos científico, burocrático e até mesmo de um espaço social formado por agentes e insti-
político, bem como as tomadas de posição em re- tuições que têm, como interesse comum, a ava-
lação às questões em jogo revelam que os habitus liação em saúde. Contudo, a pequena autonomia
que estruturam o espaço da avaliação são os ha- relativa, a sua elevada dependência externa ao
bitus dos campos dominantes nas trajetórias dos lado da ausência de identidade de seus agentes
agentes. Não foram identificadas convergências como avaliadores ou mesmo da existência de um
ou similaridades suficientes para caracterizar um habitus comum não permitem se falar na exis-
habitus específico entre os agentes da avaliação tência de um campo consolidado de avaliação
considerados. em saúde, no sentido de Bourdieu 13 e Bourdieu
& Wacquant 15. Esse autor, por vezes, usava o con-
ceito de espaço social como sinônimo de campo,
Considerações finais porém, o conceito por ele desenvolvido teorica-
mente foi o de campo 13. Quando um espaço de
A constituição do espaço da avaliação em saúde relações não possui todas as características de
no Brasil ocorreu como produto do encontro de um campo consolidado a sua caracterização co-
agentes (com trajetórias diferenciadas nos cam- mo um espaço de relações entre agentes perten-
pos burocrático, político e científico) estimula- centes a campos diferentes permite uma melhor
dos e financiados por instituições internacionais compreensão da sua natureza e significado.
ligadas ao campo econômico, mas vinculadas à O espaço da avaliação em saúde pode con-
organização do SUS. Esse movimento se deu no solidar-se ou não como campo. A transitorieda-
interior do espaço da Saúde Coletiva, por sua vez de ou permanência desse processo relaciona-se
um universo de saberes e práticas composto por às lutas internas ao espaço, mas, sobretudo, às
subespaços científico, burocrático e político por suas relações com os outros campos sociais. A
onde os agentes, em boa parte, transitam 36. evolução futura das condições históricas que tor-
A consolidação do subespaço científico da naram possível o seu surgimento, o reconheci-
avaliação em saúde parece caracterizar-se por mento que as avaliações de programas e políticas
progressivo distanciamento e aquisição de au- possam proporcionar aos avaliadores, bem como
tonomia em relação ao Planejamento, à Epide- os usos que os resultados das avaliações possam
miologia e às Ciências Sociais, adquirindo espe- ter por parte dos gestores irão definir ou não a
cificidades metodológicas relativas ao objeto da sua consolidação como um campo de saberes
pesquisa avaliativa, embora recorrendo às diver- e práticas.
sas disciplinas dessas três subáreas da Saúde Co-
letiva. A criação de disciplinas específicas sobre
avaliação, nos programas de pós-graduação em
Saúde Coletiva, e, posteriormente, a criação de

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2654 Furtado JP, Vieira-da-Silva LM

Resumen Colaboradores

Con el objetivo de analizar la formación y el desarro- J. P. Furtado realizou o trabalho de campo, concebeu a
llo de un espacio social especializado en la producción pesquisa e redigiu o artigo. L. M. Vieira-da-Silva con-
de conocimientos y prácticas sobre la evaluación de la tribuiu com a concepção do desenho da pesquisa, sua
salud en Brasil se llevó a cabo un estudio sobre sociolo- análise, revisão e redação final do artigo.
gía genética, apoyado en el enfoque socio-histórico de
Bourdieu. Para ello, se analizaron las trayectorias de 28
evaluadores seleccionados entre investigadores y gesto- Agradecimentos
res, así como las condiciones históricas de posibilidad
para la creación de un espacio, a través de entrevistas Ao Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal
en profundidad, análisis de documentos y revisión de la da Bahia, pela acolhida ao nosso projeto de pós-dou-
literatura. El material generado se analizó de acuerdo a torado e apoio ao longo de todo o trabalho de pesqui-
los conceptos de campo, habitus y de capital propuestos sa empreendido. À FAPESP (2012/10550-5) e ao CNPq
por Bourdieu. Los resultados formaron un subespacio (150637/2012-8) pelo financiamento.
de evaluación en salud colectiva, resultado de la inte-
racción entre los agentes de los campos burocráticos
y científicos, representados respectivamente por las
instituciones del Sistema Único de Salud (SUS) en sus
diferentes niveles y grupos de investigación inscritos en
las universidades públicas. No se identificó habitus co-
munes entre los agentes entrevistados y las cuestiones y
disputas sobre el espacio.

Evaluación de Programas y Proyectos de Salud;


Evaluación en Salud; Sociología

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