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A Transversalidade

do Conhecimento Científico
Grão Chanceler
Dom Washington Cruz, CP

Reitor
Prof. Wolmir Therezio Amado

Editora da PUC Goiás

Pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa e Presidente do Conselho Editorial


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Coordenadora Geral da Editora da PUC Goiás


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Conselho Editorial
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Profa. Dra. Márcia de Alencar Santana – PUC Goiás
Maria Luiza Ribeiro – Presidente da AGL
Profa. Dra. Regina Lúcia de Araújo – Pesquisadora
Prof. Ms. Roberto Malheiros – PUC Goiás
Marlene Castro Ossami de Moura • Sibeli Aparecida Viana
ORGANIZ ADORAS

A Transversalidade
do Conhecimento Científico
UMA EXPERIÊNCIA DE 40 ANOS EM PESQUISA

Goiânia, GO - 2013
© 2013 by
Marlene Castro Ossami de Moura
Sibeli Aparecida Viana
(Org.)

Editora da PUC Goiás


Rua Colônia, Qd. 240C, Lt. 26-29
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Revisão
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Editoração Eletrônica

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Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GO, Brasil

T772 A Transversalidade do Conhecimento Científico: uma experiência de 40 anos


em pesquisa / Marlene Castro Ossami de Moura, Sibeli Aparecida Viana, or-
ganizadoras;
Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2013.
238 p.: il.; 21 cm

ISBN 978-85-7103-833-2

1. Antropologia. 2. Arqueologia. I. Ossami de Moura, Marlene Castro


(Org.). II. Viana, Sibeli Aparecida (Org.). IV. Título
CDU: 39 (817.3)
572 (817.3)

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por qualquer meio sem a autorização prévia e por escrito dos autores. A violação dos Direitos Autorais
(Lei n.º 9610/98) é crime estabelecido pelo artigo 48 do Código Penal.

Impresso no Brasil
SUMÁRIO

Apresentação.......................................................................................................................... 07
Introdução.............................................................................................................................. 11

• PARTE UM •

1 A Abordagem Ambiental na Pesquisa Arqueológica


do IGPA de 1972 a 2012........................................................................................... 25
Julio Cezar Rubin de Rubin
Maira Barberi
Rosiclér Theodoro da Silva
Altair Sales Barbosa

2 LEITURAS MÚLTIPLAS DA PAISAGEM E A INTERFACE
COM O TURISMO........................................................................................................ 49
Eliane Lopes Brenner

• PARTE DOIS •

3 TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE


DO ESTADO DE GOIÁS............................................................................................. 73
Antoine Lourdeau

4 GOIÁS NA ROTA (INVERTIDA) DO TEMPO: OCUPAÇÕES EM SÍTIOS


ARQUEOLÓGICOS LITOCERÂMICOS................................................................. 97
Sibeli Aparecida Viana
Ludimília Melo Vaz
Ernesto Camelo de Castro
Maria do Socorro S. Barbosa
• PARTE TRÊS •

5 TERRITÓRIOS TRADICIONAIS: ARGUMENTOS LEGAIS


E ANTROPOLÓGICOS.....................................................................................................155
Roque de Barros Laraia

6 O TERRITÓRIO COMO AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE TAPUIA.............161


Marlene Castro Ossami de Moura

7 AO ENCONTRO DO OUTRO: A CULTURA INDÍGENA NA ESCOLA........181


Lêda Teresinha da Costa Bandeira

• PARTE QUATRO •

8 CINEMA DOCUMENTAL E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL........................... 193


Luiz Eduardo Jorge

9 GESTÃO DE ACERVOS AUDIOVISUAIS: O MUNDO DIGITAL....................211


Fernanda Elisa Costa Paulino e Resende
Teder Muniz Morás

sumário

6
3

TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS


NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

Antoine Lourdeau 1

A  área arqueológica de Serranópolis, no sudoeste de Goiás, é uma das primeiras


regiões investigadas pelos pesquisadores do Instituto Goiano de Pré-história e
Antropologia. As intervenções arqueológicas ali realizadas permitiram obter dados
sobre as ocupações humanas no Planalto Central do final do Pleistoceno ao Holoce-
no recente e forneceram informações importantes para o entendimento dos primeiros
povoamentos no centro e nordeste do Brasil. Será apresentado, aqui, um novo estudo
do material lítico oriundo do principal sítio da área, o abrigo GO-JA-01, baseado sobre
uma análise tecnofuncional dos artefatos, discutindo-se os resultados e suas implica-
ções no contexto regional.

Histórico das pesquisas

As primeiras pesquisas no sudoeste do Estado de Goiás foram realizadas pelos


membros do Programa Arqueológico de Goiás, sob coordenação de Pedro Ignácio
Schmitz. Criado no início dos anos 1970, nos primeiros anos de existência do Insti-
tuto Goiano de Pré-história e Antropologia, com uma parceria entre a Universidade
Católica de Goiás, o Instituto Anchietano de Pesquisas e a Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, o programa contribuiu para a criação do primeiro quadro de referência
arqueológica do Estado.
As intervenções iniciaram no sudoeste de Goiás, em 1975. Informados da pre-
sença de sítios arqueológicos no vale do Rio Verde, afluente do Rio Paranaíba, em
Serranópolis (figura 1), os pesquisadores começaram as prospecções e escavações na
região. A área se revelou rica em abrigos sob rocha com registros rupestres (pinturas
1 Doutor em Arqueologia, professor e pesquisador da UFPE/Departamento de Arqueologia – Recife/PE.
E-mail: <antoine.lourdeau@ufpe.br>

73
e gravuras). Em alguns meses, várias dezenas de sítios tinham sido cadastradas. Em
13 deles, foram realizadas sondagens exploratórios de alguns metros quadrados, que
proporcionaram uma quantidade considerável de vestígios arqueológicos. Entre 1978
e 1980, o grande abrigo GO-JA-01 foi objeto da intervenção mais importante dos sítios
da região. Uma escavação extensa foi efetuada em uma superfície de 40 m² e atingiu
uma profundidade de quase 2 m. As últimas sondagens, em Serranópolis, foram efe-
tuadas em 1999, pelos mesmos pesquisadores.

Figura 1: Mapa de localização da área arqueológica de Serranópolis (GO).


ANTOINE LOURDEAU

No total, quase quarenta sítios foram encontrados durante estes trabalhos de


campo, em Serranópolis, dentro dos quais, 27 proporcionaram material arqueológico,
na superfície ou nas escavações. Os resultados destas pesquisas encontram-se publica-
das em numerosos artigos e livros (Schmitz, 1976, 1978a, 1978b, 1980, 1981, 1986,

74
1987, 1999, 2002a, 2002b, 2005; Schmitz et al. 1977, 1989, 1997, 2004). Em síntese,
do ponto de vista dos vestígios encontrados nas prospecções e escavações, três grandes
fases cronológicas foram definidas por P. I. Schmitz: um primeiro período, chamado
fase Paranaíba, acerâmico, caracterizado, dentro da indústria lítica, pela produção de
numerosas peças façonadas unifacialmente, chamadas lesmas; um segundo período,
chamado fase Serranópolis, também acerâmico, no qual a indústria lítica fica ainda
mal definida, composta de lascas e instrumentos pouco retocados; um terceiro perí-
odo, a fase Jataí, correspondendo a grupos ceramistas. Estas três fases foram datadas
entre 11.000 e 8.500 AP, não calibrado para a fase Paranaíba, entre 9.000 e 6.000 AP
não calibrado para a fase Serranópolis, e entre 1.500 e 900 AP, não calibrado para a
fase Jataí (quadro 1).
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

Sítio Corte/ Nível Data AP Fase


C. I-II niv. 2 915±75 Jataí
C. I-II niv. 5 8740±90 Paranaíba
C. I-II niv. 8 10400±130 Paranaíba
Esc. camada Bsup. 925±60 Jataí
Esc. camada B inf. 6690±90 Serranópolis
Esc. camada C 7395±80 Serranópolis
Esc. camada D 7250±95 Serranópolis
GO-JA-01
Esc. camada D 7420±80 Serranópolis
Esc. camada F 8915±115 Serranópolis
Esc. camada G 8805±100 Serranópolis
Esc. camada H 9020±70 Serranópolis
Esc. camada J 9060±65 Paranaíba
Esc. camada M 10580±115 Paranaíba
Esc. camada Q 9510±60 Paranaíba
C. I niv. 7 9195±75 Serranópolis
GO-JA-02
C. I niv. 9 10120±80 Paranaíba
C. I niv. 3 1000±75 Jataí
GO-JA-11
C. I. niv. 7 1350±75 Jataí
Quadro 1: Datas radiocarbônicas
C. IV niv. 7 5720±50 Serranópolis
GO-JA-03 obtidas nos abrigos de
C. IV niv. 10 9765±75 Paranaíba
Serranópolis (Schmitz et al.
C. I niv. 6 8370±75 Paranaíba 2004). Todas as datas são expressas
GO-JA-26
C. I niv. 6 8880±90 Paranaíba sob a forma “antes do presente,
GO-JA-14 C. I niv. 10 10740±85 Paranaíba não calibrado”.

Trata-se, aqui, somente do momento mais antigo de ocupação da região, qualifi-


cada por P. I. Schmitz de fase Paranaíba. Por suas características técnicas, a indústria
produzida neste período foi relacionada a um conjunto técnico extra-regional chamado
“tradição Itaparica”. Esta noção de tradição Itaparica será discutida no fim do capítulo.

75
A escavação do sítio GO-JA-01

O abrigo GO-JA-01 é o maior sítio da área, que foi objeto da escavação mais exten-
sa e que proporcionou a maior quantidade de material arqueológico. Assim, concentra-­
se o estudo do material neste sítio específico. Trata-se de um abrigo localizado ao sopé
de uma parede de arenito exposta ao noroeste (figura 2).
Duas etapas de pesquisas foram realizadas pelos membros do Programa Arqueo­
lógico de Goiás. Durante a primeira, entre 1975 e 1976, duas sondagens (I/II e III)
foram abertas. A sondagem I/II é situada no centro do abrigo e corresponde à qua-
drícula 28D e à metade da quadrícula 28E da quadriculagem geral2. A sondagem III
encontra-se no fundo do abrigo, nas quadrículas 40I e 40J (figura 3).

Figura 2: Vista geral do abrigo


GO-JA-01, em Serranópolis – GO.

Fonte: Acervo do IGPA/PUC Goiás

Considerando os bons resultados das sondagens, foi realizada, entre 1978 e 1980,
uma escavação maior, de 40 m², na parte sudoeste do abrigo, nas quadrículas 12H, 12I,
14H, 14I, 16H, 16I, 18H, 18I, 20H e 20I (figura 3 e 4). O material, aqui estudado, provém
desta escavação.
A intervenção atingiu uma profundidade de quase 2 m em todas as quadrículas,
exceto na 12I, onde um grande bloco impediu a continuação da escavação, além de
algumas dezenas de centímetros de profundidade. A estratigrafia, apesar de lenticular,
ANTOINE LOURDEAU

é bastante clara. Compõe-se de 17 camadas, nomeadas de A a Q (figura 5). Estas são


compostas, principalmente, por um sedimento arenoso, oriundo da erosão progressiva

2 A quadriculagem geral do abrigo foi feita a partir de quadrículas de 2x2m. Estas foram referenciadas por números
pares de 0 a 58 no sentido do comprimento e por letras de A a N no sentido da largura (figura 3).

76
da parede e do teto de arenito do abrigo. A areia é misturada com cinza e pedaços de
carvão em todas as camadas, porém, em proporções variáveis.
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

Figura 3: Planta geral de GO-JA-01 (SCHMITZ et al. 2004, fig. 15, modificada).

Figura 4(a)
Cenas de escavação do abrigo GO-
JA-01, entre 1978 e 1980.

77
Figura 4 (b): Cenas de escavação do
abrigo GO-JA-01, entre 1978 e 1980.
Fonte: Acervo do IGPA/PUC Goiás

Figura 5: GO-JA-01. Perfil estratigráfico sul da escavação (SCHMITZ et al. 1989, fig. 8, modificada).

A distinção das camadas é possível graças às diferenças de cor, de consistência e


de composição do sedimento (figura 6). Dois grandes conjuntos podem ser definidos:
camadas claras (rosadas, cinzento claro ou bege), compactas e com pouco carvão e
bastante pedras caídas do teto; e camadas escuras (marrom ou cinzento escuro), com
ANToiNE LourDEAu

sedimento mais frouxo, ricas em carvão e em outros restos vegetais. Estes dois fácies
sedimentares alternam-se ao longo da sequência. As camadas B superiores, C, E, G, K
são claras e compactas, enquanto as camadas B inferiores, D, F, HI, J, L, M são mais
escuras e menos homogêneas. Esta diferença pode explicar-se pelas condições de de-

78
pósito das camadas, em ambiente relativamente úmido, para as primeiras, e mais seco
para as segundas (SCHMITZ et al. 1989, p. 140-143). Depois da camada Q, o sedimento
é arenoso, de cor vermelho e compacto. Alguns centímetros deste sedimento profundo
foram escavados, sem encontrar vestígios de origem humana. A estratigrafia encontra-
se localmente perturbada por atividades antrópicas. Várias fossas foram cavadas (figu-
ra 5), algumas delas com um objetivo sepulcral.
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

Figura 6: Abrigo GO-JA-01. Vista


da quadrícula 20I na base do
décimo nível artificial. Podem-
se perceber concentrações de
material e diferenças de cor do
sedimento na área de escavação e
no perfil.

Fonte: Acervo do IGPA/PUC Goiás

Observando o perfil sul da escavação, as camadas parecem bastante horizontais


(figura 5). No entanto, existe uma declividade evidente em relação ao eixo perpendicu-
lar a este perfil. As camadas vão afundando à medida que entram no abrigo.
A estratigrafia de GO-JA-01 é bem documentada nas publicações, mas a escava-
ção não foi feita seguindo as camadas reconhecidas. O método de campo utilizado foi
baseado no princípio dos níveis artificiais horizontais (figura 6). As quadrículas foram
escavadas por faixas de 10 cm de espessura, sem tomar em consideração as mudanças
de sedimento. Sendo assim e considerando a declividade natural das camadas, não é
possível associar exatamente o material encontrado a uma camada específica. Um mes-
mo nível pode recortar várias unidades estratigráficas naturais, e conter, então, ma-
terial arqueológico de períodos diferentes. Cabe salientar, no entanto, que no final de
cada decapagem de 10 cm, os pesquisadores desenharam uma planta de distribuição do

79
material quadra por quadra, representando as peças principais e os limites entre cama-
das naturais. Isso permitiu associar estas peças as camadas nas quais se encontravam.
Foi assim que P. I. Schmitz notou que as peças façonadas unifacialmente somente en-
contravam-se das camadas Q a F, e os vestígios cerâmicos nas camadas A e B superior.
Tendo em vista a proposta deste capítulo, que é de estudar os primeiros momentos
de ocupação da região, somente analisa-se, aqui, o material oriundo do conjunto antigo
da estratigrafia, ou seja, as camadas Q a F. As peças posicionadas e identificadas nas plan-
tas correspondem a uma minoria dos artefatos achados. Trata-se, para estas camadas, de
peças façonadas unifacialmente. A maior parte das lascas retocadas ou não e dos núcleos
está localizada por nível artificial, sem possibilidade de associação a camadas naturais.
Assim sendo, o material estudado teve que ser separado em função dos níveis arti-
ficiais. Baseando-se sobre a divisão em três períodos de P. I. Schmitz, três conjuntos de
níveis artificiais foram distinguidos para cada quadrícula: os níveis com artefatos líticos
e cerâmicos; os níveis sem cerâmica e, no material lítico, ausência de peças façonadas
unifacialmente; e os níveis com artefatos líticos, dentro dos quais se encontram as peças
façonadas unifacialmente. Assim, foi possível montar o diagrama seguinte (figura 7).

ANTOINE LOURDEAU

Legenda: (a) níveis com artefatos líticos e cerâmicos; (b) níveis com artefatos líticos, sem peça façonada
unifacialmente; (c) níveis com artefatos líticos, dentro dos quais peças façonadas unifacialmente (o material da
quadrícula 12I, pouco escavada, não foi estudado).

Figura 7: Repartição do material arqueológico nos níveis artificiais de cada quadrícula da escavação
de GO-JA-01.

80
Indústria lítica do sítio GO-JA-01

Apresentação geral

O material analisado corresponde à totalidade das peças façonadas unifacialmen-


te, assim como a todos os outros artefatos líticos (núcleos, instrumentos, lascas) encon-
trados nos mesmos níveis artificiais que as referidas peças, localizadas em cada qua-
drícula (níveis alaranjados na figura 7). Tal procedimento, o mais adaptado ao presente
contexto de escavação, apresenta limites evidentes. Não se pode, por exemplo, associar
os artefatos às camadas. A totalidade das peças associadas ao conjunto antigo (fase
Paranaíba) teve que ser estudada como um todo. Assim, a abordagem da diacronia
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

interna deste período é, de fato, impossível. Existe, também, uma ambiguidade quanto
aos níveis intermediários, entre as fases Paranaíba e Serranópolis. Estes apresentam,
necessariamente, peças das duas fases, sem distinção possível. O corpus do estudo pode
conter, então, alguns instrumentos, núcleos ou lascas da fase Serranópolis. Tenta-se
reduzir esta dificuldade, evitando basear nossas interpretações sobre peças isoladas
e preferindo raciocinar a partir de conjuntos técnicos consistentes, grupos de objetos
produzidos pelos mesmos esquemas operatórios e/ou tendo as mesmas características
tecnofuncionais.
Nos sedimentos das camadas inferiores do sítio GO-JA-01, os vestígios líticos
eram muito numerosos. Um total de quase 40.000 peças foi encontrado, dentro dos
quais mais de 98% são lascas (quadro 2).

Quadro 2: GO-JA-01. Número de peças nas grandes categorias


de vestígios líticos nas camadas associadas à fase Paranaíba.
Instrumentos Núcleos Lascas Total
517 27 38.899 (*) 39.443
(*) Segundo as contagens publicadas em Schmitz et al. 2004.

Os instrumentos, 517 no total, correspondem a somente 1,3% do total. Eles po-


dem ser divididos em três grandes categorias: as peças façonadas unifacialmente, os
instrumentos sobre lasca (lascas retocadas não façonadas), e os instrumentos maciços
(com tamanho e peso importantes, geralmente produzidos sobre plaquetas naturais
de arenito). A primeira categoria, as peças façonadas unifacialmente, constitui uma
maioria evidente dos instrumentos, enquanto que os instrumentos maciços são muito
mais raros (quadro 3).

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Quadro 3: GO-JA-01. Número de peças nas grandes categorias
de instrumentos líticos nas camadas associadas à fase Paranaíba.
Peças façonadas Instrumentos Instrumentos
Total
unifacialmente sobre lasca maciços
377 123 17 517

O material analisado corresponde à totalidade das peças façonadas unifacialmen-


te (inteiras e fragmentadas), dos instrumentos sobre lasca e dos núcleos. Tendo em
consideração o número muito alto de lascas, somente serão estudadas as lascas oriun-
das da quadrícula 20H, zona onde as camadas naturais eram bastante horizontais,
limitando, assim, a distorção da sequência arqueológica causada pela escavação por
níveis artificiais.

As peças façonadas unifacialmente

Estes artefatos são muito numerosos em GO-JA-01. Correspondem a um total de


377 instrumentos, inteiros ou fragmentados. Esta grande concentração permite abor-
dar a variabilidade destes artefatos.

Estrutura volumétrica

As peças façonadas unifacialmente são alongadas e simétricas em relação ao


eixo longitudinal. A estrutura é constituída de duas faces assimétricas: uma face
plana oposta a uma face não plana. A face plana é um elemento fundamental desta
estrutura. Corresponde, geralmente, a uma face inferior de lasca e nunca se encontra
modificada por retiradas posteriores. A face não plana apresenta uma variabilidade
muito maior, tanto no perfil da peça como na seção transversal. Existem três catego-
rias de perfis:

• o perfil simétrico de tipo 1, pelo qual a espessura é invariável ao longo da peça

• o perfil simétrico de tipo 2, onde a espessura máxima encontra-se no meio da peça e


ANTOINE LOURDEAU

diminui nas duas extremidades.

• o perfil assimétrico, onde uma metade da peça é nitidamente mais espessa do que a
outra.

82
A seção transversal pode ser triangular, trapezoidal ou semicircular.
A partir das dimensões e das categorias de perfis, duas grandes categorias de
estruturas volumétricas podem ser definidas. A categoria volumétrica A corres-
ponde a peças com perfil simétrico de tipo 1. As dimensões variam de 4,5 a 15 cm
de comprimento, 2 a 7 cm de largura e 1 a 4,5 cm de espessura. A média do índice
comprimento/espessura se aproxima de 5. A categoria volumétrica B é composta de
peças com perfil assimétrico ou simétrico de tipo 2. As dimensões variam de 4,5 a
11 cm de comprimento, 2 e 6 cm de largura, e 2 a 4,5 cm de espessura. A média do
índice comprimento/espessura é de 2,5, ou seja, a metade do valor calculado para
as peças de categoria volumétrica A. Assim, com espessura constante, as peças de
volume B são tendencialmente duas vezes mais curtas que as peças de volume A.
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

As secções transversais não parecem ligadas às dimensões das peças. Os três tipos
de secção encontram-se com as mesmas proporções nas duas categorias técnicas.

Estrutura tecnofuncional

A característica mais evidente da estrutura tecnofuncional das peças façonadas uni-


facialmente é a existência sistemática de uma parte transformativa, um gume, em uma das
extremidades destas peças alongadas. Esta parte transformativa é geralmente finamente
retocada e é simétrica em relação ao eixo longitudinal do instrumento. A parte preensiva
correspondendo a esta parte transformativa é localizada na metade oposta, geralmente na
zona mais espessa da peça. Marcas macroscópicas de uso, como esmagamentos e lustres
nesta metade basal das peças sugerem que no mínimo uma parte das peças façonadas
unifacialmente era encabada, de maneira simétrica ao eixo longitudinal da ferramenta.
Apesar destas características comuns, existe uma variabilidade tecnofuncional evi-
dente das peças façonadas unifacialmente. Em primeiro lugar, as partes transformativas
na extremidade apresentam propriedades muito variáveis. Em termos de delineação,
existem gumes arredondados, pontiagudos ou, mais raramente, transversais retilíneos.
As superfícies e os ângulos que definem os planos de secção são, também, variados.
Quanto às superfícies, os casos mais comuns são os planos de secção com a superfície
inferior plana e a superfície superior plana ou convexa. Em função dos ângulos, diferen-
ciam-se dos grandes conjuntos de partes transformativas: um grupo com ângulos entre
55° e 75° e outro onde os ângulos medem de 30º a 50°. A partir de todos estes critérios de
descrição das partes transformativas de extremidade, definem-se 15 tecnotipos diferen-
tes. Esta grande variabilidade implica uma diversidade de funções destas ferramentas.

83
ANTOINE LOURDEAU

Figura 8: Peças façonadas unifacialmente de GO-JA-01. Exemplos de peças ferramenta com


localização, delineação e plano de secção da parte transformativa.

84
Além da diversidade interna das partes transformativas apicais, existe uma variabi-
lidade da própria estrutura tecnofuncional das peças façonadas unifacialmente. O estudo
aprofundado destes artefatos permite distinguir dois grupos de peças façonadas unifacial-
mente: as “peças ferramenta” e as “peças suporte-de-ferramentas” (Boëda, 1997, 2001).
As “peças ferramenta” (figura 8) são artefatos concebidos como uma ferramen-
ta única, com características determinadas: o artefato é a ferramenta. O projeto fun-
cional final está inscrito desde o início da cadeia operatória de produção. Todos os
elementos destes artefatos são integrados e a estrutura obtida é destinada a suportar
somente uma ferramenta, de um tipo específico. A morfologia e o volume são in-
timamente relacionados à funcionalidade da ferramenta. Os retoques se limitam a
completar as características já instaladas durante a fase de façonnage unifacial. As
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

peças façonadas unifacialmente desta categoria apresentam um volume produzido


de maneira a suportar somente uma parte transformativa apical. Trata-se, geral-
mente, de peças pouco alongadas, cujos lados convergem na parte apical. As duas
grandes categorias volumétricas A e B estão representadas. A parte transformativa
abrange geralmente uma metade do artefato, enquanto a outra metade tem pro-
priedades ligadas à preensão da ferramenta. A disposição relativa das partes trans-
formativa e preensiva destas peças sugere um modo de preensão efetuado, muito
provavelmente, seguindo o eixo longitudinal da peça. A variabilidade das carac-
terísticas volumétricas e técnicas permite distinguir 8 grupos tecnofuncionais de
peças ferramenta. Estes apresentam toda a variabilidade volumétrica possível das
peças façonadas unifacialmente, pois encontram-se, nesta categoria, quatro grupos
tecnofuncionais de volume A e quatro grupos de volume B. Assim, as peças façona-
das unifacialmente de tipo “peça ferramenta” correspondem a uma única ferramen-
ta, com uma configuração geral estável, mas com um potencial funcional variável
de uma peça à outra.
As peças “suporte-de-ferramentas” correspondem a um suporte sobre o qual uma ou
várias ferramentas podem ser confeccionadas, contemporaneamente ou sucessivamente
(figura 9). O artefato é uma matriz. Um exame detalhado dos esquemas de confecção,
da delineação e dos planos de secção dos bordos, permitiu pôr em evidência a existência,
sobre certas peças façonadas unifacialmente, de outras partes potencialmente transfor-
mativas, além da parte transformativa, localizada na extremidade. Estas outras partes
transformativas podem localizar-se sobre um lado, sobre os dois lados e/ou sobre a outra
extremidade. As partes transformativas de extremidade apresentam uma variabilidade
análoga àquelas das “peças ferramenta”. As partes transformativas laterais, quando pre-

85
ANTOINE LOURDEAU

Figura 9: Peças façonadas unifacialmente de GO-JA-01. Exemplos de peças suporte-de-ferramentas


com localização, delineação e plano de secção das partes transformativas.

86
sentes, têm uma delineação retilínea linear, retilínea denticulada ou convexa linear. Seus
planos de secção apresentam ângulos abertos (de 50º a 70°), uma superfície inferior pla-
na e uma superfície superior plana, convexa ou côncava. Em termos de funcionamento,
isso implica que cada peça corresponde a várias ferramentas. A localização de cada parte
transformativa induz um modo de preensão específico: no eixo do artefato para as partes
transformativas de extremidade, ou no lado do artefato para as partes transformativas
laterais. As peças façonadas unifacialmente de tipo “peça suporte-de-ferramentas” são,
geralmente, mais alongadas que as “peças ferramenta” e seus lados são mais paralelos.
Tal morfologia oferece um espaço potencial para a instalação eventual de uma ou várias
partes transformativas laterais. Estas peças apresentam sempre um volume de categoria
A, ou seja, com perfil simétrico de tipo 1, que corresponde a uma homogeneidade da es-
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

pessura ao longo do artefato. Assim, o volume das “peças suporte-de-ferramentas” varia


menos que aquele das “peças ferramenta”. No entanto, as características volumétricas e
tecnofuncionais das peças façonadas unifacialmente “suporte-de-ferramentas” permitem
distinguir 9 grupos tecnofuncionais.

Esquemas de produção

As peças façonadas unifacialmente são produzidas a partir de uma grande lasca.


Depois da debitagem da lasca, a face superior desta encontra-se façonada em toda ou
quase toda a periferia do suporte. A face inferior nunca é modificada diretamente por
retiradas. A extensão do façonnage pode variar em cada peça. Os esquemas operatórios
de produção das peças façonadas unifacialmente são muito originais, caracterizados
pela complementaridade entre a fase de debitagem das lascas-suporte e a fase sucessiva
de façonnage unifacial.
A fase de produção das lascas-suporte é pouco conhecida porque não foi realizada
no interior do sítio, ou melhor, na área escavada do sítio. Não disponíveis os núcleos ou
os outros restos de debitagem que poderiam informar melhor sobre os métodos utili-
zados durante esta primeira fase da cadeia operatória. Pode-se somente deduzir alguns
elementos a partir das informações legíveis diretamente sobre as peças façonadas uni-
facialmente. Constata-se, assim, que as lascas-suportes desejadas pelos artesãos eram
de grandes dimensões, geralmente mais compridas do que largas e, o volume final do
artefato sendo já inscrito mais ou menos nitidamente nela. Os restos de talão e bulbo,
quando presentes, permitem determinar que estas lascas sempre foram debitadas por
percussão direta com percutor de pedra. A partir dos estigmas da face superior da

87
lasca-suporte ainda visíveis sobre a superfície dos artefatos, as peças façonadas unifa-
cialmente podem ser divididas em quatro grupos:
• Grupo I.A – onde os negativos anteriores ao façonnage formam uma superfície cen-
tral plana e paralela à face inferior
• Grupo I.B – onde os negativos anteriores ao façonnage formam uma superfície cen-
tral plana e oblíqua em relação à face inferior
• Grupo II – onde os negativos anteriores ao façonnage formam duas superfícies oblíquas
em relação à face inferior. A intersecção destas duas superfícies cria uma nervura lon-
gitudinal no meio da lasca, a qual serviu de nervura-guia no momento da debitagem
• Grupo denominado “Indeterminado” – onde nenhum negativo anterior ao façonnage
foi conservado sobre a face não plana do artefato.
A direção de lascamento dos restos de negativos anteriores à debitagem é geral-
mente difícil de determinar, visto que se trata de porções pequenas e planas de negati-
vos que eram inicialmente muito maiores. No entanto, quando é possível determinar
esta direção de lascamento, parece predominar o método unidirecional.
Quanto aos métodos de façonnage unifacial, três grandes modalidades podem ser
identificadas:
• Modalidade 1: somente a zona próxima dos bordos foi modificada por retiradas cur-
tas, geralmente sub-paralelas e dispostas em uma ou duas filas. A fase de façonnage
serve, aqui, somente a completar localmente as propriedades da face não plana, pro-
priedades que foram principalmente obtidas durante a fase de debitagem da lasca-
-suporte.
• Modalidade 2: a fase de façonnage unifacial foi efetuada por várias filas sucessivas de
retiradas produzidas a partir de cada lado. A organização dos negativos de retirada
corresponde em geral a uma configuração “em candelabro” (BOËDA, 2001; FOGA-
ÇA e LOURDEAU, 2008), que visa a uma regularização das superfícies por uma
diminuição da saliência das nervuras entre dois negativos. O papel do façonnage é
muito importante, aqui, porque modifica significativamente as características origi-
nais da face superior da lasca-suporte.
• Modalidade 3: pode ser considerada como uma “modalidade mista”, já que um lado
é preparado por retiradas curtas correspondendo à modalidade 1, e o outro lado por
ANTOINE LOURDEAU

várias filas sucessivas de retiradas mais longas, como na modalidade 2.

O façonnage é sempre realizado por percussão direta: o impacto foi produzido a


certa distância da borda da superfície percutida (“percussão interna”) ou perto desta

88
borda (“percussão marginal”). A escolha de uma ou outra técnica é ligada à intenção
de obter negativos mais ou menos marcados e contrabulbos mais ou menos cônca-
vos. A percussão interna está sempre associada à utilização de um percutor de pedra.
A percussão marginal pode ser praticada por um percutor de pedra branda ou por
um percutor de matéria orgânica. Em todas as coleções estudadas, encontram-se al-
gumas lascas de façonnage com “estilhaçamento bulbar”. Trata-se de um acidente de
lascamento descrito como característico da percussão com pedra branda (Pelegrin,
2000). Tais indícios sugerem que o façonnage das peças façonadas unifacialmente pode
ter sido efetuado com percutor de pedra.
Juntando as informações relativas às categorias de lasca-suporte utilizada, às
modalidades de façonnage e à estrutura volumétrica da peça façonada unifacialmen-
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

te desejada, podem-se definir os grandes esquemas operatórios de produção destes


artefatos. Parece não ter uma ligação peculiar entre categoria volumétrica (A ou B)
e esquema operatório. Contudo, é possível notar uma relação importante entre os
métodos de façonnage e as secções transversais das ferramentas finais. Os artefa-
tos com uma secção trapezoidal obtêm, desde a debitagem da lasca-suporte, um ele-
mento estrutural determinante: a superfície plana central. As operações de façonnage
posteriores são de modalidade 1. Existe, então, uma forte similaridade entre o volume
da lasca-suporte e o volume finalmente desejado para a ferramenta. Quando a sec-
ção é semicircular, ao contrário, a fase de façonnage ocupa um papel predominante
para a obtenção da estrutura final. Esta fase sempre modifica fortemente o suporte
original (usando a modalidade 2). As relações entre o suporte original e o volume
final desejado são mínimas. Para as estruturas com secção triangular, no que diz
respeito à importância das transformações do suporte durante o façonnage, tem-se
uma situação intermediária entre os dois casos precedentes. A modalidade 1 é uti-
lizada quando a lasca-suporte é de tipo II, assim como a modalidade 2 para façonar
integralmente a face não plana (a lasca-suporte é, então, “indeterminada”). Nota-se,
também, uma situação característica das peças com secção triangular: o façonnage
lateralmente diferenciado utilizando a modalidade 3 sobre lascas de tipo I.B. Assim,
a relação entre o suporte original e o volume final desejado é variável para as peças
com secção triangular.
O número de critérios estabelecidos respectivamente durante a debitagem e o
façonnage das peças façonadas unifacialmente varia, então, em função da distância
entre os critérios requeridos para obter a estrutura desejada e aquele já presente na
lasca-suporte.

89
Tempo de vida útil

Vários argumentos sugerem que a vida útil das peças façonadas unifacialmente
corresponde a um processo longo, durante o qual a peça original vai sofrer modifi-
cações mais ou menos importantes para conservar seu potencial funcional depois de
várias fases de uso. As evidências de reafiação das partes transformativas são nume-
rosas. Podem ser comprovadas, em particular, pelas lascas típicas produzidas durante
tais operações. Além das reafiações, as fraturas constituem um processo muito co-
mum de modificação das peças façonadas unifacialmente. Estas não resultam sempre
de uma ação intencional, mas, voluntárias ou acidentais, elas são tão numerosas que
deviam ser necessariamente tomadas em consideração nos esquemas de reaproveita-
mento das peças. Os casos de reuso, depois da fratura dos artefatos, que podem ser
observados pela realização de retiradas, posteriores à(s) superfície(s) de fratura, com-
provam esse fato.
Etapas de modificação maiores das peças façonadas unifacialmente ao longo de
sua vida técnica podem ser, também, observadas graças, entre outros, a diferenças de
pátina sobre uma mesma peça. Estas, mais que simples reafiações, podem alterar sen-
sivelmente a peça original, até chegar à sua exaustão. As coleções estudadas contêm,
efetivamente, uma quantidade significativa de peças “desnaturadas”, que foram tão
intensamente modificadas que perderam um ou vários elementos fundamentais da es-
trutura original. Muitas delas não apresentam mais, nos seus bordos, nenhuma parte
potencialmente transformativa. Essas peças desnaturadas permitem evidenciar dois
grandes esquemas de modificação: o esquema 1 consiste em retomadas repetidas nas
extremidades, conduzindo a uma diminuição do comprimento das peças; o esquema
2, mais raro, consiste em retomadas localizadas, preferencialmente nas partes laterais,
a peça conservando seu comprimento original, mas perdendo largura.
Assim, as peças façonadas unifacialmente fazem parte de um processo técnico
longo, durante o qual seus potenciais funcionais evoluem, bem como suas proprieda-
des estruturais.

Os instrumentos sobre lascas


ANTOINE LOURDEAU

Em GO-JA-01, 123 instrumentos sobre lasca foram encontrados nos mesmos ní-
veis que as peças façonadas unifacialmente. Trata-se de lascas retocadas, não façona-
das, ou seja, cujas características volumétricas originais foram preservadas.

90
Métodos de debitagem das lascas

Os núcleos encontrados no sítio apresentam dimensões muito reduzidas em rela-


ção às lascas-suportes das peças façonadas unifacialmente. No entanto, o tamanho deles
é coerente com as dimensões da maior parte dos instrumentos sobre lasca. Estes núcleos
provêm sempre de um sistema de lascamento simples, baseado sobre as características
naturais das superfícies de debitagem e visando a obter uma ou várias séries de lascas.
Não há preparação preliminar dos blocos, exceto, às vezes, uma abertura de planos de
percussão. Os critérios de convexidade necessários à realização da debitagem são ad-
quiridos na fase de seleção do bloco. São realizadas séries curtas, de 2 a 6 retiradas,
geralmente unidirecionais. A morfologia final dos núcleos pode variar em função do
PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

volume inicial e da intensidade de exploração do bloco, mas todos eles provêm de este
mesmo método de lascamento por séries unidirecionais, repetidas ou não sobre o bloco.
Existe, também, uma boa correlação entre as características técnicas das lascas ob-
tidas a partir dos núcleos (deduzidas a partir da leitura dos blocos) e as características
técnicas dos suportes de instrumentos sobre lasca.

Características tecnofuncionais

A funcionalização das lascas é realizada por uma confecção da parte transfor-


mativa e, às vezes, da parte preensiva do instrumento. Estas lascas não passaram por
uma fase de façonnage que teria modificado seu volume inicial. São poucos os casos de
suportes contendo mais de um instrumento. Em geral, somente uma parte transforma-
tiva encontra-se confeccionada em cada peça.
As características tecnofuncionais destas partes transformativas demonstram a
existência de potenciais funcionais variados. As delineações são lineares retilíneas, ou
levemente convexas, denticuladas retilíneas, côncavas, arredondadas ou pontiagudas.
No entanto, existe uma homogeneidade estrutural evidente destes artefatos. A maior
parte dos instrumentos sobre lasca é produzida sobre um suporte alongado, a parte
transformativa sendo confeccionada sobre um dos lados compridos e a parte preensiva
sendo localizada no lado oposto, geralmente composta por uma superfície relativa-
mente abrupta (figura 10). Outras categorias de instrumentos existem, como artefatos
alongados com parte transformativa na extremidade distal ou latero-distal, ou ainda
instrumentos sobre suporte não alongado, mas são minoritárias. Esta configuração im-
plica uma predominância do modo de preensão lateral dos instrumentos sobre lasca.

91
Pode-se também, salientar a ocorrência, dentro de alguns grupos tecnofuncio-
nais de instrumentos sobre lasca, de peças com plano de secção com ângulo bas-
tante fechado (entre 25º e 45°). Para tais instrumentos, a parte transformativa tem
um potencial de penetração importante, e pode-se pensar em uma atividade de tipo
“corte”. Tais características são completamente ausentes das peças façonadas unifa-
cialmente.

Síntese

O estudo da coleção lítica de GO-JA-01 evidencia um sistema técnico caracteri-


zado por dois objetivos de lascamento: as peças façonadas unifacialmente e os instru-
mentos sobre lasca. A abordagem tecnofuncional das peças façonadas unifacialmente
mostrou que são suportes originais, concebidos a partir de um princípio volumétrico
(um modulo alongado com uma face plana), um princípio producional (uma grande
lasca façonada unifacialmente sobre a face superior), um princípio funcional (um ar-
tefato que contém pelo menos um instrumento, cuja parte transformativa encontra-se
na extremidade, provavelmente encabado) e um princípio de longa vida (uma estrutura
permitindo várias fases de re-afiação). No entanto, estas peças não devem ser vistas
como um instrumento único. Existe uma diversidade dos volumes e dos potenciais
funcionais evidente das peças façonadas unifacialmente.
O sistema técnico da indústria estudada caracteriza-se por uma relação de com-
plementaridade entre estas peças e os instrumentos sobre lasca. Além da diferença,
evidente, entre os esquemas de produção, estes dois conjuntos de peças apresentam
concepções funcionais diferentes. Os instrumentos alongados com parte transforma-
tiva em uma extremidade e preensão axial na outra extremidade são quase sempre
obtidos sobre as peças façonadas unifacialmente. Os instrumentos alongados com
parte transformativa lateral e preensão lateral são principalmente obtidos nos ins-
trumentos sobre lasca e, às vezes, sobre as peças façonadas unifacialmente. Os ins-
trumentos não alongados, mais raros, são exclusivamente produzidos a partir de ins-
trumentos sobre lasca. Outras diferenças, como o número de instrumentos contidos
em cada peça e os esquemas de re-aproveitamento, confirmam que peças façonadas
ANTOINE LOURDEAU

unifacialmente e instrumentos sobre lasca pertencem a duas concepções distintas e


complementares.

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PARTE DOIS • CAPÍTULO 3 • TECNOLOGIA LÍTICA E PRIMEIROS POVOAMENTOS NO SUDOESTE DO ESTADO DE GOIÁS

lasca. GO-JA-01.
Figura 10: Instrumentos sobre

93
Contexto regional e povoamento da área

As primeiras ocupações humanas conhecidas no sudoeste do Estado de Goiás da-


tam da transição Pleistoceno-Holoceno, a partir de 11.000 AP. A esta data, a maior
parte do Brasil, como de toda a América do Sul, encontra-se povoada por grupos hu-
manos. Pesquisas em outras áreas do centro e do nordeste do Brasil mostraram a pos-
sibilidade de uma presença humana bem mais antiga, podendo remontar a 50.000 anos
AP, como mostram os achados na área da Serra da Capivara, no Piauí (Parenti,
2001). Considerando esses dados, os achados na região de Serranópolis poderiam cor-
responder a um período posterior ao primeiro povoamento da zona.
De qualquer forma, as datas mais antigas dos abrigos de Serranópolis parecem
corresponder à primeira fase de ocupação relativamente densa do território do Brasil
Central. A partir de 12.000-11.000 AP, o número de sítios encontrados é muito mais
significativo, o que pode marcar um momento de estruturação do espaço dos assenta-
mentos humanos na região. No centro e no nordeste do Brasil, o período da transição
Pleistoceno-Holoceno e do Holoceno antigo é marcado, segundo a maioria dos traba-
lhos publicados, pela produção de peças façonadas unifacialmente. Esse fato conduz
certos autores a formular a noção de “tradição Itaparica”, que marcaria uma homoge-
neidade das ocupações desse período, nessa região. Os estudos tecnológicos detalhados
das coleções líticas ainda não são muito numerosos. No entanto, a comparação dos
resultados da análise do material lítico de GO-JA-01 com as coleções dos sítios da Toca
do Boqueirão da Pedra Furada e da Toca do Pica-Pau, no Piauí (Lourdeau, 2010), da
Lapa do Boquete em Minas Gerais (Fogaça, 2001) e dos sítios da região do Lajeado no
Tocantins (Bueno, 2005) confirmam uma relação técnica muito forte entre as indús-
trias do centro e do nordeste do Brasil durante a transição Pleistoceno-Holoceno e o
Holoceno antigo. A existência de tal homogeneidade em um espaço tão amplo implica
um vínculo cultural entre os grupos que viviam na região. Pode-se, assim, falar em um
verdadeiro “tecno-complexo Itaparica”, que marca a unidade e a coerência do fenôme-
no de povoamento ligado a esta primeira densa presença humana na área.

Referências
ANTOINE LOURDEAU

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ANTOINE LOURDEAU

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