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O jardineiro aguava as roseiras quando encontrou o crânio. Uma cabaça amarelada, feita
de placas cosidas umas às outras, reluzindo sob a luz tênue da manhã. De longe, parecia
um cogumelo, uma coisa bonita que havia crescido durante a noite, na grama em frente
ao hotel. Ou uma bola. Ou uma pedra. Mas era um crânio. Humano. Com uma imensa
mandíbula que se projetava para frente, pronta para abocanhar a canela de algum
transeunte. Valha-me, Deus! Minha Nossa Senhora! O homem jogou longe a
mangueira.
Ninguém podia mexer até que a polícia chegasse. E a polícia demorou séculos. Tempo
para que conjecturas fossem feitas, hipóteses fossem levantadas, para que as pessoas se
benzessem e orassem pela alma do indigente. Era um viciado em drogas. Uma
prostituta. Um pivete, talvez, a depender da idade. Com certeza, gente que não presta,
porque aquela era uma região tomada por vagabundos. Outros apostaram em magia
negra. Vingança. Briga com vizinho. Suicídio, não sei como, mas nunca se sabe.
Problema de herança. E o crânio lá, quieto. Autista. Indiferente ao burburinho, às idas e
vindas dos empregados do hotel que não sabiam o que fazer para manter a prova do
crime intacta.
Para espantar os insetos, o gerente abanava o crânio com um lenço bordô. Petelecou
uma joaninha que caminhava sobre o osso parietal no instante em que os peritos
chegaram. O chefe da polícia não gostou. O senhor sabe que não pode tocar a prova?
Mas não toquei, eu só estava… Não interessa. Afastaram o povo. Cercaram o crânio,
num raio de quatro metros, com uma fita amarela e preta, cinematográfica, POLICE
LINE DO NOT CROSS, algo assim, só que em português. Depois foi aquele monte de
bundas para cima, acompanhadas de joelhos no chão, olhos, lupas, luvas de látex e
pincéis que vasculharam cada polegada, cada milímetro cúbico do crânio.
O chefe ensacou a peça. Um saco de plástico transparente, igual aos que guardamos
batatas no supermercado. O crânio ficou brilhando ali dentro, feito um legume exótico,
pesado. A imprensa já estava no local. Repórteres se digladiaram em busca da melhor
imagem, da descrição precisa da cena, do impacto. Àquela altura, mais gente se
apinhava para ver. Câmeras compactas, celulares, selfies. No Facebook, a notícia corria
rica em adjetivos e expressões de indignação. Horrível. Monstruoso. Inadmissível. Até
quando? A culpa é do PT. Os peritos, abrindo caminho por entre os jornalistas, levaram
o saco embora. Apenas o chefe falou por eles: Ainda é cedo pra afirmar qualquer coisa.
Vamos prosseguir com as investigações. Mas tudo indica que esse crânio não é de
alguém que morreu por esses dias.
E por que o senhor jogou o crânio no jardim do hotel? O homem explicou que, por se
tratar de uma zona de meretrício, frequentada por gente bizarra, talvez alguém se
interessasse pelo objeto. Dava pena botar no lixo. Esdrúxulo. O delegado mandou que
trouxessem a prova. Um policial enluvado entrou na sala e pôs o crânio na mesa, sobre
uma flanela azul. As órbitas nuas, os dentes grandes, rachados. Difícil acreditar que era
de uma pessoa que viveu e viu e andou. O senhor sabe a quem pertenceu essa caveira?
Não sei, mas deve ser de soldado, né? O seu pai não escreveu nada a respeito? Não que
eu saiba. E o senhor acha que o soldado era amigo ou inimigo? Ah, doutor, não faço
ideia. Mas tem cara de amigo, não tem? O delegado ajeitou os óculos, olhou para o
crânio, olhou demorado, e acabou achando que ele sorria um pouquinho.