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Pancadaria revolucionária: dúvidas sobre a pobreza em Guarnieri e Plínio Marcos

ficha de leitura por João Victor Martins Castello

O que há de diferente entre os pobres de Guarnieri, em ​Eles não usam black-tie,​ e os


pobres de Plínio Marcos, em ​Dois perdidos numa noite suja?​ Tentarei aqui, superficialmente,
delinear o tema a partir de minhas impressões, ainda quentes da leitura recém acabada.
Acho que uma boa saída pra essa conversa é notar a forma como a violência
mostra-se em ambos os casos. Em ​Black-tie​, há pouquíssima menção direta à violência.
Temos lá uma sugestão de que Otávio apanhou na cadeia, que ele busca negar, bancando o
machão na frente da família. Já em ​Dois perdidos​, cruzes. Apesar de não ser um Rubem
Fonseca, Plínio Marcos nos traz uma crueldade hostil. Na peça dele, é a violência que dá as
cartas, mesmo aparecendo diretamente só duas vezes (briga no início e morte do Paco, no
fim). A condição de ser pobre está diretamente ligada à condição de submergir-se em
violência. Mas, espere um pouco: ​Black-tie ​é uma peça de 1959, ​Dois perdidos​, de 1966.
Como podem estas peças terem apenas 7 anos de diferença, mas já retratarem a pobreza de
forma tão diversa? Vamos investigar isso.
Acho que muito deve-se ao fato do escopo dessas peças. ​Black-tie há em seu universo,
como que regendo todos os acontecimentos da trama, o embate entre horizonte sindicalista e
ascensão ao centro. Trair a classe trabalhadora? Entrar no jogo do capital? A peça não está
tão preocupada assim em evidenciar a realidade de uma família pobre, quer antes evidenciá-la
de forma a inseri-la na lógica do conflito que enlaça sua narrativa. De qualquer maneira, para
o cenário do momento, foi bastante revolucionário enxergar o pobre no palco, e antes da
tomada do poder pelos militares em 64, era difícil imaginar a condição de pobreza como uma
condição separada da esperança pela revolução, da organização sindical, da luta dos
trabalhadores. Era um momento de efervescência, nesse sentido. Para quê, então, deixar a
violência ocupar local de destaque neste debate? Depois do golpe, isso vai mudar um pouco.
Teremos, ainda no Teatro de Arena, como pontua Schwarz em ​Cultura e política: 1964-1967
(páginas 93-96 da edição “O pai de família e outros ensaios”, da Companhia das Letras), uma
produção cultural voltada a fomentar o debate revolucionário, reafirmando a importância da
organização proletária dentro da esquerda, mas que, na realidade, de revolucionária não tinha
nada, não passando de ​“símbolo vendável da revolução”,​ sendo que, aos espetáculos, ​“não
comparecia a sombra de um operário”​. Se não me engano, ele cita como exemplo as peças
Opinião​, do Boal, e ​Zumbi​. É interessante que o modelo de teatro boaliano, encabeçado pelo
Teatro do Oprimido, de bases brechtianas, tem o propósito revolucionário sempre presente
em seu horizonte. Tenho que ler ou assistir essas peças para melhor entender o ponto do
Schwarz com ​“símbolo vendável de revolução”.​ Mas de volta ao ponto:
Em ​Dois perdidos nem se fala em revolução. Tenho certeza que para qualquer um dos
personagens as ideias marxistas seriam, ao primeiro momento, motivo de piada. Isso prova,
talvez, que Plínio Marcos derive de um galho diferente da tradição literária, que seja fruto de
uma geração já com a flecha apontada para outro lugar. Aí a violência ganha lugar, e rouba o
show. Por mais que os personagens, às vezes, deem lugar para uma comicidade, no fundo há
uma estrutura de respeito que, em último recurso, é mantida na base da pancadaria. O pobre
Tonho é caçoado ao ponto de matar, de tanto ter sido taxado como bichona. Ou seja, por não
ter validado o sistema onde o respeito se garante a partir da violência. Tivesse ele ao menos
saído no soco com o negrão, as coisas seriam diferentes. Em outras palavras, a sobrevivência,
o direito à propriedade, o mínimo respeito, só é assegurado não na vitória, mas na
predisposição ao lutar. E tudo isso é fruto da condição de miséria. Devo me perguntar: na
lógica força revolucionária ​vs ​repreensão militar, onde entra ​Dois perdidos​? Se não outra
coisa essa obra, dentro do contexto onde é produzida, me mostra a complexidade que a
produção cultural de um período pode ter. Nem sempre ela sai só de um lugar. Nem sempre
ela obedece à lógica vigente.
Por fim, acho que esse é um exercício muito interessante. A maneira como a violência
materializa-se na forma dessas duas obras (em Guarnieri, de canto, sugerida; em Plínio,
núcleo da obra) diz muito sobre o caldo cultural de cada um desses objetos. Porém, terminada
a leitura, ficam diversas dúvidas, que espero responder com mais leituras. Da onde sai essa
narrativa urbana, violenta, crua, em um contexto de ditadura fascista? Em um período onde a
produção de esquerda, preocupada (mesmo que com seus tropeços, como alega Schwarz) em
responder à repreensão, protagoniza o cenário literário, de onde retira forças essa literatura
mais emancipada do fenômeno ditatorial, onde não há horizonte revolucionário e tampouco
alegorias que tecem críticas aos militares? Colocando Guarnieri antes dele na cronologia,
Plínio Marcos parece alguém sem antecedentes. Porém, algo me diz que de onde bebe Plínio
Marcos, bebe também Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca. Enfim, a leitura foi excelente por
causa disso: respondeu dúvidas e fez surgirem novas. Vamos acumular pra tirá-las, então.
Volto no próximo seminário, com mais dúvidas.

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