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Faculdade de Filosofia
Rio de Janeiro
2018
Ruínas: Filologia e Classicismo na recepção de Nietzsche
Rio de Janeiro
2018
"Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor da lenta leitura: —
afinal, também escrevemos lentamente. Agora não faz parte apenas de meus hábitos, é
também de meu gosto — um gosto maldoso, talvez? — nada mais escrever que não leve ao
desespero todo tipo de gente que “tem pressa”. Pois filologia é a arte venerável que exige de
seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar
lento — como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a
realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por isso ela é hoje mais necessária do
que nunca, justamente por isso ela nos atrai e encanta mais, em meio a uma época de
“trabalho”, isto é, de pressa, de indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo
“terminar”, também todo livro antigo ou novo: — ela própria não termina facilmente com
algo, ela ensina a ler bem, ou seja, lenta e profundamente, olhando para trás e para diante,
com segundas intenções, com as portas abertas, com dedos e olhos delicados... Meus
pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendam a ler-me
bem!".
1 FILOLOGIA CLÁSSICA.................................................................................... 4
2 NIETZSCHE, FILOLOGIA E 24
CLÁSSICISMO...............................................
2.2 Ruínas......................................................................................................... 30
3 CONCLUSÃO...................................................................................................... 35
4 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 37
1
0.PROPILEU:
o problema da leitura [em Nietzsche]
Atualmente, Nietzsche tem suscitado interesse tanto pelos críticos acadêmicos quanto
de um público não especializado. Desde do início do séc. XX autores importantes da filosofia
como Heidegger, Benjamin, Jaspers e Deleuze tem se ocupado de interpretar ou recriar os
problemas das suas formulações. Por sua vez, no público não especializado, Nietzsche
também goza de um prestígio incomum entre os autores de filosofia, máximas como "Deus
está morto", encontrada em sua Gaia Ciência, são amplamente reconhecidas e utilizadas fora
do círculo acadêmico.
Seu estilo intempestivo, orientado aos fragmentos e a polêmica, sem dúvida contribuiu
para a evidência do seu pensamento desde então, entretanto, a violência e popularidade destas
formulações por vezes soterram o significado estratégico que estes movimentos retóricos têm
para a filosofia de Nietzsche. Neste sentido o texto de Nietzsche sofre de uma dupla
desvalorização: primeiro, no universo acadêmico, que tem dificuldades em sintetizar como
doutrina os seus fragmentos e não acabamentos, legando a estes elementos um caráter
meramente poético. Segundo, nos leitores mais casuais, que, ao inverso, passam ao largo das
correlações conceituais presentes nestas formulações em favor de suas passagens mais
polêmicas e sedutoras.
1
NIETZSCHE, Ecce Homo
2
Somente a genealogia foi para ser publicado
2
caráter fragmentário de sua obra, que parece reunir e ser constantemente requisitado, mesmo
que de maneira indireta, para redimensionar estes problemas – a filologia clássica.
O tema da filologia clássica até pouco tempo recebia pouco protagonismo dentro do
quadro de leituras de Nietzsche3. No entanto, o fato de que Nietzsche assinava
orgulhosamente seus papéis como professor de filologia não parece ser um elemento menor
da sua biografia. Esta miopia parcial parece se instaurar desde o início da recepção póstuma
de seus textos. Uma chave de leitura que colocava em evidência o Nietzsche filósofo enterrou
no obscurantismo a necessidade de se abordar positivamente a sua atividade como professor
de filologia clássica da universidade da Basiléia. Esta narrativa, que valoriza o filósofo sobre
o filólogo, deve-se em grande medida ao trabalho editorial póstumo praticado pela irmã e pelo
amigo pessoal de Nietzsche, Elizabeth Föster-Nietzsche e Peter Gast. Estes dois nomes foram
responsáveis por lançar na história a primeira impressão sobre o que seria a obra de
Nietzsche, e o lançaram como o primado do gênio filosófico, que superou as limitações
institucionais da filologia em direção a filosofia da vontade de poder. Hoje é sabido que a
falta de critério desta edição vinha seguido de perto pela agenda política pessoal de Elizabeth,
a quem interessava em transformar o irmão em porta-voz filosófico do antissemitismo do qual
ela era entusiasta, a esta agenda não convinha revelar o fracasso de Nietzsche como filólogo
em Basiléia. Por mais que hoje esteja provado a manipulação pouco científica de Föster-
Nietzsche e Gast, a cristalização de Nietzsche como filosofo ainda faz sombra sobre as
determinações e exclusões que formam a obra de Nietzsche. Fato este que se reflete na
dificuldade de encontrar traduções do material pregresso aos anos de 1872, ou seja anterior ao
Nascimento da Tragédia e relativo a filologia.
Aqui nos encontramos com um quadro curioso; é uma cristalização de leitura da obra
de Nietzsche, baseada na exclusão do tema da filologia e suas implicações, que termina por
reforçar estas exclusões que estabelecem este modelo de leitura cristalizado – uma espécie de
círculo hermenêutico vicioso que projeta constantemente uma sombra sobre si mesmo.
Nietzsche parecia estar ciente desta possibilidade de uma hermenêutica viciada, em sua
palestra de 1869, intitulada Homero e a filologia clássica, ele expõe de maneira crítica aos
seus colegas filólogos uma semelhante tendência circular. Operando uma intrincada rede de
referências, Nietzsche provocará seu público expondo o caráter ideológico e projetivo que
3
James Porter, Rafael Girardot são alguns dos poucos nomes que trabalharam a questão da filologia ou
diretamente as suas aulas como foi o caso de James Whitmann que traduziu o curso dos pré platônicos.
3
existe no esforço de leitura dos clássicos. E então, usando a figura de Homero, ele pergunta –
"Fez-se então um conceito a partir de uma pessoa ou uma pessoa a partir de um conceito?"4.
4
NIETZSCHE, F. Homero e a Filologia Clássica, p.187
5
Concordam com isto Girardot, Porter, Lemos, Cavalcanti
4
mais as aporias presentes neste signo, ao mesmo tempo que vai esgaçando os seus limites
epistemológicos. Além da presença objetiva no tópico que escolhemos, o signo da ruína nos
parece também adequado na medida que resgatar a narrativa da filologia de Nietzsche
significa testemunhar os vestígios da sua incompletude latente.
1. FILOLOGIA E CLASSICISMO
Através deste crescente entusiasmo, que seguiu da Itália para o resto do continente, as
ideias clássicas de poética, arquitetura, proporção e filosofia em geral, penetram de maneira
incontornável nos círculos intelectuais europeus. De tal modo que ser intelectual significava
conhecer Cícero, Píndaro e Homero. A esta altura qualquer produção cultural só era legitima
se imitasse7 os princípios clássicos. Portanto, a filologia, ainda como um conjunto geral de
ferramentas intelectuais, volta a ser intensamente requisitada, de modo que intelectualidade e
filologia passam a ser indissociáveis. Esta onda cultural que impele o uso cada vez mais
6
TURNER, James. Philology, p.34.
7
LE GOFF, Jacques. Antigo e moderno, p.8.
5
Um conflito cultural, que se inicia praticamente junto com o renascimento, serve como
um bom ponto de observação da diferença entre classicismo e filologia. Este conflito que
parece se desenvolver desde a poesia do séc. XII, irá encontrar no teatro francês do séc. XVII
o palco de uma disputa entre o teatro clássico e artistas que se recusavam a aceitar as
convenções desse modelo baseado na imitação dos clássicos.
Diversas rivalidades profissionais como a dos dramaturgos Hugo e Stendhal, movidas por
uma espécie de contra classicismo, apareceram na Europa ao longo dos sécs. XVII e XVIII.
Este debate, que foi chamado de querelle des anciens et des modernes, surge no horizonte
estético e vai ganhando contornos cada vez mais gerais e consequências cada vez mais graves.
O revelo da querelle afirma duas coisas importantes que nos servirão para aprofundar
a diferença entre classicismo e filologia. Primeiro, a querelle como conflito cultural traz para
o primeiro plano o forte caráter moral e ideológico do classicismo, deixando de lado os
aspectos técnicos da filologia. Este ponto será importante para Nietzsche e para a filologia na
Alemanha, quando as próprias inovações e descobertas técnicas da filologia irão se voltar
contra a antiguidade idealizada. O segundo ponto está intimamente ligado ao primeiro, o
conflito da querelle transforma o que era antes moderno em algo antiquado. Ou seja, os
pensadores que discordam do classicismo estressam o caráter conservador do classicismo,
este ponto também será importante para Nietzsche.
8
Op.cit, p.10
6
O segundo aspecto nos interessa particularmente. Elias analisará que a fase medieval
do processo de formação do estado Alemão, por uma série de fatores, coloca o território
Alemão em profunda desvantagem aos seus vizinhos próximos:
fraqueza. Esta vaga integração do império produziu, através dos conflitos religiosos do séc.
XVI, as condições econômicas determinantes no atraso do processo de formação de seu
estado.
Ou seja, no séc. XVII enquanto os demais países europeus gozavam da consolidação das suas
identidades nacionais e estruturas de estado, avançando decisivamente no debate cultural, a
Alemanha não tinha sequer suas fronteiras ou sua língua estabilizada.
Somado a estes dois fatores analisados por Elias, no mesmo corte temporal a
Alemanha atravessava também os desdobramentos decisivos da reforma protestante. As
supremacias do sobrenatural, do reino da fé, em termos de uma contraposição com a razão,
impossibilitam mais ainda a permeabilidade da Alemanha em relação as premissas do
Renascentismo Europeu13. Premissas estas que representavam de certa forma o seu progresso.
Ou seja, o pietismo de fundo Luterano implica em um certo anti-humanismo que ajuda a adiar
a penetração do retorno dos valores clássicos. A tradição pietista aprofunda a Alemanha em
um quadro de atraso cultural em relação a Europa, colocando no séc. XVIII uma tarefa
particularmente intensa de exercício das premissas do Renascentismo para uma reintegração à
cultura europeia.
Tal intensidade projetada por estas questões históricas ira instaurar o debate do
Classicismo intrinsicamente ligado ao problema da identidade e formação cultural Alemã, o
debate da Bildung. Da Aufklärung, passando pelo Classicismo de Weimar e chegando ao
Romantismo Alemão, o problema do Clássico será a trincheira preferencial de uma guerra
que os alemães, por conta do seu atraso material, já não podiam travar fisicamente. É na base
desta retomada às discussões europeias marcada por uma necessidade cultural de
renascentismo tardio que encontramos a figura de Johann Joachim Winckelmann (1717 -
1768).
12
Ibidem, p19
13
Cf. BORNHEIM, G, “introdução à leitura de Winckelmann” in Artes & Ensaios, p. 145
8
específica aos ensinamentos de Bernini que Winckelmann no seu texto de 1755, Reflexões
sobre a arte grega na pintura e na escultura, vai atualizar as ideias gerais da estética de Wolff
e Baumgarten com a intuição herdada das tradições antiquarias. Ou seja, Winckelmann vai
introduzir ao lugar comum da imitação da natureza a dimensão da antiguidade como valor.
Nas reflexões ele diz: “Mesmo se a imitação da natureza pudesse tudo dar ao artista,
certamente não lhe daria a exatidão do contorno, que só os gregos sabem ensinar” 19. É dentro
desta mistura de estética com um espírito de antiquário que Winckelmann irá se afastar, tanto
de uma estética que pensa exclusivamente uma perfectibilidade da imitação da natureza –
ideal coincidente em Wolff, Baumgarten e no Barroco - quanto um Classicismo Romanizado
que parecia dominar a Europa. Ainda segundo Bornheim: "De fato, antes de Winckelmann,
por maior que tenha sido nos países latinos a preocupação com os gregos, pode-se afirmar que
toda a cultura aquém dos Pirineus permaneceu sob o signo de Roma, e isso desde a
Renascença até o Barroco". Nos parece então que é a Winckelmann que devemos o primeiro
pensamento consistente da Grécia como ideal, é ele que vai colocar a Grécia no mapa do
pensamento do Classicismo Alemão subsequente. A centralização da Grécia como ideal
estético se provará vital para história ultrapassando as fronteiras da estética e do séc. XVIII
em muitos anos.
Ainda sobre esta eleição do Grego como ideal em recusa ao Romano, é possível
conectar uma influência Luterana; A aversão da tradição Luterana aos valores Romanos tem
papel central ao refrear o Renascentismo que ainda não tomara totalmente a Alemanha apesar
da grande força cultural. Ao identificar os valores católico-romanos com uma ofensa pagã ao
evangelho, Lutero influencia a Alemanha com uma certa atitude hermenêutica de
negatividade para com os antigos em geral e especialmente aos valores Romanos. Aqui, a
vitória hermenêutica de Lutero, se faz importante para o movimento de superação encontrado
em Winckelmann, quando no meio do século XVIII procura-se novos horizontes para além da
recusa Luterana do Romano. Estando Winckelmann posicionado no início deste golpe tardio
de um Barroco-renascentismo. Sobre isto Bornheim comenta um episódio elucidativo:
19
WINCKELMANN, Reflexões sobre a arte grega na pintura e na escultura, apud BORNHEIM, op.cit, p.149
10
Winckelmann na sua já referida obra de 1755 irá, dentro de um ataque mais geral a
arte Barroca, aprofundar sua recusa ao Romano, e consequentemente, fundamentar seu ideal
de Grécia. Ao se afastar do ideal Barroco e aconselhar aos jovens artistas a imitação do
clássico, Winckelmann consolida a Grécia no solo da formação estética da Alemanha. Como
atesta por exemplo a passagem: "As fontes mais puras de arte estão abertas: feliz quem as
encontra e as sorve. Procurar essas fontes significa partir para Atenas" 22 Onde mais uma vez
está contraposto a imitação da natureza, uma atitude Barroca, com uma proposta de retorno à
Grécia na sua “nobre simplicidade e calma grandeza”23.
Winckelmann parece visar um valor especifico da vida Grega que deveria ser imitado,
ele argumenta: "entre todos os povos antigos, os gregos foram os únicos que atingiram o
20
BORNHEIM, Gerd, op.cit, p.149
21
Idem, p.147
22
Apud BORNHEIM, Gerd, op.cit, p.150
23
WINCKELMANN. Réflexions sur l’imitation des œuvres grecques en peinture et sculpture, p. 122 apud
SÜSSEKIND, Pedro. A Grécia de Winckelmann, p.73
11
pleno desenvolvimento de sua forma e, por isso, o esplendor maior da natureza" 24. Nesta frase
podemos entender um aceno ético de Winckelmann, a proposta de imitação dos Gregos é uma
proposta de retorno a um tempo onde relação com a natureza se estabelecia de forma plena,
quando ele crítica a imitação da natureza de maneira direta, no seu tempo, talvez ele esteja
acenado para um tempo marcado pela falta. Sobre este ponto Bornheim esclarece:
24
Idem, p.153
25
Idem p.153
26
Sobre imitação em Winckelmann também coloca Pedro Süssekind “O único caminho para nos tornarmos
grandes e, se possível, inimitáveis, é a imitação dos antigos...” só pode ser interpretada corretamente a partir
dessa diferença entre imitação e cópia. Há um caráter contraditório evidente nessa formulação, uma vez que os
antigos são considerados pelo autor, mais do que grandes, inigualáveis, inimitáveis, mas são indicados como
modelo a ser imitado. Em outras palavras, o que Winckelmann propõe, a partir de sua constatação da grandeza
da arte antiga e da decadência da arte moderna (o Barroco, a pintura holandesa) é um caminho para alcançar a
grandeza, “se possível” uma grandeza tão “inimitável” quanto a dos gregos.” (SÜSSEKIND, Pedro. “A Grécia
de Winckelmann”, in. Kriterion, p.73)
27
Para mais sobre a Goethe e Winckelmann, suas relações estéticas e Classicismo, ver artigo de SELIGMANN,
Marcio, “Como um raio fixo Goethe e Winckelmann: Classicismo e suas aporias”, in. PHAOS
12
A partir destes elementos, nos parece seguro sentenciar: é Winckelmann que coloca a
Grécia no mapa cultural da Alemanha do séc. XVIII. Situando-a sobretudo como modelo
estético a ser seguido de forma ostensiva pelos jovens artistas. Os desdobramentos da sua tese
vão reverberar para muito além deste tempo. Problematizações posteriores como as de
Nietzsche, são impensáveis sem essa primeira ideia de Grécia. Até hoje, muitos discursos
filosóficos se estabelecem na performance da Grécia ideal como pensada por Winckelmann.
Johann Gottfried Herder (1744 –1803), aluno de Hamann e Kant, vai ser o responsável
por uma Filosofia da história universal, onde o desenvolvimento orgânico dos povos e nações
será central. Em Herder, a pergunta sobre o destino da arte, passa a ser a pergunta sobre o
destino do povo e da Kultur Alemã. E, aceitando o ideal estético Winckelmanniano 31, ira
28
Cf BORNHEIM, Gerd, Op.cit, p.156
29
Algo parecido assere Süssekind ao estabelecer a influência do caráter histórico presente em Winckelmann até
Herder e Hegel (SÜSSEKIND, Pedro, Op.cit, p.71)
30
Para uma breve contextualização sobre a atuação de Herder no problema da Bildung Alemã ver NICOLAU,
Marcos, “Herder: uma proposta de reforma radical na educação” In Cadernos de Filosofia alemã n.2
31
Também sobre Herder e Winckelmann escreve Süssekind “Herder valorizava o direcionamento de
Winckelmann para uma interpretação direta e arrebatada das obras de arte particulares. Assim, a proximidade
por meio do sentimento se contrapõe à frieza da razão normativa, e a busca das condições de surgimento da
escultura, identificadas na observação da natureza bela dos corpos de atletas, indica um caminho teórico novo,
baseado na especificidade da cultura, da geografia e do clima.” SÜSSEKIND, P, Op.cit, p.70
13
Isaiah Berlin, importante filósofo do séc. XX, dedica todo um capítulo sobre Herder
no seu livro The Proper Study of Mankind. Lá ele aponta que "a fama de Herder se baseia no
fato de que ele é o pai das noções de nacionalismo, historicismo e de Volkgeist, era um dos
líderes da revolta romântica contra o classicismo, racionalismo e fé na omnipotência do
método científico"33. Ele denunciava que a premência das regras universais ao interpretar a
história, destruía aquilo que cada nação, povo ou período histórico tinha de especifico e
importante. É dado a ele o crédito de revigorar as noções de padrões sociais, crescimento
social, e a vital importância de considerar sempre os fatores, quantitativamente e
qualitativamente34.
32
Cf BORNHEIM, Gerd, op.cit, p.156
33
BERLIN, Isaiah The Proper Study of Mankind, p.359
34
Cf idem, p.360
35
Cf BERLIN, Isaiah, Op.cit, p.367
14
realidade política de um reino dividido entre diversos príncipes, soaria como um apelo ao
unitarismo cosmopolita. Entretanto, no quadro maior do pluralismo, Herder consolida a
ruptura com os ideais iluministas. Aqui Berlin detecta também o emparelhamento do
populismo Herderiano com o sotaque do Iluminismo, entretanto, segue uma intuição:
36
Idem, pp.370-371
37
Cf, idem, p.378
38
O povo como conjunção circunstancias naturais parece ser central na filosofia de Herder, sobre isso atesta
Berlin in, op.cit, p.373 ou mais concisamente em p.374
15
Sua contribuição para a estética e para a crítica literária se enquadraria na ideia geral
de expressionismo trabalhada por Berlin. Junto com a ideia da rejeição de valores absolutos,
surge a ideia de que a atividade humana intrinsecamente ligada a seu horizonte histórico do
qual ela é expressividade. Esta conclusão levada para o campo da arte, suspende a prescrição
de valores universais para o Belo40. Conclusão que vai dialogar diretamente com as aspirações
de Winckelmann, sua estética pretendia, mesmo diante de tensões, ultrapassar o objeto
artístico em vista do que, em última análise, é a ideia universal do Belo. Seligmann parece
correto a fazer apontamentos semelhantes:
39
BERLIN, Isaiah, op.cit, p.375
40
Cf, BERLIN, Isaiah, Op.cit, pp. 367-368
41
Berlin analisa “Herder says over and over again that the true artist (in the widest sense) creates only out of the
fullness of the experience of his whole society, especially out of its memories and antiquities, which shape its
collective individuality”, Op.cit, p.421
16
povo; ele dá um mundo a contemplar, ele segura esta alma em suas mãos. ” 42 “Ele é,
obviamente, em mesma medida criado por ele” 43. Esta formulação de Herder se provará
extremamente importante, se desdobrará de forma excêntrica nos projetos românticos de
Fichte, Schelling e Hegel, influenciará fortemente Goethe e mais tarde Nietzsche.
Seria impossível esgotar a contribuição de Herder para sua época de tão vasta sua
atuação. Herder contribuiu ativamente do campo da política à crítica literária, passando
inclusive por uma atuação direta no campo da pedagogia e da Bildung em 1776 quando aceita
o convite de Goethe, então conselheiro do Duque de Weimar, para o cargo de conselheiro do
Ducado44. O nosso interesse geral foi de desenhar os principais conceitos que possibilitem ver
Herder como um dos principais críticos do Iluminismo do seu tempo. Seus apelos às emoções,
às particularidades da ideia de povo, à historicidade na busca pela Volkgeist Alemão,
contribuirão de forma central para o surgimento do movimento conhecido como Sturm und
Drang45, o movimento proto-romântico da Alemanha no final dos anos de 1760. Este conjunto
de noções conceituais em si e o próprio advento do Sturm und Drang serão vitais para a
história do classicismo Alemão, para a Filologia e para Nietzsche respectivamente.
Goethe nos anos de 1770 foi influenciado diretamente pelas ideias de Herder e
Hamann, o que resultou em sua adesão ao movimento cultural do Sturm und Drang. Sob o
prisma de Berlin é possível analisar um jovem Goethe dentro das mesmas chaves de
populismo, expressionismo e pluralismo com que lemos Herder. A atividade intelectual de
Goethe funciona dentro das mesmas bases da valorização do Gênio, da língua alemã e do
42
viii 344 apud BERLIN, Isaiah, idem, p.422
43
ii 160-1 apud BERLIN, Isaiah, idem.
44
Para mais sobre Herder e o problema da pedagogia e Bildung, ver o artigo de NICOLAU, Marcos, “Herder:
uma proposta de reforma radical na educação”, in: Cadernos de Filosofia Alemã
45
Cf, idem, p.419
46
BORHEIM, Gerd, op.cit, p.157
17
povo47. O que parece apenas similaridade para Seligmann é uma filiação, ele comenta o texto
"arquitetura alemã" de 1772: "[Goethe] defende uma arte que seja própria, ou seja,
genuinamente condizente com a deutsche Seele (a "alma alemã", XII, 14), e critica com verve
a doutrina do "bom gosto".”48 Logo, nos parece razoável dizer que Goethe contrai diretamente
de Herder a recusa a um espirito iluminista, normativo, classificador e universalista, o que
leva os dois a terem formações e até estruturas de pensamento bastante similares em diversas
ocasiões. Berlin detecta até uma repulsa de ideias francesas, no mesmo espírito de Herder:
Aqui o que Berlin detecta como uma influência de Hamann pode ser facilmente
estendida e até cooptada para uma influência de Herder. Apesar da esfera política estar
decidida por usa filiação a Herder, na esfera estética Goethe parece se aproximar mais de
Winckelmann, e isso compromete toda estrutura do projeto cultural em questão. Seu olhar se
volta ao clássico, à Grécia de Winckelmann, com a mesma admiração pela "calma grandeza e
nobre simplicidade". Em última análise, isto significa dizer que a expressão filosófica geral de
Goethe se situa de uma forma bem especifica entre a autenticidade do seu clima histórico,
como em Herder, e um impulso nostálgico para o clássico, como em Winckelmann.
Seligmann parece correto ao salientar o mesmo ponto: "A querelle des anciens et des
modernes expressa-se, portanto, no Goethe desse período, sob a forma de uma tensão entre os
polos da admiração pelos clássicos e o culto da "germanidade", ou seja, do próprio".50
47
Cf, SELIGMANN, Márcio, op.cit, p.170
48
Idem
49
BERLIN, Isaiah, Roots of Romanticism, p.51
50
SELIGMANN, Márcio, op.cit, p.171
18
diretamente. Em 1798, no primeiro volume da revista Propyläen ele publica o texto "Sobre o
Laocoonte" evidenciando a importância, tanto da experiência clássica no encontro com a
estátua, como a importância do classicismo de Winckelmann 51. No mesmo texto, além deste
ponto, Goethe irá enfatiza a esfera da presença na interpretação da arte, é preciso olhar a arte
clássica para poder então, falar sobre ela. É no campo da afetação apolínea da arte grega que o
artista alcança o que é mais próprio dele. Esta afirmação parece funcionar tanto em Goethe
quanto em Winckelmann.
51
Cf. idem, p.178
52
Cf, também sobre o distanciamento entre os classicismos de Goethe e Winckelmann uma nota de rodapé no
artigo de Seligmann. Ele comenta uma carta entre Humboldt e Goethe: “Essa exigência da distância de que
Humboldt fala corresponde a uma postura refletida de filosofia da história diversa da de Winckelmann que via
na distância para com a Antigüidade não algo necessário, mas sim uma triste imposição de sua época. A utopia
da arqueologia consistia na reconstrução do passado através da pesquisa, análise, descrição e arquivamento dos
seus restos. Já Humboldt e Goethe estariam mais próximos das visões oníricas de Piranesi com suas misturas
de imaginação e imitação/ acúmulo de ruínas. Essa concepção difere também daquela iluminista que esteve na
base do projeto da Enciclopédia e acreditava em um armazenamento e em uma tipologia total do
conhecimento. In SELIGMANN, Márcio, op.cit, p.180
53
“Antik und Moderne”, Sämtliche Schriften, Artemis Verlag/DTV, vol. XIII, p.846 Apud SELIGMANN,
Marcio, op.cit, p.178
54
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.126
19
Goethe responde de maneira assertiva a esta tensão temporal entre antiguidade clássica
e modernidade em formação. Esta tensão se plenifica e se resolve em termos de um agir
criativo. Este mesmo espírito está presente no artigo que Goethe escreveu sobre Winckelmann
em 1805:
É importante notar que esta vitória de Goethe ainda não traduz a recuperação total da
Alemanha em relação a seus vizinhos. Certamente ali estão as condições propedêuticas que
possibilitam a Alemanha a readquirir seu lugar à mesa debates filosófico/culturais da Europa,
entretanto, é muito sintomático que o acontecimento de Weimar como grande centro cultural
tenha ocorrido ainda através do despotismo esclarecido do ducado de Weimar. Ou seja, o
classicismo de Weimar representa apenas a inauguração do espírito artístico alemão, faltando
ainda sua contrapartida física que só ocorrerá anos mais tarde com Bismarck. Esta vitória
parcial explica também a necessidade que Nietzsche e sua geração tem de retornar a este
classicismo e ao problema da bildung.
55
carta entre Goethe e Humboldt, apud SELIGMANN, Márcio, op.cit. pp.179-180
20
É diante deste espírito de contorno muito mais literário, que na passagem do séc.
XVIII para o XIX, Friedrich August Wolf dá um passo decisivo na história do classicismo
Alemão. Sua contribuição dará traços finais quanto a metodologia do estudo dos clássicos e
será um marco de reinauguração do significado da filologia clássica como instituição
científica - sendo considerado até hoje o pai desta disciplina como tal.
O feito de Wolf não parecia fácil; codificar uma disciplina cuja a amplitude engloba
diversas práticas eruditas, ao mesmo tempo que é tão cara ao horizonte simbólico da cultura
europeia e alemã. A realização de sua visão na filologia pode ser descrita como uma pequena
revolução copernicana - e nisto Wolf parece repetir na filologia o que Kant fez na filosofia. A
formula de seu sucesso reside no novo fôlego que sua atividade daria ao estudo dos clássicos
na Alemanha56, fôlego que depende mais do seu êxito como pedagogo que de suas inovações
técnicas propriamente.
Em 1795 Wolf publica sua obra magna, Prolegomena ad Homerum. Um livro que será
absolutamente canônico para a atividade do classicismo Europeu desde então. Nada mais
natural que pensar que este livro seja o portador de inovações decisivas, e isto é verdade em
56
GRAFTON, Anthony, Prolegomena to Friedrich August Wolf, p.101
57
GRAFTON, AAnthony, Introdução. In: WOLF, F, Prolegomena to Homer. p.3
58
idem
59
Idem, p.4
60
Idem, p.3
21
alguma medida, entretanto, uma breve análise nos mostra que o ponto mais forte do
Prolegomena talvez seja mais o modo como se coloca as inovações, já que muitos pontos do
seu trabalho já eram populares nos círculos do classicismo Alemão. Turner demonstra no seu
livro chamado Philology, que Wolf em seu Prolegomena irá articular muito da filologia de
Heyne e da tradição da filologia bíblica:
“Heyne obteve sua teoria sobre os gregos antigos em parte pelo livro
de Wood ‘Original Genius and Writings of Homer’, e Heyne
provavelmente o introduziu ao jovem Wolf. (...) através filologia
bíblica de Eichhorn Wolf herdou os métodos de reconstrução de textos
antigos. De dentro da estrutura conceitual de Heyne e Wood, Wolf
aplica o método bíblico de Eichhorn a Homero. (A permeabilidade na
fronteira entre as várias regiões da filologia novamente fora
decisiva)”61
Portanto a obra sobre Homero trata de uma elaboração exitosa e bastante incisiva
sobre diversas conclusões intelectuais que já pairavam na filologia de seu tempo. Não só
Turner que concorda com este ponto, Grafton também concorda e inclusive reputa a ele a
permeabilidade fácil do discurso de Wolf aos estudantes Alemães: "Não é de se estranhar que
os estudantes Alemães receberam o programa pedagógico de Wolf com tanta simpatia. De
maneira eloquente e incisiva, ele estava apenas dizendo o mesmo que intelectuais bem
informados já sabiam."
61
TURNER, James, Philology, p.118
62
Idem
63
GRAFTON, Anthony, op.cit, p.108
22
presente o caráter central que o estudo dos clássicos tem para a formação do homem. A
importância do classicismo em Darstellung se afasta do campo de uma imitação artística,
agora, trata-se de um exercício disciplinado de visionar todo um povo como meio para formar
o próprio espírito.
O segundo ponto que nos permitirá recriar a contribuição Wolfiana reside na sua
revolução crítico-metodológica - a Altertumswissenschaft ou ciências da antiguidade. Esta
ciência se caracterizaria principalmente como um ultrapassamento do estudo dos textos em
direção as "condições da emergência dessa estética, tanto histórica quanto filosoficamente"66.
Lemos caracteriza esta virada metodológica como uma guinada Kantiana, já que a reflexão
passa do nível da imediaticidade dos textos para o movimento reflexivo com qual a própria
noção de texto se estabelece. Podemos ver essa atitude claramente na questão Homérica
presente no Prolegomena, Turner observa bem ao dizer que "Ele [Wolf] traça
64
Apud GRAFTON, Anthony, op.cit, p.109
65
idem
66
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.128
23
"Um jeito mais preciso de expressar tal diferença seria o de dizer que
Wolf escreve a história da erudição ao invés da história dos escólios.
Ele sabia que os escólios precisavam de análise, que os Alexandrinos
precisavam de bibliografia e datas confiáveis. Mas o que ele
reconstruiu foram os métodos técnicos que cada um dos críticos
antigos usou - e, através deles, reconstruiu a história do destino de
Homero."68
2. FILOLOGIA E CLASSICISMO
67
TURNER, James, op.cit, p.118
68
GRAFTON, Anthony, op.cit, p.119. Também cf PORTER, James, op.cit, p.69 em diante
24
A primeira sessão deste trabalho procurou caracterizar uma visão de mundo clássica
presente na Alemanha do tempo de Nietzsche. Visão de mundo que surge inseparável das
contradições materiais do cenário político da Europa em relação a Alemanha, que acabam por
produzir particularidades conceituais de um classicismo que se caracteriza constantemente
como uma reação ao humanismo iluminado. O posicionamento da filologia de Nietzsche
depende fortemente deste quadro, não é à toa as diversas menções de Nietzsche nos seus
cadernos a estes nomes centrais do Classicismo que mencionamos anteriormente. Entretanto,
estas menções diretas, mesmo estas de seus cadernos privados, não revelam todas as nuances
do jogo de espelhos que é o posicionamento de Nietzsche em relação a cultura clássica e a
tradição magisterial de sua disciplina. Portanto, será nosso objetivo nas próximas páginas
revelar estas nuances da relação entre o projeto crítico da filologia de Nietzsche e o horizonte
cultural que estabelecemos.
Inesgotáveis seriam os ângulos através dos quais poderíamos adentrar esta questão,
dado a natureza ampla da atuação desta primeira filosofia da cultura de Nietzsche. Por sorte, o
próprio nome da sua formação guarda os elementos centrais que podemos analisar afim de
definir um angulo de entrada, portanto, seguindo esta pista, o primeiro esforço será o de
caracterizar o modo crítico com que Nietzsche opera a filologia/clássica: ou seja, a filologia
como ciência, o classicismo como estética e a tensão presente entre estes dois polos. Tensão
esta que havia se aprofundado desde Wolf em uma espécie de reedição filológica da Querelle,
ou, pelo menos, do embate ideológico entre o modelo de ciência moderno versus ciência mais
alinhada com o humanismo clássico, encenado pela disputa entre Sach-Philologie e a Sprach-
Philologie69
Talvez o texto mais expressivo das pretensões de Nietzsche neste contexto seja a
conferência dada em ocasião da posse da cátedra de filólogo na universidade de Basiléia, em
1869. Neste texto, Nietzsche irá fazer um apanhado crítico da sua disciplina manipulando um
problema fundamental da filologia clássica, a personalidade de Homero. É também neste
texto que podemos evidenciar os limites da sua subscrição em qualquer uma das pontas da
tensão entre ciência e classicismo, na medida que ele irá articular teses culturais, ou melhor,
sobre o significado cultural da filologia, em relação a formação Alemã [Bildung]. Ao mesmo
tempo que articula correntes culturais, segundo Porter, Nietzsche irá manipular ao mesmo
tempo um conjunto de conceitos que terão grande importância no quadro da filologia de
69
JENSEN, Anthony, An Interpretation of Nietzsche’s On the Uses and Disadvantage of History for Life, p.11
25
Nietzsche, conceitos estes que serão a base da implosão hermenêutica que ocorreria através de
toda a sua filosofia.
70
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.136
71
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.140
72
LEMOS, Fabiano, idem, p.142
73
LEMOS, Fabiano, idem, p.146
74
NIETZSCHE, Homero e a filologia clássica, p.180
26
Aqui Nietzsche apresenta uma tese mais branda sobre a personalidade 75, a saber, que a
formação depende menos do conhecimento e mais do caráter psicológico, ou melhor, em
termos Schopenhaurianos, a formação é do domínio da vontade. Esta tese ensaia a entrada em
uma questão mais delicada, que, podemos dizer, é o centro nevrálgico da conferência - a
questão da personalidade de Homero.
75
Esta tese também está presente no fragmento 5[107] in. NIETZSCHE, Fragmentos póstumos (1869-1874),
p.143: A formação: segundo o caráter de representações ilusórias. Como pode se transmitir uma formação?
Não por meio do conhecimento, e sim por meio do poder da personalidade. O poder da personalidade reside
em seu valor para a vontade(...)” que acentua a relação com a filosofia de Schopenhauer por meio do conceito
de vontade.
76
Idem, p.184
77
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.143
78
idem
79
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos (1869-1874), 1[20], p.68. Outros fragmentos seguem o mesmo sentido
como 9[65] e 27[10].
27
80
Presente sobretudo nas conferências sobre os estabelecimentos de ensino e no nascimento da tragédia.
81
CF. nota 45
82
PORTER, James, op.cit, p.3
83
Idem, pp.62-63
28
84
Idem, p.3
85
Idem e p.43 em diante
86
Idem, p.23
87
CF. idem, capítulo homônimo.
88
Idem, p.63
89
NIETZSCHE, Homero e a filologia clássica, p.193
90
Idem, p.191-192
29
2.2 Ruínas
A conferência sobre Homero não termina de maneira negativa. O jovem filólogo, após
apresentar um apanhado geral do estado da arte de sua disciplina e suas tensões próprias faz a
indicação mais perigosa de sua fala. Neste último movimento, que Lemos caracteriza como a
quarta tese apresentada na palestra, está o conteúdo mais polêmico em relação a tradição
magisterial alemã.
91
Idem, p.193
30
Como Lemos bem caracteriza, é certo que este último movimento de Nietzsche é um
aceno ao golpe que será dado no Nascimento da tragédia submetendo o trabalho científico ao
artista94. Por este angulo parece seguro encerrar a correlação de Homero e a Filologia
Clássica, e, portanto, da tensão entre filologia e classicismo, como o retorno simples do
projeto estético de Winckelmann e Goethe. Mas há uma grande diferença entre o intento de
Nietzsche e estes intelectuais que iniciaram aristocracia estética grega na Alemanha, e esta
diferença não se resume apenas no óbvio elemento dionisíaco95.
92
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.146
93
NIETZSCHE, Homero e a Filologia Clássica, p.198
94
LEMOS, Fabiano, op.cit, p.146
95
O que queremos dizer aqui é o que explica Roberto Machado na introdução de MACHADO, Roberto,
Nietzsche e a polêmica sobre o nascimento da tragédia, “Mas há uma grande diferença entre ele e os
pensadores que iniciaram a política cultural alemã de valorização da arte grega como modelo do que deve ser a
arte moderna (...) Nietzsche relacionará a serenidade apolínea com um aspecto mais profundo da Grécia, o
dionisiaco, que não tinha sido pensado por eles.”, p.11
96
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos (1869-1874), 8[39] p.221-222
97
Idem, 3[75] p.113
31
grandeza" não são mais do que aspectos criados para conviver com as forças disruptivas do
dionisíaco. Entretanto o caminho conceitual que possibilita Nietzsche chegar a esta conclusão
merecem ser retraçados, já que ele revela um segundo distanciamento com Winckelmann que
guarda consequências para interpretação do classicismo como um todo.
98
Cf. nota 33
99
Aqui existe uma diferença sutil que, se não explicada, pode gerar uma contradição. A escolha da palavra
atitude em detrimento da escolha mais óbvia ideal, salienta que Nietzsche necessita mimetizar a atitude de
Winckelmann, aquela que impôs ao antiquarianismo uma visão de mundo estética sobre os objetos da
antiguidade e suas descrições. Já o idealismo de Winckelmann parece ser dispensável.
100
SELLIGMAN, Márcio, op.cit, p.169
32
101
GOETHE, antigos e modernos, in. Escritos sobre arte, p.233
102
Sendo possível enxergar neste ponto uma influência definitiva do historicismo de Herder
103
carta entre Goethe e Humboldt, apud SELIGMANN, Márcio op.cit. pp179-180
33
fantasma estratégico, que serviria como ponto de inflexão para a reforma cultural pretendida
pela sua primeira filosofia da cultura?
O classicismo tomado por este prisma parece guardar em si os mecanismos que são
capazes de demolir suas próprias suposições idealistas. Se isto é verdade, a exacerbação cética
da filologia de Nietzsche proposta por Porter acaba por ganhar mais um ponto de apoio. Logo,
ele estaria correto em afirmar que a relação de Nietzsche com o classicismo não é de uma
mera recusa do idealismo de Winckelmann ou um retorno meramente estratégio contra um
paradigma objetivo de filologia, o que estaria em jogo é um aprofundamento cego e radical
das premissas mais complexas do classicismo alemão, como observa Porter:
Este aprofundamento radical das suas raízes, sejam estas as raízes clássicas, filosóficas
ou filológicas, define o compromisso de Nietzsche com o seu solo histórico, fazendo com que
o exame pormenorizado deste solo enriqueça de maneira decisiva o entendimento de suas
teses no campo da filologia.
A ruína do classicismo, portanto, poderia ser escoada pela filologia, o que faria de
Nietzsche um quadro perfeitamente adequado da filologia do seu tempo. Este certamente não
é o caso, porque Nietzsche também parte da ruína da filologia. Ora, uma parte desta ruína já
104
PORTER, James, op.cit, p.184
105
O próprio “Homero e a filologia trágica” ressalta como os artistas, mencionando até Schiller, teria tomado
com agressão o manejo Wolfiano sobre a questão Homérica.
106
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos (1869-1874), 3[10] p.100
34
foi mencionada e explicitada pela conferencia sobre Homero, a saber, o caráter fraturado da
filologia pós-Wolfiana. A outra e bastante significativa parte desta ruína é aquela exarcebação
cética que Porter menciona. A filologia cética de Nietzsche abre espaço para um concepção
muito parecida com a visão romântica de Goethe, esta coincidência é revelada no tratamento
que Nietzsche da a personalichfrage. Ou seja, se o sentido da personalidade de Homero reside
nos preconceitos estéticos de uma recepção posterior, não haverá nunca a possibilidade de
reabilitar o Homero factual. O trabalho da filologia é necessariamente lidar com os escombros
de uma imagem cuja sua manifestação será sempre necessariamente os escombros. É
necessariamente neste ponto que os polos tencionados da filologia e do classicismo se unem,
o aprofundamento de ambas as dimesções necessitam de uma resposta intelectual prática:
O modelo tático que Nietzsche imprime para a reforma da filologia será a reforma
promovida por Wolf. Nietzsche irá revisar os mesmos pontos que Wolf enfrenou para
imprimir suas mudanças na Filologia, a saber, uma recodificação 108 global da disciplina, a
importância na questão da Bildung e uma polêmica com o idealismo moral do classicismo.
Sendo que este ultimo ponto irá funcionar duplamente em Nietzsche, primeiro na sua
habilitação do dionisismo pré-classico e segundo no ataque ao idealismo que mascara os
problemas hermenêuticos de recepção dos textos antigos.
107
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos (1869-1874), 5[45] p.131
108
O termo “recodificação” é usado de maneira consciente, porque se aceitarmos que Nietzsche articula em
grande medida lugares comuns da filologia do seu tempo, também nisto ele parece imitar a tática de Wolf, que,
como vimos, não parece ser original na substância de suas teses (como comentam Grafton e Turner) e sim no
modo como as fez ganhar capilaridade no meio acadêmico.
35
3. CONCLUSÃO
Mas, mais que estas verificações, a narrativa da filologia se valoriza pelo agregado de
questões que ela é capaz de trazer para uma leitura global de Nietzsche, por mais frágil que
possa ser a noção de leitura global de um autor tão fragmentário como Nietzsche. E talvez
seja justamente esse problema que se beneficie. Porque se olharmos atravéz dos impasses tão
jovens na linha de pensamento de Nietzsche, talvez ai esteja uma chave hermenêutica para
redimensionar os seus comprometimentos retóricos, ou seja, talvez, na questão da filologia,
esteja a chave para o entendimento das estratégias retóricas de Nietzsche, seu caráter
fragmentário, agonístico, autocontraditório, performático, em outras palavras – arruinado.
históricas de Nietzsche, mas também de revelar algumas hipóteses sobre suas consequências.
Não sabemos se estas hipóteses são corretas, tampouco sabemos se elas são minimamente
aceitáveis, o que parece estar mais do que provado é que definitivamente o rigor filológico
que por acidente reproduzimos, enriqueceu decididamente minha formação, provando que
Nietzsche e a tradição da filologia alemã está correta em associar a disciplina da leitura ao
crescimento humano.
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