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VISÕES DE MUNDO DA ANTIGUIDADE E MEDIEVO

Book · November 2018

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5 authors, including:

Sergio Feldman Mário Jorge da Motta Bastos


Universidade Federal do Espírito Santo Universidade Federal Fluminense
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VISÕES DE MUNDO DA
ANTIGUIDADE E MEDIEVO
Abordagens Historiográficas
Editora Universitária Tiradentes – Edunit

Conselho Deliberativo
Ihanmarck Damasceno dos Santos
Roberto de Almeida e L. Júnior
Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento

Diretora
Cristiane de Magalhães Porto

Conselho Editorial
Ciências Humanas
Cristiano Ferronato
Ciências Sociais
Verônica Marques
Ciências Biológicas e da Saúde
Cristiane Costa da Cunha Oliveira
Ciências Exatas e Tecnológicas
Giancarlo Richard Salazar Santos
Faculdade Integrada Tiradentes
Pedro Henrique Simonard Santos
Faculdade Integrada de Pernambuco
Mariana Aragão Matos Donato
Programas de Pós-Graduação
Karyna Batista Sposato
Pós-Graduação Lato Sensu
Ilzver Matos de Oliveira
Suplentes
Gabriela Maia Reboucas (Ciências Humanas e Sociais)
Margareth Zanardo (Ciências Biológicas e da Saúde)

Editora Universitária Tiradentes – Edunit


Av. Murilo Dantas, 300, Bloco F, sala 11, 1º andar
49032-490 Aracaju, Sergipe
Fone: (79) 3218 2138
http://editoratiradentes.com.br
E-mail: editora@unit.br
Terezinha Oliveira
(Organizadora)

VISÕES DE MUNDO DA
ANTIGUIDADE E MEDIEVO
Abordagens Historiográficas

2016
Copyright © 2016 para os Autores.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por


qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por
escrito, do autor.
Todos os direitos reservados desta edição 2016 para Editora Universitária
Tiradentes – Edunit.

Projeto gráfico/diagramação: Mari & Lene Digitações Ltda.


Capa: Mari & Lene Digitações Ltda.
Ficha catalográfica: Marinalva Almeida
Fonte: Lúcida Sans / Garamond
Tiragem - versão impressa: 250 exemplares
Financiamento: CAPES

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Sumário

Apresentação ................................................................................................ 8

Capítulo 1
O VERDE VIOLENTOU AS MURALHAS: CAMPO E CIDADE NA ALTA
IDADE MÉDIA OCIDENTAL
Mário Jorge da Motta Bastos ................................................................... 10

Capítulo 2
NOTAS SOBRE O SENTIDO COMUM EM TOMÁS DE AQUINO E ARENDT
Ricardo Gião Bortolotti ............................................................................ 30

Capítulo 3
REFLEXÕES SOBRE OS MITOS ANTIJUDAICOS MEDIEVAIS: O
SIMBOLISMO DO SANGUE NAS RELAÇÕES CRISTÃS JUDAICAS (SÉCULO
XII A XV)
Sergio Alberto Feldmann ......................................................................... 48

Capítulo 4
RUTEBEUF E A QUERELA ENTRE OS CLÉRIGOS E OS MENDICANTES
Terezinha Oliveira
Claudinei Magno Magre Mendes ............................................................. 68

Capítulo 5
SOBRE A MELHOR MANEIRA DE TRADUZIR: SÃO JERÔNIMO E O
MUNDO EDITORIAL LATINO NA ANTIGUIDADE TARDIA
Raquel de Fátima Parmegiani .................................................................. 88

Capítulo 6
A INSTRUÇÃO NOS MANUAIS DE MERCADORES MEDIEVAIS: O
ZIBALDONE DA CANAL
Jaime Estevão dos Reis ........................................................................... 104
Capítulo 7
SAVOIR-FAIRE: A PRÁTICA E O DISCURSO SOBRE A ARTE MEDIEVAL.
Maria Eurydice de Barros Ribeiro ......................................................... 124

Capítulo 8
A SAÚDE DO REINO DE PORTUGAL (SÉCULOS XIV-XVI)
Dulce Oliveira Amarante dos Santos .................................................... 136

Capítulo 9
A DIGNIFICAÇÃO DO TRABALHO EM AGOSTINHO. A CONJUGAÇÃO DO
SABER E DO FAZER NA AGRICULTURA
Maria Teresa Carrasco Salvados Gonçalves Santos ............................ 154

Capítulo 10
VIVER E SOBREVIVER EM ROMA: O ETHOS CITADINO DIANTE DO
CLIENTELISMO
Renata Lopes Biazotto Venturini .......................................................... 176

Capítulo 11
EDUCAÇÃO E RELIGIOSIDADE NA VISIÓN DE DON TÚNGANO (VISÃO
DE TÚNDALO)
Adriana Maria de Souza Zierer .............................................................. 198

Sobre os Autores ...................................................................................... 224

6
Apresentação

É com muita satisfação que o Grupo de Estudos Transformações


Sociais e Educação nas épocas antiga e medieval traz a público mais uma
Coletânea de pesquisas de renomados pesquisadores nacionais e de
uma pesquisadora internacional com o fito de divulgar temas
concernentes aos períodos da Antiguidade e da Idade Média sob uma
perspectiva multidisciplinar.
O livro Visões de Mundo da Antiguidade e Medievo. Abordagens
historiográficas apresenta ao público leitor um conjunto de 10 capítulos
nos quais estudiosos das épocas antiga e medieval expõem suas
investigações acerca do cotidiano, da política, da literatura, da
imagem, da filosofia, do comércio, dentre outros temas. Também é
preciso destacar a riqueza de fontes que os autores compulsaram para
evidenciar a complexidade das relações sociais existentes nesses dois
tempos históricos.
O objetivo desta Coletânea é fornecer aos leitores
interpretações historiográficas que possibilitam pensar estes dois
tempos históricos como momentos nos quais a complexa vida
humana foi posta em xeque sob as mais diferentes perspectivas e,
mais ainda, mostrar que os homens dessas duas épocas não hesitaram
em caminhar e traçar os seus caminhos de modo a assegurar a
existência dos indivíduos e da sociedade.
Em tempos de longos debates e propostas de mudanças
curriculares para o Ensino Básico no Brasil, nas quais se avizinham
possibilidades de se pensar o ensino da história, da filosofia, da
literatura, da arte, sem considerar os conhecimentos da Antiguidade e
da Idade Média, uma Coletânea de textos que trata especificamente de
questões vinculadas a esses dois períodos vem a calhar, indicando que
seu estudo é muito relevante para a sociedade brasileira,
especialmente àqueles que se dedicam ao ensino.
Capítulo 1

O verde violentou as muralhas: campo e


cidade na Alta Idade Média Ocidental
Mário Jorge da Motta Bastos

O(A) atento(a) leitor(a) desta coletânea estará informado(a),


por certo, de que os artigos que tem em mãos tiveram sua primeira
versão apresentada ao público nas prestigiosas jornadas anuais de
estudos antigos e medievais deMaringá, em sua 14ª edição, realizada
em 2015. Na altura em que nos reunimos no aprazível campus da
UEM, os profissionais da educação brasileira começavam a reunir
esforços para confrontar a então recém-divulgada proposta da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) que, como o tempo se
encarregaria de confirmar, mereceria críticas diversas dos especialistas
vinculados às mais variadas áreas de conhecimento em razão dos
problemas manifestos na forma e no conteúdo de suas propostas.
Assim, no ‗calor‘ dos acontecimentos, iniciei a minha
apresentação no evento manifestando uma posição crítica relativa,
mais especificamente, a uma das muitas amputações de conteúdo que
a proposta da base operava com relação ao ensino da História,
perspectiva que mantenho na introdução deste artigo visando,
inclusive, consolidá-la no seu desenvolvimento. Como me manifestei
àquela altura, foi impossível não me lembrar de Walter Benjamin
(1987) ao travar o primeiro contato com a proposta de História da
BNCC que, a meu juízo, configura mais uma ameaça obscurantista
dentre as muitas ameaças obscurantistas que pairam hoje sobre nossas
cabeças. Segundo o judeu marxista alemão nas suas Teses sobre História:

Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana


está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência
geral de inveja de cada presente com relação a seu
futuro‘. Essa reflexão nos leva a pensar que nossa
imagem da felicidade é totalmente marcada pela época
que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. [...]
O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a
história transforma em coisa sua. O passado traz
consigo um índice misterioso, que o impele à redenção.
[...] Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida
uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige
um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado
impunemente. Assim como as flores dirigem sua corola
para o sol, o passado, graças a um misterioso
heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta
no céu da história. O Dom de despertar no passado as
centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não
estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1987,
p. 15).

Perdoem-me pela longa citação, mas esse belo arranjo de


palavras expressa o que de mais vigoroso existe, e o que de mais
visceral me impõe o ofício que tento exercer: a História é paixão pela
espécie, paixão pelo humano, e se realiza em toda e qualquer
manifestação sua, alheia a limitações, sobretudo temporais. Ela me
alimenta cotidianamente com o sentimento de solidariedade e de
empatia visceral com o sofrimento – mas, sobretudo, com a luta – de
todos os deserdados, não da terra, mas de todos os sistemas fundados
no arbítrio, na desigualdade e na opressão, e especialmente deste em
que vivemos, que capitalizou a riqueza e promoveu a exponenciação
da miséria de multidões pelo planeta. Sejamos, portanto, realistas em
face da enormidade da nossa tarefa: o que se nos impõe rejeitar nesta
proposta da BNCC não é apenas uma amputação da nossa vigência
temporal, mas o que ela determina em termos da naturalização do
presente e, portanto, no cerceamento dos nossos projetos de futuro!
Uma História amputada de qualquer dimensão temporal sua é uma
História empobrecida em sua substância, uma História que assume
uma condição fantasmagórica!

11
Porque a História, conhecimento das sociedades humanas,
elaborado sempre a partir – e em benefício – de um dado presente,
depende, fundamentalmente, da multiplicidade dos contrastes que se
possa estabelecer entre este mesmo presente e as mais diversas
experiências históricas vividas por homens e mulheres em dimensões
temporais e em latitudes distintas. O conhecimento do presente
depende do seu mais amplo contraste possível no quadro de
experiências históricas múltiplas que se dão, sem dúvida, no espaço,
mas, sobretudo, no tempo, o que o torna o combustível que alimenta
a História. Furtada do alimento constituído pelos milênios antigos e
medievais, a História e o ogro da lenda estão condenados a padecer
de uma mortífera subnutrição. A quem interessará esse óbito?
Tenho tentando contrapor à proposição daqueles para os
quais a História é um conhecimento sem qualquer serventia objetiva,
o que faria do historiador uma espécie de bon vivant que levaria uma
vida individualista de mera fruição, a concepção oposta de uma nossa
função rigorosamente social, porque realizada como ‗perspectivação‘
do presente. Em que sentido? Todo profissional da História, por mais
recluso que pretenda permanecer em seu gabinete de trabalho alheio
ao clamor das ruas e à sua social existência, é uma caixa de
ressonância das demandas e anseios que lhe são impostos pela sua
sociedade contemporânea. A ‗questão ambiental‘ nos aflige em face
do receio da destruição do planeta? O historiador lhe dá dimensão
temporal, considerando as possibilidades, os níveis e os limites
historicamente inerentes à condição básica da existência de nossa
espécie, a relação transformadora com a natureza desenvolvida por
todas as sociedades humanas inscritas na História. A questão da
relação entre os gêneros se nos impõe com todo seu vigor na
atualidade? O historiador lhe confere profundidade temporal,
analisando como, em sociedades vigentes nas mais diversas
dimensões espaço-temporais, foram socialmente construídas as
categorias de masculino e feminino e como se deram as relações
tecidas entre ambas. Nossa atividade é, lamento afirmá-lo para os que
repelem a ideia, insofismavelmente social.
Mas, qual a melhor maneira para que ela o seja?
Pasteurizando-se toda a História num processo unidimensional
evolutivo? Fazendo-a de forma simplória para ser mais facilmente

12
compreendida? Reduzindo-a a arranjos decorrentes de uma noção de
causalidade muito simples, harmônica e alheia a tensões e conflitos?
Cometendo-se o erro contrário ao do ‗presentismo‘, que é fazer do
passado um elemento de justificação do presente, reduzindo o
processo histórico a uma reta diacronia que faz do presente o
resultado natural – e, portanto, mais do que justificável – de todo o
curso do processo histórico que lhe foi anterior?
Creio que não. Compete-nos, ao contrário, denunciar o que há
de contingencial em cada presente, verificando os diversos futuros
possíveis que estavam inscritos, como possibilidades viáveis, em cada
passado que estudamos, entendendo o curso efetivo da História como
o resultado – passível de ser compreendido e explicado – do
predomínio de uma das trajetórias possíveis inscritas em meio a um
conjunto de possibilidades. Em segundo lugar, creio que devamos
realizar sempre, em face de cada objeto de estudo a que nos
propomos, uma avaliação lógica do seu enquadramento mais geral
possível, o que nos remete ao problema do contexto e do contraste na
História. Será esta a orientação primordial do restante deste artigo,
considerando a temática a que me propus.
Karl Marx, numa passagem dos seus Grundrisse relativa às
formações sociais pré-capitalistas, desenvolve o seguinte
enquadramento geral das cidades na História:

A história da Antiguidade clássica é [a] história da


cidade, mas de cidades fundadas na propriedade da terra
e na agricultura; a história asiática é uma espécie de
unidade indiferente de cidade e campo (nesse caso, as
cidades realmente grandes têm de ser consideradas
unicamente como acampamentos principescos, como
superfluidade acrescida à construção econômica
propriamente dita); a Idade Média (época germânica)
parte da terra como sede da história, cujo
desenvolvimento posterior se desenrola então como
oposição entre cidade e campo; a [história] moderna é a
urbanização do campo, não a ruralização da cidade,
como entre os antigos (MARX, 2011, p. 638).

13
Ora, a cidade – que é muito diversa na História, ainda que nos
julguemos capazes de identificar a sua existência nas mais diversas
temporalidades e quadrantes da Terra – é um resultado histórico da
‗complexificação‘ das sociedades humanas e um fenômeno derivado
da divisão social do trabalho. As cidades supõem, na sua existência
histórica, elementos de identificação e diferenciação, um conjunto de
atividades que se revestem de certas especificidades quando realizadas
no seu âmbito, bem como de um excedente de produção rural que lhe
garanta o abastecimento perene e a subsistência de seus habitantes.
Assim, um dos elementos historicamente constantes à sua existência é
a sua articulação com o campo ou com a zona rural (a ‗não-cidade‘)
em meio ao qual ela se desenvolve, variando, obviamente, o grau, a
amplitude, a intensidade e a natureza desta articulação. É a essa
configuração geral que Marx se refere na passagem que acabei de
transcrever.
No contexto específico que aqui nos interessa, o da
configuração das cidades no contexto dos primeiros séculos
medievais, talvez seja possível começar por destacar como a
perspectiva da sua decadência profunda no período constitua uma das
bases do famoso mito da ‗Idade das Trevas‘. As cidades estão
tradicionalmente vinculadas, em nossa ‗ocidental‘ perspectiva, à
cultura, à civilização, ao conhecimento e ao progresso, todos em
algum nível sinônimos de urbanidade e de civilidade, e relacionado o
campo, o agro, genericamente ao atraso, a pobreza e à incivilidade.
Ora, a chamada decadência urbana da Alta Idade Média e o
afloramento de uma sociedade agrária tradicional no período – a
famosa ‗ruralização‘ ocorrida na civilização alto-medieval – parecem
ser indícios seguros, ao mesmo tempo promotor e resultante, da
regressão social geral verificada então, denunciadas nas fontes de
época a rusticidade generalizada de uma formação social na qual
predominavam os camponeses incultos e pagãos recalcitrantes.
E, contudo, a vigência de uma civilização agrária, com suas
características essenciais, não é atributo específico do medievo, mas
de todas as sociedades pré-capitalistas. É muito recente, na nossa
história, o processo que implicou na inversão de uma forma de
existência histórica mais do que milenar no ocidente: apenas bem
avançado o século XIX se atingiria, em linhas gerais, na Europa

14
Ocidental, uma concentração populacional urbana superior a das
áreas rurais! E esta mudança só foi possível porque promoveu o que
Karl Marx (2011) caracterizou como o fenômeno da progressiva
urbanização do campo durante a modernidade, resultado da
expropriação do campesinato no ‗contexto‘ da acumulação primitiva e
da expansão do capitalismo agrário.
Quanto à Alta Idade Média, a chamada ‗ruralização‘ então
ocorrida não representou uma ruptura histórica essencial com a
Antiguidade Clássica, na qual o brilho e a distinção das cidades
estiveram fundados na propriedade da terra e na agricultura. O que
ocorreu parece mais bem caracterizado, antes do que como
decadência urbana, como transformação da relação campo-cidade e, a
partir dela, da configuração assumida pelas próprias sedes urbanas.
Tendo em vista a diversidade de casos e de situações, serei obrigado a
me deter, inicialmente, em algumas considerações básicas antes de
aprofundar, a seguir, a abordagem do influxo da Igreja e da religião
cristã na configuração das cidades alto-medievais, tendo a Península
Ibérica por contexto de excelência.
Convém fazer menção à enorme controvérsia corrente relativa
à natureza da continuidade da existência urbana na Alta Idade Média,
que revela, segundo recente balanço promovido por Chris Wickham
(2009), que sigo aqui de perto, aspectos positivos e negativos. Quanto
aos primeiros, o debate em questão tornou-se o centro das atenções
de vários importantes trabalhos realizados ao longo das últimas
décadas, e fomentou a realização de um número crescente de
escavações de urbes do período visando ao desenvolvimento de novas
sínteses sobre o tema. Nosso autor se refere, ainda, à realização de
cerca de dez congressos de grande expressão nas últimas décadas que
contribuíram para dar uma dimensão internacional às controvérsias
sobre a matéria.
Quanto aos aspectos negativos dos debates, ressalta Chris
Wickham (2009), com muita frequência é impossível estabelecer-se
qualquer acordo, nem mesmo sobre o seu objeto – as cidades – para
não falar da disparidade de proposições acerca dos critérios que
deveriam ser utilizados para caracterizá-lo. Assim, um dos elementos
da polêmica versa sobre o fato de que tanto historiadores quanto
arqueólogos conceberam ‗a cidade‘ a partir de duas premissas, como

15
uma entidade delimitada não só por seu marco econômico como,
também, por sua articulação política e institucional. A ausência da
manifestação de alguma destas facetas bastaria, portanto, para negar a
um dado centro o caráter de ‗cidade‘?
Foi esta mesma controvérsia que alimentou as diversas
iniciativas teóricas de tentativa de estabelecimento dos elementos-
chave de um ‗tipo ideal urbano alto-medieval‘. Martin Biddle
(WICKHAM, 2009) é o autor do mais influente destes ‗modelos‘
elaborados visando à análise da Inglaterra Anglo-Saxã, e que reúne 12
elementos: 1. Defesas; 2. Planificação das ruas; 3. Mercado(s); 4.
Cunhagem de moedas; 5. Autonomia legal; 6. Papel como lugar
central; 7. População relativamente ampla e densa; 8. Diversificação
econômica; 9. Tipos de habitações urbanas; 10. Diferenciação social;
11. Organização religiosa complexa e; 12. Funções judiciais. Para o
autor, afirmar a existência de uma cidade é possível sempre que
estejam reunidas, no caso em estudo, ao menos 3 ou 4 daquelas
características. O modelo é bastante operativo, e pode ser adotado no
estudo do tema nas mais variadas regiões no período em questão. De
qualquer forma, subsistem ainda importantes diferenças de ênfase nos
debates relacionados com o urbanismo alto-medieval, e uma de suas
principais razões deriva da distinta concepção acerca das
características essenciais do urbanismo que informa os estudiosos do
Norte e do Sul da Europa (WICKHAM, 2009).
Consideraremos, a seguir, ainda que esquematicamente, alguns
dos tópicos fundamentais da polêmica que envolve a configuração das
linhas de força que se impuseram ao ‗mundo urbano‘ alto-medieval,
antes de nos aprofundarmos em uma sua expressão essencial, em
meio a muitos matizes, isto é, o influxo da Igreja e da religião nas urbes
do período (McKITTERICK, 2002).
No que diz respeito à regressão material e às transformações
do espaço urbano, a arqueologia comprova a ocorrência
(McKITTERICK, 2002) de um empobrecimento material mais ou
menos generalizado no período, revelado muitas vezes pelo abandono
das obras urbanas e pela reutilização de materiais em novas
construções, como as pedras de antigos templos e prédios
administrativos usadas na reparação e ampliação de muralhas. Quanto
à estruturação da economia condicionada ao poder urbano – a

16
retração das atividades econômicas que assumiam especiais
características e dimensões nas cidades –, especialmente os
artesanatos e o comércio submetem-se a lógica da estruturação do
poder inscritos nas cidades. Desaparecem, ainda que com velocidade
diferenciada nas cidades do Ocidente, as antigas magistraturas
urbanas, exercendo-se, no seu interior, um poder de cunho
aristocrático e senhorial concentrado em mãos de uma aristocracia –
laica e eclesiástica – que domina a cidade e o campo circundante a
partir da concentração de terras e homens, e do exercício do poder
judicial1.
Quanto à inscrição da Igreja no contexto urbano desde fins do
mundo antigo, parece-me essencial considerá-lo no quadro mais geral
do famoso processo de conversão cristã que teve lugar no Ocidente
da Alta Idade Média. Tal contexto, ademais, se expressa, no mais das
vezes, e de forma paradoxal, como uma referência subliminar, quando
a rigor deveria ser tomado como quadro de referência essencial ao
desenvolvimento das análises. Refiro-me ao fenômeno, tantas vezes
assinalado, da difusão alcançada por uma religião de feição
marcadamente urbana em sua origem e primeiros impulsos, pelo
imenso interior rural da civilização do período. Neste sentido, e a
despeito do caráter lacunar dos testemunhos literários e arqueológicos
relativos à Península Ibérica, a primeira referência direta com base na
qual se pode avaliar o grau relativo da implantação da Igreja na região
remete-nos a princípios do século IV.

1 Foi neste sentido que ‗cometi‘, no título deste artigo, a paráfrase pela qual peço
desculpas a você leitor(a) e ao autor, do título do romance de Ignácio de Loyola
Brandão, O verde violentou o muro (Saraiva, 1989), que se refere à queda do muro
de Berlim em meio ao surgimento de novos movimentos sociais e políticos
dentre os quais, para o autor, se destacou a formação do primeiro partido
ligado às lutas ecológicas no ocidente, o Partido Verde alemão. Tratava-se, aqui,
de destacar que, se toda a existência das cidades na História está essencialmente
pautada na relação das mesmas com os campos, os primeiros séculos medievais
representaram um deslocamento do antigo ofuscamento do campo pela cidade
que lhe dominava, impondo-se o agro, as relações que ali então se
desenvolviam e os anseios que caracterizam as suas formas de existência, à
lógica de reprodução das próprias comunidades urbanas.

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Quanto à penetração cristã na Hispânia, o quadro mais efetivo
é aquele traçado pelo Concílio de Elvira (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS), o primeiro a ter lugar
em terras espanholas em data incerta, mas situada entre os anos de
300 e 306. Das atas da assembleia vislumbra-se uma implantação
ainda bastante restrita, até mesmo atomizada, da Igreja, reveladora,
inclusive, do caráter desta instituição no alvorecer da quarta centúria.
Ainda que se atribua um caráter ‗nacional‘ àquela reunião, dos
dezenove bispos que firmaram as suas atas, treze ocupavam sés
situadas nas regiões meridionais hispânicas, concentradas na província
da Bética, de onde se irradiavam para as imediações do Sudeste (Urci
e Lorca), do Alto Guadalquivir (Cástulo, Mentesa e Basa), e do
Algarve (Ossonoba) (GARCÍA MORENO, 1990). Do
enquadramento dos seis bispados restantes revela-se, a par de uma
tímida disseminação pelo vasto território peninsular, em sua maior
parte ainda sequer tocado pela Igreja, que a sua primeira implantação
institucional não parece ter se orientado por qualquer ordenação
planejada do território visando a sua cristianização. Mas não se
deduza, do exposto, que tal processo teve um caráter aleatório, já que
o que ele revela é a característica original mais marcante da
estruturação eclesiástica: vinculada aos principais núcleos urbanos ela
percorria o seu caminho em meio às principais rotas de comércio que
os integravam.
Assim, dos seis bispados restantes e documentados pelo
Concílio Iliberitano, destaca-se aquele situado em Mérida. Esta cidade
era, a esta altura, a capital da província da Lusitânia, convertendo-se,
posteriormente, na capital administrativa da Hispânia. A par dela,
encontramos outra sé baseada em Saragoça, importante núcleo
populacional estrategicamente situado no eixo viário que ligava
Mérida ao sul da Gália, a famosa via ad Galia. Seu traçado, ademais,
parece ter servido de base à primeira difusão do cristianismo,
considerando-se que os bispados restantes, os de Toledo, Talavera e
Fibularia, estão situados nesta via ou em suas proximidades. Além
dessas, o Concílio de Elvira registra apenas a existência de uma sé
situada na Legio VII Gemina, única a constituir, no imenso território
do noroeste peninsular, uma espécie de ‗ilha cristã‘ aparentemente já
estabelecida desde meados do século III, e que decorreria da elevada

18
concentração local de efetivos legionários, coletivo social bastante
inclinado, por razões diversas, à cristianização (GARCÍA MORENO,
1990).
Ao contrário, no alvorecer do século IV, tomado como um
século decisivo na história da Igreja no Ocidente, a feição mais
marcada do cristianismo hispânico é a sua incipiência: tímida inserção
até mesmo nos núcleos urbanos, uma vez que ainda não estava
estabelecida a equação civitas/sé que viria a caracterizar o centro
nevrálgico da organização institucional da Igreja, o que revela, na
extensão, uma limitada hierarquização do território. Quanto às áreas
rurais, é muito provável que mal tivessem sido contatadas, com
exceção do entorno que circundava os centros urbanos primordiais de
implantação. Portanto, a ‗ruralização‘ do cristianismo devia ser ainda
muito reduzida ou limitada no alvorecer da Idade Média hispânica,
haja vista a aparente ausência, em diversas regiões da Península
Ibérica ainda não atingidas pelo fermento cristão, de qualquer base de
fixação que pudesse atuar como pólo para uma possível irradiação.
Com efeito, é uma acentuada feição urbana, tanto na
expressão institucional quanto sociológica do cristianismo, que se
revela da análise dos cânones do Concílio de Elvira (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS). Ela se manifesta, por
exemplo, nas iniciativas, reiteradas em vários cânones, que visam
demarcar uma pauta moral norteadora da conduta dos crentes em
meio a uma sociedade envolvente ainda predominantemente pagã.
Assim, os cânones segundo, terceiro, quinquagésimo-quinto e
quinquagésimo-sexto referem-se a funções administrativas e
representativas de implantação marcadamente urbana. Nos dois
primeiros, aos flâmines2 que depois de batizados voltassem a prestar
sacrifício em honra das divindades pagãs, foi determinada a pena de
excomunhão perpétua da Igreja, ficando admitida a comunhão no
leito de morte, após a devida penitência, para aqueles que tivessem
entregue apenas oferendas. O cânone quinquagésimo quinto
(CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS)

2 Sacerdotes pagãos designados aos cultos dos deuses patrocinados pelo estado
romano.

19
estabeleceu uma penitência de dois anos para os sacerdotes pagãos
que honrassem os ‗ídolos‘ com apresentação de coroas votivas, e o
cânone seguinte determinou a proibição da frequência à igreja ao
magistrado durante o exercício do duunvirato.
Vários são também os cânones que se referem a ofícios e
atividades desenvolvidas especialmente nos meios urbanos, como o
lenocínio3, cominado com excomunhão perpétua, a prostituição, que
demandava o abandono da atividade e o casamento como pré-
condições a um posterior batismo, e a usura, prática repreendida a
leigos e clérigos. Este último cânone, o vigésimo (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS), se articulado ao que lhe
antecede – que limitou, a todos os oficiais do culto, o exercício da
atividade comercial ambulante às fronteiras da província onde
atuavam –, parece indicar que o recrutamento do clero dependia,
fundamentalmente, dos membros cooptados nas camadas médias
urbanas.
Na esteira de Peter Brown (1989) e Raymond Van Dam
(1985), os especialistas costumam centrar-se no que vislumbram
como o duplo fenômeno que atingiu o cristianismo durante os
séculos IV e V no Ocidente, e que não foi alheio ao contexto
espanhol. Por um lado, a nova religião do Estado acomodou-se à
ideologia secular dominante, abandonando como heréticas as
perspectivas favoráveis a um ‗retorno‘ à primitiva Igreja Apostólica,
mais igualitária, menos clerical e esperançosa de um próximo reino
cristão fundado sobre a destruição do estado opressor romano. Por
outro lado, a paulatina desaparição do poder imperial teria produzido
radicais transformações nas formas e mecanismos tradicionais de
afirmação do prestígio e do exercício da dominação a nível local. A
progressiva restrição das possibilidades de acesso a postos de poder
provinciais, a par do desaparecimento ou da paulatina redução dos
patrimônios transprovinciais da aristocracia ocidental no contexto das
invasões, resultaram na contração de seus canais e horizontes de
exercício do poder, convertendo-a em uma aristocracia de âmbito
local, centrada nos núcleos urbanos de maior importância.

3 Crime de exploração ou facilitação da prostituição.

20
Em meio a este quadro, o ingresso na hierarquia episcopal
constituiu-se como alternativa fundamental à manutenção da
ascendência aristocrática sobre as comunidades locais, bem como à
reprodução de sua própria identidade cultural, sobretudo se
consideramos o vertiginoso crescimento do patrimônio eclesiástico,
favorecido com concessões desde os tempos de Constantino. É
emblemático, sob este aspecto, o caso do famoso senador pagão
Nicômaco Flaviano que, ainda antes do fim do século IV,
contemplava as indubitáveis benesses do ingresso dos senadores
nesses cargos altamente privilegiados. No contexto peninsular, o
pagão Símaco, na virada da quarta centúria, indicava a seu amigo
Tuêncio, um senador hispânico caído na ‗pobreza‘, a alternativa de
conseguir-lhe uma mitra episcopal, desafogando-o com os benefícios
econômicos daí decorrentes. E em que pesem as dúvidas que cercam
tudo aquilo que se refere aos dados biográficos dos membros do
episcopado ibérico desta época, há alguns indícios prosopográficos
(GARCÍA MORENO, 1974) claros do poder de atração que as sés
episcopais exerciam sobre a antiga aristocracia senatorial hispânica. O
bispo Paciano, por exemplo, que ocupou a sé barcelonesa até cerca de
394, seria membro da fração da nobreza regional que sustentou a
ascensão imperial de Teodósio, a julgar pela carreira política de seu
filho, Numio E. Destro, que era prefeito do pretório na Itália em 395.
A progressiva ascendência aristocrática sobre os postos-chave
da Igreja são ingredientes indispensáveis à compreensão das pautas de
sua inserção social, e do caráter transcendente que aquela instituição
chegou a assumir. Vale frisar, contudo, que a referida transcendência
reside mais nos vínculos estabelecidos entre seu teor sagrado
específico e a sociedade terrena do que numa contraposição entre
ambos. A própria disseminação da estrutura de implantação
eclesiástica, na Península Ibérica do período, é reveladora destas
vinculações. Quer expresse ou não a inclinação aristocrática pelas sés
episcopais, o fato é que o quadro institucional incipiente configurado
em princípios do século IV, como vimos, seria superado, após o I
Concílio de Zaragoza e em princípios do século V, por uma
estruturação diocesana que cobrira, então, praticamente toda a
península. Por esta altura, parece também estar bem delineada a
hierarquização da ampla rede episcopal, com base na constituição das

21
sés metropolitanas situadas nas antigas capitais das províncias civis do
Baixo Império: Sevilha, Mérida, Braga, Cartagena e Tarragona.
Convido o(a) leitor(a) a que me acompanhe na tentativa de
reconhecer os mecanismos essenciais atuantes nessa vertiginosa
disseminação de núcleos de implantação, que se revelam, ademais,
pela consideração dos marcos cronológicos e das primeiras
referências às várias sés então fundadas.
A perspectiva hoje dominante decorre das análises avançadas,
entre outros, por Peter Brown (1989) e Raymond Van Dam (1985), e
concentram-se na própria caracterização do exercício do poder e da
afirmação da autoridade episcopal nos centros urbanos. São dois, a
princípio, os elementos fundamentais a considerar: o exercício da
função manifesta sob a forma clássica do patronato das comunidades;
e a apropriação episcopal do culto dos santos. Algumas referências
são restritas ao caso hispânico. A função de liderança que os bispos
assumem progressivamente em suas cidades parece ter se fortalecido,
em seu conjunto, com o influxo das invasões na península em 409, a
despeito de algumas perseguições e violências locais. Além do mais,
no quadro destas perturbações, teve lugar a paulatina apropriação,
pelos bispos, das funções de governo e liderança em suas
comunidades urbanas, em face da ruína e da crescente debilidade das
antigas magistraturas municipais e de outras instâncias do poder
imperial nos âmbitos provincial e local. Porém, ocorre aqui um
deslocamento significativo da transformação em curso. A ascensão
das sés como lócus primordial do exercício do poder local, a priori
essencialmente urbano, é em geral considerada como consequência do
‗vácuo de poder‘, mas me parece, ao contrário, ter sido a causa
primordial – uma força ativa – na superação das antigas estruturas, ao
articular o vigor do poder econômico com a esfera sacra de sua
realização.
Seremos capazes de vislumbrar como agiam, no quadro
urbano, os bispos? De imediato, no contexto da penetração
germânica, o papel estratégico e de defesa das cidades se acentua,
irradiando-se pelo território circundante. Deflagrada, entre as
populações, a angustiante sensação de insegurança, a proteção sagrada
atribuída aos patronos celestiais de cada cidade – os santos mártires –
intermediada pelos bispos, mostrou-se em muitas ocasiões mais eficaz

22
do que a intervenção das débeis forças militares do império ou dos
novos reinos em formação. O discurso eclesiástico e episcopal ressalta
a função desempenhada, na defesa de suas cidades, de forma mais
evidente ao longo dos séculos V e VI, pelas relíquias de Santa Eulália
(em Mérida), de São Vicente (em Saragoça) e de São Acisclo (em
Córdoba), entre outros (BAJO, 1981). No território de Minorca, em
torno do ano de 417, o bispo Severo, assumindo a condição de um
combativo comandante das tropas de Cristo constituídas por seus
fiéis, e apoiado pelas relíquias do patrono Santo Estevão, desbaratou
uma antiga comunidade judaica, transformando a sua sinagoga em
uma basílica submetida à jurisdição diocesana. Temos aqui uma
manifestação da ampliação da diocese mediante a cristianização –
compelle intrare – dos ‗pagãos‘.
Segundo referências do sínodo provincial de Tarragona,
realizado em 516, as funções judiciais conferidas aos bispos desde o
baixo império teriam sido não só mantidas, mas ampliadas, a ponto de
a assembleia ver-se obrigada a impedir o funcionamento dos tribunais
eclesiásticos aos domingos, proibindo ainda aos bispos que aceitassem
presentes oferecidos pelas partes litigantes (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS). Por esta altura, à
jurisdição episcopal era vedada apenas a atuação em processos
criminais, bastando, em todos os outros níveis, a opção dos
envolvidos pela apresentação das causas aos tribunais da Igreja.
Graças as Vitas Sanctorum Patrum Emeritensium (1946), provêm da
cidade de Mérida a maior parte de nossas referências. Em 483, o
metropolita Zenon é celebrado como um ativo colaborador das obras
de restauração das muralhas da cidade, um testemunho da
apropriação das funções evergéticas pelos bispos. Quanto a seus
sucessores na segunda metade do século VI, abundam as notícias que
os vinculam à distribuição de esmolas e a obras de caridade. O bispo
Masona seria responsável por diversas fundações, dentre elas a de
uma instituição dedicada a conceder créditos de pequena monta aos
necessitados, além de um xenodochyum que contava com médicos
mantidos, de longa data, pela sé episcopal. Quando Masona foi
desterrado da cidade, vítima das perseguições movidas pelo rei ariano
Leovigildo, afirma o autor anônimo das Vitas que a região foi afetada

23
por pragas, fomes e epidemias, suprimidas, contudo, miraculosamente
por ocasião de seu retorno e recondução à sé de Mérida.
Do quadro acima exposto decorria o elevado grau de interesse
e as disputas manifestas na apropriação dos cargos episcopais,
sobretudo se não perdermos de vista que estavam diretamente
vinculados com a gestão de patrimônios e rendas. Ainda segundo as
Vitas, a igreja de Mérida amealhara um extenso domínio fundiário,
um dos maiores da península, favorecido por enormes doações
recebidas durante o episcopado de Paulo. Tanto assim que este bispo,
mesmo tendo sofrido uma forte oposição do clero urbano aos seus
intentos de garantir a sucessão no cargo ao seu sobrinho Fidel,
acabou por alcançar seu objetivo quando o sucessor ameaçou
abandonar a referida igreja, privando-a do patrimônio constituído por
seu tio. Os Concílios Ibéricos abordaram, em ocasiões diversas, o
tema da sucessão episcopal, desvelando a tendência das famílias mais
poderosas de tentaram perpetuarem-se no controle destes postos.
Assim, por exemplo, nos dois primeiros concílios de Braga, realizados
em 561 e 572, os cânones XX e VIII, respectivamente, proíbem o
acesso direto ao episcopado de indivíduos estranhos à hierarquia da
igreja, bem como a designação, pelo bispo, de seu sucessor
(CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS).
No caso anteriormente referido da igreja de Minorca,
verificamos o processo de ampliação da área de influência de uma
diocese por meio da incorporação de uma antiga sinagoga. Porém, em
muitas outras situações (CASTELLANOS, 1998), decorreria da
edificação de novas basílicas o consequente aprofundamento da
cristianização do território diocesano, o que podia dar origem à
criação de novas sés episcopais. Os conflitos daí decorrentes, ainda
que fossem desencadeados no próprio seio da hierarquia episcopal,
expressavam, contudo, o campo social mais amplo da inserção
eclesiástica. No caso, por exemplo, das ordenações dos bispos Siágrio
e Pastor, em 432 – ambos membros de uma família inserida no
círculo de Teodósio, contrária aos interesses do bispo de Lugo –
revela-se uma situação em que as novas dioceses serviriam de base à
afirmação da ascendência social e ao fortalecimento da liderança de
uma poderosa família local, em detrimento de outras famílias
assentadas em um núcleo urbano próximo. Assim, com o apoio da

24
jurisdição episcopal ampliava-se o poder de um grupo dominante por
toda a região, convertendo-se a cidade sé em um núcleo privilegiado
para a articulação de um território muito mais amplo.
Em muitos outros casos, a fundação de novas sés episcopais
apoiou o fortalecimento da posição do bispo responsável pela
iniciativa, permitindo-lhe estabelecer uma rede de vínculos que
destacava a sua própria posição no contexto provincial, ou que ao
menos atenuava as tensões em sua própria sede, objeto que era das
recorrentes disputas pelo seu controle travadas pelas várias facções
locais rivais da aristocracia. Alguns dos mais célebres exemplos desta
tendência podem ser vislumbrados na fundação da sé de Égara por
Nundiário, bispo de Barcelona, que ordenou Irineu para a nova
cátedra, e na de uma outra fundação episcopal realizada por Silvano
de Calahorra, da qual se preservou apenas referências indiretas, ambas
ocorridas por volta de 465. Este último, ao nomear um presbítero seu
aliado para a sé de Tarragona à revelia de seus pares, suscitou a reação
desses, que culminou com um recurso dirigido ao bispo de Roma. E,
foi em meio ao contexto turbulento vivenciado no Noroeste da
Espanha, no primeiro terço do século V, em decorrência das pressões
suevas, que a crescente intervenção dos bispos galegos na política
local deu origem a competições e lutas pela apropriação dos cargos
episcopais, deflagradas pelas diversas facções rivais. O próprio
Hidácio refere-se, em sua crônica, ao evento que envolveu o bispo de
Lugo. Em 460, quando uma força militar sueva saqueou a cidade de
Chaves, foi a vez de seu bispo ser feito prisioneiro por um grupo
aristocrático rival, fato também ocorrido na Bética, em 441, com o
bispo Sabino de Sevilha.
As tensões que marcavam as relações entre os superiores
hierárquicos da Igreja encontram-se sobejamente documentadas nas
atas conciliares visigóticas. No Concílio realizado em Toledo no ano
de 597, o primeiro item abordado pela assembleia refere-se a uma
antiga disputa entre dois bispos acerca das fronteiras entre suas
dioceses, controvérsia que demandou o envio de peritos à região para
estabelecer os limites e definir a pertencimento das igrejas locais
(CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO ROMANOS). O
Concílio de Mérida, ocorrido em 666, também tratou, em seu cânone
oitavo, de um litígio que opunha dois bispos em torno da fixação das

25
fronteiras de suas dioceses (CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E
HISPANO-ROMANOS). O XI Concílio de Toledo, datado de 675,
refere-se a um tal nível de animosidade entre bispos em disputa a
ponto de afastá-los dos ofícios divinos até que abrandassem sua ira:

[...] Há alguns bispos que chegaram a uma discórdia tão


obstinada que não só não acaba sua irritação com o por
do sol, mas nem o transcurso dos anos os inclina à
caridade. Certamente nos corações destes tais pôs-se o
sol da justiça, Cristo, de tal modo que não podem
reintegrar-se à luz da caridade. Cremos, pois, que as
oferendas destes e de outros irmãos que andam
renhidos não devem ser recebidas, conforme o prescrito
nos antigos cânones; e em relação às pessoas que andam
renhidas mandamos o seguinte: que antes que se
estabeleça entre elas uma reconciliação verdadeira, não
se atrevam a acercar-se do altar do senhor, nem a
receber a graça da santa comunhão (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS, p. 357).

Os elementos até aqui considerados permitem estabelecer


alguns pontos a guisa de conclusão. Segundo García Moreno (1990), a
verdadeira primazia das sés episcopais baseava-se na força superior
que advinha aos bispos de sua posição exclusiva de intermediários
entre a comunidade terrena e a celestial, condição explicitada em três
fenômenos essenciais: sua capacidade de realizar exorcismos,
obrigando os demônios a revelarem-se, o que os tornava ‗similares a
Deus, a custódia das relíquias dos santos; e a direção da cerimônia
coletiva da missa e dos demais rituais litúrgicos, a partir dos quais se
realizava a sincronização do tempo terreno com o celestial. Pontos
fundamentais, sem dúvida, que exigem consideração, e em relação aos
quais catalogamos várias referências. Dentre elas, pelo cânone terceiro
do III Concílio de Braga, realizado em 675 (CONCÍLIOS
VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS), a assembleia repreende
alguns bispos que teriam por prática apresentar-se, na procissão dos
santos, carregados por clérigos em liteiras com as relíquias atadas ao
colo, expressão da autoridade derivada do vínculo íntimo e pessoal

26
com o sagrado, e que faz eco da antiga cerimônia de adventus do
imperador em uma cidade.
Este último aspecto parece-me decisivo, ressaltando que esse
poder pessoal, a despeito de sua possível singularidade, inseria-se
pleno numa vasta rede de Poder na qual o singular atenua-se no
interior de um corpo plural, que, como tal, afirma sua ascendência
sobre o conjunto da sociedade. Assim, não parece constituir um
exagero a perspectiva de afirmar que a ecclesia não constitui, no
contexto desta análise, um corpo social restrito, isolado, distinto ou
fechado em relação à globalidade histórica. Ao contrário, ela se afirma
plenamente integrada na sociedade do período, e numa relação
dialética pela qual a modela, assim como é modelada por ela. Não se
configura sequer como um microcosmos daquela, mas como sua
expressão plena e absoluta, encarnando, inclusive, as suas hierarquias,
conflitos, manifestações de poder, relações de exploração, alianças de
classe etc., e teve nas cidades da Alta Idade Média um quadro
fundamental de sua implantação.

REFERÊNCIAS

BAJO, Fernando. El patronato de los obispos sobre las ciudades


durante los siglos IV-V en Hispania. Memorias de Historia Antigua,
Oviedo, 5, 1981, p. 203-212.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica,


arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1987.

BROWN, Peter. El mundo en la Antigüedad Tardía. Madrid:


Taurus, 1989.

CASTELLANOS, Santiago. Poder social, aristocracias y hombre


santo en la España Visigoda. Logroño: Universidad de La Rioja,
1998.

27
CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS.
Edição de VIVES. Barcelona-Madrid: CSIC, 1963.

GARCÍA MORENO, Luís A. Élites e Iglesia hispanas en la


transición del imperio romano al reino visigodo. In: CANDAU, José
Maria et al. (Org.). La Conversión de Roma. Cristianismo y
Paganismo. Madrid: Ediciones Clásicas, 1990, p. 223-258.

GARCÍA MORENO, Luís A. Prosopografía del Reino Visigodo


de Toledo. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1974.

MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858:


Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo-
Editora da UFRJ, 2011.

McKITTERICK, Rosamond (Ed.). La Alta Edad Media. Barcelona:


Crítica, 2002.

THE VITAS SANCTORUM PATRUM EMERITENSIUM.


Edição de GARVIN, J. N. Washington D.C.: The Catholic University
Press, 1946.

VAN DAM, Raymond. Leadership and Community in Late


Antique Gaul and Spain. Berkeley: Berkeley University Press, 1985.

WICKHAM, Chris. Una Historia Nueva de la Alta Edad Media.


Europa y el mundo mediterráneo, 400-800. Barcelona: Crítica, 2009.

28
Capítulo 2

Notas sobre o sentido comum em Tomás


de Aquino e Arendt
Ricardo Gião Bortolotti

―A pluralidade é a lei da Terra‖ (ARENDT, 1992a, p. 17)

Introdução

Desde os gregos, a procura pela verdade, seja na unidade do


múltiplo seja na imobilidade do ser, gerou discussões calorosas e
escolas prósperas como a de Platão, filósofo que propôs a realidade
do mundo ideal em detrimento do mundo dos sentidos. A busca pela
essência, por uma realidade extra-sensorial, que fundamente as
variações do múltiplo dos sentidos, atravessou séculos, encarnando-se
na modernidade. Com Descartes, a verdade somente pode ser
observada pelo matemático, pela mediação do método, o qual
abandona os sentidos. Em Kant, os fenômenos controlados por
critérios transcendentais ocultam a coisa-em-si, um mundo
incognoscível, mas ‗pensável‘. Esses autores, citados a modo de
ilustração, com Hegel e Marx, inauguram uma maneira de pensar,
cujos frutos já podem ser encontrados na famosa frase de Bacon:
‗saber é poder‘. O telescópio e outras invenções não deixam dúvidas
de como o saber transforma a realidade, compreendida não mais pelas
belas teorias, mas pelo próprio resultado do método voltado para o
conhecimento científico do mundo.
Mas nem toda esfera do humano deve ser perpassada pelo
método, sem que gere violência. A natureza se faz compreender para
quem domina a matemática, mas o mundo humano não se encaixa na
necessidade matemática, como bem dizia Hume, ou seja, nas questões
cotidianas estamos às voltas com nossa bagagem de experiência, com
o nosso passado, o qual não determina matematicamente o futuro.
Estamos entregues ao acaso, a confiar nas crenças que formamos ao
longo do tempo. Muito antes de Hume, um pensador da política havia
mostrado como opera o mundo humano regido pelo poder, e não
somente pela razão; seu nome: Maquiavel.
O mundo suprassensível ou a defesa desse universo não foi
inteiramente descartado, mas se manteve nas diversas ideologias do
mundo moderno. Nietzsche tentou rachá-lo com o seu martelo
filosófico, pondo por terra os argumentos pró-mundo das ideias. Não
somente ele, mas o positivismo Comtiano, num primeiro momento,
também negou o transcendente, no qual residiria a verdade. Peirce, de
seu lado, defende o acesso a signos, e não a existência de uma
essência, incognoscível e distante do poder de conhecer humano. A
suposição de um mundo comum, no entanto, não invalida a
investigação científica; pelo contrário, partimos dele, da constatação
do senso comum, para, com pesquisa, científica ou não, alcançarmos
a verdade, proposta pela aplicação do método. Ora, uma coisa, pode-
se dizer, é o conhecimento científico, baseado na tecnologia que lhe
compete a fim de alcançar um produto final; outro, a conduta dos
homens no espaço público, na esfera da política, e que envolve
promessas, mentiras, perdão etc. Para ambos os casos, ciência ou
política, partimos do mundo comum, caminhamos nele e retornamos
a ele.
É com a intenção de discutir a problemática que envolve a
participação política ou o mundo comum, que propomos o nome de
Arendt, como objeto central de nosso trabalho. Em várias de suas
obras, discute-se a noção de senso comum, mas tomaremos,
particularmente, A vida do espírito. Nela, a autora afirma que a
realidade, além de ser percebida por um contexto mundano, o qual
inclui todos os seres, cuja percepção é a mesma que a minha, é
também percebida pelo trabalho conjunto de nossos cinco sentidos
juntamente com um sexto sentido, o sensus communis, que mantém os
cinco unidos em torno da percepção de um mesmo objeto
(ARENDT, 1992a); sentido esse inteiramente necessário num mundo
de aparências, em que o erro e a confusão são originados a todo
instante. Com efeito, nossa experiência no mundo comum traduz-se
pela pluralidade de opiniões, baseada na rede de comunicação que

31
perfaz a esfera social. A realidade mundana consiste nessa rede
sígnica, na aparência que gera aparência, a partir do dinamismo do
espaço público. Mas, mesmo na pluralidade da esfera pública, produz-
se sentido, e não um mundo sem nexo. Esses sentidos, produzidos da
comunicabilidade social, não são ditados por regras universais,
possíveis no contexto científico, mas são gerados dos juízos emitidos
da participação dos cidadãos. Ora, este trabalho procurará mostrar o
que significa o senso comum, tanto para Tomás de Aquino, pensador
que define o senso comum e é utilizado por Arendt a fim de ilustrar a
sua posição, que pende para uma interpretação particular de Kant.
Iniciaremos, pois, este trabalho, com a exposição dessa noção para
Tomás de Aquino e, em seguida, a apresentação do pensamento de
Arendt.

Tomás de Aquino e o senso comum

Nil in intellectu quin prius fuerit in sensu


(SERTILLANGES, 1940, p. 125).

Para Tomás de Aquino a atividade psíquica é composta de três


graus: a vida vegetativa, a vida sensitiva e a vida intelectual
(GARDEIL, 2013). A principal atividade do homem como ser
inteligente está na atividade intelectual, que depende, para a verdade
de suas asserções, da sensibilidade. Nos animais, a sensibilidade não
estabelece fins, senão a própria natureza, pois aqueles carecem de
inteligência, própria dos homens, que a utilizam para a atividade da
reflexão (GARDEIL, 2013). Ora, no homem, além da potência
intelectiva, há também a sensitiva, a apetitiva, a vegetativa e a motiva
(GARDEIL, 2013).
Ainda, com Gardeil (2013, p. 43-44), deparamo-nos com
quatro modos de vida:

Encontram-se aqui seres que têm apenas faculdades


vegetativas (as plantas); outros que, além disso, têm a
faculdade sensitiva, mas sem serem dotadas de
motricidade (os animais inferiores); outros, ainda que,
além disso, têm a faculdade de se mover (os animais

32
superiores, que vão, por si mesmos, em busca daquilo
que lhes é necessário para viver); outros, por fim, que
possuem, além disso, a inteligência (os homens). O
apetite, por sua vez, não é característico de nenhum
gênero particular da vida, visto que é encontrado
analogicamente em todo ser.

A vida vegetativa é responsável pelo seu aspecto biológico. A


vida sensitiva e a intelectual interessam-nos por estarem integradas no
homem, que, como ser racional, é superior aos animais, dotados de
vida sensitiva. Veremos que o intelecto não opera sem os sentidos ou
independente das potências sensitivas, que apreendem o mundo
externo.

Os sentidos e o conhecimento sensível

Para Tomás de Aquino, somos dotados de sentidos externos e


internos. Pelos primeiros, somos afetados de imediato, enquanto,
pelos segundos, de modo mediato, pois dependem daqueles, os quais
conservam, podendo reproduzi-los (GARDEIL, 2013). Além desses
sentidos, Tomás de Aquino propõe o sensus communis, que possui,
entre outros atributos, o poder de sintetizar as impressões dos outros
sentidos, uma ‗reflexão‘ superficial, dando lugar à percepção do
objeto, uma espécie de ‗retrato‘ do objeto. A partir dele, podemos
falar de certa ‗consciência sensível‘ (GARDEIL, 2013).
Iniciemos com os sentidos externos. São em número de cinco
e reconhecidos pelas qualidades alcançadas dos objetos ou ‗sensíveis
próprios‘ (ST I, q.78, a.3; v.2)4. Como, afinal, Tomás define ‗sentidos
próprios‘?5 Nas palavras de Boehner e Gilson (1985, p. 471):

4 Sobre a classificação dos sentidos em Tomás de Aquino, confira Gardeil


(2013). As referências à Suma Teológica seguem os padrões usuais: ST significa
Suma Teológica; I, parte I; a. 3, o artigo e sua numeração; por fim, indicamos o
volume da publicação brasileira realizada pelas Edições Loyola. No final do
artigo, o leitor encontrará as referências completas.
5 Cf. para a discussão dos sentidos próprios, Sertillanges (1940, p. 109s).

33
Sentidos próprios são todos os sentidos particulares,
que possuem, cada qual, um objeto exclusivamente
próprio. Cada sentido particular é influenciado de modo
imediato pelo objeto sensível; isto se dá pela espécie,
que procede do objeto material sob a forma de cor, de
som, etc; esta espécie é recebida pelo respectivo sentido
particular, que a percebe como forma imaterial.

Cada sentido externo próprio refere-se a uma espécie


específica e que lhe diz respeito. É assim com o objeto da visão, que
apresenta ao olho a cor; a audição, o som etc. Esse é o modo
imediato do objeto impressionar o sentido. Cada órgão opera
conforme sua finalidade, ou seja, segundo o que lhe é apropriado.
Mas os sentidos externos não são os únicos, sendo
acompanhados pelos sentidos internos, que se resumem em senso
comum, imaginação, estimativa (nos animais) ou cogitativa (nos
homens) e memória sensível (SERTILLANGES, 1940). Assim é
definido o senso comum, por Sertillanges (1940, p. 114-115): ―O
senso comum é como o centro de convergência – porque é o ponto
de partida – de todas as atividades sensíveis, em que, graças a ele, nós
sentimos que sentimos sicut cum aliquis videt se videre”67.
O sentido em si não distingue nada, apenas ‗sente‘.
Entretanto, ao sentir que ele sente, ―[...] o homem dotado de sens
commun toma consciência do outro, através da consciência que tem de
ser afetado [...]‖ (SERTILLANGES, 1940, p. 115). Essa é uma das
características do ‗senso comum‘: distinguir o sujeito do objeto.
Outra, e que nos interessa mais de perto, devido à proximidade da

6 Por exemplo, quando alguém vê que está vendo. (ST I, q. 78, a. 4; v. 2).
Quando possível, substituímos as referências de Sertillanges (1940) pela
tradução da Suma Teológica (ST) das Edições Loyola.
7 ― Em Aristóteles, o sensus communis parece cumprir uma função tríplice: em parte,
a percepção dos sensíveis comuns; reflexão sobre a atividade sensível;
discernimento e comparação dos objetos pertencentes a vários sentidos
diferentes. São Tomás não presta contas senão das últimas dessas funções.‖
(GARDEIL, 2013, p. 70).

34
exposição de Arendt, está na síntese das sensações, na integração das
várias sensações possibilitadas pelos órgãos dos sentidos. Somos
afetados diversamente pelo mesmo objeto, ou seja, as impressões
visuais e olfativas, por exemplo, possuem sentidos apropriados aos
seus órgãos, mas sabemos que a percepção é de um mesmo objeto. E,
por fim, uma última característica do ‗senso comum‘ está na
apreensão dos denominados ‗sensíveis comuns‘ (sensibiliza communia), e
que se resumem na apreensão do movimento, repouso, grandeza,
figura e número (SERTILLANGES, 1940; ST I, q. 78, a. 3; v. 2).
Com efeito, o senso comum não é outra coisa, senão a síntese de
onde derivam todos os sentidos próprios (SERTILLANGES, 1940)8.
Em relação aos outros sentidos internos, apenas
explicitaremos sua característica principal, pois não se trata, neste
trabalho, de esgotar o assunto, um tanto complexo. Ora, se aos
sentidos próprio e comum competem à recepção das impressões, à
‗imaginação‘ cabe conservá-las (SERTILLANGES, 1940). Ela retém
as espécies, geradas da percepção imediata, mas que terão papel
essencial na constituição do conhecimento. A ‗estimativa‘, por sua
vez, é uma espécie de julgamento e de escolha, porém, não racional, já
que é própria do animal, e baseada no instinto, ―[...] quer dizer que
são como propriedades naturais, impulsos espontâneos.‖

8 ―Não apenas o ‗sensus communis‘ tem consciência das atividades de cada um dos
sentidos, mas também ele os aproxima e compara, coisa que os sentidos
particulares, cercados pelos limites de seus objetos próprios, evidentemente não
podem fazer.‖ (GARDEIL, 2013, p. 71). ―O sentido particular percebe
exclusivamente as imagens sensíveis dos seus objetos próprios; dentro desta
limitada esfera ele é capaz de discernir, por exemplo, o preto do branco; mas
não consegue distinguir entre a cor e o gosto. Para julgar dos objetos referentes
a sentidos diversos, requer-se uma força superior aos sentidos particulares: o
sentido comum. Sua função é perceber todas as impressões e, além disso, o
próprio ato da sensação: ‗Unde oportet ad sensum communem pertinere
discretionis iudicium, ad quem referantur, sicut ad communem terminum,
omenes apprehensiones sensuum; a quo etiam percipiantur actiones sensuum,
sicut cum aliquis videt se videre‘.‖ (ST I, 78, a.4; v. 2 apud BOEHNER;
GILSON, 1985, p. 471-72).

35
(SERTILLANGES, 1940, p. 117)9. A estimativa, pela qual o
julgamento parte de abstrações dos objetos apresentados aos sentidos,
possui participação da razão e é própria do homem. Nesse caso,
Tomás de Aquino denomina de ―razão particular ou cogitativa‖
(SERTILLANGES, 1940, 118; ST, I, q. 78, a.4; v. 2; De Verit., q.
XXV, art. 2, fin.). Sertillanges sintetiza bem a diferença entre a
estimativa e a ‗cogitativa‘:

A cogitativa difere, pois, da razão propriamente dita na


medida em que é realizada no particular, concluindo do
comum, não do universal e necessário. Ela se distingue
da estimativa, uma vez que realmente conclui (compõe e
divide), enquanto que aquela julga passivamente, em
virtude de combinações entre o instinto dado com a
influência das imagens atuais ou adquiridas
(SERTILLANGES, 1940, p. 119).

A cogitativa auxilia o homem no seu julgamento da


experiência particular. A imaginação, como já dissemos, retém as
impressões, para que, no futuro, possamos utilizá-las. Entretanto, esse
sentido interno não possui o poder de associar as imagens com a
temporalidade: ―A memória é uma associação do mesmo ato de
impressão de um objeto passado e atual‖ (SERTILLANGES, 1940, p.
121). Assim, a memória conta com a imaginação, mas em função do
tempo. A imagem destituída dessa relação permanece uma relação
natural, instintiva (SERTILLANGES, 1940).
Por fim, se existe a associação de imagens na temporalidade,
existe também a reminiscência, que é o esforço consciente de
recordar, como bem nota Sertillanges (1940, p. 122):

Reminiscência envolve pesquisa. É um movimento de


perseguição, uma ―caça‖, um processo intencional que
pretende despertar em nós as imagens adormecidas,
através das quais representamos as coisas.

9 Os pássaros não recolhem palhas por prazer, mas tendo em vista o ninho a ser
construído. Atividade que não envolve inteligência (GARDEIL, 2013).

36
Naturalmente, deve haver um ponto de partida, e só
pode ser uma memória já dada.

Se o objeto pode ser devidamente representado de forma


intencional, também pode acontecer de assomar-se à consciência de
modo fortuito, sem qualquer intenção. A esse tipo de recordação
denominamos ‗acaso‘, que é mais apropriado aos animais, embora não
seja estranho ao homem (SERTILLANGES, 1940).

O conhecimento intelectual

Os sentidos, como já dissemos, são importantes no processo


de conhecimento intelectual10, por serem responsáveis pelos primeiros
dados de nossa experiência, enquanto criaturas terrenas. Os sentidos
são geradores da ‗espécie impressa‘, primeiro passo do processo que
culminará no conhecimento. Com efeito, o sensus communis ocupa um
lugar intermediário nesse processo, pois ele transmite os primeiros
dados da sensação às potências superiores (GARDEIL, 2013). É o
sentido que produz a unidade entre os sentidos próprios, a
consciência sensível, ―[...] associada ao conhecimento intelectual.‖
(GARDEIL, 2013, p. 70).
Embora importante, sob o ponto de vista do processo de
conhecimento, para o nosso objetivo, que se restringe ao papel do
senso comum, considerado como uma percepção primeira da
multiplicidade dos sentidos, os elementos elencados são essenciais
para entendermos a dinâmica da opinião no espaço público em
Arendt. O juízo, como veremos, constitui a apreensão imediata dos
fenômenos, sem que, no entanto, provoque uma cisão abismal no
modo de encarar os fatos. Em outros termos: se fôssemos julgar os
fenômenos a partir de critérios transcendentais, aí, sim, seria lícito
falar em cisão entre as opiniões do senso comum, uma vez que, para
o entendimento, seria preciso o domínio de um esquema mental

10 ―A faculdade sensitiva encontra-se na origem de todo conhecimento. É ela que


torna possível a atividade superior ou espiritual‖ (BOHNER; GILSON, 1985,
p. 471).

37
sofisticado. Tal empreendimento é criticado por Arendt, pois conduz
a imposição de normas e padrões para a conduta política ou do
mundo comum. Em suma: não haveria espaço para a política
autêntica, baseada na troca sadia de opiniões.
Com essa última consideração, da noção de senso comum,
ainda que sucinta, diante da complexidade do pensamento de Aquino,
passaremos a exposição do pensamento de Arendt, segundo nosso
objetivo principal, que é a compreensão do papel do senso comum no
cotidiano do espaço público.

Hannah Arendt e o senso comum

―Como é pequena a diferença entre o instruído e o ignorante


no julgar, enquanto há a maior das diferenças no fazer‖
(CÍCERO apud ARENDT, 1992a, p. 375).

―Deve-se estar só a fim de pensar; é preciso companhia para


desfrutar de uma refeição‖ (ARENDT, 1978, p. 266).

É com o juízo que avaliamos situações. Entretanto, se


tomarmos os juízos elaborados pela ciência, veremos que sua
realização e entendimento somente são possíveis a partir da
universalização do particular, ou seja, a compreensão dos dados
singulares somente é possível a partir da mediação dos esquemas
teóricos, das leis universais (JARDIM, 1992a). O processo científico
abandona o senso comum ao abstrair e subsumir os particulares nos
esquemas gerais11. A substituição da pluralidade por ideologias
totalitárias, as quais impõem verdades universais, condicionou a
política, a esfera da liberdade do indivíduo. Destituído das influências
de padrões universais, o juízo encontra o seu lugar, expressão do
senso comum, da forma plural de ver e se relacionar com o mundo.
Por esse prisma, o sensus communis não passa da formulação da
experiência ―[...] em juízos evidentes e imediatos‖ (GALETTO, 2009,
p. 47). Por isso, ele é a ‗ponte‘ entre os homens e as coisas
(GALETTO, 2009).

11 A ciência é o refinamento do senso comum (ARENDT, 1992a).

38
Realidade e aparência

Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas,


naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E
o que há de comum entre elas é que aparecem e, portanto, são
próprias para serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas
(ARENDT, 1992a, p. 17).

A concepção de um mundo dual, no qual todas as coisas


possuem um fundamento ou uma causa mais elevada, não encontra
ressonância em Arendt. O mundo da coisa-em-si kantiana ou o
mundo platônico deu lugar ao mundo da superfície, da aparência. Em
outros termos, o mundo dos fenômenos é o que prevalece; e quando
buscamos por trás dele, deparamos apenas com outro fenômeno. É,
pois, nesse mundo que todas as coisas aparecem, homens, animais,
ações etc12. Os homens também se apresentam através de suas ações e
palavras, mostrando, assim, que ‗escolhem‘, de certo modo, ‗como
querem aparecer‘ (ARENDT, 1992a).
Mas o que dizer da realidade do que aparece? A autora
responde:

Por um lado, a realidade que percebo é garantida por


seu contexto mundano, que inclui outros seres que
percebem como eu; por outro lado, ela é percebida pelo
trabalho conjunto de meus cinco sentidos. O que, desde
São Tomás de Aquino, chamamos sensus communis é uma
espécie de sexto sentido necessário para manter juntos
meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo
objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e ouço; é a
‗mesma faculdade (que) se estende a todos os objetos

12 Ao falar da vida do espírito utilizamos metáforas (linguagem metafórica do eu


comigo mesmo – diálogo silencioso). As operações da alma são expressas por
um olhar, um gesto, um som etc. (ARENDT, 1992a). Com a autora: ―O que
fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria
experiência, mas o que pensamos dela quando sobre ela refletimos.‖ (ARENDT,
1992a, p. 26).

39
dos cinco sentidos‘ (ST I, q. 1, 3, a. 2; v. 1) (ARENDT,
1992a, p. 39)13.

Para Arendt, a ‗sensação de realidade‘ diz respeito ao


senso comum14, à unidade em meio à diversidade dos sentidos
externos; daquilo que percebemos, e que se apresenta como um
objeto idêntico, embora observado de perspectivas distintas
(ARENDT, 1992a). A sensação de realidade depende, segundo a
autora, do contexto, ―[...] que dota cada objeto singular de seu
significado específico‖. Completamos essa afirmação com mais essas
palavras de Arendt (1992a, p. 40):

[...] um sentimento de realidade (realness) ou realidade


acompanha de fato todas as sensações de meus sentidos
que, sem ele, não fariam ―sentido‖. Eis porque São
Tomás definia o senso comum, seu sensus communis,
como um ―sentido interno‖ – sensus interior – que
funcionava como a ―raiz comum e o princípio dos
sentidos exteriores‖ (‗Sensus interior non dicitur communis
sicut genus; sed sicut communis radix et principium exteriorum
sensuum‘- ST I, q. 78, a.4; v. 2, p. 433 )

O sentimento de realidade é o senso comum. Abandoná-lo,


como propôs Descartes, em prol da verdade do método, é ocultar-se
nas alturas do pensamento, distante do mundo das aparências, pois,

13 Em A crise da cultura: sua importância social e política, publicado anteriormente A


vida do espírito, assim Arendt define e caracteriza o senso comum: ―O common
sense, que os franceses tão sugestivamente chamam de ‗bom-senso‘, le bons sense -
, nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo comum; a isso
devemos o fato de nossos cinco sentidos e seus dados sensoriais, estritamente
pessoais e ‗subjetivos‘, se poderem ajustar a um mundo não-subjetivo e
‗objetivo‘ que possuímos em comum e compartilhamos com outros.‖
(ARENDT, 2009, p. 275-76).
14 ―A perda do sentido é acompanhada pela perda do senso comum entendido
como sentido das realidades, que significa basicamente que se perde a fé no
mundo tal como ele se abre ao homem numa experiência‖ (ROVIELLO, 1987,
p. 125).

40
com isso, deixa-se o ‗sensorialmente dado‘ (ARENDT, 1992ª)15. E,
abandonar o mundo aparente em prol de metáforas cientificamente
construídas, não condiz com a ação dos homens no mundo comum.
Estaria em conformidade com a busca de significados para uma
concepção científica de aspectos do real, e que respondem a
finalidades precisas e especificadas pela comunidade de cientistas. A
política, quando observada a partir da construção científica,
transformaria a sociedade num experimento, cujos resultados são
previstos por uma teoria universal. O senso comum, revelador de
‗sentidos‘ entre as pessoas, passaria por correções e perderia a
singularidade de seu objeto, que é subsumido num esquema universal,
válido por desfazer a heterogeneidade. O olhar da razão, com seus
critérios, assume o sentir, próprio do senso comum. Na esfera
política, geraria um mundo dominado por grupos de poder, os quais
impõem suas normas e escolhas, baseadas em intervenções e metas a
serem alcançadas. Esse procedimento compromete a ação autêntica,
conduzida na esfera pública, transformando-a num espaço para a
satisfação privada.

Juízo e apreensão do mundo

É o juízo que torna inteligíveis os acontecimentos, os quais


permaneceriam sem qualquer sentido (GALETTO, 2009). É, pois,
uma das atividades que nos possibilita ―[...] compartilhar-o-mundo
[...]‖, segundo Arendt (2009, p. 276). Atentemo-nos a uma definição
sintética do juízo:

Resumidamente, a faculdade do juízo tem as seguintes


características: permite a ‗mentalidade alargada‘, ou a
opinião dos demais para que o juízo seja considerado
válido; necessita recorrer à faculdade da imaginação e
reflexão assim como ao ‗sensus communis‘, ou seja, o

15 Para Kant, na leitura de Arendt, a Razão (Vernunft) é a faculdade de pensar; e o


intelecto (Verstand), responsável pela apreensão de percepções (ARENDT,
1992a, p. 45).

41
verdadeiro sentido de comunidade que possuímos por
nossa qualidade essencial de seres sociais (GOMES,
2012, p. 86).

Arendt busca em Kant os principais aspectos do juízo que lhe


interessam, e que consiste no juízo político. Para Kant, na
interpretação de Arendt, o juízo reflexivo ou estético aplica-se à
questão do gosto e não se encontra condicionado a conceitos
universais, os quais antecederiam o julgamento. Não se trata de uma
decisão sobre o certo e o errado, apropriada à razão (ARENDT,
1992a). Se compararmos a Crítica da Razão Prática com a Crítica do
Juízo, prontamente notaríamos que a primeira apela à universalidade
da lei, válida em todos os rincões do universo, que porventura
utilizarem a razão. Por outro lado, a segunda possui sua ―[...] validade
rigorosamente limitada aos seres humanos na Terra.‖ (ARENDT,
1992a, p. 370). Assim, não se trata do uso da razão, como bem afirma
Arendt (1992a) acerca do juízo sobre a beleza de uma rosa: ao
afirmarmos diante de uma flor ‗Que rosa bela!‘, não o fizemos a partir
do raciocínio ―[...] todas as rosas são belas; esta flor é uma rosa; logo,
ela é bela‖ (ARENDT, 1992a, p. 370; 1992b, p. 13-14; ZERILLI,
2005, p. 159). Não partimos, pois, de uma regra geral para a
demonstração do particular.
Segundo Arendt, o gosto e o olfato são os sentidos mais
discriminatórios, estando relacionados à particularidade do ato de
sentir (ARENDT, 1992a), ou seja, o odor de uma flor pode ser
relembrado na presença do objeto, mas jamais suscitado pela
memória. Com efeito, a imaginação e o senso comum são as
faculdades que solucionam essa questão, uma vez que, pela primeira,
internalizamos o objeto, sem a necessidade de sua presença na
percepção direta; pelo senso comum, levamos em conta o interesse
do juízo do gosto em sociedade, isto é, vale o compartilhável. Em
outros termos, a imaginação possibilita a transformação do objeto em
algo representável e, portanto, passível de reflexão (ARENDT,
1992a).
A questão que se coloca, e que envolve o senso comum e a
comunicabilidade, reside na escolha entre o que causa prazer ou
desprazer, no ato de julgar. Nas palavras de Arendt:

42
O próprio ato de aprovação dá prazer; o próprio ato de
desaprovação causa desprazer. Daí a questão: como
escolher entre a aprovação e a desaprovação? Um
critério podemos arriscar, consideramos os exemplos: o
critério é a comunicabilidade ou o caráter público. Não
ficaremos ultra ansiosos para anunciar nossa alegria na
morte de nosso pai ou nossos sentimentos de ódio ou
inveja; não sentiremos, por outro lado, remorsos ao
dizer que gostamos de fazer o trabalho científico e
tampouco ocultaremos nossa dor na morte de um
excelente marido (ARENDT, 1992a, p. 378).

Arendt completa sua opinião dizendo que o critério de


escolha é a comunicabilidade e o senso comum (1992a). Entretanto,
para distinguir o senso comum de outros igualmente comuns, a
autora, na leitura de Kant, pressupõe o sensus communis, um sentido
extra, ―[...] que nos ajusta a uma comunidade.‖ (ARENDT, 1992a, p.
378; 2009, p. 276)16. Assim, na leitura arendtiana de Kant, lemos:

[...] O gosto é este ‗senso de comunidade‘ (gemeinshaflicher


Sinn), e senso significa aqui ‗o efeito de uma reflexão
sobre o espírito‘. Esta reflexão me afeta como se fosse
uma sensação [...]. ―Poderíamos até mesmo definir o
senso do gosto como a faculdade de julgar aquilo que
torna comunicável em geral, sem a mediação de um
conceito, o nosso sentimento (como a sensação) em
uma representação dada (não a percepção)‖ (ARENDT,
1992a, p. 379).

16 ―Kant, que decerto não era supersensível às coisas belas, era profundamente
cônscio da qualidade pública da beleza; e era devido à relevância pública desta
que ele insistia, em oposição ao adágio corriqueiro, em que os julgamentos de
gosto são abertos à discussão, pois ‗esperamos que o mesmo prazer seja
partilhado por outros‘ (Crítica do Juízo, §§ 6, 7 e 8). O gosto, portanto, na
medida em que, como qualquer outro juízo, apela ao senso comum, é o próprio
oposto dos ‗sentimentos íntimos‘‖ (ARENDT, 2009, p. 276).

43
O juízo do gosto não envolve, como já foi observado,
aspectos cognitivos ou científicos, mas pressupõe um acordo dentre
todos, no qual participaria o sensus communis (ARENDT, 1992a). Não
se julga com o auxílio de categorias, ou no sentido de alcançarmos um
resultado com a produção de um conceito, mas envolve a imaginação,
reflexão, a comunicabilidade e sociabilidade (DOSTAL, 1984). Em
outros termos, embora haja diferenças na concepção de juízo antes e
após A vida do espírito17, importa-nos o papel dessa atividade na criação
do espaço público, o qual somos criadores e criaturas (ARENDT,
1992b). O juízo é resultado da vida em comum, e, por isso, ao
possibilitar a aparição do indivíduo na cena pública, o faz sem ferir a
realidade, aceita pelo sentido comum. Os sentidos próprios,
familiarizados com o contexto comum, não poderiam revelar algo
inusitado, totalmente distinto da vivência comum18. Por isso que
ideologias totalitárias são recebidas com o recurso da violência, já que
são imposições de visões de mundo específicas da esfera privada. Por
exemplo, a colonização de um território não condiz com a realidade
social do grupo dominado (nativos no Brasil, América espanhola etc.),
entrando em choque com o modo de compreensão do mundo.
Enfim, o julgamento envolve o pluralismo, as opiniões que
partem da esfera pública, enunciadas no espaço comum. As opiniões
abarcam a imaginação, uma vez que devemos levar em conta o outro,
buscando um sentido comunicável, sem, no entanto, apelar para
conceitos universais, que se imponham acima dos juízos particulares.
Com efeito, consiste na troca de opiniões independente de uma visão
uníssona, estabelecida mediante o sacrifício da voz de cada um.

17 A discussão das diferenças pode ser encontrada em Beiner (1992b) e Dostal


(1984).
18 ―Juízo, especialmente os de gosto, sempre refletem sobre os outros e seus
gostos, tomando em consideração seus possíveis juízos. Isso é necessário, pois
sou humano, e não posso viver a parte dos homens. Julgo como um membro
dessa comunidade, e não como um membro de um mundo suprassensível [...].‖
(ARENDT, 1992b, 67 apud DOSTAL, 1984, p. 728).

44
Considerações finais

O que poderíamos asseverar acerca da relação de Tomás de


Aquino com Arendt? O uso do sensus communis fora proposto desde,
pelo menos, Aristóteles, mas Tomás de Aquino o reinterpreta. Arendt
o utiliza para ilustrar algumas passagens, com o intuito de
fundamentar a pluralidade da esfera social, a qual envolve múltiplas
vozes. Para isso, sedimenta ontologicamente a sua posição, rejeitando
o dualismo kantiano entre coisa em si e fenômeno, aceitando apenas
este último. Assim, o espaço que atuamos é o fenomênico, ou seja,
dos elementos que ‗aparecem‘, sem que haja qualquer substrato ou
essência a fundamentá-los. Somos o que ‗escolhemos‘ ser, na ação e
no diálogo no espaço público. Ora, tendo em vista essa posição,
Arendt busca explicitar a opinião ou o juízo político. O espaço
político é, segundo a autora, o mundo comum, e nossas opiniões são
baseadas no senso comum, num acordo tácito para garantir a
comunicabilidade. Entretanto, esse acordo não envolve qualquer
processo de conceituação ou padrões transcendentais, e sim o sensus
communis que, da perspectiva kantiana, na Crítica do juízo, consiste no
gosto. Trata-se, em termos gerais, de julgar a partir do outro, ou seja,
sei que não rirei da morte de um amigo em seu funeral, uma vez que
isso estaria distante do mundo comum, da experiência em comum.
Assim, o sensus communis, ao reunir em si as ‗várias sensações‘,
tornando a percepção isolada uma experiência comum, não rejeita a
sua comunicação. Em Tomás de Aquino é o início do processo que
conduz ao conceito e ao conhecimento intelectual, em Arendt, a
condição para a vida em comunidade.

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Abranges, Cesar A. R. de Almeida e Helena Martins. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará/Editora UFRJ, 1992a.

ARENDT, Hannah. The Life of the Mind. New York: Harcourt,


Inc., 1978.

45
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Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 248-
281.

ARENDT, Hannah. Lectures on Kant’s political philosophy.


Edited by Ronald Beiner. Chicago: University of Chicago, 1992b.

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Hannah. Lectures on Kant’s political philosophy. Chicago:
University of Chicago, 1992b.

BOEHNER, P.; GILSON, E. História da Filosofia Cristã.


Tradução de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1985.

DOSTAL, Robert J. Judging Human Action: Arendt‘s Appropriation


of Kant. The Review of Metaphycics, Vol. 37, n° 4, 1984, p. 725-
755. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/20128082>.
Acesso em: 10 jun. 2015.

GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de São Tomás


de Aquino: psicologia, metafísica. Tradução de C. N. Abbud
Ayoub e Carlos E. de Oliveira. São Paulo: Paulus, 2013.

GALETTO, Gerardo. Hannah Arendt: sentido comum y verdade.


Buenos Aires: Biblos, 2009.

GOMES, Miguel R. R. Acción, Pensamiento y Juicio em Hannah


Arendt. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2012. Disponível
em: <http://www.lusosofia.net>. Acesso em: 10 jun. 2015.

JARDIM, E. Prefácio. In: ARENDT, Hannah. A vida do espírito.


Tradução de Antônio Abranges, Cesar A. R. de Almeida e Helena
Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Editora UFRJ, 1992a.

46
KANT. Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de
Valerio Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.

ROVIELLO, Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em


Hannah Arendt. Tradução de Bénédicte Howart e João F. Marques.
Lisboa: Instituto Piaget, 1987.

SERTILLANGES, Antonin.-Dalmace. La Philosophie de S.


Thomas D’Aquin. Tomo II. Paris: Aubier, Éditions Montaigne,
1940.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tomo I. São Paulo:


Edições Loyola, 2001.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Tomo II. São Paulo:


Edições Loyola, 2005.

TOMÁS DE AQUINO. Quaestiones Disputatae I: De veritate.


Roma: Marietti, 1964.

ZERILLI, Linda M. ‗We Feel Our Freedom‘: Imagination and


judgment in the Thought of Hannah Arendt. Political Theory, v. 33,
n. 2, 2005, p. 158-188.

47
Capítulo 3

Reflexões sobre os mitos antijudaicos


medievais: o simbolismo do sangue nas
relações cristãs judaicas (Século XII a
XV)19
Sergio Alberto Feldmann

Introdução

A estigmatização da alteridade é um tema milenar e que


transcende ao ontem e ao hoje. Os gregos denominavam os outros,
como bárbaros e esta herança foi legada ao Ocidente, e a cristandade
como um todo. Isso ocorre em todas as sociedades e contamina todos
os grupos e setores sociais. A discriminação e a inferiorização do(s)
outro(s) é uma forma de autodefinição da identidade coletiva: eu sou
parte deste grupo e eu não sou parte daquele. Identidade e alteridade
são complementares e dependem um do outro.
No contexto do Ocidente Medieval convivem lado a lado,
cristãos e judeus, e no Sul do Continente Europeu, há muçulmanos
também. Esta interação é ora pacífica, ora belicosa. Há trocas
culturais preciosas que ampliarão os saberes e as técnicas, mas há
também repúdio, ódio e violência. A amplitude destas relações nos
demanda um recorte e um direcionamento do estudo. Inicialmente
refletiremos no amplo e num recorte temporal extenso; gradualmente
focaremos na Idade Média Central.

19 Este trabalho é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizado no EHESS


Paris com patrocínio de bolsa da CAPES.
Este texto tem como objetivo refletir sobre a construção do
estereótipo medieval do judeu, no assim denominado Ocidente
Medieval, nos séculos XI até o XIII. A problemática central é como
numa sociedade medieval os mitos e as representações circulam, ora
da cultura clerical no sentido da cultura popular, ora no sentido
oposto. E como se fazem de maneira aparentemente imperceptível,
trocas e apropriações entre as duas religiões: da estabelecida que é o
cristianismo, para a tolerada e outsider, que é o judaísmo. No processo
de circularidade das ideias, percebemos também uma construção que
denominamos inversão. Tomam-se as crenças e afirmações do
opositor e se reconstrói parte ou o conjunto de maneira a afirmar a
verdade do lado que se apropria.
O período das Cruzadas traz em seu bojo uma alteração
radical na percepção dos judeus. Até o ano mil, os judeus eram uma
minoria inferiorizada, mas ao mesmo tempo protegida pela Igreja.
Esta condição se definira por Agostinho de Hipona (séc. V) e pelo
papa Gregório Magno (séc. VI). Explicaremos na sequência esta
condição. Este status manteve os judeus segregados, mas sem sofrer
perseguições e tentativas de conversão forçada, até as Cruzadas. No
novo contexto há perseguições e violência, e pressões no intuito de
converter os membros da minoria, à força. Os judeus reagem de uma
maneira inédita.
A atitude judaica de resistência gera o sacrifício em
‗santificação do Nome Divino‘ que propicia a morte de muitos
judeus, que sacrificam suas famílias e depois se autoimolam. Esta
reação direciona a percepção cristã para uma conspiração judaica que
se consolida, inicialmente elaborada no seio da cultura popular, mas
ascendendo, por vezes, até a cultura clerical erudita envidando a
construção de diversos estereótipos tais como: crime ritual, a
profanação das hóstias e a efeminação dos judeus que são descritos,
‗sangrando‘ em função de seus pecados, em especial por causa do
deicídio. As fontes são fundamentalmente clericais.

Judas e Ário: Estigmatizando através do Sangue Vertido

Inicialmente, num amplo recorte, nos voltaremos a algumas


das fontes bíblicas ou patrísticas, para adiante passarmos para o

49
período analisado. No livro de Atos dos Apóstolos há um trecho que
descreve um fato assaz interessante sobre o que veio a ocorrer com
Judas Iscariotes. Diz a narrativa que o apóstolo Pedro Simão sugere
que recaísse sobre o traidor Judas Iscariotes a profecia que dizia que
este seria punido pelo sangue do redentor, já que o entregara ao algoz
romano para ser penitenciado, torturado e morto com sofrimento.
Diz o texto que com o dinheiro da delação, Judas adquirira um campo
e nele teria sido punido, da seguinte maneira:

Ora este adquiriu um campo com o galardão da


iniquidade e, precipitando-se, rebentou pelo meio, e
todas as suas entranhas derramaram. E foi notório a
todos que habitam em Jerusalém, de maneira que na sua
própria língua, este campo se chama Alcedama, isto é
campo de sangue (At 1,18-19)20.

Esta explosão das entranhas com as vísceras e o sangue sendo


vertido sobre a terra, reflete um forte simbolismo que mostra a íntima
relação entre o crime e a punição. O sangue vertido era o castigo e
efeito da responsabilidade por um crime de sangue. A percepção da
conexão do ‗olho por olho, dente por dente‘ é evidente. O castigo
pelo sangue é muito simbólico e revela a importância entre os judeus
e cristãos, do significado do sangue. Há diversas reflexões que
precisamos analisar para poder voltar a esta descrição do crime e do
pecado de Judas e sua conexão com a nossa temática. As tripas que
explodem e o sangue de Judas que exala serão modelo da punição aos
traidores, heréticos e opositores da fé. Pecado de sangue, punido pelo
sangue.
Agregaremos apenas outro exemplo: o caso de Ário, o
diácono que contestou o dogma trinitário, no início do século IV e
gerou um cisma ou heresia, dependendo da conceituação que se
utilize. A Igreja que emergiu desta contenda doutrinária, tratou de

20 O radical hebraico ADAM (Alef- dalet-mem) serve criar as palavras: Adam


(Adão=homem), Adama (terrra), Adom (vermelho), Dam (sangue). As múltiplas
conexões e simbolismo extrapolam nossa limitação temática e nosso espaço.

50
definir Ário e seus seguidores, como heréticos. Para mostrar e
enfatizar o seu erro e desvio da verdade Rufino, escritor eclesiástico,
que viveu em Constantinopla na época de Teodósio o grande, ou seja,
após a derrota do arianismo, escreveu uma narrativa de sua morte e
elaborou uma paradigmática punição, que associa o herege com o
Judas traidor. Ário morre através da explosão de suas tripas, num
sanitário, com dores e vexação (JOHNSON, 1998). O sangramento
está associado ao traidor, ao herético e também a mulher que foi o
início do pecado original. O enfoque misógino é muito interessante,
mas foge as intenções deste trabalho.
Estes dois modelos ilustram a relação do pecado e da punição
com o sangue e permitem que voltemos nosso olhar para alguns
exemplos da importância do sangue em alguns trechos das Escrituras.
Retrocedamos um pouco mais, rumo a Bíblia.

Significados do Sangue no Judaísmo Bíblico

Há uma diversidade de temáticas relacionadas com o sangue


na Bíblia Hebraica21 que vão desde os sacrifícios de animais no
período patriarcal, descritos no livro do Gênesis, passando pelos
sacrifícios no Tabernáculo, nos quarenta anos no deserto e no
período de Josué e dos Juízes, e culminando nos dois templos de
Jerusalém. O sangue vertido era uma maneira de cultuar o Deus, de
celebrar o pacto entre o mesmo e o povo de Israel, de penitenciar e
redimir-se de pecados e transgressões e uma forma de manter uma
identidade coletiva. A unidade das tribos e/ou dos reinos era obtida
em torno do santuário, das três festas de peregrinação e dos
sacrifícios. O sangue comum pela descendência dos patriarcas era
ampliado e congregava os que se dispunham a cultuar o Deus único,
através de sacrifícios. Usualmente o sacrifício e o sangue vertido
simbolizavam a ação de graças pelas colheitas ou a remissão de
pecados e desvios de conduta. O sangue do animal sacrificado era

21 Também denominada TANACH, que seria uma sigla ou abreviação de Torá


(Lei ou Pentateuco), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos) conjunto conhecido
de maneira geral, e ideologizada como Antigo Testamento.

51
uma via de purificação e restauração ou manutenção do pacto. Mas há
outros aspectos que complementam este simbolismo tão acentuado.
Um segundo exemplo de ritual é o texto paradigmático de
Êxodo 24, no qual Moisés, que não era sacerdote e, portanto não
celebrava sacrifícios, após executá-lo, por uma única vez, usa do
sangue dos animais abatidos para aspergir na comunidade. Esse seria
um rito de passagem pontual e único: uma afirmação do sentido
coletivo do grupo e de sua dedicação ao Deus único. Nunca mais há
menção de algo semelhante. Assim sendo um dos muitos pactos entre
Deus e as tribos fora feito através do sangue dos sacrifícios, aspergido
sobre a comunidade. Este ritual não será novamente realizado e sua
narrativa tem uma força e um simbolismo passíveis de diversas
exegeses posteriores.
Um terceiro ritual que nos interessa é a circuncisão, visto que
após oito dias um recém-nascido ingressa no pacto dos patriarcas, por
meio da extirpação do prepúcio, numa cerimônia de rito de passagem.
As gotas de sangue do pequeno simbolizam um sacrifício ritual. Esse
ritual segue até nossos dias e é um marco identitário judaico que
resiste e define a inserção no coletivo da religião.
O sangue também tem múltiplos simbolismos no cristianismo,
mas a ênfase maior é o sangue de Jesus e o sangue dos mártires.
Através dos tempos a cristandade enfatizou o sangue e a martiriologia
como um dos pilares da fé. Na cerimônia da missa, o vinho configura
o sangue sagrado de Cristo, que é compartilhado pelos fiéis, ainda que
no Medievo o vinho seja restrito aos oficiantes e somente o pão
(corpo do Redentor) seja distribuído aos fiéis. Os mártires foram
posteriormente ao seu sacrifício, considerados como santos e alçados
a um patamar de sacralidade. A identidade cristã passa pelo sangue: de
Cristo e dos mártires. Desta maneira percebemos de maneira geral, a
importância do simbolismo do sangue nas duas crenças. O sangue é
amplamente utilizado e serve para aproximar o fiel de Deus, para
purificar e para ensejar a continuidade do pacto, em ambas as
religiões. Estas concepções se ampliam a partir do final do século XI.

52
O Sangue no Contexto das Cruzadas

O século XI foi um período de crescimento demográfico,


social e de intensa efervescência espiritual. O crescimento
populacional gerou avanços na economia, fez as cidades começarem a
renascer e alterou as relações de poder. O movimento de reforma
espiritual, genericamente denominado Reforma Gregoriana gerou
alterações nas relações entre o alto clero e diversos segmentos sociais.
O conflito das investiduras e os choques entre papas e imperadores, e
posteriormente entre papas e reis é o nível superior desta série de
conflitos. A Igreja vai envidar esforços para controlar e purificar o
corpo social, reformando o clero, e tentando manter a sociedade leiga
mais regrada e submissa aos valores da fé. Uma das tentativas da
Igreja foi canalizar a violência e o espírito belicoso dos cavaleiros para
‗fora da cristandade‘.
Ao gerar a paz de Deus e tentar controlar a violência interna
da cristandade, o alto clero tentou tornar a guerra um instrumento da
fé. Proibir lutas em certos tempos e, em determinados espaços foi
uma articulação para cristianizar a cavalaria e proteger os clérigos e
leigos desarmados ou mais fracos, proteger os lugares sagrados como
igrejas, mosteiros e cemitérios da depredação cavalheiresca. As
cruzadas sob esta ótica restrita seriam uma válvula de escape para
‗exportar‘ a violência interna e canalizá-la para espaços pagãos ou
infiéis. O sangue dos infiéis era vertido em nome de Deus e a guerra
era sacralizada, gerando o perdão aos pecados e penitência. Diz Falbel
repetindo as palavras do papa que:

[...] ‗os que morrerem em batalha receberão a absolvição


e a remissão de seus pecados‘ e enfatiza adiante que o
concílio de Clermont decretou [...] a remissão das penas
temporárias pelos pecados a todos que, com boas
intenções, tomassem parte na guerra santa (FALBEL,
2001, p. 35).

Os massacres dos judeus no período das cruzadas não foram


estimulados pelo alto clero e nem pelo papado. Prevalecia na
cristandade o modelo agostiniano de tolerância aos judeus,

53
considerados como ‗o bibliotecário-escravo‘, por terem recebido a
revelação, mas mesmo tendo a encarnação ocorrido em seu meio, não
haviam aceitado a verdade da fé cristã. Eram a prova viva da verdade
cristã e viveriam numa condição de inferioridade, relativa humilhação,
mas protegidos em seus direitos básicos. Não poderiam sofrer
violências físicas e nem conversões forçadas. Um caso de tolerância
no sentido pleno, mas com severas restrições jurídicas. Essa postura
foi endossada pelo papa Gregório Magno na virada entre os séculos
VI e VII e praticada, com algumas exceções em todo o Ocidente
Medieval, até o período das Cruzadas. Então isto muda.
A violência ocorreu no Império Germânico e no reino da
França no período da primeira Cruzada (c. 1096) e novamente no
reino da Inglaterra na terceira Cruzada (no século XII). O movimento
inicial, no império, teve participação de pequenos nobres, alguns
nobres arruinados e hordas de desocupados, que mesclavam
camponeses, pequenos artesãos e comerciantes. O contexto da
chacina é o período entre o Concílio de Clermont (1095) e a partida
dos exércitos dos nobres para o Oriente. O imperador Henrique IV
não tinha força suficiente para exercer sua autoridade, e assim sendo,
as turbas atacaram diversas comunidades no império. As narrativas
enfatizam a resistência judaica e o martírio de judeus. Uma destas
narrativas é de Salomão bar Sansão (Shlomo bar Shimshon) escrita no
século seguinte, por voltas de 1140 (FALBEL, 2001).
A historiografia diverge nas análises e não nos alongaremos na
discussão. Há uma vasta polêmica na análise das atitudes e das
motivações. Há uma ruptura com a tradição judaica, na qual a vida
prevalece: somente em casos especiais era preferível morrer. Ainda
assim, nunca através do sacrifício da própria família e de si mesmo.
Isso muda.
Os judeus colocados entre a espada e a cruz, premidos pela
perspectiva de que os homens adultos seriam mortos se não se
convertessem e que as mulheres e crianças seriam sequestradas e
forçadas à conversão, e possivelmente violentadas pela turba, optam
pela opção de um martírio coletivo. Equipados com aparatos de abate

54
de animais de acordo com as normas da assim denominada kashrut22
que eram vistos como réplica dos instrumentos de sacrifício ritual no
templo de Jerusalém, destruído no ano 70 da era comum e não mais
refeito desde então. Seria uma maneira de sacralizar a violência pela
qual os judeus seriam abatidos, e adotar uma maneira de salvar as
almas dos inocentes, que caso fossem forçados a conversão,
perderiam o direito a redenção no final dos tempos.
Este tipo de reação judaica não foi seguido por todos os
judeus. Ainda assim o número expressivo de imolações em nome da
‗santificação do Nome Divino‘ gerou um forte impacto na sociedade
medieval. Ocorre uma inversão de posições, pois o papel de mártires
que era tipicamente parte do repertório cristão e que compunha uma
vasta hagiografia de Santos estava sendo usurpado pelos mártires
judeus.
A condição de mártires dos judeus, na percepção cristã, era
preocupante. Há uma ‗inversão‘ de posições. Yuval sugere que há
‗apropriações bilaterais‘. Os símbolos do ‗outro‘ são reinventados e
reconstruídos de maneira a se apropriar deles e neutralizar o símbolo
do oponente. Primeiro, seria retirar a santidade dos símbolos e depois
os reconstruir dentro de sua própria religião: ―[...] adotar a linguagem
cristã e ‗judaizá-la‘, tal como se dissesse que ‗o nosso é maior que o
vosso‘, assim expropriando e tomando posse dos símbolos do
oponente […]‖ (YUVAL, 2006, p. 203, tradução nossa) 23.
Não nos estenderemos nas análises e nas divergências
historiográficas. O clero tem atitudes diferentes para interagir diante
desta reação desesperada dos judeus. O alto clero e em especial o
papado reage imediatamente com diversas bulas papais que incitam os

22 Kashrut são as normas de abate ritual e as regras alimentares judaicas. Em


suma há animais, cuja carne é permitida ao consumo e outros que não podem
servir de alimento ao judeu. O abate de animais permitidos deve ser eficaz e
rápido para diminuir de maneira drástica o sofrimento do mesmo. Há uma
diversidade de regras.
23 ―[...] to adopt the Christian language and to ‗Judaize‘ it, as if to say, ‗ours is
greater than yours‘ thereby to expropriate and take control of the opponent‘s
symbols‖.

55
fiéis a manter a tradicional tolerância no modelo agostiniano e não
forçar os judeus a conversão e nem tocá-los fisicamente. Insta os fiéis
a pregação amistosa e a evangelização teológica (FELDMAN, 2012).
24
Já ao nível do baixo clero há outro tipo de efervescência.
Há uma reelaboração no nível popular e nos círculos do baixo
clero que analisa os desígnios judaicos. Os assassinos de Cristo não
poderiam ser de fato mártires. A malignidade judaica estava por detrás
de tudo: os judeus eram tão cruéis que eram capazes de matar seus
filhos e esposas, se pudessem prejudicar os cristãos e desacreditá-los.
Imaginem o que fariam com os filhos dos cristãos se pudessem tocá-
los. Começa a ser gestada, no seio da cultura popular, a acusação de
crime ritual. Não aparenta ser algo consciente, articulado ou
deliberado. Em poucas décadas surgirá e se tornará um fenômeno de
longa duração.

O Crime Ritual e os Mitos Antijudaicos

A acusação de crime ritual é antiga, e já havia sido feito aos


judeus por Demócrito um escritor helenizado que declarou que os
judeus aprisionavam um gentio e o mantinham por sete anos num
claustro no templo de Jerusalém, após o que o sacrificavam a seu
Deus. Apion, o adversário de Flávio Josefo manteve o conteúdo, mas
reduziu o tempo para um ano (TRACHTENBERG, 1965).
Esta infâmia foi direcionada para os primeiros cristãos, e se
entendia que ambos os grupos eram um misto de antropofágicos e
envolvidos em consumo de sangue. O modelo pode ser adaptado
para diabolizar, opositores, dissidentes ou um grupo minoritário que
se deseje exorcizar. Segue sendo utilizado, mas isto transcende os
limites de nosso estudo.
A acusação voltou aos judeus e se reconstrói no período que
se sucede ao ano Mil. Na opinião de Poliakov (1979), não existia
nenhum tipo de acusação semelhante aos judeus antes do período das

24 As bulas se repetem, de maneira semelhante, durante todo o século XII.


Geralmente começam com a expressão latina ‗Sicut judaeis non‘, de maneira que
recicla a expressão de Gregório magno (sec. VI).

56
Cruzadas que intensificou as tensões e a espiritualidade. O contexto
do martírio judaico gera no imaginário cristão uma gama variada de
temores e suspeitas. O mecanismo de ‗inversão‘ ocorre aqui: quem se
coloca no papel de vítima, esconde sua condição de algoz. O primeiro
caso foi relatado em Norwich nas Ilhas Britânicas em 1141 e o
seguinte em Blois (região do vale do Loire, atual França) e depois por
todo o Ocidente Medieval (TRACHTENBERG, 1965). Mas o que
seria este crime?
Diz Flannery (1968, p. 112) esclarecendo:

Definida estritamente significa o assassínio oficial de um


cristão, criança preferentemente, na Semana Santa, com
objetivos rituais. Uma definição mais ampla contém
qualquer assassínio de cristão por fins religiosos ou
supersticiosos, incluindo-se a extração de sangue para
fins de cura ou de magia, frequentemente chamados de
‗acusação de sangue‘.

Uma gama de motivos e motivações poderia ser alinhavada. O


efeito dos diversos casos de martírios judaicos gerara em alguns
setores sociais reflexões que permitiam que alguns dissessem: se os
judeus tiveram coragem e ‗sangue frio‘ para sacrificar suas famílias, o
que não fariam com as crianças cristãs?
Começa a ser gestada uma nova forma de associação dos
judeus com o sangue. Desde muito tempo haviam sido
responsabilizados pelo derramamento do sangue do Senhor. Sua
culpa lhes gerara um castigo: eram como Caim e por isso seriam
dispersos e sempre hostilizados como uma minoria de renegados,
cegos e incapazes de se arrepender e penitenciar. Agora esta condição
recebe novas formas de estigmatização da minoria judaica.
A acusação de crime ritual era insólita, pois o judaísmo proibia
o consumo de sangue. Os animais abatidos através das normas
dietéticas judaicas não poderiam ter sua carne consumida se o sangue
não fosse escorrido e retirado. Só depois disto poderiam comer esta
carne. O judaísmo sempre proibiu ingerir sangue, comer carne crua
ou mal cozida, o contato com ferimentos, sangramentos de todos os
tipos, seja ferimentos ou menstruação. Nos casos em que um judeu

57
tivesse contato com mortos, acudisse feridos sangrando ou apenas
tocasse uma mulher menstruada ficaria contaminado e deveria fazer
um banho ritual, para purificar-se.
Há ampla legislação bíblica, especialmente no livro do
Levítico e que foi analisada, entre muitos autores, por Douglas (1991).
Há também legislação talmúdica em amplos e diversos tratados, tal
como aquele denominado Pureza (toharot). Isso era do conhecimento
dos estratos superiores da cultura clerical. Os clérigos letrados e cultos
percebiam a falta de embasamento do libelo de sangue. O mesmo não
ocorria entre o baixo clero que incita a acusação e propaga o mito. E
num fenômeno de circularidade das ideias, penetra em toda a
sociedade e atinge aos poucos, espaços da cultura erudita.
Diversas acusações se sucedem e persistem através de séculos,
chegando a virada do século XIX para o XX. Papas diversos negaram
a consistência desta acusação infame (TRACHTENBERG, 1965). Já
um século depois da primeira acusação Inocêncio IV em 1247 negou
este libelo (POLIAKOV, 1979). Gregório X em 1272, Martinho V
em 1422, Nicolau V em 1447 e Paulo III em 1540 enunciaram
opiniões registradas por escrito que negavam a culpa judaica neste
tipo de crime.
A reação papal não impediu a manutenção e a profusão de
acusações de crime ritual (FLANNERY, 1968). A ultima acusação foi
encerrada na Rússia czarista, com a comprovação da inocência do
acusado Beilis em 1903, ou seja, há um século mais uma década
apenas. Quase um milênio e o mito cruzara a Europa e persistia
existindo.
Trachtenberg (1965, p. 181) admite que em casos isolados
tenha ocorrido violência de judeus contra cristãos. Diz: ―Algunos
judíos, individualmente, eran sin duda culpables de actos ocasionales
que suscitaban e merecían la ira de sus vecinos‖. Alinhava casos de
traficantes judeus de escravos e outras, mas compreende que se trata
de generalizações feitas a partir de casos isolados. Não vê nexo entre a
atitude de alguns judeus que definissem a atitude do judaísmo e do
coletivo judaico.
Contudo as similaridades com a punição de Judas e de Ário,
começam a aparecer, já no caso da acusação de 1140, em que a
pretensa vítima seria o jovem William de Norwich. Em paralelo á

58
acusação de crime ritual, vai se insinuando uma perspectiva de
punição, inspirada nos casos acima citados. A atuação do primeiro
xerife local é envidada em esclarecer o caso e evitar que crendices e
superstições fossem envolvidas. Ele viria a morrer e um segundo
xerife reabre o caso e sem ter mais a evidência física, visto o cadáver
já ter sido putrefato insinua no inquérito as evidências dos milagres
ocorridos.
O autor da crônica que descreve a A vida e os milagres de William
de Norwich enuncia a atuação distorcida do primeiro xerife: acusa-o de
ter sido subornado pela entrega de cem marcos e descreve sua morte
de maneira associada a maneira pela qual Judas e Ário vieram a
morrer: através de violentas convulsões intestinais, sangramentos e
hemorroidas. Diz o texto, referindo-se ao mesmo xerife:

Por dois anos, então, o sangue continuou a fluir em


intervalos frequentes, e a perda do mesmo, foi
enfraquecendo sua força física, e o tornou fragilizado: e
então ele se apercebeu que a justiça divina se
manifestava sobre ele, relutou em se penitenciar [...] e no
terceiro ano [...] exaurido por seu sangramento, vai a
Mileham onde se penitencia e morre (MONMOUTH,
1896, p. 111-112, tradução nossa)25.

Toda a obra está construída de uma maneira que pretende


beatificar e adiante até canonizar o mártir, Guilherme (William). Num
texto hagiográfico, há comumente aproximações entre a vítima e o
modelo de Jesus e dos mártires já tornados Santos ou beatos, de um
lado; de outro há a necessidade de prover os vilões, a alteridade
portadora do mal encarnado. Um dos modelos hagiográficos, comuns
ao longo do Medievo é aquele que associa a perversidade aos inimigos
da cruz, da verdadeira fé, ou seja, aos outsiders, neste caso os judeus.

25 Per duos igitur annos sanguine uicibus crebris per ima profluente virtutem
corporis sanguinem defectus vultui pallorem induxit, et quamuis iram dei super
se manifestam sentiret, totus tamen induratus nectum penitere voluit [...]
exhaustique cum sanguinis viribus, utinam vel tunc vere penitens diem clausit
extremum.

59
Confundir e mesclar judeus e Judas é fácil até na ortografia. Assim o
xerife aliado dos judeus e que os inocenta é corrupto, maligno e
merece este sofrimento, ao modelo de Judas.
Assim a punição de Judas e de Ário reaparece para punir um
cristão que não percebe as tramas judaicas, e nem a santidade e o
martírio da vítima dos judeus. O sangramento lento e prolongado
neste caso seria um aviso divino ao que se obstinava em aceitar a
verdade. Estiliza-se no texto a clássica frase, que se atribui ao povo
judeu, no momento da crucificação de Jesus: ―[...] O seu sangue
inocente caia sobre nós e sobre nossos filhos, que é retirada dos
Evangelhos‖ (MONMOUTH, 1896, p. 111-112, tradução nossa)26.
O conjunto da obra é hagiográfico e a função dos judeus é
apenas encarnar a malignidade e protagonizar o papel coadjuvante de
criminosos. Os feitos do cadáver do mártir, aliás, nunca encontrado
de acordo a maioria dos autores dos séculos XX e XXI são a parte
central da obra escrita décadas mais tarde. O corpo santo de um
mártir é dotado de poderes místicos, de acordo com a hagiografia. Os
mitos não necessitam de provas jurídicas e comprovações.
Constroem-se, difundem-se, tornando-se crença.
Voltemos-nos a outra acusação também comum neste
período: a profanação das hóstias. Com a consolidação da doutrina da
transubstanciação no quarto concílio de Latrão em 1215, a crença se
revestiu de uma ‗legitimação‘, visto a hóstia se transfigurar no corpo
efetivo do Cristo. Assim a acusação propunha que alguns judeus
obtinham, através de suborno de intermediários cristãos, hóstias que
eram devidamente torturadas e martirizadas. As hóstias adquirem
certo tipo de subjetividade, como se ao serem sacralizadas, não são
apenas objetos de um ritual, mas adquirem ‗vida‘. No imaginário
popular o sangue escorria das mesmas, mas normalmente, os
torturadores eram descobertos e punidos. Muitas vezes a própria
hóstia reagia, seja voando, seja sinalizando para que os cruéis judeus
fossem punidos.

26 Assemelhado a Mateus, 27, 25. No original dos Evangelhos: ―sanguis innocens


super nos et super filius nostrus [...]‖.

60
Há vasto folclore sobre o tema. Algumas pinturas retratam a
acusação, tal como uma sequência de pinturas de Paolo Uccello,
pintor florentino do século XV, realizadas em Urbino em c.1467.
Lembrando que Florença era opositora do Papado e estávamos no
Quatrocento, em plena renascença italiana. Mas a arte retrata as crenças
e uma suposta ‗realidade‘, mesmo se for fictícia e repleta de mitos.

Homens que Sangram: Mito Medieval e Moderno

Voltemos à cena da morte de Judas Iscariotes. A partir desta


representação que se fundamenta no texto canônico, se elaboram
teses e fundamentações que incorporam elementos da medicina
medieval. Os judeus eram categorizados como frágeis, de
personalidade fleumática e assemelhados às mulheres.
Em virtude desta fragilidade, os médicos cristãos
consideravam que os judeus sangravam de maneira geral, e
especificamente no período da Quaresma. Essa sangria era
consequência do pecado judaico, na morte de Jesus. A única maneira
de se curar seria através da conversão e do recebimento da hóstia
sagrada. Como os judeus não aceitavam Cristo, esta carência lhes
gerava a demanda de sangue cristão. Isso explicaria a necessidade
destes no período da Páscoa e as razões do crime ritual. Um adendo é
criado no século XIII e se manteve como complemento da acusação
de crime ritual.
O autor clerical Thomas de Cantimpre relata em sua obra
Miraculorum et exemplorum memorabilium sui temporis libri duo, que os
judeus sofriam sangramentos, de maneira cíclica, através do ânus,
numa variedade de hemorroidas. Thomas não considera que isto
ocorra mensalmente no ciclo lunar, mas apenas antes da Páscoa,
período em que a culpa judaica se acentuava (RESNICK, 2000).
A junção destas representações do judeu sangrando com o
desenvolvimento da medicina cristã, em virtude da vinda de médicos
e de literatura médica do oriente bizantino e árabe, com a noção dos
humores (ou fluídos), oriunda da medicina grega, traz uma reescrita
da síndrome do sangramento.

61
De acordo a Hipócrates, considerado como o criador desta
teoria dos humores, o corpo das mulheres era mais frio e úmido, por
que elas eram mais sedentárias. Os homens, geralmente mais ativos,
transpiravam e digeriam de maneira mais intensa ‗purgando‘ seus
corpos, do excesso de fluídos e das impurezas, e as mulheres deviam
menstruar para ficar limpas e purificar-se (KATZ, 1999). A versão
medicinal de Galeno não difere muito: a menstruação era uma
maneira de expelir o excesso de sangue e era algo típico das mulheres
(KATZ, 1999). Nada está mencionado sobre homens que exalavam
sangue, da maneira que fosse.
A medicina medieval agregou conceitos emanados do livro do
Levítico, no qual o pavor do sangue em geral, e do sangue menstrual
em específico era enorme. Fundamentado nisso a menstruação gera
situações classificadas como de ‗impureza‘ no judaísmo. As normas
judaicas de pureza eram extremamente rígidas. A separação dos
cônjuges no período menstrual era absoluta, numa espécie de tabu.
Não podiam se tocar, não podiam fazer sexo de maneira nenhuma até
que cessasse o fluxo menstrual e se fizesse um teste acurado. Após a
constatação do fim do fluxo, a mulher se purificava através de um
banho ritual cuidadoso denominado mikve ou mikva. Só aí, poderiam
coabitar e ocupar espaços conjuntos. Ainda hoje os judeus ortodoxos,
de maneiras variadas mantêm a pureza conjugal e isolam as mulheres
menstruadas, de alguma maneira.
No mundo greco-romano e no cristianismo medieval há
inúmeras crenças sobre o poder do sangue menstrual, que é visto
como poderosa poção mágica e veneno fatal, com poderes corrosivos
grandes (KATZ, 1999). Esta percepção é bastante ampla e complexa,
mas permite a construção de vasto imaginário, no qual a misoginia e o
antijudaísmo são parte. Não analisaremos estas concepções, que são
interessantes, mas extrapolam nosso estudo. Voltemos nosso olhar
para a construção do mito da ‗menstruação‘ masculina judaica.
Um dos mentores deste mito foi o monge cisterciense
Caesárius de Heisterbach que num livro de sermões, amplamente
copiado e difundido em toda Europa, relata a narrativa de uma moça
judia que tem relações carnais com um cristão, mas só pode iludir seu
pai e sair de casa na sexta feira santa, pois neste dia os homens judeus
sangram e não prestam atenção, nem em suas filhas (CAESARIUS

62
DE HEISTERBACH, 1929, v.1, cap. XXIII, p. 102, tradução
nossa)27. O termo usado é fluxo sanguíneo (fluxus sanguinis),
semelhante ao fluxo menstrual.
O livro editado e divulgado em 1240 fez a propagação do
mito. Em cerca de sessenta anos já havia pelo menos três autores
cristãos difundindo esta crença. Hugh de St. Cher em 1241, Thomas
de Cantimpré em 1263, e Joannes Balbus em 1298 (COHEN, 2010).
Essa divulgação fez do tema assunto amplamente conhecido,
seguidamente comentado e analisado no meio universitário.
No contexto da medicina medieval, a conceituação da teoria
dos humores ou fluídos alocava aos homens cristãos características
favoráveis. Eram de constituição colérica, com qualidades de serem
quentes e secos, o que lhes facilitava terem boa digestão e não
precisarem ‗purgar-se‘, visto seu sangue ser fluído. Já as mulheres
eram de natureza fleumática, ou seja, frias e úmidas. Isto lhes gerou
um sangue grosso que deveria ser purgado (RESNICK, 2000).
De acordo a Katz (1999) os limites entre o masculino e o
feminino eram mais fluídos. Compreendia-se que alguns homens, que
portassem características femininas, por vezes, precisassem purgar seu
sangue e o fizessem, seja por sangramento do nariz, seja através de
hemorroidas e feridas que sangrassem.
A junção das teorias medicinais medievais com os mitos
antijudaicos criou uma mescla de folclore com ciência que enfatizava
o caráter efeminado dos judeus, visto não praticarem tarefas físicas,
não lutarem e nem exercerem trabalhos que demandassem esforços
físicos. Estas características são enfatizadas pelo médico Bernard
Gordon que viveu no final do século XIII e início do século XIV, no
sul da atual França. Autor de vasta obra embasada na medicina árabe
e judaica era respeitado e considerado competente. Não era teólogo:
era médico com influência das medicinas árabe e judaica.
Gordon diz que os judeus sofrem muito com hemorroidas
por três razões: primeiro, porque eles geralmente são sedentários e,
portanto, acumulam um excesso de humores melancólicos; em

27 ―Tunc enim Judaei laborare dicuntur quadam infirmitate quae fluxus sanguinis dicitur, circa
quam occupati aliis tunc minus intendere possunt”.

63
segundo lugar, porque eles são frágeis e geralmente sofrem medo e
ansiedade e, portanto, o sangue torna-se ainda mais melancólico; em
terceiro lugar, é a vingança divina contra eles, tal como escrito no
Salmo 78, 66: ―[...] feriu seus inimigos nas partes posteriores, e
colocou-os em perpétuo desprezo‖ (KATZ, 1999, p. 449).
Este encontro entre teologia e ciência oferece uma síntese
para consolidar a culpa judaica e os mitos antijudaicos medievais, com
certa aura de racionalidade e ciência. A necessidade judaica de sangue
explicaria a sua demanda por sangue cristão. A carência de sangue
lhes gerava a necessidade de suprir sua fraqueza através da obtenção
de sangue puro e não contaminado com o pecado: sangue cristão.
Há um paralelo com Eva que cometeu o pecado original e por
tal feito, a mulher menstruaria. Similaridade com Judas e com Ário
que foram punidos com o sangramento e a explosão das vísceras
intestinais. A contaminação pelo pecado da descrença, da traição e do
deicídio eram comuns a todos os protagonistas, incluídos os judeus e
seus descendentes. O sangue seria o veículo de sua punição.

Considerações Finais

A relação do sangue com as religiões é ampla e complexa. O


judaísmo e o cristianismo têm muitas relações e nexos com o tema.
Na construção da alteridade judaica no contexto das cruzadas e nos
séculos anteriores o sangue adquiriu importância ainda maior. O
sacrifício em ‗santificação do Nome Divino‘ que serviu como peça de
resistência, aos judeus ashkenazim (alemães e franceses), gerou um
mecanismo de inversão que levou a construção do mito do crime
ritual e da profanação das hóstias.
Ainda que cause estranheza e deixe estupefatas as mentes de
pessoas racionais, os mitos antijudaicos respondem a um contexto de
transformações que ocorrem a partir do ano Mil: crescimento
demográfico, renascimento comercial e urbano, a reforma assim
denominada gregoriana e a expansão do Ocidente Medieval através da
retomada de espaços novos ou abandonados/perdidos a muçulmanos
ou pagãos.
Os mitos ampliam e renovam um preconceito quase milenar,
e repensam a tolerância no modelo agostiniano. Há um claro

64
movimento de circularidade que leva e traz conceitos e preconceitos,
do âmbito da cultura clerical superior para a cultura popular e do
baixo clero, indo e voltando. Assim os mitos adquirem a aparência de
fatos racionais e ‗científicos‘, sendo passíveis de serem aceitos, nos
diversos e variados níveis sociais e culturais da ampla e complexa
sociedade medieval.

REFERÊNCIAS

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H. von. E. Scott and C. C. Swinton Bland. Londres: Routledge, 1929.

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65
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Menses‖. The Harvard Theological Review, 93, n. 3 (2000): 241-
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medieval del judío y su relación con el antisemitismo moderno.
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YUVAL, Israel Jacob. Two nations in your womb: perceptions of


Jews and Christians in late antiquity and the middle Ages. London;
Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2006

66
Capítulo 4

Rutebeuf e a Querela entre os Clérigos e


os Mendicantes
Terezinha Oliveira
Claudinei Magno Magre Mendes

Pouco se sabe acerca da vida de Rutebeuf (c.1230- 1285 ou


1286)28. Muito provavelmente, ficou conhecido pelo seu sobrenome
Rudeboeuf (boeuf vigoreux: boi vigoroso) que, aliás, ele próprio utiliza
em sua obra.29 Diversos estudiosos acreditam que tenha nascido em
Champagne, já que descreveu os conflitos em Troyes, em 1249.
Outros, como é o caso de Delécluze (1843), afirmam ter nascido em
Paris. Todavia, ainda que haja divergência quanto ao local do seu
nascimento, há concordância que o trovador viveu boa parte da sua
vida em Paris, cidade grande que lhe deu, de acordo com Lanson
(1923), seu espírito e sua alma:

A incessante fermentação desta população imensa e


heterogênea, barões habitando a corte do rei, burgueses
devotos e cáusticos, estudantes brigões e polemistas,
prontos para usar a língua e a mão e tudo o que nela se
agitava de ideias e de paixões no conflito do espírito e
dos interesses, sendo iminentemente próprios para
suscitar uma poesia senão superior, ao menos muito
viva: o poeta, desta vez, não faltou (LANSON, 1923, p.
86-87).

28 Também grafado Rutebuef e Rustebeuf.


29 Há autores que afirmam que seu nome deriva de rude boeuf ou rude oeuvre (boi
grosseiro ou obra grosseira).
Uma parte dos seus estudiosos acredita que Rutebeuf seja
apenas um pseudônimo. É a opinião, por exemplo, dos editores da
Enciclopédia Britânica, responsáveis pelo seu verbete.30
Além disso, algo que intriga muitos dos seus estudiosos é o
fato de Rutebeuf não ter sido mencionado por nenhum dos seus
contemporâneos, sejam eles poetas ou cronistas (JUBINAL, 1874).
Em troca, constata-se que ele também não se referiu a nenhum dos
poetas e trovadores contemporâneos seus.
Desse modo, as informações sobre ele têm um pouco de
suposição, já que baseadas em seus próprios poemas31. Lanson (1923),
fundando-se nos seus versos, afirma ter sido um menestrel pobre
diabo cuja má sorte teria perseguido a vida toda.

Sem pão, sem lar, a palha como leito, entre uma esposa
que se queixava, uma ama de leite que queria seu salário
e um proprietário que reclamava o pagamento do
aluguel, eis em que situação se apresenta a nós o triste
Rutebeuf, que, no entanto, encontrava meio de rir
LANSON, 1923, p. 87).32

Concluindo o quadro, este estudioso observa que o trovador


teve alguns benfeitores e muitos credores. O dinheiro dos seus
benfeitores, no entanto, não ia para os credores, mas para os dados
(LANSON, 1923).

30 Pode-se dizer o mesmo sobre os responsáveis pelo verbete Rutebeuf, da


Encyclopédie Larousse. Assinalam que não existe nenhum outro traço desse
escritor, além dos que ele próprio aponta nos seus poemas, que se apresenta
sob o que caracterizam como um divertido ou engraçado apelido.
31 ―O pouco que sabemos sobre a vida de Rutebeuf aprendemos em suas obras‖
(CLÉDAT, 1891, p. 23).
32 Le Goff (2003, p. 11), por seu turno, caracteriza-o como ―[...] intelectual
marginal parisiense‖. Adiante, na mesma obra, faz uma nova caracterização de
Rutebeuf, definindo-o como ―[...] o mais pobre dos poetas-estudantes [...]‖ (LE
GOFF, 2003, p. 136).

69
Também Delécluze (1843) acredita que Rutebeuf era um
pobre menestrel, jogral ou trovador, observando que teria atingido
seu apogeu entre 1254 e 1286, desfrutando em sua época de um
grande renome. Para esse autor ele merece esse renome, sobretudo se
compararmos suas peças rimadas que sobreviveram com as de outros
trovadores, tanto os contemporâneos como os que o precederam
(DELÉCLUZE, 1843).
De qualquer forma, independentemente da sua identidade,
Rutebeuf é considerado um dos maiores trovadores da época. Lanson
o caracteriza como quase um grande poeta. Tendo tratado de todos
os gêneros, à exceção das canções de gesta e dos romances: ele
escreveu um milagre dramático33, um monólogo cômico, duas vidas
de santo, fabliaux34, lamentos devotos35, orações fúnebres, sátiras,
canções, ditos satíricos ou didáticos. Afirma ainda Lanson (1923) que,
pela primeira vez na história literária da França, encontra-se uma
individualidade fortemente caracterizada, que se encontra nas mais
diversas obras. Clédat (1891, p. 14) assinala que ―[...] a sátira, nascida
no fim do século precedente (século XII), toma com Rutebeuf um
vigor e uma autoridade que fazem dela uma verdadeira potência.‖
Jubinal (1874), por seu turno, afirma que Rutebeuf pertenceu ao povo
por seu nascimento, aos letrados por seu espírito e à corte por sua
profissão.36 Baron (1841) arrola-o entre os autores de fabliaux mais
espirituosos. Para Delécluze (1843), ele parece merecer esse renome,
sobretudo se compararmos suas peças rimadas que sobreviveram
como as de outros trovadores, tanto os contemporâneos como os que
o precederam. De acordo com Warton (1871), a obra de Rutebeuf
atravessou as fronteiras da França, apoiando-se no fato de que
Boccaccio (1313-1375), que copiou muitos dos seus melhores contos

33 Na literatura, ‗milagre‘ é uma composição dramática popular da Idade Média


que colocava em cena os milagres da Virgem ou de um santo.
34 Fabliaux eram pequenas narrativas em verso.
35 Lamentos devotos são pequenas canções populares que evocam um
acontecimento triste.
36 Jubinal (1834) o considera o poeta mais importante do século XIII.

70
dos trovadores, ter aproveitado também dos contos de Rutebeuf.
Acrescenta que é certo que o poeta florentino tomou do menestrel
francês o conto que se encontra na décima novela da nova jornada
(BOCCACCIO, 1970)37.
Contemporâneo dos reis Luís IX, também conhecido como
São Luís (1214-1270) e Filipe III, o Ousado (1245-1285), e de vários
papas: os mais importantes para o nosso estudo foram Inocêncio IV
(1243-1254) e Alexandre IV (1254-1261). Também viveu no período
compreendido a elaboração das duas partes do Romance da Rosa.
Assim, escreveu após Guillaume de Lorris (c.1200-c.1238), autor da
primeira parte do Romance, cujas alegorias o encantaram e o
inspiraram, e antes de Jean de Meun ou Meung (c.1240-c.1305), autor
da segunda parte do Romance e que, muito provavelmente, o leu
(LANSON, 1923).
Quanto aos estudantes, Lanson (1923) afirma que Rutebeuf os
apreciava muito, mas que, provavelmente, nunca foi um deles. 38
Baseia-se no fato de que seu conhecimento não era clerical: ele
conhecia o Romance de Renart e a obra de Guilherme de Lorris. Tudo
mais que conhecia derivaria do fato de que, sendo devoto, teria
apreendido os lugares comuns e os processos de desenvolvimento
dos sermões que ouviu pregar: teria enriquecido sua poesia com isso39.

Com seus procedimentos e, às vezes, com seus


artifícios, Rutebeuf fez uma obra sincera. Foi em seu
tempo uma espécie de jornalista, nem sempre
independente, mas sempre original, sempre convicto,
quer trabalhasse sob encomenda, quer fosse o eco das
paixões populares (LANSON, 1923, p. 87).

37 Jubinal (1874), discorda disso, afirmando que esse conto não pertence à
Rutebeuf.
38 Observe-se, no entanto, que Rutebeuf conhecia o Latim.
39 Não é essa a opinião de Le Goff. O historiador francês refere-se a Rutebeuf e
Jean de Meung como ―[...] antigos estudantes parisienses‖ (LE GOFF, 2003, p.
13).

71
Da sua obra conservou-se uma dezena de manuscritos, no
total de cinquenta e seis poemas e quatorze mil versos. Eles fazem
alusões aos acontecimentos verificados entre os anos de 1248 e 1277,
o que revela que Rutebeuf participou intensamente das questões da
sua época (Encyclopédie Larousse, s. d.). De certa maneira, esta não é a
opinião de Jubinal (1834), para quem Rutebeuf teria assistido, sem
tomar parte neles, aos grandes acontecimentos políticos.40 Prefere este
estudioso destacar que Rutebeuf, por meio das suas poesias, teria
cooperado de maneira ativa no notável movimento literário do século
XIII. Todavia, logo em seguida observa que também cooperou
ativamente nas grandes lutas entre a Universidade de Paris e as ordens
religiosas. Acrescenta: ―[...] esse poeta oferece em seus escritos o
reflexo curioso e exato dos preconceitos, das paixões, da linguagem,
dos conhecimentos da sua época‖ (JUBINAL, 1874, p. VI)41.
Ainda segundo os autores do verbete sobre Rutebeuf da
Encyclopédie Larousse, grande parte dos seus versos se define em
oposição à poesia cortês e ao lirismo dos trovadores. Rutebeuf
pertenceria ao gênero da sátira, cuja função permaneceu, se não bem
vista, ao menos bem viva na Idade Média, como os sirventês 42 dos
trovadores e os poemas latinos dos goliardos. Ao contrário de uma
literatura mais oficial, às vezes mais refinada, de qualquer modo mais
idealizada, a sátira é uma poesia que desilude. Assim, se prega a
cruzada, ela fustiga a preguiça dos cavaleiros, a simonia dos padres, a
imprevidência dos príncipes; se defende a Universidade de Paris, ataca
os religiosos que a ela vêm ensinar; se reclama mais justiça, denuncia
os abusos de todos os ‗estados‘ da sociedade, mesmo Luís IX, que
ainda não possuía a aureola de santidade. Percebe-se, de passagem, os
lugares comuns dos sermões sobre as tavernas, os jogos de dados e as

40 Jubinal (1874) retomou mais tarde essa formulação.


41 Payen (1996) define sua poesia como militante.
42 De acordo com o E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, sirvantês vem
do provençal sirventès ou do francês arcaico sirventois. É um gênero medieval de
caráter satírico que surge na Provença no século XII. Trata-se de uma
composição trovadoresca de gênero satírico na qual se reflete acerca dos
aspectos gerais ou particulares da vida moral, social, política e literária.

72
prostitutas. Concluem os responsáveis pelo verbete que não se pode
esperar em suas intervenções a fidelidade a uma causa (Encyclopédie
Larousse).
De todas as participações de Rutebeuf nas querelas do seu
tempo, a que mais se destaca é a que foi levantada na Universidade de
Paris entre os clérigos — liderados por Guillaume de Saint-Amour —
e os frades mendicantes, que tinham por patrono o papa Alexandre
IV e por defensor nada mais, nada menos do que Tomás de Aquino43.
Existem três publicações importantes com as obras completas
de Rutebeuf.
A primeira, mais antiga, publicada pela primeira vez em 1834 e
que teve uma nova edição em 1874: Oeuvres completes de Rutebeuf.
Trouvère du XIIIe siècle. Recueillies et mises au jour pour la première
fois par Achille Jubinal. Paris: Paul Daffis, 1874, 3 tomes.
A segunda é: FARAL, Edmond et BASTIN, Julia. Oeuvres
completes de Rutebeuf. Paris: Éditions A. et J. Picard, 2 tomes, 1959
e 1960.
A terceira, atual, é: Rutebeuf. Oeuvres completes. Texte établi,
traduit, annoté et présenté avec variants par Michel Zink. Paris:
Bordas (Classiques Garnier), 2 tomes, 1989-1990.
Para o nosso estudo, utilizamos, fundamentalmente, a versão
para o francês moderno de grande parte dos poemas feita por
Bernard Joy e que se encontra no site44 <http://www.bernard-
joy.com/rutebeuf-poemes/>.
Para examinar a maneira como Rutebeuf tratou a querela
entre os clérigos e os mendicantes, procuramos, em primeiro lugar,
apreender sua visão de conjunto da sociedade. Poemas como O estado
do mundo (L’état du monde) e Os flagelos do mundo (Les plaies du monde),
escritos por volta de 1252, são fundamentais para o propósito de
examinar como Rutebeuf encarou as transformações que estavam se

43 De acordo com Szittya (1986), Rutebeuf vivia em Paris por ocasião da


controvérsia entre os seculares e os mendicantes.
44 Advertimos que os poemas de Rutebeuf vertidos para o francês moderno por
Joy não possuem numeração de página, motivo pelo qual podemos apenas
indicar o poema, sem outros dados.

73
operando na sociedade em que vivia. Mas não são apenas nesses
poemas que esse trovador comentou acerca dos processos que
estavam alterando a feição da sociedade. Também em outros poemas,
nos quais tratou de temas mais pontuais, ele procurou estabelecer
uma relação entre um assunto particular e as mudanças que então
ocorriam.
Assim, aí reside um aspecto interessante: o próprio Rutebeuf
estabelece um vínculo entre as transformações gerais da sociedade e o
comportamento de personagens e grupos sociais criticados.

Análise dos Poemas de Rutebeuf

A época vivida por Rutebeuf foi marcada, como já assinalado,


por grandes transformações que o trovador soube captá-las muito
bem, destacando que elas provocavam mudanças no comportamento
das pessoas e dos diferentes segmentos sociais. No poema O estado do
mundo, composto por volta de 1252, Rutebeuf nota que o mundo está
mudando, motivo pelo qual pretende rimar, ou seja, fazer um
poema45.

Por que o mundo muda mais frequentemente que o


dinheiro na Banca (Échange, Change), eu quero rimar
sobre esse mundo cambiante. O verão passou e agora é
inverno. O mundo era bom, agora é diferente, pois
ninguém sabe mais agir pelo bem de outros, se supõe
não encontrar nisso seu proveito. Cada um age como
ave de rapina: ninguém vive mais a não ser de rapina46.

45 Para melhor expor as formulações de Rutebeuf, preferimos colocar o texto em


prosa e não em verso, fazendo uma tradução livre dele. No entanto,
colocaremos em francês moderno os versos traduzidos.
46 Par ce que le monde change
plus souvent qu‘un denier au Change,
je veux rimer sur ce monde changeant.
L‘été est passé, maintenant c‘est l‘hiver,
le monde était bon, maintenant c‘est different,
car personne ne sait plus
travailler au bien d‘autrui,

74
No poema Os flagelos do mundo, da mesma época, Rutebeuf
retoma a ideia de um mundo cambiante:

É-me necessário rimar sobre esse mundo que se esvazia


e se despoja de todo bem. Vocês sabem por que não se
ama uns aos outros? As pessoas não querem mais se
amar, pois no seu coração há tanta amargura, crueldade,
rancor e inveja que não existe ninguém no mundo que
esteja disposto a fazer o bem aos outros se ele não
encontra nisso seu proveito47.

É importante observar que Rutebeuf não apenas assinala que


o mundo encontra-se em mudança, mas que estaria mudando para
uma situação pior. Essa nova condição de vida caracterizar-se-ia pelo
abandono do bem comum. Como destaca o trovador, todos agem em
busca do seu proveito e não para o bem comum; o mundo estava se
esvaziando de todo o bem.
Ainda que as transformações atinjam todos os segmentos da
sociedade, Rutebeuf parece ter predileção pelos religiosos,
condenando-os pela sua nova maneira de ser. Assim, no poema O
estado do mundo, observa:

s‘il ne pense pas y trouver son profit.


Chacun se fait oiseau de proie:
nul ne vit plus que de proies.
47 Il me faut rimer sur ce monde
qui de tout bien se vide et s‘émonde.
De tout bien il se vide:
Dieu tissait, le voilà qui dévide.
Bientôt la trame lui manquera.
Savez-vous pourquoi nul ne s‘entr‘aime?
les gens ne veulent plus s‘entr‘aimer,
car dans le coeur il y a tant d‘amertume,
de cruauté, de rancune et d‘envie
qu‘il n‘est personne au monde
qui soit disposé à faire du bien aux autres
s‘il n‘y trouve pas son profit.

75
Os religiosos deveriam viver santamente: é minha
opinião. Ora, eles são de duas espécies: uns são monges
brancos, outros negros, que possuem muitas e belas
residências e muitas riquezas sólidas. Todos são
escravos da Cupidez48.

Prosseguindo em sua descrição dos religiosos, assinala:

Sem cessar, eles querem tomar sem nunca dar; sem


cessar eles compram sem nunca vender. Eles tomam e
não se lhes toma nada [...]. Eles podem aumentar suas
riquezas. Não se prega mais nos conventos sobre Jesus
ou sobre sua mãe, nem sobre São Paulo, nem sobre São
Pedro. Aquele que se enreda melhor no mundo, é o
melhor aos olhos da Ordem49.

Fica evidente em seus poemas que uma das principais


transformações que então se verificavam na sociedade derivava do
desenvolvimento das trocas, fazendo com que os valores da sociedade

48 […] les religieux


devraient vivre saintement:
c‘est mon avis.
Or, ils sont de deux sortes:
Les uns sont des moines blancs ou noirs,
qui possèdent maintes et belles résidences
et maintes richesses solides.
Ils sont tous esclaves de Cupidité.

49 Sans cesse ils veulent prendre sans jamais donner;


sans cesse ils achètent sans jamais rien vendre.
Ils prennent, et on ne leur prendre rien.
[…]
Ils peuvent accroîte leurs richesses.
On ne prêche plus dans les cloîtres
sur Jésus-christ ni sur sa mère,
ni sur sain Paul, ni sur saint Pierre.
Celui qui se brouille de mieux dans le monde,
c‘est lui le meilleur au regard de la regle.

76
se modificassem, sem poupar nenhuma das camadas sociais,
especialmente os religiosos:

O segundo flagelo não é pouca coisa: ele se vincula aos


clérigos. Excetuando os estudantes, os outros clérigos
estão todos enfeitados de avareza. O melhor clérigo é o
mais rico e quem tem mais é o mais avarento, pois para
o seu haver, eu vos previno, ele se submeteu. E desde
então ele não é, dessa maneira, seu próprio senhor.
Como pode ajudar o outro? É impossível, me parece,
pois quanto mais acumula, mais ajunta, e mais tem
prazer em contemplar seus bens50.

Mas Rutebeuf capta as transformações que estavam se


operando na sociedade em outros segmentos ou instituições. Assim,
percebe que as mudanças que se verificavam na sociedade estavam
alterando, igualmente, a cavalaria. No poema Os flagelos do mundo,
Rutebeuf, tratando dos três flagelos, indica que o terceiro atingiu a
cavalaria. Para assinalar as mudanças operadas nessa instituição
própria da Idade Média, o trovador compara dois momentos dela:
antes e nos tempos que então corriam:

A cavalaria é uma coisa tão grande que ouso falar do


terceiro flagelo apenas superficialmente. Pois da mesma

50 La second n‘est pas peu de chose:


c‘est aux clercs qu‘elle s‘ataque.
Étudiants axceptés, les autres clercs
sont tous agrémentés d‘avarice.
Le meilleur clerc, c‘est le plus riche,
et qui a le plus, c‘est le plus chiche,
car à son avoir, je vous préviens,
il a fait hommage.
Et dès lors qu‘il n‘est plus ainsi son proper maître
Comment peut-il aider autrui?
c‘est impossible, il me semble.
Plus il amasse, plus il assemble,
et plus il prend plaisir à contempler ses biens.

77
forma que o ouro é o melhor metal que se possa
encontrar, igualmente ela é o poço de onde se tira toda
sabedoria, todo bem e toda honra. É então justo que
todos os cavaleiros sejam honrados. Mas, da mesma
maneira que as roupas novas valem mais que as
amarrotadas, os cavaleiros do passado valem mais,
forçosamente, que os de hoje, pois o mundo tanto
mudou que um lobo branco comeu todos os cavaleiros
leais e valentes. Eis porque o mundo perdeu seu valor51.

A predileção de Rutebeuf pelos religiosos parece ser


perfeitamente explicável. A nosso ver, ele critica os religiosos pelo
fato de seu novo comportamento constituir uma alteração radical.
Com efeito, esperava-se o trovador que os religiosos se mantivessem
ligados aos valores espirituais, ou seja, que fossem partidários dos
valores que representavam a sociedade que tivesse por fundamento a
religião cristã. No entanto, cada vez mais, ao que tudo indica, os
religiosos abandonavam esses antigos valores para cederem aos
valores terrenos. O conto ou poema O testamento do Asno, de 1253, é
bastante expressivo sob esse aspecto.
Narra o poema a história de um padre cujo asno, que o servira
durante vinte anos, contribuindo para enriquecê-lo, morreu. Como

51 La chevalerie est une si grande chose


que je n‘ose parler de la troisième plaie
que superficiellement.
Car de même que l‘or
est le meilleur metal que l‘on puisse trouver,
de même elle est le puits où l‘on puise
toute sagesse, tout bien et tout honneur.
Il est donc juste que j‘honore les chevaliers.
Mais de même que les habits neufs
Valente mieux que les fripes,
les chevaliers de jadis valaient mieux,
Forcément, que ceux d‘ajourd‘hui,
car le monde a tant change
qu‘un loup blanc a mange
tous les chevaliers loyaux et vaillants.
C‘est pourquoi le monde a perdu sa valeur.

78
seu dono gostava muito do asno, enterrou-o no cemitério. O bispo,
que tinha um caráter completamente diferente, nem cúpido, nem
avaro, mas cortês e de boas maneiras, mandou chamar o padre. Este,
após ouvir a acusação e o sermão do bispo, solicita um dia para
reflexão, o que lhe é concedido. Rutebeuf assinala que o padre não se
afligiu com a situação, pois ele sabia que ter um amigo fiel: sua bolsa,
que nunca lhe faltava, seja para oferecer uma reparação, seja em caso
de necessidade. O padre compareceu diante do bispo no horário
marcado carregando consigo vinte libras, contadas e em boas moedas,
escondidas em um cinto. Carregando-a sempre com ele, não temia
nem a fome, nem a sede. Solicita o padre que uma reflexão tão
particular deveria ser feita em particular. Pede, então, para falar ao
ouvido do bispo, que se inclinou para ouvi-lo. Narra, então, o padre
que o asno trabalhara durante vinte anos, recebendo, cada ano, vinte
sous, que economizou, perfazendo vinte libras. Para que seus pecados
fossem perdoados, avisa o padre, o asno legou suas vinte libras ao
bispo. Responde o bispo que Deus protegesse o padre e perdoasse os
erros e todos os pecados que o asno pudesse ter cometido. Escreve o
trovador: ―Rutebeuf nos diz e nos ensina que aquele que carrega
dinheiro para adiantar seus negócios não deve temer encontrar-se
numa situação ruim‖. E conclui: ―O asno continuará cristão‖.
Ao que tudo indica, desde cedo Rutebeuf valeu-se dos poemas
para participar das disputas que se levantavam em sua época.
Exemplo disso é Le Dit des Cordeliers, que muito provavelmente foi
escrito no verão de 1249 (FARAL e BASTIN, 1959), por conseguinte,
antes de mudar-se para Paris (SPENCER, 1987). Observa ainda este
autor que Rutebeuf já se preocupava com o que encarava como um
materialismo corrupto do clero parisiense, uma corrupção que
contrastava claramente com as atitudes santas dos franciscanos. O
poema, considerado extremamente obscuro, trata da querela entre os
Cordeliers52 de Troyes, cidade que tinha uma intensa atividade
literária, e a Abadia Notre-Dame-aux-Nonnains, da mesma localidade.
Rutebeuf tomou partido dos Cordeliers, em conflito com uma
abadessa belicosa, que se opunha à instalação dos membros dessa

52 Cordeliers: como eram denominados os Franciscanos na França.

79
ordem no centro da cidade de Troyes. Para resolver a querela o bispo
reuniu-se em conselho durante três ou quatro dias. Mas, observa
Rutebeuf, as mulheres são combativas e, por isso, não se pode
apaziguá-las. O bispo percebeu que seria necessário combatê-las dia
após dia. Por isso, seu julgamento foi que os Frades fossem se divertir
em outro lugar53. Rutebeuf afirma que os Franciscanos tinham um
lugar magnifico, com dormitório, refeitório, uma boa igreja, pomar,
prados e videiras. Mas, os que Rutebeuf classifica como ignorantes
diziam que havia sido por cupidez que eles abandonaram o local para
ir se instalar em outro lugar54.
Se nesse poema Rutebeuf ficou do lado dos religiosos, no
inverno de 1254-1255, já residindo em Paris, Rutebeuf muda de lado.
No conflito entre os Dominicanos e a Universidade de Paris, critica
os monges mendicantes, ficando do lado dos seculares. Ele trata desse
conflito no poema La discorde des Jacobins et de l’Université. Logo de
início o trovador afirma que deve fazer um poema sobre o espírito da
discórdia que foi semeado em Paris pela Inveja entre os que pregavam
a misericórdia e uma vida honesta. Suas bocas estariam cheias de Fé,
Paz e Concórdia, mas suas maneiras recordavam que existia uma
distância entre as palavras e os atos55. Trata-se dos Jacobinos, isto é,

53 L‘évêque tint conseil pendant trois jours ou quatre.


Mais les femmes sont querelleuses, il ne peut les apaiser,
il vit qu‘il fallait jour après jour les combattre:
Son jugement fut que les Frères iraient s‘ébattre ailleurs.
54 Ils avaient un dortoir, un réfectoire, une belle église,
Vergers, prés, treilles: un endroit magnifique.
Les ignorants disent que c‘est par cupidité
Qu‘ils l‘ont quitté pour aller s‘installer ailleurs.

55 Je dois rimer sur l‘esprit de discorde


qu‘à Paris envie a semé
parmi ceux qui prêchent la miséricorde
et une vie honnête.
Foix (Foi?), paix, concorde,
voilà qui leur emplit la bouche
mais leurs façons me rappellent
que des paroles aux actes il y a loin.

80
dos Dominicanos, que falavam de Deus e proibiam a cólera, pois ela
magoava a alma, faz-lhe mal, matando-a. Todavia, contraditoriamente,
eram estes que estavam em guerra por uma escola onde queriam
ensinar à força56.
Deve-se salientar que não podemos aderir a uma visão
moralista, a-histórica. Os Jacobinos mudaram seu comportamento em
compasso com as alterações que estavam se processando na
sociedade. Pode-se apreender isso a partir do próprio Rutebeuf.
Afirma o trovador que, quando surgiram no mundo, eles entraram
com humildade. Eram puros e impecáveis e amavam a teologia. No
entanto, o Orgulho, que suprime todo bem, colocou entre eles tanta
iniquidade que subverteram a Universidade57. Ao invés de amigos

Cabe observar que fizemos uma tradução distinta da feita por Joy dos dois
primeiros versos. Em francês arcaico, esses dois versos estão escritos dessa
maneira:
―Rimeir m‘estuet d‘une descorde
Qu‘a Paris a semei Envie.‖
56 Les Jacobins: voilà le sujet
dont je veux vous entretenir
car ils nous parlent tous de Dieu
et nous interdisent la colère:
c‘est là ce qui blesse l‘âme,
ce qui lui fait du mal, ce qui la tue.
Mais les voilà en guerre pour une école
où ils veulent enseigner la force.
Também neste caso fizemos uma tradução distinta da que se encontra na versão de
Joy: trata-se do último verso que, acreditamos, Rutebeuf quer dizer que os
religiosos querem ensinar à força. Em francês arcaico, temos: ―Ou il welent a
force lire.‖
57 Quand les Jacobins apparurent dans le monde,
Ils entrèrent chez Humilité.
À l‘époque, ils étaient purs et nets,
Et aimaient la théologie.
Mais Orgueil, qui élague tout bien,
a mis en eux tant d‘iniquité
qu‘avec leur grande cape ronde
ils ont renversé l‘Université.

81
dela, foram mal agradecidos para com os universitários, cometendo
uma injustiça a quem a serviu durante tanto tempo.
Rutebeuf retoma, mais ou menos, a estrofe que havia usado
um pouco antes, mas dando-lhe uma nova direção. Observa que os
Jacobinos fizeram sua entrada no mundo vestidos de roupas brancas e
negras. Então, todas as virtudes abundavam neles, acrescentando que
quem quiser pode sempre crer nisso. Pela vestimenta, eles são
tranquilos e puros, mas alerta que todos sabem muito bem que caso
um lobo vestir um manto redondo ele se assemelhará a um padre58.
Finalizando, Rutebeuf afirma que acredita que os Jacobinos
sejam, talvez, pessoas honestas. Mas o fato deles pleitearem junto ao
papa contra a Universidade impede-o de acreditar nisso. No que toca
aos Jacobinos, o trovador observa que, ainda que um deles empreste,
ele não pagará da sua dívida o valor de uma casca de batata59.
Muito provavelmente, a partir da sua experiência em torno da
disputa entre os mendicantes e os seculares, Rutebeuf, em 1260,
compôs um poema sobre a mentira (Le dit du mensonge). Nele, o
trovador menciona as duas Ordens, ironicamente caracterizadas como
santas, que teriam combatido os vícios, abatendo-os, exaltando as
virtudes. Com essas Ordens as virtudes teriam sido elevadas e os

58 Les Jacobins ont fait leur entrée dans le monde


Vêtus de robes blanches et noires.
Toutes les vertus en eux abondent:
qui le veut peut toujours le croire.
Par l‘habit, ils sont nets et purs,
mais vous savez bien ce qu‘il e nest:
si un loup portait une cape ronde,
Il rassemblerait à un prêtre.
59 Ce sont peut-être d‘honnêtes gens,
je veux bien que chacun le croie.
Mais le fait qu‘ils plaident à Rome
contre l‘Université m‘empêche de le croire.
Voici le fin mot, touchant les jacobins:
quoi qu‘un Jacobin emprunte,
je ne paierais même pas de sa dette
la valeur d‘une pelure de pomme.

82
vícios vencidos60. Evidentemente, como assinala o próprio título do
poema, trata-se de uma mentira e o que ocorreu foi exatamente o
oposto.
Como o conflito entre os seculares e os mendicantes já foi
narrado, passemos aos poemas em que Rutebeuf trata de Guilherme
de Santo Amor e da sua condenação ao exílio. São dois os poemas em
que o trovador trata especificamente desse tema. O primeiro poema é
de 1257: Dit sur l’exil de Maître Guillaume de Saint-Amour. O segundo é
de 1258: La complainte de Maître Guillaume de Saint-Amour.
Assim, examinemos os comentários que o trovador fez ao
exílio imposto a Guilherme de Santo-Amor pelo papa Alexandre IV e
pelo rei Luís IX.61 No primeiro poema, Dit sur l’exil de Maître Guillaume
de Saint-Amour, Rutebeuf caracteriza a condenação como uma injustiça
e um dano que foram feitos ao mestre. Assinala que a injustiça não foi
feita apenas ao Mestre Guilherme, mas ela é extensiva a todos os
prelados — todos teriam sido degradados.62
Os versos iniciais do poema não deixam dúvidas acerca da
opinião e do partido de Rutebeuf:

Escutem, prelados, príncipes, reis, a injustiça e o erro


que se fez ao metre Guilherme: baniram-no desse reino!

60 Vous entendrez parler de deux Ordres saints,


Que Dieu a dintingués en bien des choses:
ils ont si bien combattu les vices
que les vices sont abbatus
et les vertus exaltées.
Vous entendrez comment elles ont été élevés
et comment les vices on été vaincus.
61 De acordo com Dahlberg (1999, p. 285, nota 6759), Guilherme de Santo Amor
foi condenado em 1256 pelo papa Alexandre IV que pediu a Luís IX que o
banisse da França. Ao que tudo indica, Guilherme de Santo Amor passou o
resto da sua vida em Saint-Amour que, na época, ficava fora dos limites da
França.
62 Prélats, je vous le fais savoir;
Vous êtes en tous dégradés.

83
Nenhum condenado à morte teve um destino tão
injusto. Quem exilar um homem sem razão, eu afirmo
que Deus que vive e reina deve exilá-lo do seu Reino.63

Condenando o exílio de Santo Amor, Rutebeuf observa que o


mestre foi exilado ou pelo rei ou pelo papa.
A partir disso, o trovador coloca uma questão importante:
trata-se de saber quem governa, de fato, a França, adiantando duas
possibilidades. Caso o papa pode exilar um homem da terra de outro,
o senhor dela não tem nenhum poder sobre ela.64 Por outro lado, caso
o rei procurar contornar a questão, afirmando que exilou o mestre a
pedido do papa, trata-se de algo, adverte Rutebeuf, para ser ensinado:
constitui algo novo, que não pertence nem ao direito civil nem ao
direito canônico. Adverte que um rei não deve portar-se mal segundo
qualquer solicitação que se lhe faça.65 Do mesmo modo, caso o rei

63 Écoutez, prélats, princes, rois,


l‘injustice et le tort
qu‘on a faits à maître Guillaume:
on l‘a banni de ce royaume!
nul condamné à mort n‘eut un sort si injuste.
Qui exile un homme sans raison,
je dis que Dieu qui vit et règne
doit l‘exiler de son Royaume.

64 Maître Guillaume a été exilé


Ou par le roi ou par le pape.
Je vous le dis en un mot:
si le pape de Rome
peut exiler un home de la terre d‘autrui,
le seigneur n‘a nul pouvoir sur sa terre,
pour dire tout ela vérité.
65 Si le roi tourne l‘affaire en disant
Qu‘il l‘a exilé à la prière
du pape Alexandre
voilà pour nous instruire: comme droit, c‘est nouveau,
mais je sais comment cella s‘appelle:
ce n‘est ni du droit civil ni du droit canon;
car un roi ne doit pas se mal conduire,
pour quelque prière qu‘on lui adresse.

84
afirme que exilou por sua própria conta, então praticou uma injustiça,
cometeu um erro. Trata-se de uma vergonha, pois não seria
conveniente nem a um rei, nem a um conde, caso souberem o que é a
justiça, exilar um homem sem que se considere a razão legal para
exilá-lo. Caso não tenha feito isso, conclui o trovador, portou-se
mal.66
Le Goff (2003) examinou o que denominou de querela dos
regulares e dos seculares ao longo do século XIII, assinalando que a
mais aguda e típica foi exatamente a de Paris de 1252 a 1259.
Comentando a posição de Luís IX diante do conflito, Le Goff (2003)
assinala que o rei, muito próximo dos franciscanos, não interferiu, o
que teria motivado o duro ataque de Rutebeuf, acusando-o de ser
joguete nas mãos dos regulares e por não defender o seu reino, para o
qual os direitos da Universidade de Paris tinham uma importância
fundamental.

REFERÊNCIAS

BARON, Auguste Alexis Floréal. Histoire abrégée de la littérature


française. Bruxelles: Alexandre Jamar, 1841.

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural,


1970.

CLÉDAT, Léon. Rutebeuf. Paris: Hachette, 1891.

66 Si le roi dit que c‘est lui qui l‘a exilé,


c‘est de sa part un tort, une faute, une honte,
car il ne sied ni à un roi ni un comte,
s‘il sait ce qu‘est la justice,
d‘exiler un home sans qu‘on voie
de raison légale à ce qu‘il l‘exile;
et il s‘il agit autrement
sachez bien qu‘il se conduit mal.

85
DAHLBERG, Charles (editor). The romaunt of the rose.
Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999.

DELÉCLUZE, Étienne Jean. Rutebeuf. 1254-1286. Paris:


Imprimerie de H. Fournier, 1843.

E-DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS DE CARLOS


CEIA. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em 01
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<http://www.larousse.fr>. Acesso em : 01 fev. 2015.

FARAL, Edmond ; BASTIN, Julia. Oeuvres complètes de


Rutebeuf. Paris: Éditions A. et J. Picard, 2 tomes, 1959 e 1960.

JOY, Bernard. Poemes de Rutebeuf. Disponível em:


<http://www.bernard-joy.com/rutebeuf-poemes/>. Acesso em 25
nov. 2014.

JUBINAL, Achille. Notice sur Rutebeuf. In: La complainte


d’Outre-Mer, et celle de Constantinople. Paris: Chez Téchner, 1834.

JUBINAL, Achille. Oeuvres complètes de Rutebeuf. Trouvère du


XIIIe siècle. Recueillies et mises au jour pour la première fois par …
Paris: Paul Daffis, 1874, 3 tomes.

LANSON, Gustave. Histoire illustrée de la littérature française.


Paris; Londres: Librairie Hachette, 1923, 2 tomes, tome I.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de


Janeiro: José Olympio, 2003. A primeira edição do livro data de 1957.

PAYEN, Jean Charles. O Homo Viator e o cruzado. In: BRAET,


Herman e VERBEKE, Werner (eds.). A morte na Idade Média. São
Paulo: EDUSP, 1996.

86
SPENCER, Richard. Sin and retribution, and the hope of salvation, in
Rutebeuf‘s lyrical works. In: DAVIES, Peter V. e KENNEDY,
Angus J. (eds.). Rewards and Punishments in the Arthurian
Romances and Lyric Poetry of Medieval France. Cambridge:
Boydell and Brewer, 1987.

SZITTYA, Penn R. The antifraternal tradition in Medieval


Literature. Princeton: Princeton University Press, 1986.

WARTON, Thomas. The history of english poetry. London:


Reeves and Turner, 1871, 4 vs., v. III.

87
Capítulo 5

Sobre a melhor maneira de traduzir: São


Jerônimo e o mundo editorial latino na
Antiguidade Tardia
Raquel de Fátima Parmegiani

[...] Quer se trate do jornal ou de Proust, o texto só tem


sentido graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se
conforme códigos de percepção que lhe escapam.
Tornam-se textos somente na relação à exterioridade do
leitor, por um jogo de implicações e de astúcias entre
duas espécies de expectativa combinadas: a que organiza
um espaço legível (uma literalidade) e a que organiza um
démarche necessário para a efetuação da obra (uma
leitura) (CERTEAU, 2013, p. 246).

Introdução

A afirmação de Michel de Certeau nos coloca frente a uma


reflexão sobre a história dos livros e de seus leitores que ultrapassa,
em diversos aspectos, a margem de um texto e propõe, antes de mais
nada, uma reflexão sobre a história dos objetos e seus usos culturais.
Esta perspectiva historiográfica tem muito a contribuir no que
tange aos estudos sobre a história da Bíblia. Não há dúvidas de que os
livros que a compõem, uma vez que adquiriram status de ‗sagrado‘,
estão muito pouco expostos às questões históricas que envolveram a
sua efetivação no cânone bíblico. Kemord destaca que:

[...] A despeito de inumeráveis vicissitudes históricas,


redações, interpolações e corrupção, o texto canônico é
tido como eternamente fixado, inalterável e de potencial
interpretativo tão incomensurável que ele permanece,
malgrado seu estado inalterado, suficiente para todos os
tempos futuros [...] (KERMORD, 1997, p. 647).

Esta aplicabilidade perpétua é estabelecida por uma tradição


contínua de interpretação que parte de regras cambiáveis, posto que o
texto canônico, ele mesmo fixo no tempo e provavelmente em uma
língua morta, precisa se tornar relevante para um futuro imprevisível.
A leitura e a escrita, entendida aqui como prática concreta,
encarnada em gestos, em espaços e hábitos e, não apenas como
procedimentos abstratos, será o norte para uma reflexão sobre uma
prática ligada ao processo de escrita da cultura ocidental, que está
intimamente unida à historicidade da Bíblia como obra: a tradução.
A questão que se coloca a esse exercício cultural é a análise
das dimensões históricas desse processo de atualização que todo texto
exige, considerando inicialmente que suas significações são
dependentes das formas pelas quais eles são recebidos e apropriados
por seus consumidores. De fato, o processo de tradução dos textos
que compõe a Bíblia nas suas edições contemporâneas, é parte
integrante das práticas de leitura que o Ocidente Cristão latino
desenvolveu com este objeto ao longo da sua história67.
As traduções dos livros que compõe a Bíblia moderna não
deixaram nunca de serem lidas e talvez tenham se eternizado até mais
que os originais, posto que, dificilmente seu leitor a leu ou a lê, nas
línguas em que os livros que a compõem foram escritos
originalmente.
Dentro desta perspectiva, a tradução dos textos canônicos do
hebraico e grego para o latim e o exercício de exegese em língua latina
que esteve diretamente ligada a esta atividade entre os séculos IV e V,

67 Apoio-me na afirmação do medievalista Jacques Le Goff de que: ―[...] o


documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto
da sociedade que o fabricou segundo relações de forças que ai detinham o
poder [...]‖, para pensar a tradução como uma pratica cultural que está inserida
no processo de construção de uma literalidade ortodoxa, que se propunha a
reduzir e legitimar determinadas leituras de uma obra, buscando tornar todas as
outras destituídas de sentido (LE GOFF, 1996, p. 545).

89
serve aqui como alavanca para uma reflexão sobre o sistema de
produção da cultura escrita e as relações de poder prevalecente nesse
período68.
As escrituras cristãs nasceram, em sua maioria, em língua
grega (texto bíblicos, apócrifos primeiros trabalhos exegéticos), assim
como os textos hebraicos foram conhecidos pelos latinos do Império
Romano também nesta língua69. O trabalho de tradução deste material
para o latim se deu bem mais tarde e de forma caótica, posto que,
existiam no Ocidente Europeu, neste período, uma abundância de
traduções latinas dos textos que compunham o Novo e Antigo
Testamento.
Além disso, havia também diversos cânones particulares -
tanto grego, como latino. Podemos citar, por exemplo, aquele
defendido por Marcião – considerado herético em 144 d. C. -, este
cânone recusava os textos hebraicos, admitindo parte do evangelho
de Lucas e algumas cartas paulinas, exceto as pastorais e as dirigidas
aos Hebreus (KERMODE, 1997, p. 645).
A partir do século IV, seguindo uma tendência já comum no
mundo romano de língua grega, também o Ocidente passou a ter
mais cuidado com a produção dos códices dos livros considerados
canônicos. Os bispos se preocuparam uma pouco mais com a
produção desse material (rigor do trabalho de tradução, cópia dos
textos, etc), já que isso significava, em grande medida, a

68 Michel de Certeau afirma existir uma hierarquização social da leitura, na qual se


constrói a ficção de que existe entre o leitor e o texto, uma barreira que os
mantém distantes: ―[...] Essa ficção do ‗tesouro‘ escondido na obra, cofre-forte
do sentido, não tem evidentemente como base a produtividade do leitor, mas a
instituição social que determina a sua relação com o texto. A leitura fica de
certo modo obliterado por uma relação de forças (entre mestres e alunos, ou
entre produtores e consumidores), das quais ele se torna o instrumento. A
utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um segredo do
qual somente eles são os ‗verdadeiros‘ interpretes [...]‖ (CERTEAU, 2013, p.
242).
69 As traduções gregas dos textos hebraicos mais conhecidos pelos autores latinos
são a Septuaginta, e as traduções de Áquila, Símaco e Teodócio.

90
sistematização, unificação e legitimação dos dogmas, da liturgia e das
discussões teológicas.
Esse emaranhado de códices (escrituras, cópias, traduções,
cânones divergentes), foi um grande desafio para a igreja e, com
certeza, fonte de divergências que criaram separações entre grupos
cristãos (heréticos?). Frente a esse contexto a Igreja viu-se motivada a
estabelecer uma lista canônica das escrituras, assim como procurou
legitimar determinadas traduções e códices. Esse processo, no entanto,
se deu de modo paulatino e não sem inúmeras alternativas.
Umas das ações da Igreja de Roma, para resolver essa questão,
foi o empenho do Papa Dâmaso, em 382, para que seu secretário, o
presbítero Jerônimo, revisasse os textos evangélicos e os livros
hebraicos. A princípio, o projeto tinha como objetivo a revisão da
tradução do material latino, a partir da comparação com os textos em
grego. As preocupações exegéticas de Jerônimo, o levou a investigar,
e em seguida traduzir diretamente do hebraico para o latim, os livros
escritos originalmente nesta língua. Este trabalho o colocou em
choque com uma tradução grega dos livros hebraicos, bastante
legitimada pelos escritores cristãos, a tradução dos Setenta ou
Septuaginta70.
O Papa Dâmaso não poderia ter escolhido um intelectual mais
apropriado para este trabalho. Nascido nas fronteiras da latinidade,
em Stridon, Jerônimo desde cedo se acostumou as turbulências dos
conflitos culturais causados pela movimentação dos povos
germânicos nas regiões Ocidentais do Império. Conhecedor da
cultura clássica latina, a qual teve contato ainda menino nos anos que
passou em Roma, torne-se hábil na escrita do latim e, sua
permanência por muitos anos no Oriente, possibilitou que visitasse,
cada vez com maior desenvoltura, o grego e o hebraico. Sua estadia
em Antioquia, por sua vez, o permitiu entrar em contato com
importantes escritores cristãos gregos e desenvolver o conhecimento
de técnicas de exegese comum a este período.

70 Segundo a tradição cristã, Alexandria, setenta tradutores, estando em salas


diferentes, traduziram para o grego, exatamente com as mesmas palavras, os
textos hebraicos.

91
É esse saber, não tão comum para homens do século IV, que
fez de Jerônimo um personagem importante para intercâmbio cultural
que o desafio do Papa Dâmaso propunha.

Reflexões sobre tradução

O trabalho de tradução, sem dúvida alguma, é uma atividade


cuja prática envolve fatores culturais que estão vinculados à atividade
da escrita e da leitura, assim como da relação que determinada
sociedade tem para com o livro/objeto. Não resta dúvida de que a
mesma obra não é de fato a mesma quando muda sua língua, sua
pontuação, diagramação e o suporte que a acolhe. É preciso levar em
conta, portanto, ao tratar da experiência da tradução como um ato de
leitura, da relação entre: livro/objeto e texto; tradução e autoria,
tradutor e o discurso que compõe o texto de partida. Por conseguinte,
esse exercício carrega em si um repertório lexical, estético, cultural,
além de uma compreensão do livro como objeto, peculiar a cada
época.
Esta prática reside na delimitação de certos efeitos de
linguagem considerados necessários para a eficácia da operação
tradutora. Ela pode ser compreendida como uma reescrita cujo ato
pressupõe uma condição de interação, podendo ser abordada como
situação de passagem: entre línguas, culturas, leitores e autores. Esse
processo parte de uma hierarquia temporal e genealógica na qual a
tradução vem depois do original e se constitui a partir do original.
Para o período da Antiguidade e do Medievo, a prática da
tradução deve ser pensada a partir desta perspectiva de que cultura
escrita era entendida com uma rede funcional de artes, quer dizer, de
linguagem submetida a regras. Desta forma, ela não estava ligada,
como hoje, a um valor de originalidade. O que conhecemos como
autor não existia. Ao redor de um texto antigo e medieval havia
diferentes funções: o escriptor que recopiava simplesmente; o
compilador que agregava algo à cópia, mas nunca o que provinha de
sim mesmo; o comentador que introduzia sem dúvida o texto
recopiado, mas só para fazê-lo inteligível; e por fim o autor que
colocava suas próprias ideias, mas sempre se apoiando em outras
autoridades.

92
Segundo Chartier (2014), pode-se dizer que apenas no século
XVIII é que realmente houve a emergência da individualização do
escrever, da originalidade da obra literária e da sacralização do
escritor:

A ligação entre essas três noções, que foi decisiva para a


definição de propriedade literária, chegou ao seu ápice
no fim do século XVIII com a fetichização do
manuscrito assinado e uma obsessão pela caligrafia do
autor como garantia de autenticidade e unidade de uma
obra dispersa em diversas publicações. Essa nova
economia da palavra escrita rompeu com uma ordem
mais antiga baseada em práticas bastante diferentes:
colaboração frequente entre autores, reutilização de
conteúdo usado anteriormente, lugares-comuns
familiares e fórmulas tradicionais, junto com continuas
revisões e prosseguimentos de obras que permaneceram
abertas (CHARTIER, 2014, p. 10).

As regras que cercavam a tradução, nesse período, a


aproximava do exercício da oratória e da gramática. Nas escolas
romanas ela era uma atividade comum: nos estudos gramaticais, era
considerada uma forma de comentário textual e, nos de retórica, uma
forma de imitação. Daí também a grande superposição entre as
práticas de comentários, traduções e imitação literária (FUNARI,
2010).
O trabalho da tradução, a partir de regras da retórica e da
gramática, possibilitou a construção da unidade de uma cultura
romana ou/e cristã, posto que a retórica é uma ciência, linguagem-
objeto (linguagem argumentativa e linguagem objeto), que carrega em
si moral e prática social: sendo um sistema de regras, ela é um manual
de receitas, animados por uma finalidade prática e um código, um
corpo de prescrições morais cujo objetivo final é restringir (permitir e
limitar) os desvios da linguagem; neste sentido ela também é uma
prática social, posto que permite que os grupos dirigentes assegure a
propriedade sobre a palavra. Trata-se antes de tudo de um código
cultural (BARTHES, 2001).

93
A exemplo disso, podemos salientar o que parece ter sido, o
principal motivo para que São Jerônimo aceitasse o árduo trabalho de
revisão da tradução dos livros hebraicos diretamente da língua
original: sua concepção de exegese. Ele usava como metodologia para
escrever seus comentários, conhecimento prévio de todas as
interpretações precedentes, seguido de seleção das melhores,
cotejamento da formulação, exposição da opinião pessoal, e por fim, a
‗liberdade‘ ao leitor de escolher por uma das interpretações. Mas antes
de mais nada, ele procurava pela exatidão do texto bíblico, para que o
comentário não se tornasse viciado por uma leitura textual errada. Daí
a grande importância que ele concedeu a crítica textual e ao
conhecimento da língua original. Discutindo com um judeu várias
passagens referidas a Cristo, ao vê-lo afirmar sempre que tais
testemunhos não constavam do texto hebreu, Jerônimo diz: ―[...] uma
coisa é rezar os salmos na Igreja de Cristo, e outra muito diferente é
responder palavra por palavra as objeções provenientes dos judeus‖
(JERÔNIMO, Prol. In. Lib. Psalm. Iuxta hebr). Para o primeiro,
bastaria a versão dos Setenta; para o segundo haveria que recorrer ao
texto hebraico.
Esta questão nos remete a uma outra prática de escrita que
está diretamente ligada a tradução. Se a tradição literária do mundo
antigo propunha a afirmação da escritura sob a autoridade de um
texto anterior a ele, questionar a Septuaginta significava também mexer
com a própria estrutura textual, com a técnica de construção da
escrita, com a concepção de credibilidade e autoria da obra. Santo
Agostinho pede que São Jerônimo tome cuidado com as correções
que faz à tradução dos Setenta:

[...] Quanto a traduzir para língua latina as santas


Escrituras, eu desejo que não trabalhe nisso, a não ser
do modo como traduziu Jó, fazendo ver, por meio de
significados apropriados, a diferença que há entre a tua
tradução e a dos Setenta, cuja autoridade é
importantíssima (AGOSTINHO, Carta 56, 2).

Este mesmo autor aconselha na sua técnica da emendatio, que


seja cotejada as várias traduções latinas a fim de que se conjeture, por

94
meio das diferenças, a lição ‗correta‘ do texto. No entanto, o que ele
chama de texto ‗bom‘, não é um texto original, recusa a ideia de
checagem a partir do texto hebraico, porque o considera manipulado
pelos judeus. Não só não recorre ao texto original, mas desconfia
dele: ―Melhor uma tradução inspirada por Deus do que um original
corrompido por uma vontade malévola‖ (AGOSTINHO, Doutrina
Cristã II, 11-14). Há sempre em Agostinho uma defesa, não a
fidelidade da tradução, mas ao saber tradicional.
A razão principal pela qual Jerônimo se arrisca a uma tradução
do Antigo Testamento, no entanto, não o deixa se abater pelas críticas
feitas por Agostinho. A prática da tradução era um primeiro
comentário e a Septuaginta, em sua opinião, se esquecia do anúncio de
Cristo, o que para ele estava claramente proposto nos livros
hebraicos:

Tenho recebido cartas de Desiderio, quem por certo


presságio do futuro, há compartilhado o nome com
Daniel, pedindo-me que entregue aos ouvidos dos
nossos o Pentateuco traduzido do idioma hebreu a
língua latina. Tarefa certamente perigosa, exposta aos
latidos dos detratores, que asseguram que eu, ultrajo os
Setenta interpretes, cunhando termos novos em vez dos
antigos [...]. Tendo ouvido isso, me incumbi de fazer
como Orígenes, quem cruzou as traduções antigas,
assinalando com asterisco e óbelo, toda a obra, ao
mesmo tempo que fez brilhar o que antes não se havia
visto [...] sobretudo, aquilo que ensinou a autoridade dos
evangelistas e dos apóstolos, nos quais lemos muitas
passagens do velho testamento que não estão em nossos
códigos [...].
[...] eu não sei quem foi o primeiro autor que, com sua
mentira construiu a ideia de que em Alexandria, os
tradutores escreveram as mesmas palavras, separados
cada um em sua sela. Aristeas escudeiro de Ptolomeo, e
muito tempo depois Josefo, nada contaram que não
fosse o fato de que estiveram reunidos em um palácio
real, não disseram que haviam profetizado, pois uma
coisa é ser adivinho e outra tradutor: o primeiro precede
do espirito, o segundo de erudição e de acervo de

95
palavras nas duas línguas, a não ser que por ventura, se
creia que Cicero traduziu inspirado por algum espirito
de retorica [...] Protágoras de Platão [...] ou bem o
Espirito Santo ditou com umas palavras as passagens
dos mesmos livros as Setenta Interpretes e com outras
para os Apóstolos, de sorte que os que aqueles calaram,
estes mentiram dizendo que estava escrito
(JERÔNIMO, Carta 57, 6).

Em algumas traduções dos evangelhos Jerônimo verificou que


os textos, pela forma como foram tradução, punham em xeque a
divindade de Jesus, ao deixar implícito que este ignorava algo que lhe
foi perguntado. O exegeta utilizou-se de todo o conhecimento da
cultura clássica71 para legitimar o que ele designa ser uma intenção
malévola por parte do tradutor. Este é o caso, por exemplo, de uma
tradução de Mateus feita por Porfírio, na qual Jesus teria dito que ―[...]
o que entra pela boca desce pelo ventre e, é lançado fora‖ (Mt 15, 17).
Jerônimo, para afastar a acusação, faz uma descrição do processo
fisiológico da digestão e assimilação dos alimentos72.
Mas de uma forma geral, não o vemos desautorizando os
antigos tradutores:

71 Não há dúvidas de que São Jerônimo fez todo um esforça em aproximar a


erudição clássica do trabalho de compreensão dos textos sagrados. Explicações
relativas a seres da natureza estão muito presentes em seus comentários.
Descreve por exemplo, em Mt (15, 9,9), as propriedades físicas do imã e âmbar;
nega, em Mt (15, 31), que as trevas que seguiram a crucificação de Cristo seja
um eclipse do sol, pois sabia que a escuridão total produzida por este
fenômeno era de curta duração e essa escuridão durou nada menos que três
horas. Em Mt (24, 28) diz que abutres e as águias localizavam a grande
distância as carcaças graças ao seu finíssimo olfato, e isso era o que pensavam
os antigos naturalistas.
72 Umberto Eco destaca que foi precisamente para responder a estas exigências
de interpretação escritural que nasceram e se difundiram as enciclopédias
medievais, que se distinguem das romanas porque, ainda que estejam
interessadas em explicar como o mundo é, estão mais interessadas ainda em
explicar como entender a bíblia (ECO, 2013).

96
[…] não segui nenhum autor, segui a Septuaginta,
especialmente no que ela não diferencia muito dos
hebreus. Entretanto, também levei em conta Áquila,
Símaco e Teodocião com o propósito de não desviar o
leitor com excessiva novidade, nem omitir a fonte da
verdade [...] (SÃO JERONIMO, Comentário al Eclesiástico,
I, 3).

Ele se propõe, antes de tudo, fazer uma tradução que


corresponda ao que ele considerava ser a ‗verdade‘ Cristã – e esta,
para Jerônimo, apenas não estaria, necessariamente, presente na
versão dos Setenta:

[...] eles fizeram sua tradução antes da primeira vinda de


Cristo […] nós escrevemos depois da sua paixão e
ressurreição, não fazemos profecia e sim história. Não
se narra com a mesma segurança o que se ouviu e o que
se viu. […] Não desautorizo, pois, não corrijo os
Setenta, mas, sinceramente, prefiro aos apóstolos a eles:
pois dessa sua boca me fala Cristo (apud. Prol. In Pent.
CELESTINO, 2012, p. 80).

O contexto de produção destas traduções nos remete sem


dúvidas, às querelas dogmáticas presentes na Igreja Tardo-Antiga. As
discussões, os conflitos mal resolvidos nos concílios de Niceia e
Calcedônia estavam ainda muito presentes na vida desses
eclesiásticos. A tradução dos textos bíblicos e seus comentários
tornaram-se palco dos embates entre esses homens, transformando-se
em lugar privilegiado no processo de legitimação de discursos
conflitantes, em ortodoxia frente ao processo de definição dos
dogmas, da constituição das práticas culturais da Igreja cristão romana
e da sua institucionalização.
É preciso destacar ainda, que o tradutor da Idade Média, na
grande maioria das vezes, não conhecia os documentos originais nas
línguas originais:

A tradução constituía o único texto por meio do qual


era possível obter informações sobre o original e era

97
considerado substitutiva do original, mesmo se sabendo
que se tratava da versão de outra língua (geralmente
desconhecida). É também o caso das transcrições de
códice a códice. Do ponto de vista da filologia moderna,
essas traduções e transcrições eram todas infiéis, mesmo
porque muitas vezes o tradutor ou o copista
conscientemente alteravam o texto, o amputavam, o
censuravam (ECO, 2013, p. 227).

Diante dessa insegurança causada pela própria técnica,


tradição (daí as leis fundadas no costume) e auctoritas (tesouro de
opiniões respeitais), era o que poderia assegurar confiabilidade a um
documento. E se a tradição literária do mundo antigo propunha a
afirmação da escritura sob a autoridade de um texto anterior a ele,
questionar a Septuaginta, como São Jerônimo fez constantemente em
seus trabalhos de comentarista e tradutor, significava também mexer
com a própria estrutura textual, com a técnica de construção da
escrita, com a concepção de credibilidade e autoria da obra.
Principalmente no Ocidente, a literatura cristã não teve
relação alguma com o ‗mercado editorial‘. O comum na produção
desses códices foi a manufatura privada e essa prática deixou margem
para interferência do copista no texto, podia-se acrescentar ideias
adversas àquela do autor ou retirá-las73. Porém, a questão do original e
não original não era uma questão: ou foram transmitidos ou não
existiam. Segundo Umberto Eco:

Depois que Orígenes estabeleceu o princípio da


complementariedade entre os dois testamentos e de sua
leitura paralela, coloca-se o problema de como legitimar
as interpretações. De um lado, a justa interpretação deve
legitimar a Igreja, mas, de outro, aquilo que decide em

73 Como São Jerônimo faz na obra de Orígenes: [...] Tu dizes, com efeito, no
mesmo prólogo, tu cortaste as coisas que tinha sido acrescentadas pelos
heréticos e que puseste em seu lugar boas coisas [...]. [...] quanto a mim, com
efeito, eu apenas modifiquei as passagens que tinha sido acrescentadas pelos
hereges. [...] por que traduziste os maus textos para dá-los a conhecer aos
latinos? [...] (JERÔNIMO, Apologia contra Rufino, Liv. III, 14).

98
que medida uma interpretação é justa é a tradição
interpretativa, legitimada pela Igreja como depositária da
verdade [...] (ECO, 2013, p. 232).

Como é possível ver, o trabalho de tradução dos textos dos


textos hebraicos para o latim diretamente do da língua original, veio
ao encontro da necessidade de que esse material estivesse adaptado ao
modelo cristão de exegese e não mais permanecesse na dependência
que a Septuaginta carregava em relação às explicações rabínicas em
matéria de gramática, sintaxe e significados de palavras e expressões.
A tradução destes textos deveria aproximá-los da ‗verdade cristã‘, o
que é possível ver claramente na obra Questões relativas ao Antigo
testamento, na qual Jerônimo faz um trabalho etimológico dos nomes
lugares e objetos presentes nestes textos respondendo a este objetivo.

Considerações finais

Os livros de uma forma geral, mas destaco aqui a Bíblia –


texto e suporte - não são artefato antigo sem relação orgânica com as
sociedades que a acolhe, ela existe historicamente. Há um constante
diálogo entre essa obra e a história, onde a primeira é adaptada a
novas situações e a segunda é influenciada pelo que seus livros têm a
dizer. Assim, é possível ver na história da leitura dos textos bíblicos,
suas traduções e seus comentários, os conflitos culturais que estão em
surdina, nas clivagens subterrâneas criadas pelas maneiras diferentes,
ou mesmo contraditórias, de ler esse arquivo74.
As regras propostas por Jerônimo para o trabalho de
tradução, sem dúvida alguma, quis criar um discurso linear, que
eliminasse os conflitos, às divergências de compreensão do sagrado
presentes nesta Igreja. Isto não está longe das possibilidades de a
tradução, para o período medieval, a qual é, antes de tudo, um
exercício de deslocamento da fonte, do texto de partida. Para a
professora Copeland trata-se de: ―[...] reinventar a fonte, de modo

74 Arquivo é entendido no sentido amplo de ‗campo‘ de documentação


pertinentes e disponíveis sobre uma questão.

99
que, assim como na teoria retórica, a atenção é dirigida para a
produção ativa de um novo texto dotado de seus próprios deveres
efetivos e adequados às circunstancias históricas particulares de sua
recepção [...]‖ (COPELAND, 1991, p. 30).
A atividade da escrita e da leitura (aqui acrescentamos a
tradução) é um mecanismo importante de poder e o monopólio sobre
ela proporciona determinado controle sociocultural por parte do
grupo que o exerce.
É importante entender a relação dos discursos dentro das
práticas sociais e culturais. Eles, na forma como podemos ouvi-los/lê-
los, sob a configuração livros não são simples entrecruzamento de
coisas e de palavras, um conjunto de signos (elementos significantes
que remetem a conteúdos ou a representações), mas práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam.
O direito de ser ‗digno de abrir o selo‘, de alcançar a ‗justa
verdade‘ notadamente dá, em larga medida, ao grupo social a quem
este poder é atribuído, um domínio que ultrapassa o poder sobre o
sagrado. Para o caso do questionamento que Jerônimo faz a
Septuaginta, podemos tentar resolve-la a partir das seguintes palavras
de Umberto Eco:

Na Idade Média se dizem coisas verdadeiras na medida


em que estas são sustentadas por uma auctoritas
precedente, a tal ponto que, caso se suspeite de que a
auctoritas não sustenta a nova ideia, procede-se à
manipulação de seu testemunho, porque a auctoritas tem
um nariz de cera (ECO, 2013, p. 234).

É fato que, os elementos trazidos por Jerônimo para compor


a argumentação que faz contra as críticas de Rufino ao seu trabalho
de tradutor e, até mesmo toda a revisão e tradução que faz dos textos
canônicos, respondem a sua realidade social, a partir de um método
de tradução e exegese que cria condições narrativas que transformam
os textos bíblicos ou os textos gregos exegéticos em uma obra abertos
a realidade material da comunidade cristã na qual o autor esteve
inserido.

100
REFERÊNCIAS

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BARTHES, Roland. A aventura Semiológica. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São


Paulo: Editora da Unesp, 2014.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vol 1.


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CELESTINO, MÓNICA MARCOS. Jerónimo: su obra. In: Obras


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COPELAND, R. Rhetoric, hermeneutic, and translation. In: the


Middle Ages. Academic traditions and vernacular texts. Cambridge:
Universtity Press, 1991.

ECO, Umberto. Da árvore ao labirinto. Estudos históricos sobre o


signo e a interpretação. Rio de Janeiro: Record, 2013.

FUNARI, Mauri. Tradução Romana: Suplantação do Modelo.


Revista Nuntius Antiquus. Belo Horizonte, n. 6, dez 2010. ISS:
1983-3636.

KERMODE, Frank. O cânone. In: ALTER, Robert e ERMODE,


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LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: História e


memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996, p. 535-549.

SAN JERÓNIMO. Obras completas de San Jerónimo.


Comentário a los Profetas Menores. Introducción, traducción y notas

101
de Avelino Domíngues García. Vol. IIIa, Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 2000.

SAN JERÓNIMO. Obras completas de San Jerónimo. Epistolário


I. Introducción, traducción y notas de Juan Batista Valero. Vol. Xa,
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2013.

SAN JERÓNIMO. Obras completas de San Jerónimo. Obra


Homiléticas. Introducción, traducción y notas de Juram Bautista
Valero e Mónica Marcos Celestino. Vol. I, Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 2012.

SAN JERÓNIMO. Obras completas de San Jerónimo. Cuestiones


hebreas sobre el Génesis; Libro de la interpretación de los nombres
hebreos; Fragmentos selectos del Salterio; Comentario al Eclesiastés.
Introducción, traducción y notas de Rosa María Herrera García. Vol.
IV, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2004.

102
Capítulo 6

A Instrução nos Manuais de Mercadores


Medievais: o Zibaldone da Canal
Jaime Estevão dos Reis

Introdução

Os manuais de mercadores surgiram no contexto da chamada


‗Revolução Comercial da Idade Média‘, conforme denominação de
Raymond de Roover, em seu artigo The comercial revolution of the 13th
century, de 1942. Tal definição tem sido adotada pelos historiadores
econômicos que se ocupam da Economia ou da História Econômica
Medieval. Citemos como exemplo, Peter Spufford que adota a
expressão de Raymond de Roover para intitular a segunda parte de
sua clássica obra Money and its use in medieval Europe (1989) e Robert S.
Lopez em A revolução comercial da Idade Média (950-1350).
Entre o século XI e meados do século XIV, o Ocidente
experimentou um crescimento urbano e um desenvolvimento dos
mercados impulsionados pelo aumento da produção agrícola e de
bens manufaturados. Nos campos, a exploração mais racional dos
senhorios, com a utilização de novas técnicas de arroteamento e
plantio, bem como o gerenciamento eficaz da mão de obra
camponesa, permitiu uma ampliação da área cultivada. O resultado da
aplicação do sistema de faire valoir, princípio da racionalidade
econômica, ampliou os horizontes dos agentes econômicos dos
proprietários de terras, bem como dos camponeses que trabalhavam
em seus lotes. As cartas de franquias difundidas a partir do século
XIII permitiram uma diferenciação das condições de exploração e
ganho por parte dos trabalhadores, além de novos investimentos de
capital oriundos de homens de negócios que passaram a investir em
terras (FOURQUIN, 1991).
A monetarização das relações no campo em curso desde
meados do século XII, como bem afirmou Georges Duby em sua
obra Economia rural e vida no campo no Ocidente medieval (1988),
possibilitou não somente um aumento da produtividade, mas,
principalmente, uma diferenciação econômica entre as camadas de
proprietários e trabalhadores, além de um volume maior de
comercialização dos produtos agrícolas em todo o Ocidente.
Nas cidades, a organização do sistema de ofícios agrupados
em corporações, a formação de guildas e hansas impulsionaram a
produção e o comércio urbano, ao mesmo tempo em que
demandaram maior quantidade de matérias-primas, produtos
alimentícios e manufaturados provenientes das mais diversas regiões.
Tal como ocorreu no campo, a produção urbana passou a ser
organizada de forma mais racional para atender não somente o
comércio local, mas também ao de média e longa distância (DOBB,
1983). A organização de feiras e mercados permitiu maior circulação
de produtos e o encontro de mercadores vindos das mais distantes
regiões. No século XII estabeleceu-se um ciclo de grandes feiras
regionais e inter-regionais de grande importância econômica na
Inglaterra, em Flandres e na região de Champagne (FOURQUIN,
1991).
Essa ‗revolução comercial‘ foi acompanhada por uma
transformação das técnicas e das maneiras de se fazer negócios.
Mudanças que permitiram à economia ocidental desvincular-se de sua
dependência em relação à terra. Os agentes econômicos urbanos
assumiram cada vez mais o direcionamento da economia, integrando
os mercados locais com as mais distantes praças de comércio. Nesse
contexto ganharam destaque diversas associações comerciais e
grandes companhias de comércio até fins do século XV que
dominaram o mundo dos negócios, estabelecendo importantes
conexões entre o Ocidente e o Oriente. A liderança coube às
companhias italianas pertencentes à burguesia comercial e financeira
de cidades como Gênova, Florença, Pisa e Veneza.
Os manuais de mercadores revelam não apenas o universo
comercial e financeiro dominado por grandes companhias,
permitindo-nos entender também a formação dos agentes
econômicos que atuam no mundo dos negócios. É a ‗educação

105
mercantil‘ dos homens de negócios que buscamos estudar, sua
formação e sua cultura. No Ocidente, o pioneirismo na elaboração
destes manuais coube, sem dúvida, aos mercadores italianos que
procuraram registrar suas experiências no mundo dos negócios.

Os manuais de mercadores italianos da Idade Média

Os mercadores italianos foram os principais autores de


manuais de comércio da Idade Média75. Conhecidos sob o título
moderno de Pratica dela mercatura, o mais antigo data de fins do século
XIII, escrito em Pisa por um comerciante anônimo. Hoje existe
apenas uma cópia incompleta do século XVII, permanecendo inédito.
Robert Sabatino Lopez teceu alguns comentários acerca desse
primeiro manual italiano, denominado Memoria de tucte le mercantie, em
um breve artigo publicado em 1970, na Revue Historique.
Um segundo manual intitula-se Zibaldone da Canal, redigido em
Veneza, em fins do século XIV, também de autoria anônima. Os
historiadores que se ocuparam desse manual veneziano acreditam
tratar-se de um jovem mercador que o compilou como registro de sua
preparação para o mundo dos negócios, porém, não descartam a
hipótese de tratar-se de registros de um experiente mercador. O
manuscrito pertence hoje à Universidade de Yale e compõe a coleção
de manuscritos Beinecke Rare Book Library. Foi publicado em 1967,
pelo Comitato Editore de Veneza, sob a edição de Alfredo Stussi. Há
também uma edição mais contemporânea a cargo de John E. Dotson,
que o publicou em inglês, em 1994, sob o patrocínio do Center for
Medieval and Early Ranaissance Studies.

75 Os primeiros manuais de mercadores que se tem conhecimento não são


europeus. O primeiro foi elaborado entre os séculos XI e XII, na síria, pelo
mercador Árabe Abu al-Fadhl al-Dimishqi, e intitula-se O livro sobre as belezas do
comércio e do conhecimento dos bons e maus produtos e de suas falsificações, publicado no
Cairo no início do século XIV. O segundo manual data do século XII e foi
escrito pelo inspetor de comércio chinês Chau Ju-kua, e recebeu o título de
Chu-fan-chi, também conhecido como Descrição de povos bárbaros ou Registros de
povos estrangeiros.

106
Os historiadores econômicos consideram o Pratica dela
mercatura, escrito em 1340, por Francesco Balducci Pegolotti, o mais
completo manual de mercador da Idade Média. Pegolotti era um
experiente representante da companhia comercial dos Bardi, de
Florença. O único manuscrito desse manual pertence à Biblioteca
Riccardiana de Florença, datado de 1472. A obra foi publicada em
1766, por Gian-Francesco Pagnini, que fez uma série de alterações do
conteúdo original, atualizando dados e cortando informações
consideradas supérfluas ao contexto do século XVIII. Em 1936,
publicou-se a primeira edição crítica com amplo estudo introdutório
de Allan Evans, reeditada em 1970, sob o patrocínio da Medieval
Academy of America. Podemos mencionar cinco outros manuais de
mercadores medievais italianos que, embora menos completos se
comparados ao de Francesco Pegolotti, são igualmente importantes
para o estudo do comércio e do universo dos mercadores na Idade
Média. Três foram escritos no século XIV e dois no século XV, além
do manual conhecido como Tarifa Zoé, de 1345, manuscrito de
propriedade do Archivo di Stato di Venezia, publicado pela Università
degli Studi di Venezia em 1925 (EVANS, 1936).
Dois outros manuais datam de fins do século XIV: o La
pratica di mercatura datiniana, escrito em1385 ou 1386, e o inacabado
Una pratica di mercatura in formazione, elaborado entre 1394 e 1395. O
primeiro pertence ao Archivo Datini de Prato e foi publicado em 1964
pelo Instituto de História Econômica das universidades de Pisa e
Florença. O segundo é fruto das anotações do jovem mercador
Ambrogio Di Messer de‘Rocchi enquanto estava a serviço da
Companhia de Ambrogio di Meo, de Florença, em Valência e
Barcelona. O texto foi publicado em 1980 por Bruno Dini que
organizou as anotações do jovem mercador morto prematuramente.
Existem dois manuais do século XV que merecem indicação.
O Pratica dela mercatura, composto em 1442, por Giovanni di Antonio
da Uzzano, publicado em 1766 na coleção Pratica della mercatura de
Francesco Pagnini, e o conhecido Il libro dell’arte de mercatura de
Benedetto Cotrugli, escrito em 1458. Cotrugli era um importante
comerciante de lã de Nápoles e escreveu seu manual enquanto fugia
de um surto de peste. Seu manual foi publicado pela primeira vez em
1573. Em 1990 publicou-se uma segunda edição a cargo de Ugo

107
Tucci pela editora Arsenale, de Veneza. Esses são, seguramente, os
mais importantes manuais de mercadores medievais italianos que se
tem informação. Especialistas indicam que há, provavelmente, muitos
manuscritos que permanecem inéditos em bibliotecas públicas e
coleções particulares. Sua publicação poderá contribuir para um maior
conhecimento da cultura mercantil e do mundo comercial do
Ocidente e, especialmente, das Repúblicas Italianas na Idade Média.

Os manuais e a instrução dos jovens aprendizes de mercadores

Frutos da experiência de homens inseridos no mundo dos


negócios, os manuais de mercadores da Idade Média são fontes de
informações para o estudo não apenas da economia ou da história
econômica medieval, pois, para além das intensas descrições de
produtos, rotas comerciais, praças de comércio, preços, taxas, custos,
pesos, medidas e equivalências, revelam o universo dos mercadores,
seu trabalho nas grandes companhias e, especialmente, a preparação
para o exercício da profissão. Embora façam parte de um gênero
literário que, conforme observamos, firmou-se no contexto da
‗Revolução Comercial‘ do século XIII (ROOVER, 1942), existem
algumas diferenças entre os vários manuais de mercadores medievais.
É possível identificar três tipos de manuais que se diferenciam
pela natureza de seus conteúdos: manuais mais didáticos voltados
para a educação dos jovens aprendizes ao ofício de mercador;
manuais técnicos e de natureza eminentemente econômica, fruto da
vivência de experientes mercadores, e manuais escritos por
mercadores igualmente experientes, que apresentam um conteúdo não
apenas econômico, mas político, filosófico, e moral, cujo objetivo é
advertir os mercadores sobre o exercício correto e digno da profissão.
Selecionamos três entre os diversos manuais apresentados
classificando-os nas categorias indicadas acima. Na primeira, insere-se
o Zibaldone da Canal, o manual veneziano de fins do século XIV. Na
condição de manual técnico e de natureza eminentemente econômica
encaixa-se o Pratica della mercatura escrito em 1340, por Francesco
Balducci Pegolotti. No terceiro tipo – o de manuais que combinam
conhecimento econômico e técnicas comerciais, com preceitos de
ordem política, moral e filosófica – insere-se a obra de Benedetto

108
Cotrugli Il libro dell’arte de mercatura, elaborado em 1458, conhecido
como manual do perfeito mercador.
Voltemos a nossa atenção para o Zibaldone da Canal dado seu
caráter eminentemente didático e sua importância para a formação
dos mercadores. Antes, porém, é preciso indagar em que fase da
formação do jovem mercador esse tipo de manual era utilizado. A
primeira etapa da formação dava-se naturalmente em casa, junto à
família, onde as crianças aprendiam regras de comportamento:
cumprimentos, reverência, respeito, amizade, hábitos e valores da
família e do grupo, no caso, os próprios mercadores (CAUNEDO
DEL POTRO, 2006). Por volta dos seis ou sete anos eram enviados
às escolas eclesiásticas ou monacais, onde aprendiam a ler e a
escrever.
Henri Pirenne menciona o caso do filho de um rico mercador
de Huy, na Bélgica, que entrou para o monastério com o intuito de se
alfabetizar e assim tomar conta dos negócios do pai. Essa era, talvez, a
maneira,

[...] mais antiga a que recorreram os mercadores para


conseguir uma parte, para eles a mais útil, dos
conhecimentos que eram monopólio da Igreja. Não se
tratava somente de saber ler e escrever. Também era
importante iniciar-se na prática do latim, uma vez que
era também em latim que eram feitas as cartas, as
contabilidades, as correspondências. Ler e escrever não
significava outra coisa senão ler e escrever em latim.
Língua da igreja, o latim teve que ser e foi, na verdade, a
língua do comércio em seu início, pois foi a Igreja que
forneceu inicialmente aos mercadores a instrução que
eles só podiam adquirir por meio dela (PIRENNE,
1929, p. 20-21, tradução nossa)76.

76 No original: ―[…] la plus ancienne, à laquelle les marchands recoururent pour


se procurer la partie, pour eux la plus utile des, connaissances dont l‘Église se
reservait le monopole. Ce n‘ètait pas seulement de savoir lire et écrire qu‘il
s‘agissait. Il importait tout autant de s‘initier à la pratique du latin, puisqu‘aussi
bienc‘est exclusivement en latin que se dresssaient les chartes, que se tenaient
les comptes, que se rédigeaint les correspondences. Lire et écrire ne signifiait

109
Muitos mercadores, sobretudo os mais ricos, recorriam
também à educação em domicilio contratando um preceptor
particular para o ensinamento de seus filhos. Esse expediente era o
mais adequado às necessidades e aspirações dos mercadores. A
instrução se tornava mais importante à medida que crescia o número
daqueles que viviam do comércio e da indústria (PIRENNE, 1929).
Uma segunda etapa da formação dos filhos de mercadores ocorria nas
chamadas Escolas de Ábaco, numerosas nas cidades italianas, para as
quais iniciavam os jovens de 11 a 14 anos para o ensino da
matemática com o ‗mestre de ábaco‘, pressupondo-se que os jovens já
dominavam a escrita e a leitura. Durava, geralmente, de 2 a 3 anos e
se aprendia desde operações fundamentais (adição, subtração,
multiplicação e divisão) até os cálculos comerciais e financeiros.
Um dos manuais de ábaco mais conhecidos do século XIII é
o Liber Abaci, escrito em latim por Leonardo Fibonacci, também
chamado de Leonardo de Pisa, em 1202. O texto recebeu inúmeras
versões em língua vulgar. Segundo Betsabé Caunedo del Potro, desde
que se publicou o primeiro livro de ábaco em língua vulgar, por volta
de 1288/1290 até 1500, apareceram mais de 300 manuais. Grande
parte deles é italiana, tendo sido produzidos também manuais
franceses, alemães, castelhanos, catalães, o que nos permite afirmar a
existência de uma verdadeira ‗cultura do ábaco‘ neste período
(CAUNDEDO DEL POTRO, 2006).
Em algumas Escolas de Ábaco os jovens aprendizes, além de
cálculos matemáticos e financeiros, adquiriam conhecimento relativo
à astronomia, astrologia, história, literatura, doenças e suas curas,
plantas medicinais, simpatias e religião. Ganhavam experiência
participando das conversas cotidianas e das reuniões dos mercadores
que discutiam os negócios, os ganhos, as perdas, as fraudes, os
mercados e os valores das moedas de diferentes praças. Também

autre chose que lire et écrire le latin. Langue de l‘Èglise le latin du être et fut en
réalité la langue du commerce à ses debuts, puisque c‘est l‘Èglise qui dota dout
d‘abord les marchand de l‘instruction qu‘ils ne pouvaient acquérir que grâce à
elle‖.

110
presenciavam a formação de associações e parcerias comerciais
realizadas nestes centros de aprendizagem.
O Zibaldone da Canal foi, provavelmente, compilado por um
jovem membro da elite comercial de Veneza formado em uma dessas
Escolas de Ábaco. Entretanto, não se conhece a identidade do autor.
O manual foi batizado com esse nome porque a única cópia existente
pertenceu a Nicolò da Canal, que, em 1422, não tinha mais do que 18
ou 19 anos e deixou sua assinatura nas últimas folhas com a seguinte
mensagem: ―Este livro pertence ao lorde Niccolò da Canal, honorável
cidadão de Veneza, mês de Agosto de 1422‖ (apud THE
ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 171, tradução nossa) 77. O
manuscrito permaneceu em posse da família da Canal até o século
XVIII (DOTSON, 1994, p. 9). O autor coletou informações em
diversas fontes: manuais de ábaco, cartas e relatórios comerciais,
obras literárias, históricas, geográficas, religiosas e científicas
(astrológicas e médicas). Esse conteúdo revela que o manual foi
elaborado por alguém com formação bastante sólida e preparado para
atuar no mundo dos negócios da Veneza de início do século XIV.
Manuais como o Zibaldone da Canal destinavam-se a jovens
que, tendo adquirido os conhecimentos necessários nas Escolas de
Ábaco, buscavam aprimorar sua formação antes de iniciarem um
terceira etapa importante na vida do futuro mercador: o estágio nas
companhias de comércio. Essa fase é bem documentada. Cito como
exemplo o jovem mercador Ambrogio Di Messer de‘Rocchi que, em
1387, aos 13 anos de idade, entrou como aprendiz na empresa
comercial de Ambrogio di Meo e Andrea Bomanno, de Gênova. A
empresa era coligada com a famosa Companhia Datini da província
de Prato. Em 1394, Ambrogio Di Messer de‘Rocchi - aos 21 anos -
foi enviado para assumir o cargo de fator, gerente, da Companhia
Datini de Florença, em Maiorca, e depois em Valência, onde adoeceu
e morreu prematuramente em 17 de junho de 1396 (DINI, 1980).
Deixou inacabado seu manual, publicado em 1980 por Bruno Dini
que lhe deu o título de Una pratica di mercatura in formazione.

77 No original: ―This book belongs to lord Niccolò da Canal, honorable citizen of


Venice, 1422 month of August‖.

111
O conteúdo do Zibaldone da Canal

O Zibaldone da Canal apresenta o conteúdo que os jovens


aspirantes ao ofício de mercador como Ambrogio Di Messer,
aprendiam antes ou mesmo durante seus estágios nas Companhias de
comércio. Os assuntos estão distribuídos de forma aleatória, mas
podem ser agrupados, grosso modo, de acordo com a natureza da
matéria. A primeira parte – a maior de todo o manual - contém
exercícios de cálculo, matemática financeira e comercial78. Vejamos
um, dos vários exemplos de cálculos propostos nesse manual:

Faça este cálculo: multiplique 13 e 2/5 X 7 e 1/4. Saiba


que nós temos que transformar todos os 13 e 2/5 em
1/5s que serão 67 quintos; e os 7 e 1/4 nós temos que
transformar em 1/4s, isso totalizará 29 quartos. Agora, a
pessoa deve multiplicar 67 x 29 que é igual a 1943, o
qual tem que dividir por 4 x 5 que é igual a 20. E você
saberá que disto resultam 97 e 3/20; e isso é o quanto
13 e 2/5 x 7 e 1/4 somam, e assim você poderá fazer
todos os cálculos semelhantes (THE ZIBALDONE
DA CANAL, 1994, p. 29, tradução nossa)79.

Alguns exercícios referem-se à conversão de moedas,


conhecimento fundamental ao futuro mercador devido às intensas
relações comerciais de Veneza com diferentes praças de comércio.
Segue o problema proposto:

78 Utilizamos a edição inglesa elaborada por Jhon E. Dotson em 1994, a partir da


edição italiana de Alfredo Stussi, de 1967. Ambos os autores mantiveram o
estilo arcaico do manuscrito do século XIV. Na tradução das citações
procuramos respeitar o estilo sem prejudicar a compreensão, para garantir a
singeleza da descrição.
79 No original: ―Make me this calculation: multiply 13 2/5 times 7 1/4. Know that
we must make 13 and 2/5 all 1/5, which will be 67 fifths; and of 7 and 1/4 we
must make 1/4, that will be 29 fourths. Now, one ought to multiply 67 times
29, makes 1943, which one must divide by 4 times 5, makes 20. And you will
know that from this comes 97 and 3/20; and that is how much 13 2/5 times 7
1/4 amounts to, and thus you can make all similar calculations‖.

112
Agora nós dizemos: um cambista compra 147 marcos e
5 onças de prata à taxa de 10 libras esterlinas e 6 xelins
por marco. Eu pergunto: quantos marcos de pura prata
ele receberá de forma que ele não tenha nenhuma
perda? Esta é sua regra certa, é como a pessoa deve
fazer todos os tais cálculos: Nós temos que saber em
primeiro lugar quanto custam todos os marcos e onças,
e o resultado têm de dividir pelo custo de um marco de
prata pura (quer dizer, 11 libras esterlinas e 13 xelins) e
assim chegaremos aos marcos de prata pura sem perdas.
Deste modo os cambistas chegam às suas contas. Se a
prata dá menos retorno do que deve, então você está
perdendo um pouco desse capital, e se der mais, então
você ganha com isso. Mas eles são sábios o bastante
para conhecer bem prata e saber bem comprar. Toda a
prata da primeira compra resulta em 1.520 libras
esterlinas e 10 xelins, cuja soma a pessoa deve dividir
por 11 libras esterlinas e 13 xelins. Isso vem a ser 132
marcos, 4 onças, 4 xelins. É o que ele terá de pura prata
(THE ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 29-30,
tradução nossa)80.

Há vários exemplos de exercícios referentes ao cálculo do


tempo de viagem de um ponto comercial a outro, levando em conta o

80 No original: ―Now we say: a moneychanger buys 147 marks and 5 ounces of


silver at the rate of £10 6s. per mark. I ask how many marks of pure silver he
will receive so that he will lose none of it? This is your right rule, how one
ought to make all such calculations as this: That we must know how much all
the marks and ounces amount to at the first cost, and all that sum we4 must
divide by as much as a mark of pure silver is worth (that is, £11 13s.) and that
will come to the marks of pure silver at no loss. And in this way
moneychangers arrive at their reckoning. If the silver returns less than it ought,
then one loses some of this capital, and if it returns less than it ought, then one
loses some of his capital, and if it returns more, then one gains by it. But they
are wise enough to know silver well and to know well how to buy. All the silver
of the first purchase amounts to £1520 10s. 9d., which sum one ought to
divide by £11 13s. That comes to 132 marks, 4 ounces, 4s. 3d. And so much he
will have of pure silver‖.

113
tipo de embarcação e as técnicas de navegação utilizadas. Citemos um
deles:

Faça este cálculo: há um navio no porto de San Nicolò


di Lido e tem três velas e quer ir para Apulia. Ele vai
para Apulia somente com a vela mestra em 2 dias, e
depois somente com a mezena (mastro de ré) em 3
dias, e com as terceiras velas somente, em 4 dias. Eu lhe
peço que você veleje com todas as três. Em quantas
horas, em quantos dias você chegará em Apúlia? (THE
ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 59, tradução
nossa)81.
Esta é sua regra certa: assim é fácil dizer que 2 e 3 e 4
são encontrados em 12 e dizer que 1/2 e 1/3 1/4 de 12
é 13 e 13 é o divisor. Agora divida 12 em 13 partes,
disso resulta 12/13 e isso é quanto tempo levará para ir
com todos os 3 jogos de velas. E assim faça todos os
cálculos semelhantes (THE ZIBALDONE DA
CANAL, 1994, p. 52, tradução nossa)82.

O aprendiz de mercador deve conhecer os diferentes tipos de


especiarias e suas características. O manual apresenta uma longa lista
de produtos de grande aceitação comercial e as qualidades que se deve
observar nessas mercadorias. Indicamos alguns exemplos:

81 No original: ―Make me this calculation: there is a ship in the port of San Nicolò
di Lido and it has three sails and wants to go to Apulia. And it goes to Apulia
with the mainsail alone in 2 days, and then goes with the mizzen alone in 3
days, and with the third sails alone in 4 days. I ask you to make sail with all
three. In what hour, in how many days will you to to Apulia?‖.
82 No original: ―This is your right rule: thus it is easy to say that 2 and 3 and 4 are
found in 12 and say 1/2 and 1/3 1/4 of 12 is 13 and 13 is the divisor. Now
divide 12 into 13 parts, from this comes 12/13 and that is how long it will take
to go with all 3 sails set. And thus make all similar calculations‖ (THE
ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 52). Neste exemplo, o problema é
apresentado em um local do manual e a resposta encontra-se em página bem
anterior a do exercício proposto.

114
Primeiramente, toda a pedra de açúcar deve ser branca e
seca e suas extremidades devem ser firmes e fortes.
Também, todo o pó de açúcar deve ter granulações
grandes, brancas. Também a pedra-ume deve ser branca,
luminosa e grande. Também, as ramas de canela devem
estar inteiras e grandes e pesadas, e elas não devem fazer
um ruído quando alguém as sacudir. […] Também, as
características da goma arábica devem ser: grande,
branca, e luminosa. Também o gengibre deve ser longo,
não ser áspero, ser firme e grande. E a pessoa deve
cortar para ver que é firme e branco; e branco é melhor
que escuro [...] Também as características da flor da
noz-moscada devem ser tais que ela seja grande e
vermelha na cor e um pouco desbotada por dentro; se a
flor da noz-moscada se assemelha à cor de pétalas de
rosa, assim é bom. Também, as características da cubeba
(pimenta-de-Java) são que elas sejam grandes e cinzentas
e devem ter um pequeno talo dentro, e o talo deve estar
cheio na parte de baixo e vazio por dentro em sua maior
parte. O tipo selvagem não tem talo (THE
ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 127-128, tradução
nossa)83.

83 No original: ―First, every [loaf of] sugar ought to be white and dry and its tip
wants to strong and firm. Also, all sugar powder ought to have large, white
granulations. Also rock alum ought to be white and bright and big. Also, the
reeds of cassia ought to be whole and big and heavy, and they should not make
a sound when a man shakes them. […] Also, the characteristics of gun Arabic
are that it should be big, white, and bright. Also the characteristics of ginger are
that it should appear long, and that it not be rough, and it be firm and big. And
one wants to cut it open to see that it is firm and white; and white is better than
dark. Also, the characteristics of galangal: it ought to be a large, firm root
tending to something of a reddish brown, and the root should be full and
heavy, and there should be nothing gamey about it. Gaminess [is acceptable if it
is slight, and no one can detect an sharp odor, and within it resembles a sponge
and is lighter than the skin; and thus it is good. Also, the characteristics of mace
are that it should be big and bright red in color and a little dull in color inside;
and mace resembles the color of rose petals, and thus it is good. Also, the
characteristics of cubebs are that they should be big and grayish and ought to
have a little stem inside, and the stem ought to be full below and empty within
for the most part. The wild kind does not have a stem‖.

115
Uma segunda parte ou seção do Zibaldone da Canal apresenta
conteúdo de cunho histórico e literário. Uma Crónica de Veneza
relatando sua história desde os tempos antigos; alguns poemas épicos,
como a História de Tristão, e algumas sirventes – composições
trovadorescas de gênero satírico características da Provença no século
XII. Também apresenta uma coleção de sentenças e provérbios.
Vejamos alguns dos provérbios que são verdadeiras advertências aos
que pretendem exercer o ofício de mercador:

Cortesia vinda da boca é muito valiosa, e custa pouco.


O homem extravagante não pode adquirir grandes
coisas que durem muito tempo. Quem erra e não sabe
que errou deve encontrar clemência, mas quem erra
conscientemente não é sincero e nem bom. Se o homem
reconhece nele próprio o que vê em outras pessoas, eu
tenho uma convicção firme que ele não falhará no fim,
entretanto às vezes ele pode fracassar tristemente.
Aquele que consegue se controlar; parece a mim, que
tem um grande poder. Palavras boas e más ações
enganam o homem sábio e o tolo também. Estas são as
três piores coisas no mundo: a primeira é um homem
pobre, a segunda é a beleza de uma prostituta, a terceira
é a força de um tolo. Estas são as três coisas que mais
desagradam a Deus que qualquer outra: a primeira é um
homem rico ser ganancioso, a segunda é um homem
pobre ser arrogante, a terceira é um homem velho ser
lascivo (THE ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p.
164, tradução nossa)84.

84 No original: ―Courtesy from the mouth is very valuable, and costs little. The
excessive man cannot acquire great things that last long. Whoever errs and does
not believe that he has erred ought to find mercy, but whoever knowingly errs
is neither true nor good. If the man knows in himself that which he sees and
knows in other people, I have a firm belief that he will not fail in the end,
though at times he may fail grievously. Who can control himself; it seems to
me, rules a very great kingdom. Good words and evil deeds deceive wise man
and fool alike. These are the three most hopeless things in the world: the first is
a poor man, the second is the beauty of a whore, the third is the strength of a
fool. These are the three things that are more displeasing to God than any

116
A parte final do manual apresenta uma gama de assuntos
variados: especulações astrológicas, propriedades de algumas plantas
medicinais, etc. Encerra-se com preceitos bíblicos e orações.
Em relação às predições astrológicas, destacamos uma relativa
ao ano que se inicia em cada dia da semana. Vejamos parte desta
previsão:

Se o primeiro de janeiro cair num domingo, o inverno


será morno, e a primavera será úmida, e o verão e
outono serão ventosos. Haverá uma abundância de
ovelha, mel, e pouco vinho, e poucos grãos. Muitas
pessoas jovens morrerão, e haverá muitos roubos, e
qualquer notícia será de príncipes ou de reis.
Se o primeiro de janeiro for numa segunda-feira, o
inverno será como de costume, e a primavera e verão
serão temperados, e haverá uma grande inundação, e
grande doença, e haverá pouco mel e vinho e grãos, e
haverá muito frio e gelo e haverá uma grande
mortalidade por falta de ferro, e muitas pessoas
morrerão de infecção de garganta.
Se o primeiro de janeiro for na terça-feira, o inverno
será longo, a primavera e o verão serão úmidos, e haverá
muita chuva, e muita neve. E o outono será seco, e
haverá pouco grão, e haverá mortalidade entre porcos e
ovelhas, e mortalidade de mulher, e serão perdidos
muitos navios, e haverá uma abundância de mel, e uma
escassez de linho, e haverá uma grande pestilência, e
muita fruta, e muito óleo, e haverá grandes perturbações
entre os Romanos.
Se o primeiro de janeiro cair numa quarta-feira […]. Se
o primeiro de janeiro cair numa quinta-feira […]. Se o
primeiro de janeiro cair numa sexta-feira.

others: the first is for a rich man to be greedy, the second is for a poor man to
be arrogant, the third is for an old man to be lascivious‖.

117
[…] Se o primeiro de janeiro cair num sábado [...] (THE
ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 148, tradução
nossa)85.

Acerca da eficácia de algumas plantas medicinais, o manual


destaca as propriedades do Alecrim:

Primeiro: pegue a flor do alecrim e amarre em um pano


feito de linho, e ferva em água até restar apenas a
metade da água, e use contra todas as doenças do corpo,
e beba esta água. Igualmente, ferva a folha do alecrim
em um bom vinho branco não adulterado, e lave sua
face nisso, isso deixará sua face branca e bonita, e o
cabelo ficará bonito. Igualmente, pegue a flor do alecrim
e faça um pó dele e prenda no seu braço, e resolverá
rápido. Igualmente, pegue a flor do alecrim, faça uma
pasta e umedeça um pano verde, e escove seus dentes, e
matará lombrigas, e o protegerá de todos os males [...]

85 No original: ―If the first of January comes on a Sunday, the winter will be
warm, and the spring will be damp, and the summer and autumn will be windy.
There will be an abundance of sheep, and honey, and little wine, and few beans.
Many young people will die, and there will be many thefts, and any news will be
of princes or of kings. It the first of January comes on Monday, the winter will
be ordinary, and the spring and summer will be temperate, and there will be a
great flood, and great illness, and there will be little honey and wine and grains,
and there will be great cold and ice and there will be a great mortality from
iron, and many people will die of sore throats. It the first of January comes on
Tuesday, the winter will be long, and spring and summer will be damp, and
there will be much rain, and much snow. And the autumn will be dry, and there
will be little grain, and there will be mortality among pigs and sheep, and
mortality of woman, and many ships will be lost, and there will be an
abundance of honey, and a scarcity of flax, and there will be a great plague, and
much fruit, and much oil, and there will be great disturbances among the
Romans. If the first of January comes on a Wednesday […]. If the first of
January comes on a Thursday […]. If the first of January comes on a Friday
[…]. If the first of January comes on a Saturday […]‖.

118
(THE ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 149,
tradução nossa)86.

Os preceitos bíblicos e as orações são ‗exercícios‘ que os


jovens mercadores deveriam praticar todos os dias, antes de
começarem as tarefas cotidianas. Intitulam-se ―O Deus do amor‖:

Ave Maria, mãe de Cristo Salvador/ salve o pecador que


sempre/ está em erro. Amém. Ave Maria, cheia de
graça, o Senhor é convosco / Bendita sois vós entre as
mulheres / e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
Santa Maria mãe de Deus, rogai por nós/. Amém.
Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso
nome/Venha a nós o Vosso reino, assim na terra como
no céu. (ZIBALDONE DA CANAL, 1994, p. 170,
tradução nossa)87.

Considerações finais

À guisa de conclusão, é importante ressaltar que manuais


como o Zibaldone da Canal, formam um tipo de literatura voltado à
formação de homens vinculados ou que pretendiam se vincular às
grandes Companhias de comércio, sobretudo às italianas. Não

86 No original: ―The first: take the flower of the rosemary and bind it in a linen
cloth, and boil it in water until only half as much water remains, and use it
against all illnesses within the body, and drink this water. Likewise, boil the leaf
of the rosemary in good unadulterated while wine, and wash your face in it, and
it will make your face white and beautiful, and the hair be beautiful. Likewise,
take the flower of the rosemary and make a powder of it and bind it on your
arm, and it will be quick. Likewise, take the flower of the rosemary and make a
paste of it and moisten a green cloth, and brush your teeth, and it will kill
worms, and protect you from all ills‖.
87 No original: ―Hail Mary, mother of Christ Saviour/ save us sinner who always/
are in error. Amen. Hail Mary, full of grace, the Lord is with Thee/ Blessed art
thou amongst women blessed/ is the fruit of thy womb, Jesus. Holy Mary, pray
for/ us. Amen. Our Father Who art in heaven, hallowed be Thy Name/ Thy
kingdom come, Thy will be done/as in heaven‖.

119
estavam destinados a pequenos comerciantes locais e varejistas. Eram
homens de empresas que movimentavam o mundo dos negócios na
Idade Média, cujas atividades ultrapassavam fronteiras e se estendiam
por várias localidades em todo o Ocidente e fora dele. Destinavam-se
a futuros profissionais ou a profissionais experimentados na arte da
mercancia – ‗arte do comércio‘ – e que conheciam muito bem as
implicações comerciais e financeiras que envolvem o mundo dos
negócios.
Esses ‗homens de negócios‘, como bem definiu Ives
Renouard em sua obra Gli uomini d’affari italiani del medievo, eram
indivíduos bastante instruídos e preparados que buscavam se
aprimorar para o ofício de mercador. A arte da mercancia era – no
contexto de elaboração dos manuais de mercadores – uma ‗arte‘
essencialmente masculina e supostamente não adequada às mulheres.
Não se tem informação concreta nos manuais de mercadores acerca
da preparação de mulheres para este ofício, mas sabe-se, por exemplo,
que a esposa do grande mercador Francesco Datini, da província de
Prato, próxima à Toscana, assumia a empresa quando o marido estava
em viagem. Isso indica que algumas esposas de mercadores
conheciam bem o mundo dos negócios.
A relativa abundância de manuais de mercadores italianos
deve-se ao protagonismo das Republicas Italianas no comércio, pelo
menos até fins do século XV. Dentre os vários manuais que
mencionamos neste texto, destacamos o Zibaldone da Canal, por seu
caráter didático e sua importância para a compreensão da formação
dos mercadores e de sua preparação – para além dos aspectos
eminentemente econômicos – ao exercício da profissão no contexto
econômico iniciado com a ―Revolução Comercial da Idade Média‖.

REFERÊNCIAS

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pobreza. Disponível em:
<http://estudiosmedievales.revistas.csi.es/índex.php/.../378>.
Acesso em 04 maio 2013.

120
CIANO, C. La pratica di mercatura datianiana (secolo XIV).
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LOPEZ, R. S. Un text inédit: le plus ancien manuel italien de


technique commerciale. Revue Historique. Paris, 1970, v. 243, n. 1,
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121
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ZIBALDONE DA CANAL. Manoscrito Mercantile del sec. XIV.


Venezia: Il Comitato Editore, 1967.

122
123
Capítulo 7

Savoir-Faire: A prática e o discurso sobre


a arte medieval.
Maria Eurydice de Barros Ribeiro

A expressão francesa savoir-faire literalmente, saber fazer,


significa possuir um conhecimento profundo que, seguidamente,
repousa na experiência e na tradição. Isto é, na transmissão de tal
conhecimento. Neste sentido, o saber artístico e o discurso sobre a
arte medieval, implicam no domínio de técnicas artísticas que
resultam no que se convencionou chamar de ‗arte‘. O conceito de arte
em si, pela sua densidade e diversidade abriga conhecimentos que
ultrapassam o objeto arte, para determinar a sua inserção em uma
cultura com a qual uma pluralidade de disciplinas dialoga. O discurso
que trata das artes visuais, é dependente sempre, da pluralidade dos
saberes. No que diz respeito a Idade Média, tal savoir-faire adquire
certa complexidade, uma vez que para os medievais a palavra ‗arte‘, tal
como passou a ser concebida a partir do humanismo italiano, não
fazia sentido. Os medievais utilizavam a palavra imago, para definir
tanto as esculturas, quanto a pintura e entendiam por imagines, as
imagens materiais.
Jean Claude Schmitt lembra que no domínio da imago
medieval, além das imagens materiais, existem mais dois domínios: o
da imaginatio (imaginário) constituído pelas imagens mentais, oníricas
e poéticas; ―[...] e finalmente o domínio da antropologia e da teologia
cristãs, fundamentadas na concepção do homem criado ad imaginem
Dei e na promessa da salvação pela Encarnação do Cristo, imago
Patris‖ (SCHMITT, 1997, p. 31). A compreensão dos três domínios
da imago medieval é essencial para que se entenda a variedade e
significado que tais imagens adquiriam no cotidiano dos homens e das
mulheres que viveram naquela época. Decorre daí, que outras palavras
em latim, também não possuem o mesmo significado atual, tais como
decor, decus, e ornamentus. Necessário se faz lembrar que a palavra
estética não existia até o século XVIII. Porém, é possível identificar
uma ‗preocupação estética‘ que juntamente com a noção de belo
constrói a concepção da imago e a função das imagens na sociedade
medieval. Esta pesquisa tem a intenção de refletir sobre o saber, a
prática e o discurso concernentes as imagens medievais, em especial a
pintura.
Sabe-se que os medievais se nutriram do conhecimento dos
antigos nos mais diferentes domínios. Uma boa parte do
conhecimento medieval se assentou na tradição greco-romana. No
conhecimento artístico, a História Natural 1 (nota do volume
consultado) de Plínio, o Velho (23-79) em particular os livros 34, 35 e
36 constituíram um importante subsídio. Esta obra bastante
conhecida é seguidamente, identificada como uma espécie de
enciclopédia do conhecimento humano do mundo antigo. De fato, a
variedade dos assuntos tratados por Plínio surpreende pelos detalhes
e cuidado de cada informação. Graças aos escritos que chegaram até
os dias atuais, possuímos uma fonte do conhecimento relativo a arte,
isto é a escultura, pintura e arquitetura antigas. Plínio buscou fontes,
como Varrão e Vitrúvio, dentre outros autores romanos, narrou a
história de importantes artistas, registrou as técnicas desenvolvidas.
Entre estas últimas, incluiu o conhecimento dos materiais (extração
de metais) e a fabricação das cores. No decorrer dos capítulos, ele
detalha e classifica os materiais indicando inicialmente a procedência.
Expões as técnicas, as receitas dos pintores e dos artesãos.
Segundo Giulio Carlo Argan, os romanos não viviam a arte
como uma experiência estética vinculada ao sistema de valores da
cultura. Foi feita exceção apenas para a arquitetura a qual
consideravam ―[...] como técnica útil aos fins do governo da esfera
pública e como, engenharia militar, das operações bélicas‖ (ARGAN,
2003, p.167). Mesmo do ponto de vista religioso, não divinizaram as
imagens, desenvolvendo apenas o sentimento de devoção, pietas.
Argan insiste na inexistência de uma tradição estética e imagética,
ligada à concepção do sagrado. Ele afirma que ―[...] o cidadão romano
é um soldado e um político: a arte, como atividade manual e servil, é
indigna dele e apenas poderia distraí-lo dos seus deveres civis‖

125
(ARGAN, 2003, p. 167). Entretanto, é sabido que o exército de Roma
tomou para si a arte dos povos conquistados. Tratava-se para os
romanos de exibir o poder da conquista. O espólio da guerra era
assim, exposto no fórum de forma triunfal. Esta situação foi se
modificando na medida em que tais troféus (objetos de arte) dos
povos vencidos passaram a integrar a história de Roma, narrando-a.
Esta narrativa feita por meio de imagens, colocava a história ao
alcance de todos, adquirindo uma função pedagógica. Transformada
em instrumentum regni, e fundamentada na filosofia grega do belo, a
imagem tornou-se alvo de contemplação e conhecimento da realidade
incorporando os próprios acontecimentos. Colocou-se portanto, a
serviço da história, da ética e da política (ARGAN, 2003, p. 168).
Esta síntese, bem construída pelo historiador italiano, na
abertura do capítulo dedicado à arte romana da sua História da Arte
Italiana (volume 1), permite compreender os efeitos da arte figurativa
helênica, no século III a.C. através da Magna Grécia até a submissão
da Grécia, no século I a, C. com Augusto. É importante salientar que
esses traços foram transmitidos no decorrer da Antiguidade Tardia.
Devidamente filtrados em cada região, alcançaram e sobreviveram na
Idade Média. Sem incorporar o conteúdo ideológico romano, o
cristianismo trouxe de volta muitas das características da arquitetura e
escultura romanas. As igrejas e catedrais incorporaram as colunas dos
templos e a escultura cristã repetiu gestos e expressões próprios da
escultura greco-romana. Com relação a pintura figurativa, os afrescos
e as iluminuras buscaram igualmente temas, motivos e modelos
romanos. Os medievais incorporaram a exposição pedagógica,
assimilando também, a decoração curiosa de elementos pagãos.
Apesar de tais evidências, não é possível detectar o desenvolvimento
técnico/artístico passo a passo da tradição sobre a qual se assentou a
imagem medieval. A transladação do savoir-faire da cultura greco-
romana se produziu em meio a muitos ‗buracos negros‘.
Moses Finley afirma que não é possível escrever com precisão
uma história dos primeiros tempos da Grécia. Segundo ele, ―[...]
faltam documentos; nenhum arquivo, nada que nos diga quem fez o
que e porque‖ (FINLEY, 1981, ANO, p. 21). Os testemunhos
começam a aparecer somente na medida em que nos aproximamos do
mundo clássico, dos séculos IV e V. Mas, ainda assim, pouca coisa

126
sobreviveu. O que conhecemos, conhecemos pelas ―[...] citações dos
autores mais tardios e por algumas coleções em papiros egípcios da
época helênica e romana‖ (FINLEY, 1981, p. 23). Neste contexto,
ele faz uma afirmativa interessante: ―Nós podemos classificar os vasos
em séries muito elaboradas, mas nós não sabemos nada sobre as
olarias e a indústria da cerâmica‖ (FINLEY, 1981, p. 23). Assim como
não sobreviveram informações sobre a cerâmica, perderam-se
igualmente, a maioria dos livros relativos as artes figurativas.
A História Natural de Plínio ganhou importância, não só para
os medievais, mas, também para os historiadores da
contemporaneidade. A História Natural foi escrita no ano 77 d.C e
dedicada ao imperador. No seu índice, ela exibe um leque expressivo
do conhecimento antigo. Na noção de arte não se encontram os
mesmos valores dos nossos dias. Conforme se viu acima, a arte para
os romanos possuía uma função pragmática e é como tal que aparece
em Plínio, quando ele aborda o retrato e quando fornece as receitas
das cores. Fica claro a sua preferência pelos retratos que expressam de
forma realística o rosto dos retratados. Plínio não confrontou a visão
romana que ligava a arte, a ética e a política. Tratava-se de uma prática
voltada a celebração do passado, da história e do que era considerado
real. Porém, deixou um legado importante com relação aos materiais
próprios ao fabrico dos pigmentos que eram usados pelos pintores,
produzindo uma paleta importante de cores.
Na Idade Média, Plínio foi um autor muito citado devido
provavelmente a variedade dos assuntos abordados e da forma como
os abordou. Na sua vasta História Natural, o Livro da Pintura não
constitui um tratado autônomo. Trata-se do livro XXXV situado
entre os livros que se ocupam da mineralogia e produtos metálicos
materiais; bronze, ferro e chumbo, pintura, pedra e arquitetura, gemas
e pedras preciosas.
Tratando dos minerais e das pedras preciosas, Plínio procede
com o mesmo tratamento dos livros anteriores. Ele localiza o objeto,
se detém na análise de suas propriedades, indica a técnica ou a receita
para a extração ou/e fabricação, de acordo com o caso. Referindo-se
ao ouro, por exemplo, Plínio indica que onde se pode encontrar o
ouro no mundo romano, o que evitaria a importação do valioso metal
da Índia. Descreve como o ouro que se encontra nos rios é ‗polido

127
pelo movimento das águas‘. Aponta ainda, duas formas de obter o
metal: ou de escavações feitas em determinado tipo de solo, ou no
interior de determinadas montanhas. Prosseguindo, ensina como
―fazer ouro‖ ―extraído na Síria pelos pintores a flor da terra‖.
Referindo-se a prata, diz que ela existe em percentuais diferentes no
ouro. No livro XXIV, ele esclarece que na pintura, o ouro
corresponde ao amarelo. Pode-se obtê-lo em pó ou líquido,
dissolvido. Complementando, refere-se aos melhores fornecedores de
ouro que se encontram na Espanha. Percebe-se que além do
conhecimento que possui do potencial das riquezas existentes nas
terras romanas do continente europeu, Plinio se revela também,
grande conhecedor do potencial dos territórios que foram dominados
pelo Império.
A atenção de Plínio está sempre voltada para Roma. No
Tratado da Pintura (Livro XXXV), ele inicialmente, contextualiza a
pintura no interior da cultura romana. Trata dos retratos e de quando
pela primeira vez os retratos foram esculpidos nos escudos, expostos
em público e em seguida, colocados dentro das próprias casas.
Refere-se a pintura monocromática, aos primeiros pintores italianos,
sublinhando quando a pintura começou a ser honrada em Roma, em
quadros que representavam as vitórias romanas e eram expostos ao
público. Em seguida, passa para os procedimentos da pintura, das
cores naturais e artificiais e do preparo das cores, exceto as que são
fornecidas por substâncias metálicas (tratadas anteriormente).
Estabelece a partir daí uma interessante relação entre o preparo das
cores e a fabricação de medicamentos. As ‗receitas‘ e a proveniência
das substâncias são fornecidas. Torna-se possível captar aí, como para
Plínio os elementos da natureza como um todo, podem fornecer usos
diversos ao homem.
Segundo ele, o branco é a cor mais gordurosa e a mais durável
para os revestimentos devido ao seu polimento, mas, possui um
excelente uso medicinal. O branco de melhor qualidade vem da ilha
de Milos, podendo ser encontrado também em Samos. Ele esclarece
que o seu teor de gordura impede que os pintores o empreguem.
Porém, o seu uso medicinal é o mesmo do giz de Érétria. Em contato
com a língua, ele a seca, faz cair os pelos, torna os cabelos mais finos.
Prosseguindo na análise do branco, para Plínio a alvaiade é a terceira

128
cor na classe das cores brancas. Ele tratou dela a propósito dos
minerais de chumbo. A alvaiade nativa se encontra em Smirna, no
domínio de Théodolus. Os antigos se serviam dela para pintar os
navios e fornece a receita: Toda a alvaiade se faz com chumbo e
vinagre. Plinio, nomeia sempre o lugar de proveniência da substância,
como foi usada e quais as propriedades. Algumas substâncias
receberam o mesmo nome do lugar de origem. É o caso de Érétria
que tem o nome do lugar onde é fabricada. Foi usada por Nicomaque
e Parhasius. É uma substância refrigerante e emoliente. Cozida, ela
cicatriza as feridas. Serve também para as dores de cabeça e para as
supurações internas (Livro XXXV).
O autor distingue as cores artificiais, extraídas de misturas de
ervas, dentre as quais, o manjericão, explicando a utilidade: as cores
artificiais são utilizadas em camadas sob o mínio. Para Plínio, o negro
também pertence ao elenco das cores artificiais.
Referindo-se à pintura, Plinio distingue os métodos da técnica
da encaustica. Segundo ele, havia antigamente duas maneiras de pintar
usando a encaustica: com a cera e com o marfim. Tal técnica
perdurou até que se começou a pintar os navios de guerra. Para isto,
acrescentou-se um terceiro método, aos precedentes. Este método
consistia em espalhar com o pincel as ceras fundidas no fogo, uma
espécie de pintura que sobre os navios, o sol, a água salgada e os
ventos não alterava. Percebe-se aí, que pintar, para Plínio, significa
‗pintar‘ literalmente. Pouco importa a finalidade da pintura. O
essencial é a técnica. Ou seja, que tal pigmento possa ser ou não
utilizado em determinado suporte, compreendido aí em sentido largo.
A encaustica foi pouco utilizada para as pinturas murais uma vez que
a cera não resistia a umidade da superfície e se desfazia ou se
modificava (Livro XXXV).
Quanto ao uso das cores, Plínio explica a técnica de preparar
o quadro aplicando uma preparação fluída na superfície, antes da
aplicação das cores. Algumas cores exigem que a superfície receba
uma camada de giz, recusando qualquer umidade. E especifica: trata-
se da púrpura, do índigo, do azul, do branco, do verde e do alvaiade.
Os que pintam sobre uma camada de sandyx (cor de fogo) com ovo,
conseguem o brilho vermillon. Se preferem fazer a púrpura, eles
colocam uma camada azul purpurissum com ovo. Ensina também,

129
como devem os quadros ser finalizados. A técnica consiste que se
passe uma camada de verniz, muito ligeira, que formando uma
superfície refrescante, produziria uma cor branca devido ao brilho
luminoso. Era constituída assim, uma proteção contra a poeira e as
sujeiras, que só eram visíveis de muito perto. Mas, mesmo nesse caso,
graças a experiência, impedia que o brilho das cores não quebrasse a
vista. De longe, o mesmo procedimento dava sem que se percebesse,
um tom mais sombrio nas cores demasiadamente brilhantes (Livro
XXXV).
O discurso de Plínio sobre a pintura não implica, conforme se
viu, um ―[...] regime epistémico fechado‘ mas, ao contrário, um
regime epistémico aberto‖ (DIDI-HUBERMAN, 2000, p. 61). O que
Plínio entende como sendo artes é extensivo a História Natural inteira,
onde sua maior preocupação é com a medicina. Ainda assim, não
pode causar estranheza que muitos dos seus ensinamentos tenham
alcançado a Antiguidade tardia e continuaram a ser utilizados a ser
utilizados ou mesmo aperfeiçoados ao longo da Idade Média.
Além das cores e das técnicas, para os medievais o fato do
Livro da Pintura se encontrar entre os que tratam dos metais, gemas e
pedras preciosas faz todo o sentido. Exemplificamos o uso do ouro,
metal de grande valor, associado ao poder desde a Antiguidade. Na
Idade Média, não foi diferente. Isto porque, a Idade Média abordou o
conhecimento clássico, de acordo com a concepção cristã do
universo. Consequentemente, de acordo com a tradição bíblica e
patrística que se encontravam nas raízes das motivações estéticas dos
medievais.
Para Humberto Eco, na Idade Média a beleza se colocava
accessível ao intelecto, isto é, a harmonia moral. Se excluídos o
discurso dos místicos e dos rigoristas, constata-se a receptividade da
beleza natural e artística (ECO, 1987). As noções de belo e de arte,
difíceis de serem traduzidas na Idade Média, ganharam função
utilitária. Referindo-se a Suger, Eco enfatiza como para o abade de
Saint Denis, a casa de Deus devia ser por excelência um lugar de
beleza e esplendor. Suger enalteceu os metais preciosos, as gemas e o
ouro. Traduziu sua alegria estética, em alegria de viver. ―A passagem
da alegria estética a uma alegria do tipo místico ocorre quase que
imediatamente‖ (ECO, 1987, p. 35).

130
Bem antes porém, é necessário lembrar que quando um grupo
de eruditos reunidos em torno de Carlos Magno decidiram pela
restauração do Império do Ocidente, um movimento de renovação
artística se impôs, caracterizado dentre outros aspectos pela
monumentalidade. É incontestável que a partir do ano 800 a história
da construção de igrejas ganhou um fôlego extraordinário. ―A época
carolíngia construiu muito: a bagatela de 27 catedrais, 417 mosteiros e
100 palácios edificados entre 768 e 855‖ (IOGNA-PRADT, 2006, p.
107). Desde então, o ciclo da pintura histórica, a ourivesaria, a
fundição do bronze, os trabalhos em marfim e a abundância de
manuscritos com imensas iluminuras, dão conta da atividade intensa
das oficinas de Aix. Mas, não só. Também nos mosteiros onde o
livro, alcançou o valor de obra de arte pela riqueza dos seus materiais:
ouro, prata, marfim, pedras preciosas eram exibidos nas capas,
enquanto no interior a riqueza das pinturas revelava que o
conhecimento e o uso das cores continuava a ser dominados. Dentre
as cores, os azuis, os vermelhos e os verdes atestavam o
conhecimento preservado pelos medievais no interior dos mosteiros.
Embora muito se tenha perdido das fontes que nos poderiam
informar como as cores e as técnicas eram manipuladas no mundo
medieval, não há dúvida que o número é maior do que o da
Antiguidade. O que se deve, também, ao paciente trabalho dos
monges copistas e a elaboração e preservação de novos tratados.
O olhar crítico sobre estes tratados ou melhor, sobre o que
deles sobrou (boa parte encontra-se fragmentada) nos conduz a
concluir a grande semelhança no conteúdo. Isto é facilmente
compreendido, visto que além de remeterem uns aos outros, quase
todos repetem as mesmas fontes. Trata-se de trabalhos cujo conteúdo
reúne receitas de cores, indicando a natureza ou a origem dos
pigmentos e colorantes antigos, como devem ser preparados e como
devem ser utilizados. Tais receitas são indicadas para a iluminação dos
manuscritos, pinturas afrescos, tintura de tecidos ou de outros
materiais como as pedras, os metais, a madeira e o marfim. Como é
possível constatar (ver quadro) a maioria dessas receitas são
transcrições que passaram por uma certa atualização, dos trabalhos da
antiguidade, tais como os de Vitrúvio e Plínio.

131
PRINCIPAIS TRATADOS SOBRE A FABRICAÇÃO E O USO
DAS CORES NA IDADE MÉDIA

EPOCA OBRA Localizacao Conteudo


ANO 600 Compositiones variae, Escrito a partir de Conteúdo: 157
também conhecido por textos gregos em receitas variadas de
Compositiones ad Alexandria e práticas artísticas,
tingenda musiva, ou traduzido para o entre as quais a
manuscrito de Lucca latim no decorrer da pintura, inclui a
segunda metade do maneira de
século do século VIII, preparar os
na Itália pigmentos.
Séculos: Mappae Clavicula Localização incerta: Conteúdo: o
IX, X, XI França, ou primeiro está
Alemanha. Existem incompleto e foi
três exemplares. O encontrado em
mais antigo data do Klosterneuburg. Os
século IX, os outros dois outros,
dois encontram-se
respectivamente, completos. Tratam-
dos séculos X e XII se do Sélestat e do
de Phillips. Os
estudos feitos
sobre este último,
indicam que ele é o
mais extenso.
Todavia, o
exemplar de
Sélestat inclui
todas as receitas
contidas no
manuscrito de
Lucca e ainda
algumas novas
receitas.
Segunda De clarea Autor desconhecido, Conteúdo:
metade do citado como tratamento
século XI? Anonymus meticuloso da
Bernensis. prática da
iluminura.
Século XII diversis artibus De Theophilus, um Conteúdo: O
monge beneditino, manuscrito é
que muitos consituído por três
estudiosos indicam livros sendo o
como sendo o primeiro dedicado
metalurgista alemão, à pintura e a
Rogério de Halmars iluminura. São
Hausen. descritas várias
técnicas de
manufatura de
diversos materias,

132
entre, os quais
alguns pigmentos.
séc. XIII. Livro de como se Manuscrito Conteúdo: receitas
fazem as cores, , português Escrito para prepararr
em caracteres pigmentos.
hebraicos por
Abraão Judah Ibn
Hayyim
sec. XIII e De coloribus faciendis Do monge Petrus Conteúdo: receitas
XIV de S. Audemar de praticas
artesanais, quase
todas relacionadas
com a iluminura e
relativas a diversos
materiais entre os
quais pigmentos.
Fonte: João Peixoto Cabral. História breve dos pigmentos.

Um aspecto muito interessante destes tratadistas é que até o


século XIII, aproximadamente, eles não são artistas. Isto é,
desconhecem como pintar uma iluminura ou um mural. Em outras
palavras, não ‗provaram‘ da própria receita. Os Tratados são
construídos a partir de uma compilação de partes acumuladas de mais
de uma obra. Cada texto é arrumado segundo uma ordem que lhe é
própria. A questão é que em função de uma falta de entendimento, o
copista pode indicar um número maior de ingredientes que serão
transmitidos a outras cópias, multiplicando os erros. A cópia e
tradução dos manuscritos implicava seguidamente na modificação de
parte do seu conteúdo. O monge não apenas lia, mas, sobretudo ao
traduzir ele procurava transcrever o que entendia. Assim, as
digressões colocadas a posteriori não foram poucas. Bernard Guineau
e Jean Vezin no estudo que fizeram de algumas partes extraídas de
três manuscritos do livro de Heraclius, De coloribus et artibus romanorum
identificaram que o texto inicial ou é muito parecido ou é idêntico ao
texto do Livro II, do Tratado de Arquitetura de Vitrúvio. Como
certamente certos termos técnicos não eram conhecidos pelos
copistas, são frequentes os erros de escrita que acabam por ser
transmitidos. Muitas palavras permaneceram adulteradas e assim
alcançaram a Idade Média e até mesmo o Renascimento. Mas, ainda
assim pode-se afirmar que o conhecimento artístico foi beneficiado
por este antigo savoir faire.

133
Lamentavelmente, faltam ainda estudos que possam
estabelecer com o apoio na arqueologia a relação entre a pintura
mural e a pintura dos manuscritos medievais e enfim, determinar
como estas receitas de um tempo tão distante eram aproveitadas no
medievo e mesmo na modernidade. (GUINEAU; VEZIN, 1992).
Com relação aos tratados, a despeito da modificação que o
texto e as imagens sofreram ao longo dos séculos, é possível perceber
a manutenção e atualização constante da memória do savoir faire
artístico. Convém lembrar que a preocupação dos tratadistas não
estava voltada para a produção de uma obra original. Ao contrário, ao
longo do medievo e mesmo posteriormente, haviam receitas e
modelos predeterminados e a noção de plágio era inexistente.
Finalmente, a transladação de um texto – translaticius – é muito mais
do que a sua transcrição ou tradução. Em latim significa o que é
transmitido pela tradição. Logo, não se trata apenas de receitas de
como fazer e usar pigmentos, mas, da tradição da arte de pintar. Isto
é, savoir-faire.

REFERÊNCIAS:

ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte Italiana, V.I. São Paulo,


Cosac&Naify, 2003.

CABRAL, João M. Peixoto. História breve dos pigmentos.


Disponível em:
<www.spq.pt/magazunes/BSPQ/509/article3000805>.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le Temps. Paris : Minuit,


2000.

ECO, Humberto. Art et beauté dans lésthétique médiévale. Paris,


Grasset, 1987.

FINLEY, Moses. Mythe,Mémoire, Histoire. Paris, Flammarion,


1981

134
GUINEAU ; VEZIN. Recettes y couleurs de l‘antiguité. In:
Comprendre et maîtriser la nature au Moyen Age. Paris : Droz,
1992.

IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison Dieu. Une histoire


monumentale de l‘Église au Moyen Âge. Paris, Seuil, 2006.

KRÜGER KLAUS, SCHMITT, Jean-Calude. Der Blick auf Bilder.


Göttingen, 1997.

135
Capítulo 8

A saúde do Reino de Portugal (Séculos


XIV-XVI)88
Dulce Oliveira Amarante dos Santos

No século XV encontra-se a mais antiga referência à


expressão saude pruvica numa carta de privilégio aos boticários de D.
Afonso V (1449). Mas essa expressão em formação relacionava-se
com a preocupação cada vez maior da realeza portuguesa com a saúde
dos súditos do reino. Essa inquietação passou paulatinamente a
compor os deveres do ofício régio, sobretudo a partir da Peste Negra
(1348) e seus surtos recorrentes ao longo dos séculos XIV e XV. No
início tratava-se de intervenções régias mais pontuais em ações
conjuntas preventivas e terapêuticas com a administração dos
municípios para debelar a epidemia da peste bubônica e outras pestes.
Nem sempre se constituíam no sentido atual de políticas de saúde
pública, mas foram os primeiros ensaios de formulação de ações
concretas. Estas iniciativas foram adotadas por reis e rainhas além
daquelas tradicionais voltadas para a assistência aos pobres e doentes
providas por abades, priores de mosteiros e bispos. Essas
intervenções ocorreram devido a múltiplos fatores. Primeiro, há
registro da presença constante de físicos, mestres em medicina, judeus
e estrangeiros competentes nas cortes régias afonsinas e avisinas e nas
senhoriais desde o início do reino. Sem esquecer que nesse grupo de
físicos havia igualmente a presença de religiosos das mais diversas
ordens, com destaque para os cônegos do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra no século XIII. Segundo, a circulação de cópias manuscritas

88 Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.


de textos médicos em latim e em lingoagen produzidas a partir dos
scriptoria monásticos favoreceram o desenvolvimento de um interesse
pelos temas da saúde e da doença. Assim, o acesso ao saber médico
passou a fazer parte das preocupações e da formação de reis, rainhas e
príncipes, sobretudo, a partir do período em exame89.
Tratava-se de intervenções régias que se desdobravam em
muitas frentes de ações políticas, a saber, o controle e a
regulamentação dos ofícios de saúde, a reforma, a construção e o
custeio de hospitais e misericórdias, a adoção de medidas sanitárias
preventivas e repressivas em tempos de surtos de pestes e a criação e
manutenção do curso de medicina na Universidade de Lisboa/
Coimbra. Com a expansão ultramarina, essas iniciativas desdobraram-
se para as colônias asiáticas, americanas e africanas.
A primeira e mais antiga medida régia foi o controle do
exercício dos principais ofícios vinculados à saúde, a saber, físicos,
cirurgiões, boticários, nessa ordem hierárquica ao delimitar as
respectivas áreas de atuação. Essa ação desdobrou-se em outras todas
interligadas. Desde o governo de D. Afonso IV (1325-1357), havia o
exame de cirurgiões, físicos e boticários, assim, em 1338, em uma
carta autorizava o mestre Domingos de Viseu a exercer medicina e
cirurgia. Neste mesmo documento referia-se à ordenação régia
anterior em que designava mestre Afonso e mestre Gonçalo para
procederem ao exame de todos aqueles que tivessem intenção de
exercer a arte com a seguinte justificativa: ―[...] para arredar danos das
gentes das minhas terras vendo e considerando como muitos se
faziam físicos e mestres e cirurgiões e boticários e obravam destes
ofícios em nas minhas ditas terras não havendo eles ciências nem

89 A figura mais emblemática foi, sobretudo, D. Duarte (1391-1348), que em sua


livraria de mão encontravam-se alguns títulos de obras de medicina Ademais,
no Leal Conselheiro (1438) e no Livro dos Conselhos de El-rei D. Duarte ou Livro da
Cartuxa dá testemunho entre outros interesses pela medicina ao escrever entre
os 107 ensaios o Regimento do Estômago e o relato pormenorizado sobre a
experiência do humor menencórico (melancolia) como enfermidade vivenciada
durante a associação à governança régia de seu pai D. João I e a morte de peste
de sua mãe a rainha D. Felipa de Lencastre.

137
sabedorias para obrar delas‖ (Chancelaria de D. Afonso IV, livro IV, fl
24v ).
Iniciou-se então a escolha de um físico mestre para controlar
o exercício do ofício e prevenir a atividade de pessoas sem formação
mais específica. O rei D. João I publicou igualmente uma carta
(28/06/1430) a fim de regulamentar a atividade médica, a qual
também conferiu maior prestígio a esses profissionais. Além disso,
evidencia a atuação de homens e mulheres de todas as fés religiosas,
cristãs, moura e judaica na área médica e todo o esforço da política de
controle régio do ofício com punições severas, tais como prisão (e/ou
multas) para os transgressores.

[...] E porém mandamos, e defendemos que nom seja


nenhum tão ousado homem, nem molher, nem
Christão, nem Mouro, nem Judeu que use nem obre
d´aqui em diante da Física no nosso Senhorio até que
primeiramente nom seja examinado e aprovado per
Mestre Martinho nosso Físico, a que desto damos
encarrego e que haja nossa Carta assinada per o dito
Mestre Martinho, e selada do nostrosello, e mandamos a
todolos Juízes, e justiças dos nossos Reinos que esta
Carta virem que o fação asyagardar, e logo apregoar per
todolasCidades, Villas e logares do nosso Senhorio, e
façam Registar esta Carta no livro de Vereaçom, e
como se apregoa, e se depois do dito pregom, e
publicaçom, alguns acharem que desstohusa, sem sendo
examinado, e aprovadoutodolosbees que ouver [...]
(Livro 1º. das Vereações da Câmara do Porto, fol 70).

Em contrapartida, muitos desses físicos cristãos e judeus


receberam muitos privilégios, que indicavam seu prestígio social. Esse
sistema da Fisicatura perdurou até a mudança para o Protomedicato
no final do século XVIII, mas retornou no período do governo de D.
João VI, no início do século XIX.
Os dois Regimentos do Físico-mor no reinado de D. Manuel, o
primeiro de 1515 e o segundo de 1521 sistematizaram todas as
determinações anteriores sobre o exercício do ofício de médico, as
quais estavam dispersas nas mais variadas cartas régias anteriores.

138
Estabeleceram as competências de cada profissional de saúde e ao
mesmo tempo firmaram a hierarquia entre físicos, cirurgiões e
boticários.
Nesses Regimentos, o físico-mor continuava a autoridade
máxima no controle e na regulamentação dos ofícios de saúde. Ele
examinava os médicos formados nas universidades. O exame
consistia em duas provas, a teórica e a prática, além de visitas aos
enfermos na companhia do físico-mor. Se o candidato fosse aprovado
receberia a carta de licença, que lhe outorgava o direito de exercer o
ofício de físico, mas era impedido de desenvolver atividades
cirúrgicas. Havia também a possibilidade das provas serem
substituídas por declaração de prática comprovada por dois anos. Por
último, ao físico-mor também cabia fiscalizar os práticos, tais como
os cirurgiões-barbeiros, e licenciá-los com a qualificação mais
adequada, que uma vez estabelecida ficava proibido o exercício de
outras práticas diferentes daquelas que suas licenças permitiam.
Afora os médicos, cabia ao físico-mor examinar os boticários
e conceder a carta de licença para que eles pudessem abrir boticas e
manipular mezinhas. Além disso, tinha também a atribuição de
fiscalizar as boticas com a finalidade de verificar as condições do local
e o armazenamento dos remédios bem como controlar seus preços
no comércio. Mas, cabia ao médico receitar medicamentos para os
boticários aviarem, dispositivo esse que aponta para o
reconhecimento da superioridade dos saberes da arte médica e do alto
status social do físico-mor.
No Regimento posterior de 1521, se, de um lado, não se
encontram referências ao aprendizado da arte de manipular mezinhas,
por outro lado, determinava que fossem examinados pelo físico-mor e
físicos licenciados, com os boticários do rei ou outros escolhidos pelo
primeiro90.

90 No século XVIII, a formação desse ofício foi aprimorada com a Reforma


pombalina da Universidade, quando passaram a fazer o curso em instalações da
Faculdade de Medicina, no Dispensatório Farmacêutico. Tratava-se de um
curso prático de quatro anos sem atribuição de habilitação ou grau
universitário. Os dois primeiros eram voltados para às operações químicas e os
outros dois dedicados à prática farmacêutica. Após o encerramento do curso,

139
Nessa linha, surgiu também o cargo de Cirurgião–mor, aquele
que ―[...] exercita a arte da cirurgia, que faz articular profissão de curar
as chagas & as feridas‖ (BLUTEAU, 1728, p. 328-339) com
atribuições de examinar os cirurgiões, mas que também rivalizava com
os físicos por ser considerado um representante das artes mecânicas e
não da formação teórica dos primeiros. Os práticos empíricos
(barbeiros ou sangradores e cirurgiões-barbeiros) eram, na prática,
seus concorrentes.
Uma das mais antigas cartas régias, que se refere à Física e à
Cirurgia, foi emitida por D. Afonso V (1438-1481), em 25/10/1478.
Nessa carta nomeia Manuel Gil como ‗Cirurgião-mor dos Nossos
Reinos e Senhorios‘, encarregando-o de examinar os cirurgiões e
expedir cartas de licença: ―[...] ao qual damos poder, e autoridade, que
possa examinar, e dar cartas áquelles que achar aptos e pertencentes
para a dita Arte de Cirurgia, que serão em nosso Nome assignadas por
ele, que livremente por ellas possão usar a dita arte [...]‖ (Chancelaria de
Afonso V apud ALMEIDA, 1886, p. 12-13).
Nota-se o aumento do rigor nas punições em relação ao
documento anterior. Na comparação entre os dois textos, a ausência
das mulheres no segundo indica uma configuração da arte da Cirurgia
como área de atuação exclusivamente masculina. Apenas em 1621,
separou-se no curso de medicina a cadeira da Cirurgia da cadeira de
Anatomia com a nomeação do lente, o bacharel Manuel Álvares
Carrilho. No domínio da medicina militar ou castrense e naval os
cirurgiões sempre atuaram. Havia a complementaridade entre os
ofícios de físico e de cirurgião.
Em 1631, no período da União Ibérica (1580-1640),
estabeleceu-se o primeiro regimento específico para os cirurgiões.
Nessa tentativa de fiscalização, criaram-se medidas punitivas (entre
elas a prisão) para aqueles que exercessem os ofícios sem licença (por
exemplo, a Carta régia de D. Afonso V de 1448, o Regimento do Físico-
mor de 1515, 1521). No Hospital de Todos os Santos, em Lisboa,

marcava-se um exame a ser feito diante do professor de Matéria médica e o


boticário do Dispensatório Farmacêutico. Se fosse considerado apto poderia
exercer o ofício.

140
funcionou uma Escola de Cirurgia, com curso prático, no entanto
sem o reconhecimento da Universidade.
Nos diversos corpos dos exércitos do reino e de seus
domínios no além- mar havia o cargo de cirurgião-mor, também
conhecido com Primeiro Cirurgião ou Cirurgião ajudante. Sua função
principal era o cuidado e o tratamento dos militares e dos feridos
(SANTOS-FILHO, 1991).
Paralelamente ao aumento progressivo do prestígio social dos
físicos e a consequente concessão régia de cartas de privilégios,
ocorreu também o mesmo com os boticários, como revela a Carta de
Privilégios aos Boticários, de D. Afonso V. Eles são, em tese, igualados
aos nobres em alguns benefícios.

[...] que eles gozem de todos os privilégios, graças, e


isenções que por nós, e pelos Reys nossos antepassados
são concedidos aos Doutores Físicos [...] entre os quais
são de todas as honras, de que gozão os cavaleiros [...] e
que possam trazer armas ofensivas, e defensivas sem lhe
serem coutadas [...] e suas mulheres, e filhos possão
trazer todas as sedas de ouro, e prata, que trazem nossos
Cavaleiros [...] (SOUZA, 2013, p. 267).

Uma das explicações disso talvez seja a necessidade de


competência na manipulação de novas mezinhas com todas as novas
drogas obtidas na expansão portuguesa. Por isso, no início de seu
governo, em 1438, concedeu privilégios para o estabelecimento no
país de Mestre Ananias de Ceuta.
Como em muitos casos (os boticários, por exemplo), a
jurisdição sobre os ofícios de saúde era municipal, assim em outra
carta régia (21/08/1493), D. João II solicita à Câmara de Lisboa que
permita a entrada e o exercício clínico ao judeu castelhano, D.
Samuel, ―[...] boo home de seu oficio‖ (LEMOS, 1991, p. 73).
Por outro lado, os reis concediam cartas de privilégios
primeiro aos físicos de sua corte e depois estendidas aos outros
profissionais da saúde tais como, isenção de impostos em gêneros e
em serviços quer régios ou concelhios e rendas de terras, além da
dispensa da aposentadoria, isto é, hospedar e alimentar o rei e a

141
família em sua casa. Contudo, fazia parte de suas funções
acompanharem o rei nas campanhas militares (SOUS, 2008).
O mais antigo Regimento dos boticários de Lisboa data de
26/08/1497, depois reformado em 1572. Esse documento não
estipulava quaisquer funções ou direitos para as corporações de
boticários, mas definia algumas obrigações a serem conferidas pelo
Físico- mór. Dentre elas, temos os cinco livros obrigatórios da botica:
o Pandecta (compilações de textos médicos dos árabes); duas partes da
obra, De re medica do médico árabe-sírio de Damasco, Mesue (777-
857) acerca dos preceitos da prática farmacêutica na escolha dos
simples e compostos; o Antidotarium de Nicolau sobre a composição e
ação dos medicamentos, exemplificadas em torno de 2656 fórmulas; o
Liber servitoris de Serapião, o jovem, sobre as propriedades gerais dos
medicamentos e a história de cada um deles; e, por último, o capítulo
V, intitulado Terapêutica, do Canon de Avicena. Além disso, a
obrigatoriedade dos pesos e medidas adequados (onças) ao ofício, e a
venda das mezinhas somente pelos boticários e em sua ausência, por
um praticante com no mínimo dois anos de prática e com licença da
Câmara. Os preços dos remédios tinham que corresponder aos de
uma tabela registrada na Câmara e deviam ser registrados na própria
receita. Temos mais notícias da regulação e menos do que
efetivamente ocorria no quotidiano das boticas e das transgressões
mais frequentes (D´OLIVEIRA, 1882).
Quanto aos boticários, havia normativas para a abertura e
funcionamento das boticas, a regulação do exercício da prática e a
conservação e o comércio das drogas. Passou a existir o cuidado com
a qualidade da produção das mezinhas nas boticas e a intervenção nos
preços dos medicamentos, sobretudo quando passaram a chegar ao
porto de Lisboa as naus do Oriente com as especiarias e açúcar,
estocadas na Casa da Índia. Esses produtos constituíam-se em
ingredientes importantes para a manipulação das mezinhas nas boticas
(ABREU, 2010; SANTOS, 2013). Além disso, os boticários eram
igualmente examinados pelo Físico-mor junto com os boticários da
corte ou outros indicados por ele. Com o tempo a legislação aplicada
ao controle dos ofícios de saúde foi sendo aperfeiçoada e aumentou o
número de regimentos e de dispositivos de controle (Regimento dos

142
médicos e boticários cristãos velhos, 1604, Regimento do barbeiro, 1620,
Regimento do cirurgião-mor, 1631).
O segundo âmbito dessa ação política dirigiu-se para a
reforma, construção e administração dos espaços hospitalares
voltados para a cura das enfermidades com terapêuticas em
consonância com os saberes da medicina orientados pelo galenismo
árabe da época. Essas novas instituições diferenciaram-se assim da
função caritativa e de acolhimento dos pobres e enfermos dos antigos
hospitais (espritais), albergarias e gafarias medievais geralmente
administradas pela Igreja. Contudo mantiveram ainda o espaço
destinado aos peregrinos como nos hospitais medievais. Esse
movimento difundiu-se por todo o continente europeu. Além disso, o
hospital constituiu-se igualmente num espaço de cura das
enfermidades com diversas medidas terapêuticas. Além disso, a
documentação dos hospitais e misericórdias mostra que adotavam
também outras medidas profiláticas para a recuperação da saúde, tais
como uma dieta equilibrada e adaptada a cada situação de
enfermidade (LOPES, 2010; MENDONÇA, 1996).
Outra faceta dessa inquietação com saúde dos súditos
encontra-se na atuação da rainha D. Isabel de Aragão (?1271-1326),
casada com D. Dinis (1276-1325) voltada para a prática contínua da
caridade com a assistência aos pobres, enfermos e desvalidos. Essa
ação que marcou a imagem da rainha santa remetia à valorização de
São Paulo das três virtudes teologais com destaque para a última ao
afirmar ―Agora, portanto, permanecem em fé, esperança e caridade.
Estas três coisas. A maior delas, porém, é a caridade‖ (Cor, 13, 13-13).
Após a morte de D. Dinis deslocou-se para o mosteiro de Santa Clara,
onde administrou o Espital de santa Helisabet e ao qual legou rendas em
seu testamento. Em 1230, fundou o Hospital de Alenquer para
acolher doentes pobres (SANTOS, 2000).
O primeiro grande exemplo foi o Hospital de Todos os
Santos de Lisboa (1479-1755) por iniciativa de D. João II, o Príncipe
Perfeito e conclusão no reinado de D. Manuel. Foi inspirado nos
modelos de regimentos dos hospitais mais modernos da época em
Florença, Santa Maria Nuova e em Siena, Santa Maria della Scala, com
arquitetura renascentista adequada a esses espaços. Além disso, com
inovações no atendimento aos doentes e administração laica até 1564

143
quando passou para a ordem de São João Evangelista. Com o
Hospital de Todos os Santos D. João II agregou sob a égide do poder
régio com a autorização do papa Sisto IV (13/08/1479) na bula Ex
debito solicitudini, o grande número de antigas albergarias, gafarias e
hospitais (espritais), locais de acolhimento e de cura de Lisboa e
arredores, muitas vezes organizados em torno de corporações de
ofícios. O papa sucessor, Inocêncio VIII (1484-1492), confirma essa
autorização por breve papal de 21/01/1485 ao acrescentar a
permissão do uso de rendimentos até 300 florins de ouro de outros
hospitais fora de Lisboa. A intervenção papal era necessária porque o
assunto era da competência do Direito Canônico. Como todos esses
estabelecimentos eram dedicados a uma miríade de Santos e santas
resolveu denominá-lo e dedicá-lo a todos os Santos. Seu Regimento
descreve em pormenores todos os cargos administrativos, os ofícios
de saúde e os religiosos, com as respectivas atribuições e salários.
Evidencia o esforço de racionalização do espaço hospitalar.
Sua arquitetura foi composta pelo mestre arquiteto Mateus
Fernandes e o desenho da igreja foi elaborado por seu genro
estrangeiro, Diogo Boitaca ou Boytac, ‘mestre de pedraria e cavaleiro
da Casa d´El Rey nosso Senhor e Mestre das obras do Reino’
conforme lápide funerária do Mosteiro da Batalha (ver imagem de
Lisboa e do Hospital na próxima página). O edifício tinha três pisos,
uma fachada (frontaria) de 100 metros com arcadas, a igreja no meio
com a escada monumental. Havia duas enfermarias masculinas, a de
São Cosme e a de São Vicente e uma feminina, a de Santa Clara sem
distinção das doenças, a não ser a ‗casa apartada‘, destinada aos
doentes das boubas, ou seja, da sífilis. No reinado de D. João III
(1521-1557) criou-se ‗a casa dos doidos‘ para os doentes mentais
(SILVA, 2012; NOGUEIRA, 1885).
Nesse sentido, outro exemplo constituiu-se no Hospital de
Nossa Senhora do Pópulo (1498) em Caldas da Rainha. A iniciativa
foi de D. Leonor, no termo de Óbidos, patrimônio da Casa da
Rainha. Tratou-se do primeiro hospital com corpo médico e seus
assistentes, ou seja, bem estruturado, com fontes de financiamento e a
utilizar a terapêutica de banhos termais de águas sulfurosas para a
terapêutica e cura de certas doenças, tais como, frialdades, doenças
das pernas, doente de uma mão, doente do ar, febres, gota artrética,

144
opilação, doente de febres, parlazia etc. Funcionava por seis meses ao
ano nos meses de primavera e verão.
Outros exemplos peninsulares da mesma época foram o
Hospital de Valença (Galiza, 1493) e o de Saragoça, no reino de
Aragão (1496). Em 1564, com a reforma hospitalar a gestão do
Hospital de Todos os Santos foi entregue à gestão da Misericórdia de
Lisboa e em seguida todos os outros hospitais da Coroa (SILVA,
2012). Em Lisboa, no século XVI os doentes incuráveis eram
dirigidos para o Hospital de Nossa Sra. da Vitória e de Sant´Anna e os
gafos eram internados no Hospital de São Lázaro. Dentre as ações
para a reforma hospitalar, houve igualmente a preocupação com a
administração dos hospitais para os leprosos. Por exemplo, a Casa de
São Lázaro, com regimento de 1407 e a Gafaria de Sintra tiveram
intervenções régias para a melhoria de condições desses espaços.
Paralelamente a esses empreendimentos houve a criação das
Irmandades das Misericórdias, em primeiro lugar a Irmandade de
Invocação a Nossa Sra. da Misericórdia, na capela de Nossa Sra. da
Piedade, junto à Sé de Lisboa. Tratava-se de espaços partilhados entre
a Igreja, a corte e os municípios em que as Santas Casas tornaram-se
locais de cura para pobres e enfermos. Essas irmandades das
Misericórdias disseminaram-se pelas cidades e vilas do reino e do
ultramar (ALVES, 2014).

145
Panorama de Lisboa, Desenho de artista italiano, 1598. Detalhe do panorama onde
do lado direito está o Hospital de Todos os Santos, que foi destruído pelo terremoto de
Lisboa em 1755. Atual Praça da Figueira.
91
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=227758&page=2

Até essa época, as pequenas instituições de assistência social e


médica eram mantidas por ricos-homens (como os hospitais de
Almada e Arronches), ou pelas corporações de ofícios ou confrarias
ou por ordens militares e religiosas ou ainda por proteção régia. As
albergarias ou ‗casa dos passantes‘ foram criadas antes do reino de
Portugal e destinavam-se a dar apoio aos viajantes e peregrinos que
iam a Santiago de Compostela, na Galiza (LOPES, 2010; SOUZA,
2013).

91 De acordo com informações da autora, esta imagem está em site de domínio


público.

146
A terceira esfera de atuação régia dizia respeito à criação e
manutenção do curso de medicina nos Estudos gerais de
Lisboa/Coimbra (1309) para a formação dos profissionais do reino
desde o século XIV até o XVIII. Os Estudos gerais, no reinado de D.
Dinis, foram sancionados pela Bula De Statu Regni Portugaliae do papa
Nicolau IV(1288-1292), que além de confirmar a criação aprova o
pagamento de salários aos professores e concede privilégios aos
mestres e alunos. Na hierarquia entre os saberes, a medicina situava-se
nos estágios mais baixos, pois era um dos cursos com menor número
de alunos e os salários de seus mestres eram mais baixos se
comparados com os outros. Por exemplo, o de Leis era de 600 e o de
Decretais era de 500 libras, enquanto que o mestre de Física recebia
200, mas em compensação recebia mais que o de Lógica com 100 e o
de Música, 75 libras.
Entre os cursos de Artes e Teologia, mais tarde o de Leis, o de
Medicina vinha em último lugar na hierarquia e não tinha muita
procura. Por outro lado, havia igualmente a presença na corte e no
reino de físicos estrangeiros até o século XVIII e de físicos judeus até
o final do século XV quando estes últimos foram expulsos ou
convertidos compulsoriamente por D. Manuel.
Até essa data, além dos estudos iniciais no mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, os físicos iam estudar no reino de França, seja na
Faculdade de Medicina de Paris seja na Escola de Medicina
Montpellier. O exemplo mais significativo foi o de Gil de Santarém
(1185-1265), que depois se dirigiu para os Estudos Gerais de Paris e
tornou-se frei dominicano. Nos finais dos séculos XV e XVI, a
preferência dos escolares portugueses (clérigos ou laicos) por esses
centros de estudos foi substituída pelos cursos de medicina do Estudo
Geral de Salamanca (1492), e pelo de Alcalá de Henares, ambos no
reino vizinho de Castela.
Nos dois séculos seguintes, era necessário provar-se que era
cristão velho (limpeza de sangue) para cursar Medicina e ser bolseiro
(partidos) já que era de conhecimento de todos o fato de que os
cristãos-novos tinham a tradição de expertise nessa área do

147
conhecimento (FONSECA, 1997)92. Para incentivar os alunos a
cursarem Medicina, por iniciativa de D. Sebastião (Carta régia de
20/09/1568), foi criado o sistema de partidos, que consistia num
subsídio pecuniário a 30 alunos cristãos-velhos dos cursos de
Medicina e Cirurgia. Por sua vez, Felipe II aprovou igualmente os
partidos para 20 boticários (Regimento dos médicos e boticários cristãos velhos
07/02/1604). Ambos os estudantes recebiam o subsídio até a
conclusão dos estudos médicos e farmacêuticos (BANDEIRA, 1995-
1996).
Em 1545, foi nomeado João Fernandes para ser o primeiro
boticário para a Universidade de Coimbra. Criou-se um curso prático
de 04 anos com dois anos de latim e dois de estágios nas boticas da
cidade, contudo sem espaço físico na instituição até a reforma
pombalina no século XVIII. Ao contrário do século XV, estavam
isentos do exame do físico-mor (PITA, 1997).
A última área de ação política de saúde remontava ao século
XIV, quando ocorreu a Peste Negra e os surtos posteriores. Nesse
caso, a preservação da saúde urbana passou a ser uma das
preocupações dos concelhos e dos reis. Um dos primeiros livros
impressos em Lisboa pelo impressor alemão Valentim Fernandes foi
o Regimento proueytoso contra ha pestenença, a tradução portuguesa por frei
Luiz de Rás e a versão resumida por D. Raminto, em 1495, com o
brasão de armas de D. João II. O autor da obra em latim era um
médico judeu Johannes Jacobi de Montpellier, em meados do século
XIV no contexto da Peste Negra. Outro texto impresso intitulado,
Recopilaçam das cousas que convem guardarse no modo de preseruar a cidade de
Lixboa & os sãos, & curar os que esteuerem enfermos de peste, de autoria de
doutores de Sevilha, Thomas Aluares e Garcia de Salzedo, médicos de
D. Sebastião, foi publicado em virtude de grande peste que atacou o
reino em 1569, com segunda edição em 1580 por ordem da cidade de

92 No Regimento de 1604, as cláusulas que estipulam que os candidatos à bolsas


―[...] não hão de ter raça de Iudeu, Christão Novo, nem Mouro‖. No Libro de las
Confesiones, de Martim Peres aparece também a mesma segregação: ―Si llamo a
su enfermedat judio físico o moro, o si tomo del melezinas, ca estas cosas son
vedadas de santa Iglesia‖ (Regimento de 1604, p. 185)-9

148
Lisboa. Ambrósio Nunes, médico português cristão novo, lente do
curso de Medicina da Universidade de Salamanca e depois médico de
D. João III e cirurgião- mor do reino, escreveu o Tratado da Peste, em
1601, acerca de sua experiência no combate a epidemia em 1598.
Medidas de medicina preventiva e repressivas aos
contraventores nos surtos de peste eram ordenadas tanto da parte da
monarquia quanto das autoridades concelhias. Os reis mantinham
comunicação com as Câmaras geralmente por intermédio de cartas
régias, as quais por sua vez adotavam medidas de higiene local
permanentes. No século XVI, para tratar desse assunto havia o cargo
de ‗provedor-mor da Saúde da corte e Reino‘, cuja área de atuação era
a partir de Lisboa estendendo-se para todo o reino. A referência a
esse cargo aparece no Tribunal da cidade de Lisboa, criado por D. João
III em 1526. Em 1571, por alvará enviado a várias vilas, D. Sebastião
determinou que as autoridades locais obedecessem e cumprissem as
disposições do ‗provedor- mor da Saúde da corte e Reino‘ para
proteger o reino da peste que se iniciara em Peniche. Na cidade do
Porto havia o ‗físico da saúde da cidade‘ e a partir de 1575 passou a
ter também um cirurgião igualmente dependente de provisão régia.
Por outro lado, a religiosidade cristã partilhada por todos acrescia às
medidas profiláticas o auxílio divino e de Santos para as cidades
empesteadas por meio de missas, orações e procissões.
Os meios do contágio eram bem conhecidos, por isso as
medidas de higiene geralmente adotadas eram efetivas, por exemplo, a
quarentena dos enfermos ou dos sãos, a queima das roupas dos
infectados, o enterramento dos cadáveres, a limpeza urbana e o
cinturão de isolamento das cidades. A punição com multa e degredo
voltava-se para aqueles que acolhiam e não informavam os doentes de
peste.
À guisa de conclusão, esse texto mostrou uma visão de
conjunto dos primeiros ensaios de políticas régias voltadas para a
saúde puvrica em Portugal no final da Idade Média e inícios da
Moderna. Quatro eixos de ações políticas da Coroa foram analisados:
primeiro, a regulamentação e o controle do exercício das profissões
de saúde, a saber, físicos, cirurgiões, boticários e cirurgiões barbeiros e
a criação da Fisicatura; segundo, a reforma a construção, a
manutenção e administração dos espaços hospitalares, com dois

149
exemplos pioneiros, o Hospital de Todos os Santos, em Lisboa e o
Hospital Nossa Senhora do Pópulo, em Caldas da Rainha; terceiro, a
formação de profissionais no curso de Medicina na Universidade de
Coimbra e nas grandes Escolas do exterior, tais como, Paris e
Montpellier; e por último, as medidas preventivas por ocasião das
pestes e epidemias. Essas iniciativas eram muitas vezes executadas em
conjunto com a Igreja católica, outras vezes em acordo com as
autoridades concelhias. Assim, a preocupação com a saúde do reino
tornou-se paulatinamente mais um dever do ofício régio.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <htpp://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=3767277>.
Acesso em 10/09/2015.

Carta de Privilégio dos Boticários, que tiverem sempre em suas


Boticas tantos remédios, que valhão a quantia de mil e quinhentas
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153
Capítulo 9

A dignificação do trabalho em Agostinho.


A conjugação do saber e do fazer na
agricultura
Maria Teresa Carrasco Salvados Gonçalves Santos

Introdução

A transição da antiguidade para a medievalidade representa a


sucessão do paradigma do pensamento de matriz grega para o
pensamento de matriz cristã. Agostinho de Hipona é figura de
charneira entre um e outro período, pelo que se torna difícil ignorá-lo
e desconsiderar o seu esforço de translatio93 sempre que conceitos,

93 O termo translatio salvaguarda a ideia de continuidade, por oposição à ideia de


uma ruptura datada. Usa-se translatio em triplo sentido: movimento de trânsito
da cultura clássica através do percurso Bagdá-Córdova-Paris (translatio
studiorum); translação de mundividência; tradução dos conteúdos da cultura
clássica e que obrigou à selecção e adaptação de certos aspectos da cultura
antiga (AGOSTINHO, De doctrina christiana, II, 11, §16). Num e noutro caso, e
mesmo que a translatio conduzisse a uma ‗reductio artium ad sacram scripturam‘ na
convicção de estabelecer um nível propedêutico comum, exigiu-se um trabalho
de síntese, apuramento e adequação do saber clássico ao espírito do texto
bíblico (orientado pelo normativo ‗ntellectus fidei’) o que não é minimizante como
muitas vezes se considera. Se bem que na perspectiva cristã, segundo palavras atribuídas a
Ambrósio, toda a verdade, onde quer que se encontre, seja manifestação do Espírito Santo
(omnis veritas a quocumque dicatur a Spiritu sancto est), autorizando-se assim a
apropriação do saber clássico, importa valorar o diálogo entre as duas
mundividências, também importa valorar o trabalho de exploração da possibilidade
(em contexto instável) de distensão dum modelo cultural a outra mundividência
(AGOSTINHO, De doctrina christiana, I, 2, §2; II, 40, §60-61). Sobre o assunto
regista-se o artigo de León Flotido, intitulado Translatio studiorum: traslado de los
libros y diálogo de las civilizaciones en la Idad Media. Noutra perspectiva Isabel
temas ou problemas se inscrevem nos dois períodos. Daí ser
preferencialmente eleito para examinar questões transversais quando
pensadas no horizonte do cristianismo tal como o trabalho, uma
específica dimensão do fazer. Como articulou as diversas
manifestações do fazer? Que significado fixou Agostinho para o
trabalho? Como enfrentou a problemática da negatividade associada
ao trabalho na Antiguidade? Como ‗converteu‘ o trabalho ao
cristianismo? Estas são as questões mobilizadoras que traçam o
percurso de desenvolvimento do texto. Um conjunto de questões
legitimado, servindo-me duma justificação de Jean-Marie Salamito,
pela importância incontornável que Agostinho tem na história do
pensamento ocidental (SALAMITO, 2003).
Todavia, antes de começar a pesquisar possibilidades de
respostas para as questões acima formuladas, importa proceder a
alguns acertos de vocabulário dada a evolução semântica entretanto
ocorrida. Começo pelo termo ‗trabalho‘ que integra o título do texto e
que vou usar no texto. Trata-se de uma derivação do vocábulo latino
tripalium, composta pelo prefixo tri (três) e pelo nome palus (pau,
estaca, poste). O tripálio corresponde a um instrumento destinado a
ferrar os animais indóceis constituído por três paus que se fixavam no
chão. Jacques Le Goff dá notícia do uso do termo na Idade Média e
define tripalium como ―[...] máquina de três pés, maneira corrente de
designar um instrumento de tortura‖ (LE GOFF; TRUONG, 2003,
p. 65). O termo trabalho conserva duas ideias: a de esforço físico, ou
intelectual, na realização duma actividade ajustada a um fim
determinado e a de sofrimento com intensidade relativa. O Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (MACHADO,
1952, p. 320) registra o seu uso pela primeira vez a respeito do
nascimento, sendo ainda hoje em dia comum o uso da expressão
―entrar em trabalho de parto‖. Do ponto de vista semântico estão-lhe
próximos o termo latino opus/operis, de onde derivam operário, ópera
e obra, e também o termo grego érgon (ἔργων). Este significa algo a

Iribarren adverte para o imaginário criado à volta da ‗translatio‘, associando


esse imaginário a um gesto de centralização do poder político, expressão do
controle do saber, que conduziu à atomização disciplinar (IRIBARREN, 2013).

155
fazer ou a desempenhar, como o trabalho agrícola, embora seja
discutível se, ou não, érgon se estende a todo tipo de trabalho manual
(CUNLIFFE, 1924). A derivação grega está presente no léxico
português actual em algumas palavras compostas como ergoterapia,
quer dizer, tratamento pelo trabalho. Nos textos de Agostinho que
consultei surgem o termo operatio, como sinónimo de trabalho, e a
expressão non laboriosa (labor) quando se pretende significar trabalho
sem esforço.

A dignificação do trabalho. O trabalho enquanto actividade


coadjuvante

Enquanto cristão, as Escrituras serviram a Agostinho de


referência privilegiada para sustentar o diálogo com a cultura pagã,
abrindo novos rumos interpretativos mas abrindo também campo
para a polémica. A partir das Escrituras, cuja leitura se reforçava por
textos patrísticos, Agostinho elaborou um paradigma modelador da
vida cristã, fosse para pessoas vinculadas ao trabalho de produção de
bens, em sentido lato, fosse para pessoas dedicadas à actividade
intelectual. Não é do ponto de vista da organização socioeconómica
que o bispo de Hipona se coloca quando considera a comunidade
cristã; é a participação na mesma fé e a orientação pelo modelo de
vida proposto por Cristo (intellectus fidei) que serve de factor agregador
da comunidade e a distingue constitutivamente das demais. Significa
isto que o cristianismo desconsiderava o esclavagismo que sustentava
Roma, que era indiferente ao vínculo de cidadania política e que não
atendia ao esquema divisionista da actividade humana? Sim e não, em
teoria. Sim, pois o estatuto socioeconómico não era critério para
constituição da comunidade cristã, baseada na extensibilidade do
princípio da fraternidade humana, que a todos acolhe como iguais.
Não, dado que nem todas as actividades, ou o desempenho delas,
eram compatíveis com a vida cristã. Isto significa que o trabalho, não
tendo uma valoração negativa em si mesmo que o torne indigno para
o ser humano, tem uma dimensão moral. A posição de Agostinho
representa, relativamente à conhecida postura radical de Tertuliano,
um compromisso entre a condição existencial da humanidade
(dependente do trabalho), o simbolismo bíblico (condenação ao

156
trabalho) e o ajustamento de certas profissões ao cristianismo. Evitou
o radicalismo de Tertuliano que, ao redigir De idolatria, levantou uma
delicada polémica de exclusão. Zelozo como era da doctrina fidei,
Tertuliano fixou uma lista de actividades admissíveis aos cristãos e
colocou muitas limitações e reservas em relação a actividades
públicas. A um cristão, por exemplo, seria inadequado o serviço
militar ou cargos cívicos. Também era inconciliável a prática da
escultura, pintura, comércio, prostituição, ensino. Se Agostinho se
mostrou mais moderado relativamente ao exercício de certas
profissões vigentes, não escondeu em De Magistro94 a desconsideração
pedagógico-cognoscitiva a respeito dos professores. A força do
argumento axiológico-teológico que desenvolveu neste diálogo do
período de Cassicíaco aproxima-se, por exigência da concordância
entre coração, inteligência e fé, da exigência de fidelidade doutrinal
que sustenta a argumentação divisionista e excludente de Tertuliano.
Menos radical e mais pragmático, Agostinho ponderou o alcance real
de certas actividades humanas na configuração social da comunidade
cristã e conviveu com a solidez da estrutura esclavagista de Roma.
Ora qual o valor ético que conferia ao trabalho? A questão não foi
explicitamente formulada pelo bispo de Hipona mas no seu discurso
encontram-se indicadores que deixam antever uma positiva posição
valorativa95.
A valoração do trabalho, que em Agostinho não tem
expressão económica96, acrescenta-lhe um significado salvítico,

94 ―Nam quis tam stulte curiosus est, qui filium suum mittat in scholam, ut quid
magister cogitet discat?‖ ―Quem é tão estultamente curioso que envie o seu
filho para a escola para que aprenda o que o professor ensina?‖
(AGOSTINHO, De Magistro, I, xiv, tradução nossa).
95 Oração e trabalho (ora et labora) seriam assumidos como duas dimensões activas
e estruturantes da vida cristã que a Ordem Beneditina cunhou transversalmente
no espírito da regra comunitária, dita Regula Sancti Benedicti (SANTOS, 2010).
96 Não tive acesso ao artigo de Vicent de Couesnongle intitulado Signification
chrétienne du travail (Economie et humanisme, 1960, n. 128), citado em paráfrase por
alguns autores para referir o trabalho como mediação privilegiada entre a
natureza o ser humano e a natureza, por um lado, e, por outro, para defender
que do ponto de vista teológico o trabalho não é simplesmente expiação do

157
superando parte da negatividade associada ao castigo imposto por
Deus a Adão e Eva. O bispo de Hipona revela aqui a sua capacidade
de interpretar a favor do dar sentido à relação entre a existência
humana e a acção divina, o que Sciacca salienta ao considerar que a
profunda metafísica augustiniana se isentava da abstracção por ser
vital e orientada para o problema humano da destinação (SCIACCA,
1954). E se Agostinho supera parte da negatividade vetotestamentária
atribuída ao trabalho como castigo instituído, também supera o
trágico da narrativa mitológica fixada na literatura grega.

O trabalho como dimensão fundamental da vida humana: a


tradição grega

A cultura grega dispunha de um mito da criação -Prometeu-,


narrado pelo poeta Hesíodo (Beócia, VI a.C.), num poema intitulado
Os trabalhos e os dias. Trata-se de um poema dedicado ao irmão Perses
e dirigido a pequenos agricultores e a alguns proprietários fundiários
poderosos. O poema refere que Zeus, ao castigar Prometeu por lhe
ter roubado o fogo, declarou: ―[…] alegras-te por teres roubado o
fogo e enganado o meu espírito, mas para ti em pessoa será grande
pena e para os homens futuros‖ (HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v.
55-57). Dito isto entregou ao homem um mal e previne-o das
consequências do mal imposto, como que abrindo, por antecipação, a
mente humana ao consequencialismo das acções. Eis o aviso: ―[...]
todos se vão regozijar em seu coração, ao rodear de amor o mal‖
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 58). Estranha situação esta que
deixa o homem contente com um ‗presente envenenado‘. De seguida,
o deus ordenou então a Hefestos que rapidamente misturasse terra e
água, que acrescentasse a essa massa a voz e a força e que lhe desse
um rosto semelhante aos das deusas imortais (HESÍODO, Os
trabalhos e os dias, v. 60-64). E assim foi criada a primeira mulher –
Pandora –, portadora dos males do mundo guardados dentro duma
jarra (píthos/πίθος), mas também portadora da expectação (elpís/ἐλπίς)

pecado.

158
expressa na esperança de futuro através da maternidade: ―Mas a
mulher, levantando com a mão a grande tampa da jarra, dispersou-os
e ocasionou aos mortais penosas fadigas. E ali só a esperança
permaneceu em morada indestrutível dentro das bordas, sem passar a
boca nem para fora sair, porque antes já ela colocara a tampa na jarra‖
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 94-98). Depois da criação
Hesíodo esclarece a nova situação humana, afirmando: ―Antes de
facto habitava sobre a terra a raça dos homens, a resguardo de males,
sem penosa fadiga e sem dolorosas doenças que os homens trazem a
morte‖ (HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 90-92). É com Pandora
que simbolicamente se instaura definitivamente a condição humana
(ánthropoi/ἄνθρωποι), própria duma comunidade constituída por
homens (ándros/ἀνδρός) e mulheres (gynaikes/γυναίκα). Antes da
instauração desta condição e durante a geração de ouro – ―[...] a
primeira geração de homens mortais criada pelos imortais que
habitam as moradas Olímpicas [...] os homens brotavam e viviam
libertos de cuidados, longe e apartados de penas e misérias‖
(HESÍODO, Os trabalhos e os dias, v. 113) e ―[...] a recato de todos os
males‖ (HESÍODO, v. 115). A partir de então tudo se altera, ficando
o homem obrigado a simultaneamente pôr a semente na terra e a
semente na mulher. Daí que a figura de Pandora concentra a
simbólica do sofrimento decorrente do trabalho e da instituição do
casamento pressupostamente sequenciado pela maternidade.
O que me interessa no mito é a fixação de duas ideias
complementares: uma, a carga simbólica associada ao trabalho – o
castigo; outra, a ideia de trabalho como dimensão fundamental da
vida humana – condição existencial. O facto de o trabalho surgir
como concretização do castigo não justifica que seja valorado como
algo de mau em si mesmo. Então como surge a negatividade do
trabalho entre os gregos?
André Aymard sublinhou que os egeus, antes dos gregos, não
desprezaram o trabalho. Pelo contrário, opróbrio seria não fazer nada
(AYMARD, 1948). Nos poemas homéricos o trabalho nunca foi
condenado em si mesmo, incluindo as actividades manuais, nem tinha
uma conotação social negativa. A razão da mudança de mentalidade
ou a razão do desprezo parece ter-se introduzido por associação da
ideia de trabalho à ideia de dependência, isso sim, chocante para uma
159
mentalidade que fazia depender o governo e o bem-estar da cidade do
ócio possibilitado e sustentado pelo esclavagismo.
A incompatibilidade entre trabalho e ócio tem expressão
consagrada na filosofia aristotélica, quer com base no princípio que
faz corresponder o verdadeiro fim do ser humano ao exercício de
pensar, quer com base na teoria da desigualdade natural entre os
humanos, o que vem legitimar a existência de escravos. Cabe aos
escravos e outros (comerciantes e artífices) trabalharem para os
cidadãos poderem cultivar a virtude e dedicar-se à política. Quando
Aristóteles, no livro 7 de Política, indica o que cada cidade deveria
providenciar em ordem a garantir a sua autonomia
(autarkeia/αυτάρκεια) económica, militar, religiosa e política apresenta
uma lista de seis necessidades básicas, entre elas a provisão de
alimentos (trophē/τροφή) e as artes e indústrias (téchne/τέχνη)97. O
cidadão deve estar isento do trabalho correlativo a tais necessidades.
Citando: ―[a cidade] não pode ter cidadãos a viver uma vida de
trabalhadores manuais ou de comerciantes. Tal modo de vida carece
de nobreza e é contrário à virtude. Tão pouco os cidadãos se devem
dedicar à agricultura, visto que o descanso é indispensável não apenas
para a génese da virtude mas também para a prossecução das

97 A cidade, como comunidade de semelhantes que visam viver o melhor


possível, deve ser auto-suficiente: ―Assim para que exista cidade deve, antes de
mais, existir alimentação; depois ofícios, já que a vida necessita de muitos
instrumentos; em terceiro lugar armamento, na medida em que os membros da
comunidade têm necessariamente que possuir armas para usar, quer para
manter a autoridade contra os que se sublevam internamente, quer para manter
a autoridade contra os que se sublevam internamente, quer para repelir as
ameaças externas; também deve possuir certa abundância de recursos não só
para colmatar as carências como para manter o esforço de guerra; em quinto
lugar, mas primeiro em importância, o zelo para com as divindades, a que
chamamos culto; em sexto lugar, e é o que há de mais necessário, uma
autoridade capaz de discernir o que é conveniente e justo para os cidadãos‖
(ARISTOTÉLES, Pol., VII, 1328b, 5-15).
Aproveita-se o espaço da nota para informar da opção editorial. Usou-se a
tradução portuguesa de António Amaral e Carlos Gomes, com texto latino
incluído. Também se consultou a edição de Les Belles-Lettres, com tradução do
grego da responsabilidade de Jean Aubonnet.

160
actividades políticas. ―[…] aqueles que são chamados a ser cidadãos
não serão trabalhadores pois têm necessidade de lazer para
desenvolver a virtude e para o exercício da actividade
política‖ (ARISTÓTELES, Pol., VII, 1328b 38-41–1329a 1-2).
O trabalho é entendido por Aristóteles como produção
(poïesis/ποίησις), uma actividade cujo fim é exterior ao sujeito da
actividade. Na produção dum jarro considera-se o oleiro como a
causa motriz, ou eficiente, que opera sobre uma matéria – causa
material – na qual imprime uma forma – causa formal – associada a
uma finalidade – causa final. A essência de um objecto – pense-se no
jarro – é a perfeita adaptação de todas as suas partes ao uso que se lhe
quer dar ou, noutros termos, é a perfeita adequação à necessidade que
se deseja satisfazer (no caso do jarro, ser receptáculo de líquidos). A
produção é um saber-fazer associado a uma técnica (τέχνη) que
consiste na disposição do sujeito aperfeiçoada pela prática e cujo fim
visa a concretização de algo que não tem o seu princípio em si
mesmo, mas no agente que a produz. Entram nesta categoria de
saber-fazer a agricultura, a construção de navios (armação), a
medicina, a música, o teatro, a dança, a retórica. Trata-se de tarefas
práticas ou actividades profissionais que não se executam como mera
rotina, mas que se baseiam em regras gerais e conhecimentos sólidos
e específicos. A produção (poïesis) opõe-se pois a acção (práxis/πράξις),
uma actividade cujo fim é imanente ao sujeito da actividade (o
agente), que se orienta pela ética e tem âmbito político
(ARISTÓTELES, Ética a Nic., I, 4, 1095ª, 14-18) 98. Com Aristóteles a

98 A seguir à passagem citada Aristóteles diferencia conceptualmente ‗vida‘ e ‗boa


vida‘, ainda que esta dependa daquela (também se pode perguntar se o inverso
não é verdadeiro). A respeito da vida refere que nela se incorporam acções
produtivas e reprodutivas de onde emerge a existência de entes e coisas,
estando focada na satisfação de necessidades básicas. A sujeição a este tipo de
necessidades é tal que nada é transferido para outra ordem de consideração.
Assim, por exemplo, o carpinteiro, enquanto produtor, encara o ângulo
correcto pela utilidade que tem no equilíbrio da cadeira, sendo incapaz duma
abordagem especulativa. Ao contrário, o geómetra toma o ângulo correcto
como expressão da verdade (ARISTÓTELES, Ética a Nic., I, 4, 1098a 29-33).
Neste sentido o que é próprio da vida e da vida boa diferencia-se pela inscrição

161
diferenciação entre actividades humanas e a distinção entre seres
humanos em função das actividades desempenhadas constituiu um
legado que chegou a Agostinho.

O trabalho como esforço penoso no Antigo testamento

A posição de Agostinho a respeito do trabalho está bem


ilustrada numa passagem de A Cidade de Deus, obra escrita no final da
sua vida e quando os bárbaros atacavam todas as fronteiras do
império romano. Transcrevo uma passagem que me parece
significativa, abusando da extensão da mesma:

A que obras estupendas e de maravilha nas edificações e


no vestuário não chegou a indústria humana! Quanto se
progrediu na agricultura e na navegação! Na fabricação
de certos vasos, na variedade de estátuas e pinturas, o
que se não inventou e realizou! Que maravilhas para
quem vê e que surpresa para quem ouve se não
tentaram realizar e exibir nos teatros! Que abundância e
perfeição de meios se não inventaram para capturar,
matar ou domar os animais selvagens! Quantos venenos
diversos, quantas diversas armas e máquinas contra o
próprio homem e quantos medicamentos e recursos
para conservar e reparar a saúde se não descobriram!
Quantos condimentos para o prazer da boca e quantos
estimulantes da gula se não inventaram! Que multidão e
variedade de sinais, entre os quais têm lugar especial as
palavras e as letras, para tornarem os pensamentos
acessíveis e persuasórios!
Quantos ornatos de linguagem e abundância de ritmos
diversos para deleitar os espíritos! Quantos
instrumentos musicais, que variedade no canto se não
excogitaram para acariciar o ouvido! Com que
sagacidade se adquiriu uma perícia imensa no
conhecimento das dimensões e dos números, das

na ordem de abordagem, dando ocasião a dois modos distintos de equacionar


conceptualmente a vida.

162
revoluções e da ordem dos astros! Quem poderá abarcar
no pensamento a multidão das realidades do mundo,
quem poderá descrevê-las, sobretudo se nos quisermos
deter em cada uma em particular em vez de as
examinarmos em conjunto? (AGOSTINHO, Civ. Dei,
XXII, 24, §3)99.

A passagem escolhida, como comenta Jean-Marie Salamito no


texto acima mencionado, suscita interesse do ponto de vista da
história das ideias cristãs a respeito de matéria social. Participando da
leitura de Salamito, o que nele destaco é o estilo retórico adequado ao
elogio e aplicado por Agostinho a respeito das múltiplas actividades.
É o estilo que acompanha a enumeração que reforça o valor das
actividades humanas, não obstante a sua classificação em duas
categorias: uma categoria inclui os manuais e técnicas, como
arquitectura, tecelagem, agricultura, navegação, olaria, escultura,
pintura, representar, caçar, adestrar, farmácia, medicina, gastronomia;
outra categoria inclui as liberais, onde se encontra a gramática,
retórica, música, astronomia, geometria e aritmética. Embora
reproduza uma classificação que, como se viu anteriormente, se

99 ―Vestimentorum et ædificiorum ad opera quam mirabilia, quam stupenda,


industria humana pervenerit; quo in agricultura, quo in navigatione profecerit;
quae in fabricatione quórum que vasorum, vel etiam statuarum et pieturarum
varietate excogitaverit et impleverit; quæ in theatris mirabilia spectantibus,
aidientibus incredibilia facienda et exhibenda molita sit; in capiendis,
occidendis, domandis irrationalibus animantibus quæ et quanta repererit:
adversus ipsos hominie tot genera venenorum, tot armorium, tot
machinamentorum, et pró salute mortal tuenda atque reperanda quot
medicamenta atque adjumenta comprehenderit: pro voluptati faucium quot
condimenta et gulæ reperevit: ad indicandas et suadendas cogitationes, quam
multitudinem varietatemque signorum, ubi præcipium locum verba et litteræ
tenent; ad delectandos animos, quos elocutionis ornatus, quam diversorum
carminum copiam; ad mulcendas aures, quot organa musica, quos cantilenæ
modos excogitaverit: quantum peritiam dimensionum atque numerorum,
meatusque et ordines siderum quanta sagacitate comprehenderit: quam multa
rerum mundanarum cognitione se impleverit, quis possit eloqui, maxime si
velimus non acervatim cuncta congerere, sed in singulis immorari?
(AGOSTINHO, Civ. Dei, XXII, 24, §3).

163
encontra em Aristóteles e outros, Agostinho evita valorizar as
actividades ou fazê-las corresponder a grupos de homens. De facto, o
Génesis não lhe permitia tal, pois apenas refere o trabalho como
condição imperativa e estruturante da humanidade a partir da
expulsão do Éden e diferenciado em função da especificidade
reprodutora dos sexos. Leiam-se os versículos relativos ao trabalho,
na edição portuguesa dos Capuchinhos100:

Depois, disse à mulher: ―Aumentarei os sofrimentos da


tua gravidez, entre dores darás à luz os filhos. […] A
seguir, disse ao homem: «Porque atendeste à voz da tua
mulher e comeste o fruto da árvore, a respeito da qual
Eu te tinha ordenado: ‗Não comas dela‘, maldita seja a
terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa
de penoso trabalho, todos os dias da tua vida. Produzir-
te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos.
Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes
à terra de onde foste tirado; […]. O Senhor Deus
expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra,
da qual fora tirado (Gen. 3, 16-23).

Dada a expulsão do paraíso e o início da miséria da geração


humana (‗miseria generis humani‘, expressão de Agostinho em Contra
Iulianis) (AGOSTINHO, Contra Iul. 3, §57; §65; §89), o trabalho
torna-se penível. Mas será que todo o trabalho é igualmente penível,
seja manual ou liberal? É a questão que interessa seguir.
Agostinho reitera o penível do esforço humano (labor),
exemplificando quer com a pregação aos fiéis quer com a audição da
pregação pelos fiéis, duas actividades correlativas que têm dinâmicas
próprias. Começa por dar testemunho do seu trabalho episcopal: ―E
trabalhamos para anunciar como escutar a palavra da verdade. Este

100 A Bíblia dos Capuchinhos é a designação comum dada à tradução portuguesa


da Bíblia, sendo a versão mais impressa no espaço lusófono. Sobre o ponto de
situação das traduções existentes remeto para um texto de apresentação da
autoria de Luísa Leal de Faria, intitulado Traduções portuguesas da Bíblia, publicado
na revista Gaudium sciendi, jan., n.3, p. 124-146, 2012.

164
trabalhar, irmãos, nós o suportamos com um espírito apaziguado, se
nos lembrarmos da sentença do Senhor e da nossa condição‖101. A
exposição subjectiva e a mostração da vivência comum são duas
técnicas do discurso augustiniano que reforçam a persuasão. E com a
mesma intencionalidade continua a esclarecer: ―No começo da nossa
própria espécie, o homem entendeu, não dum homem enganador,
não do diabo corruptor, mas da própria verdade, da boca de Deus.
‗Tu comerás o teu pão com o suor do teu rosto‘. Então se o pão é a
palavra de Deus, vertemos o nosso suor escutando‖102. A escuta da
palavra corresponde a um trabalho interior em que o ser humano
metaforicamente ‗se lavra a si mesmo‘ com o arado da palavra de
Deus. Trabalho de ‗suor‘ interior, paralelo ao trabalho físico ou
intelectual. Neste sentido a passagem citada, que inclui o comentário
ao Génesis, é decisiva para começar a prefigurar o pensamento
augustiniano a respeito do trabalho associado à deficiência da
condição humana. Antes de mais e sem qualquer retórica indutora da
exploração de uns sobre outros, o trabalho revela-se comum a toda a
humanidade. Alargando a ideia, todo o esforço procede da mesma
instância ordenadora, metaforicamente expressa por ―os lábios do
senhor‖, que exige uma certa disposição apaziguadora para o poder
gerir e superar e, por outro lado, a transversalidade do esforço mitiga
a diferenciação clássica entre os tipos de trabalho. Sem excepção,
todos os trabalhos são penosos.
Na interpretação da mesma passagem Sabine MacCormarck
abordou a questão por outro ângulo. Ao pretender negar, mediante a
leitura que Agostinho fez do Génesis (MACCORMACK, 2008), o
pessimismo augustiniano a respeito dos desejos dos seres humanos
acabou por estender a penosidade do trabalho humano (labor) a todas

101 ―Et in annuntiando et in audiendo verbo veritatis, labor est. Quem laborem,
frates, æquo animo toleramus, si sententiæ et conditiones exordio audivit
homo‖ (AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmes, Sermo XXII, 2, 1).
102 ―Ab ipso enim nostri generi exordio audivit homo, nona b homini fallace, nec
diabolo seductore sed ab ipsa veritate ex ore Dei, ‗In sudore vultus tui edes
panem tuum‘ (Gen. III,19). Proinde si panis noster verbum Dei, sudemus in
audiendo […]‖ (AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmes XXII, Sermo 2,§1).

165
as actividades, sejam elas executadas com amor ou lazer, ou sejam
profissionais, como a vindima e o comércio. A ideia é extremamente
importante por generalizar a penosidade quer ao modo como se
executa, quer ao tipo de tarefa a executar. Obtém-se assim um
conceito de análise – penosidade – aplicável aos textos de Agostinho.
Vejamos agora se a conceptualização tem ou não extensividade
suficiente.

A penosidade é transversal à actividade humana, tal como é


radical

Uma outra questão trazida pela anterior: se todo o trabalho é


penoso, então quando se realiza uma actividade que dá prazer e é
gratificante o trabalho continua este a ter a marca do castigo
decorrente do pecado original ou está isento dessa marca? Como
responde o bispo de Hipona?
Há uma problemática passagem bíblica com a qual Agostinho
se confronta e sobre a qual muitos disseram muita coisa103, referindo-
se aos maniqueus. Antes de reproduzir a passagem que interessa
mencionar, há uma outra que serve de contraste e ajuda no destaque
daquela. Comentando o Génesis Agostinho refere que quando o
Senhor Deus fez a Terra e os céus, não havia arbusto algum pelos
campos, nem sequer uma planta alguma germinara, pois não chovera
sobre a terra nem fora criado o homem para a cultivar. Só com a
criação de Adão se instaura a agricultura. Pode-se ler no comentário:

O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden,
para o cultivar e, também, para o guardar‖104. Dos versículos
seleccionados decorre que antes do pecado original o homem já era o
agricultor do paraíso. Ao contrário do que a nossa imaginação
figurara (um Éden em eterna fase de floração e frutificação), o paraíso
precisava de cuidados agrícolas permanentes. Que consequências

103 A expressão é: ―multos multa dixisse‖ (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,


VIII,1,§1).
104 ―Et sumpsit Dominus Deus hominem quem fecit, et posuit eum in paradiso, ut
operaretur et custodiret‖ (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 8, §15).

166
advém desta passagem? Que reflexão suscita a Agostinho? O
comentário que faz revela uma disciplina racional muito própria que
consiste em dar prioridade ao sentido literal do texto vetotestamental
como sendo pedagogicamente o plano de acesso a outro(s)
possível(is) sentido(s) de leitura. Escreve o seguinte:

O Senhor desejou que o primeiro homem se entregasse


ao trabalho da terra? Não parece verosímil que antes do
pecado fosse condenado ao esforço? Nós pensaríamos
isso, se não víssemos tantas pessoas a entregarem-se
com prazer à agricultura que abandonam a custo a favor
de outras actividades. Qual o encanto que tem a
agricultura, quando nem o solo nem o clima lhe opõem
nenhum obstáculo?105 (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,
VIII, 8, §15, tradução nossa).

Agostinho deixa duas ideias: uma, atribui a Adão, e através


dele à humanidade, uma vocação agrícola essencial, internalizada antes
da queda. Não apresenta o trabalho como resultado de uma maldição
e, em particular, a agricultura, tantas vezes representada como a mais
servil, sujeita à incerteza das condições climatéricas e da produção, e
sujeita à prepotência de empregadores ou mediadores. Afinal é a
primeira de todas as ocupações, a que dá prazer à alma e a
verdadeiramente instituída por Deus.
Agostinho adopta aqui uma visão antropológica interessante,
pois o homem colabora com Deus, na qualidade de ajudante
(adjutorium106), assumindo a função de cuidar do paraíso. O Éden não

105 ―Numquid forte agriculturam Dominus voluit operari primum hominem? Na


non est credibile quod cum ante peccatum damnaverit ad laborem? Ita sane
arbitraremur, nisi videremus cum tanta voluptate animi agricolari quosdam, ut
eis magna pœna sit inde ad aliud avocari? Quidquid ergo deliciarum habet
agricultura, tunc utique longe amplius erat, quando nihil accidebat adversi, vel
terra vel cœlo‖ (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 8, §15).
106 Ver (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 9, §15). A apoiar a ideia acrescentam-
se as expressões ‗non labore servili‘ (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 9, §17) e
‗animi voluptate‘ (De gen. ad lit.,VIII, 9,§18), indicando ambas um outro paradigma
de relação e actividade.

167
faz parte duma cosmogonia acabada, sem dinâmica fenoménica, não é
um espaço artificial como um cenário fílmico. Necessita de cuidado e
Deus atribui essa tarefa a Adão. A ideia não deixa de ser divertida,
pois no imaginário catequético Adão e Eva passavam as manhãs e
tardes sem nada fazer no Éden, além de nele passearem e o
contemplar.
A ‗jardinagem‘ de Adão não visa a ocupação do tempo livre,
nem é condição existencial de sobrevivência. É o âmbito da sua
actividade: operar e guardar ou, de preferência, produzir e cuidar. Para
reforçar esta característica primeira do trabalho produtivo e
cuidadoso, Agostinho articula-a com a ideia de alegria gozosa. Se o
trabalho consiste na colaboração com Deus, então tem de ser uma
expressão alegre de sua vontade, não como aflição e submissão às
necessidades de subsistência, mas como exercício livre da sua razão e
ocasião de louvar a Deus107. Nesta passagem reconhece-se um
método típico de Agostinho quando confrontado com textos bíblicos
que denotam facilmente contradição: remete comparativamente para
dados e factos constatados na vida quotidiana. É um procedimento
metodológico revelador da preocupação em entrelaçar a narrativa
divina com a vida humana, fugindo assim ao vazio da retórica.
Um pouco mais adiante, na mesma obra, Agostinho apresenta
uma segunda interpretação do Génesis, incidindo no versículo 2, 15 e
comentando que no paraíso é o Criador quem trabalha e guarda
(conserva, cuida) o homem (Gén. 8,10). Tem um sentido diferente do
anterior, pois corresponde a uma imagem que Agostinho usa nos
sermões e propõe ao auditório (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 8,
§15), e que também amplia em Confissões afirmando que Deus cultiva
o coração humano como um agricultor, colocando o seu cuidado no
campo (AGOSTINHO, Conf., II, 3, §5)108. Deus cuida do homem e,
por transferência e analogia, o homem cuida do homem. De si e dos
outros. É esta ideia de cuidado como característica constante da

107 ―Non enim erat laboris affictio, ad exhilatio voluntatis‖ (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,
VIII, 9, §15).
108 ―Dummodo esse desertus, vel desertus cultura, tua, Deus, qui es unus verus et bonus agri tui
cordis mei‖ (AGOSTINHO, Conf., II, 3, §5).

168
actividade e da relação humana que nos interessa reter. Em suma, o
conceito de ‗cuidado‘, hoje recorrente em filosofia (Heidegger,
Gilligan Nodings), ecologia (Arne Naess, Boff) e em história (Pierre
Nora), surge aqui como o modo específico da actividade humana,
atenta, responsável e gratuitamente relacional.
Retomando a ideia anterior, Agostinho afirma em De genesi
contra Manichaeos que a agricultura praticada no paraíso por Adão antes
do pecado original está isenta do peso do esforço, correspondendo a
uma ‗vontade racional‘ (racionalis voluntas) e oferecendo ao espírito ‗o
deleite dos pensamentos superiores‘ (supernarum cogitationum
delectatio)109. Salamito interpretou esta passagem como uma crítica aos
maniqueos que recusavam trabalhar a terra (SALAMITO, 2003). Em
reacção, Agostinho moraliza o trabalho, ou seja, atribui-lhe valor em
si mesmo e inscreve-o na memória ontológica e na memória histórica
da humanidade. Pode-se ver aqui uma marca da sua romanidade,
contaminada quer pela representação que a posse da terra e a
agricultura tinham para as elites sociais romanas, quer pela
simbolização e idealização do trabalho da terra.

A agricultura como ‘exertitatio animi’

Passando adiante. Posto isto, chega-se ao reconhecimento de


dois tipos de trabalhos: sem esforço e com esforço. Que interpretação
antropológica se pode derivar daqui? O homem tem necessidade de
Deus, precisa que o guarde ou que cuide dele, mas Deus também
necessita do homem como coadjuvante do paraíso que necessita de
ser trabalhado e cuidado. Uma relação que aproxima Deus e homem
por mediação do cuidado. Agostinho vai mais longe na sua reflexão
sobre a agricultura como actividade humana ao considerá-la própria
para o ‗execitatio animi‘, algo específico do estudo das artes liberais. Na
interpretação augustiniana, mesmo depois da queda, a prática concreta
da agricultura por pessoas prudentes proporciona ocasião para uma
reflexão sobre a acção divina na natureza. É uma reflexão dialógica
entre a razão humana e o mundo criado na sua manifestação actuante.

109 As duas expressões encontram-se em De genesi contra Manichaeos (II,11,§15).

169
Ao longo das diversas fases do trabalho da terra o agricultor, dado à
observação demorada e atenta, coloca questões exercitando a sua
razão. Sendo a natureza o espelho de Deus, funciona como
mediadora, logo é fonte duma aprendizagem reveladora do sentido da
própria criação para que quer que observe e cuide. Assim o agricultor
adquire conhecimento por um processo cognoscitivo analógico e
progressivo sempre que observa e capta "[...] a força vital de cada raíz
e cada semente‖ (quaeque vis radicis et germinis) (AGOSTINHO, De gen.
ad lit., VIII, 8, §16), que é capaz de distinguir a potência interior e
invisível dos números (numerorum invisibilis interiorque potentia) presente
nos vegetais e sempre que discrimina os cuidados específicos a aplicar
do exterior (extrinsecus adhibita diligentia) (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,
VIII, 8, §16). A observação atenta e cogitante não só dá consciência
da existência da omnipresença e sabedoria do Criador, como também,
por raciocínio analógico, reconhece no seu trabalho a presença dum
gesto antigo ordenado por Deus e reconhece-se a si mesmo como
criatura que Deus guia invisivelmente (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,
VIII, 10, §23). Nesta linha interpretativa, o homem tem uma acção
adjuntora na manifestação da natureza, embora só intervenha do
exterior pois cabe a Deus trabalhar no interior de cada semente e de
cada planta (occulta Dei administratio) (AGOSTINHO, De gen. ad lit.,
VIII, 9, §17). Afinal pode-se deduzir que o homem continua na terra
a actividade exercida no Éden, acrescentado de esforço e sofrimento.
Este último aspecto já foi referido acima. Nova é a associação da
agricultura com a ‗exertitatio animi‘ por via da observação atenta e do
raciocínio decorrente ou da apreensão do fenómeno e do seu sentido,
o que remete para a compreensão da condição existencial. Por isso
Agostinho afirma que o exercício da razão (exercitatio animi) aplicado à
actividade agrícola conduz à contemplação da ―grande árvore da
natureza‖ (magna arbor rerum) (AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 9,
§17), a qual lhe permite descobrir em todas as coisas a ―dupla
operação da providência‖ (gemina operatio providentiae)
(AGOSTINHO, De gen. ad lit., VIII, 9, §17).
A relação entre o trabalho agrícola e a actividade racional e
espiritual ou a perspectivação da agricultura como operação natural
conectada com a oculta administração de Deus exemplifica a

170
capacidade de Agostinho em aprofundar, interligar e ampliar o
sentido da realidade.

Consideração final: o cuidar como especificidade do fazer


trazido do paraíso

Neste ponto final apresentamos duas ideias decorrentes das


leituras feitas. Uma, a associação entre trabalho e condição humana
dignificante por o trabalho estar vinculado às dimensões moral e
racional. A dimensão racional da experiência agrícola, em geral
intelectualmente desvalorizada e de inferior representação social,
alcança com o bispo de Hipona um valor elevadíssimo que a história,
a economia e a política desconsideraram não obstante o
enquadramento cristão da Europa. Em relação ao trabalho Agostinho
não ignora, como acima foi referido, que não é em si gerador de
virtudes. Ao contrário, pode arrastar para vícios e introduzir a
corrupção institucional devido à vulnerabilidade humana depois da
transgressão cometida por Adão e Eva. Mas isso não retira ao
trabalho a dimensão moral que tem e que actualmente se expressa em
molduras deontológicas. Também não ignora a associação entre
trabalho e razão prática, a qual assegura a existência humana e lhe
imprime progresso, apesar de os erros em que a razão desliza. O que
se afigura pertinente em Agostinho e no particular contexto da
romana sociedade esclavagista é a deslocação da ‗exercitio animi‘,
sempre tão anichada na cultura escolar e tão excludente de outros
saberes e fazeres, para a agricultura, como se esta fosse uma
actividade realizada em ‗laboratório espiritual‘ na qual a manifestação
da realidade, exterior e interior, se faz acompanhar pela emergência
do tempo. O saber-fazer humano é especificamente uma actividade
reveladora da dimensão temporal e neste sentido é criativa.
Por outro lado, a agricultura, actividade primeira dos seres
humanos, parece substituir todo o currículo das disciplinas das artes
liberais e o agricultor pode chegar ao conhecimento verdadeiro dado
pelo mestre interior. Se se tirarem consequências sociais da
indiferenciação gnosiológica e espiritual entre actividades técnico-
manuais e actividades liberais, a comunidade cristã não pode legitimar
a separação entre seres humanos fundamentada na natureza das

171
actividades desempenhadas. Saberes e fazeres sustentam-se
imbricadamente na dimensão existencial e espiritual. Uma ideia que
ultrapassa a temporalidade cronológica e ainda desafia a
contemporaneidade. Uma ideia que faz de Agostinho um privilegiado
interlocutor para confrontar paradigmas, rever posições e dar sentido
às tentativas de aproximação da humanidade.
A segunda ideia sublinha que a ‗conversão‘ cristã do trabalho
não provocou nenhuma crise na organização esclavagista da
sociedade romana, não obstante a nossa imaginação evocar o filme
Spartacus, realizado por Stanley Kubrick em 1961, ou mesmo Ágora,
dirigido por Alejandro Amenábar em 2009. Todavia há uma
concepção de trabalho e de ser humano que reperspectivam a
sociedade e a humanidade. A par da condenação da riqueza, do
combate da acídia e do sentido escatológico dado ao trabalho os
escravos ganharam elevação espiritual e moral como criaturas de
Deus, sendo responsáveis pela sua salvação. Sem mitigar a carência de
condições sociais dignas, o nível de dependência económica e até a
falta de respeito pela vida, os servos da gleba, que na Idade Média
também preenchiam significativamente a base da pirâmide social,
tiveram um reconhecimento distinto em comparação com os
escravos. A concepção cristã de trabalho como ordem divina, e neste
sentido como dever da humanidade, teve por certo contributo
proveniente da interpretação augustiniana. A fórmula beneditina do
‗ora et labora’, que tenta fixar um modo de vida comunitária sem
dicotomizar as acções humanas, é expressão dessa interpretação que
recupera a relação da humanidade com o real e se compatibiliza com
o trabalho, entendido como ordem divina que concretiza o castigo e a
sua expiação.
À parte das duas ideias apresentadas, ligadas pela dignificação
do trabalho e a uma ontologia da necessidade (a expiação do castigo),
pergunta-se que sentido tem para hoje em dia retomar esta
interpretação do século IV? A inédita crise ambiental que tudo e a
todos ameaça, pela qual somos responsáveis, adverte-nos para a
urgência da adopção dum paradigma superador dos dualismos e, por
conseguinte, que não oponha a acção humana à vida ou a humanidade
à terra, mas que também ultrapasse a convicção antropocêntrica que
nega outros horizontes de vida. É pois fundamental pensar sobre o

172
sentido unitário e global da realidade, o que Agostinho fez à sua
maneira, recuperando do Éden a ideia da acção humana como
cuidadora de nós e da terra.

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175
Capítulo 10

Viver e sobreviver em Roma: o ethos


citadino diante do clientelismo
Renata Lopes Biazotto Venturini

Introdução

Discutir a respeito da cidade romana é uma tarefa desafiadora.


Primeiro pela temporalidade que a envolve, desde a fundação da Urbs,
no século VIII a.C., até a tardo antiguidade. Em segundo, a extensão
territorial envolvendo desde o norte da África até a Bretanha e a Ásia
Menor.
Ao lado da grande dimensão temporal e especial, destacamos
a relação cidade e campo. Muitas villae rusticae seguiam modelos de
decoração próprios do espaço urbano o que nos permite identificar
uma ‗cultura urbana‘ que vai além do ethos citadino.
A contribuição teórica centrada no estudo do processo de
formação da cidade a partir da análise das instituições que a
constituíram tem em Fustel de Coulanges (2004) um importante
referencial. Ele afirma que a cidade se formou a partir de uma célula
primária que é a família, por meio de relações de solidariedade de
caráter religioso. O sentimento religioso fortalece o estabelecimento e
a aceitação de regras de conduta que permitem conciliar a razão
individual com a razão privada.
Para além da família Gustave Glotz (1980) acrescenta como
sujeitos históricos do desenvolvimento da cidade, o indivíduo e a
autoridade estatal representada pelo governo da cidade.
Com Max Weber (1999) temos a celebração de uma elite
urbana, protagonista da formação da cidade, cujo elemento propulsor
do desenvolvimento é o fator econômico. Ele traça duas categorias de
cidade: cidades de consumidores e cidades produtoras.
Comungamos da ideia de um continuum entre cidade e campo
presente em estudos que mostram a cidade de Roma não apenas
como consumidora, dependente dos recursos vindos do campo, com
a confirmação da presença de uma elite predominantemente urbana.
Neste contexto nos parece pertinente destacar alguns
elementos característicos do cotidiano na Urbs. Na publicação de
estudos, desde a década de 1940, observamos que o entendimento
dado ao tema vida cotidiana está limitado à apresentação de um índice
temático bastante vasto, que revela ideias gerais sobre a cidade de
Roma, como que uma descrição analítica dos costumes, dos locais, da
arquitetura, mas não propriamente do viver urbano como expressão
das formas de comportamento adotadas pelas diferentes categorias
sociais face à necessidade de sobrevivência em Roma. Citemos alguns
modelos de análise.
Ugo Enrico Paoli (1955) pesquisa e esclarece diversos
aspectos dos costumes romanos, fornecendo uma visão panorâmica
da vida urbana de Roma. Seu trabalho encontra-se dividido em quatro
partes. Na primeira delas apresenta a evolução urbana da cidade por
meio da arquitetura; na segunda destaca as diversas fases da
decadência e decomposição da cidade face aos problemas internos,
como por exemplo a aglomeração urbana, e os problemas externos
advindos das invasões bárbaras. Nas duas últimas partes descreve os
costumes, a organização política, administrativa, social e militar.
O estudo da vida cotidiana está associado à compreensão do
romano enquanto indivíduo inserido no contexto histórico
determinado, com seus instintos, hábitos, amores, vícios e virtudes,
podendo-se comparar e revelar diferenças ou analogias com o mundo
contemporâneo.
Jérome Carcopino (1990) limita sua análise ao início do
Principado estendendo-se até o reinado de Trajano (98-117) e de
Adriano (117-138), período que para ele representa o apogeu do
poder e da prosperidade romana. Utiliza-se longamente da
documentação literária; Marcial, Plínio o jovem (61-113 d.C.),
Petrônio (27-66 d.C.), Suetônio (69-141 d.C.), Estácio (45-95 d.C.),
Juvenal (55-127 d.C. ?), Vitrúvio (século I d.C.), Plauto (230-180 a.C.),
Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), e de vasto material arqueológico.

177
O autor traça um quadro da vida romana a partir do meio
físico e do meio moral e apresenta questões associadas a arquitetura
urbana, excesso populacional, e o comportamento que indica os
méritos e as fraquezas dos costumes. Acrescenta também uma
discussão a respeito do meio social destacando as diferenças sociais
entre aqueles que possuem bens materiais e todas as facilidades de
sobrevivência e os que, nada possuindo, encontram alento nos
espaços de lazer.
O estudo da vida cotidiana no trabalho de Pierre Grimal
(1981) está circunscrito ao período das origens de Roma até os
Severos. A vida cotidiana é apresentada por meio da descrição de
temas como habitar, alimentar, divertir, vestir, educar. Observa, logo
na Introdução, que seu estudo muito deve a obra de Carcopino a
quem se remete na íntegra.
O conjunto de autores apresentados vislumbra um
direcionamento metodológico pautado num referencial comum: o
entendimento dado ao tema vida cotidiana limita-se a informação e a
descrição dos hábitos dos romanos, o que se compreende quando
consideramos a fase da historiografia inspirada na École des Annales.
Grande parte da discussão está presente em Carcopino tanto pela
comparação quanto pela referência.
Podemos somar aos estudos citados a coleção História da Vida
Privada, volume dirigido por George Duby e Philippe Ariés (1991)
bem como L. Duret e J.-P. Néradau (1983).
George Duby é o responsável pelo Prefácio onde apresenta a
linha mestra de orientação do volume por ele dirigido. Afirma que a
obra não busca apresentar ―[...] aos leitores um balanço, mas, antes,
um programa de pesquisa‖ (DUBY, 1991, p. 11), com a tentativa de
aguçar as curiosidades e incitar a continuidade do trabalho por outros
pesquisadores. Apresenta o sentido do termo ‗privado‘ e seu aparente
contraste com o termo ‗público‘. Lembra que a clausura, que parece
caracterizar a vida privada é, na verdade, o espaço onde nos
colocamos à vontade, é o ‗lugar da familiaridade‘. Nele se encontra
nossa intimidade e a realidade de nossas aspirações, que muitas vezes
se camuflam na ética imposta pelo espaço público. Assim, sua
proposta reside em mostrar como as mudanças, lentas ou não,
afetaram ―[...] a noção e os aspectos da vida privada [...]‖, sem ―[...]

178
cair numa história do individualismo, numa história da intimidade‖
(DUBY, 1991, p.11).
Na coleção o capítulo a respeito do Império Romano é da
autoria de Paul Veyne (1991). Em todos os temas que estuda-
casamento, filhos, educação, diferentes categorias sociais (escravo,
liberto, patrono), a constituição do patrimônio, o conceito de
trabalho, a sexualidade e as crenças -, destaca a forte influência
filosófica que se difunde em toda a vida social e política dos romanos:
o estoicismo.
A obra de L. Duret e Néradau (1983) direciona sua análise
para a compreensão do urbanismo em Roma, entendendo-o como a
distribuição do espaço (plano, traçado de ruas, local dos
monumentos), a arte de construir (técnica arquitetônica), e a arte de
embelezar. Este conjunto se completa com o estudo da mentalidade
e dos costumes dos romanos ao fazer uso do espaço urbano. Nesse
caso Roma é simultaneamente caracterizada como um centro político-
administrativo, como uma cidade dos espetáculos e como uma cidade
do lazer. São esses caracteres que propulsionam as relações sociais.
As manifestações culturais dos diversos setores da sociedade
romana, com atenção especial ao cotidiano romano nas inscrições
parietais de Pompéia é a linha mestra de orientação do trabalho de
Pedro Paulo Funari (2003). Ao longo dois seis capítulos que compõe
a obra apresenta a definição de cultura que, entendida no sentido
original latino (colere) significa o ato de cultivar. Nesse sentido entende
a cultura como ―[...] tudo o que resulta do trabalho e elaboração
humanos‖; ―[...] não é um apanágio de classe‖ (FUNARI, 2003. p.
21).
Neste contexto a noção de vida cotidiana está associada as
práticas dos diferentes grupos sociais, todos produtores de sua
própria identidade. De fato, o viver e o sobreviver na Urbs identifica
um ‗modo romano‘ de vida citadina, de onde se destaca a sofisticação
urbana que caracterizava a cidade, com suas construções
monumentais como o forum, a therma, o circus, o gynasium todos edifícios
onde encontramos uma vida urbana florescente. Trata-se, portanto,
de um ethos urbano.
Se aceitarmos o conjunto de temas que compõe os estudos da
vida cotidiana teremos alguns exemplos capazes de elucidar nosso

179
objeto de estudo. Mesmo reconhecendo a grande contribuição da
cultura material, buscamos na literatura latina os modelos definidores
de nossa análise, em especial nos escritos do poeta espanhol Marco
Valério Marcial (44-102 d.C.).

Os epigramas de Marcial

A obra de Marco Valério Marcial se apresenta na forma de


epigramas, um gênero literário que germinou como inscrição fúnebre
ou religiosa entre os gregos. Em Roma era ao mesmo tempo lírico e
satírico com o poeta Catulo (84-54 a.C.). Com Marcial assumiu uma
linguagem pragmática, muitas vezes obscena e mordaz. Eram
dirigidos a alguém individual ou imaginário, como forma de presente
a amigos, ou ainda, para serem apresentados em locais públicos.
Assim, muitos nomes eram autênticos como o de seus protetores,
amigos, imperadores. Outros nomes eram fictícios e geralmente
usados para caracterizar um tipo de comportamento. O primeiro de
seus livros foi o Liber Spectaculorum. Trata-se de um conjunto de
poemas acerca dos jogos oferecidos por Tito e Domiciano no
Anfiteatro Flávio. Seguem-se a ele os poemas que se intitulam Xenia e
Apophoreta. São dedicatórias vinculadas aos presentes enviados por
ocasião das Saturnais. Os primeiros (Xenia, presentes de
hospitalidade) referem-se mais a comida e bebida, e os segundos
(Apophoreta, presentes que se podiam levar para casa) eram de
natureza variada. Todavia, grande parte dos epigramas encontram-se
reunidos em doze livros, cujo conteúdo é bastante diversificado. São
poemas concisos e indicadores de simples ideias. Os assuntos tratados
expressam formas de comportamento na cidade de Roma, onde
figuram os beberrões, gulosos, avarentos, hipócritas, esposas
devotadas ou libertinas, exibicionistas, delatores.
Leoni, tradutor de cem poemas selecionados já havia
observado esta variedade de temas e de personagens nos escritos do
epigramista.

Marcial [...]‚ um realista magnífico, um caricaturista


incomparável, um pintor impressionista de tipos e de
situações, exato nas observações, agudo na crítica,

180
caprichoso na ironia, picante no golpe final. Vergasta a
todos: poetastros e parasitas, desonestos e novos-ricos,
jovens e velhos, homens e mulheres [...]. Marcial‚ aquele
espírito maligno que todos acreditam‖ (LEONI, 1958,
p.7).

Marcial é muitas vezes obsceno e bajulador dos grandes por


necessidade. Devemos lembrar que viveu muito tempo em Roma,
onde em vão buscou adquirir fortuna como escritor. Seus próprios
poemas nos informam a respeito de seus bens. Muito embora
possuísse uma pequena propriedade em Nomentum, seus
rendimentos eram insuficientes para sobreviver em Roma, colocando-
o na condição de cliente.

Marcial: poeta e cliente

No campo político, a organização da sociedade romana foi


marcada pela oposição entre o patriciado e a plebe. Esta oposição
situa-se historicamente do início da República até os séculos III a.C. e
II a.C. - quando já se delineava a formação e a ação da categoria
nobilitas, vindo manifestar-se, sobretudo, na instituição do patronato e
da clientela.
A oposição do patriciado e da clientela sobreviveu na
literatura, sob a forma do discurso, quanto mais se avançava para o
poder individual e tudo o mais que ele simbolizava. A extensão da
cidadania trouxe consigo o advento das aristocracias provinciais - os
novi homines-, que representavam novas formas nas relações sociais
tradicionais.
‗Discurso‘, remete-nos aos estudos de Pierre Bourdieu (2009),
que o define como o ambiente onde ocorrem as relações interpessoais
com o objetivo de transmitir valores, práticas e representações na
sociedade. De fato, o discurso ou a fala de um autor, está atrelado às
especificidades históricas de sua realidade social.
De fato, Marcial foi um cronista do cotidiano. Ele trabalhava
temas que interessavam aos amigos ricos, não sem antes dar-lhes uma
tonalidade jocosa. Esta linguagem era muito bem aceita socialmente,
até porque a sociedade romana também apreciava os seus porta-

181
vozes. Fazia o papel de ‗colunista social‘. São situações aparentemente
incômodas, mas que revelavam o conhecimento da intimidade e da
personalidade das pessoas retratadas, o que as tornava acessíveis ao
público e, por conseguinte, conhecidas.
Nesse sentido, o discurso de Marcial pode ser entendido
como um mecanismo político-social empregado na tentativa de
transmitir e exprimir, junto aos seus interlocutores, a compreensão
que elaborou para justificar a sua conduta frente ao clientelismo. Seus
poemas eram um veículo para o conhecimento, embora não
escondessem a irreverência do poeta quanto ao conteúdo de seus
versos.
Os epigramas que apresentam informações sobre a condição
social de Marcial foram selecionados tendo em vista sua atividade
literária, diretamente vinculada à sua condição de cliente.

Sempre casto é o estilo de teus epigramas, e em


nenhuma parte se encontra obscenidade em teus versos.
Eu te admiro e cumprimento; não se saberia encontrar
pureza semelhante a tua: para mim, as cruezas não
faltam em minhas páginas. Que seja então, a leitura de
jovens libertinos e filhas complacentes, assim como dos
velhos - ao menos daqueles que ainda mantêm uma
amante. Quanto aos teus livros, Cosconius, com tua
linguagem tão respeitável e tão edificante, são feitos para
serem lidos por adolescentes e virgens (MATIALIS,
Epigramme, III. 69. 1961, p. 105)110

Embora Marcial nos revele informações dos bens que possuía


(MATIALIS, Epigrammes, IV. 42 - posse de um escravo -; IV. 79 -

110 No original: ―Toujours chaste est style de tes épigrammes, et nulle part l´on ne
trouve d´obscénité dans te vers. Je t´admire et t´en fais mes compliments; on
ne saurait recontrer pureté pareille à la tienne: pour moi, les crudités, ne
manque à manquent à aucune de mes pages. Qu´elles soient donc la lecture des
jeunes libertins et des filles complaisantes, ainsi que du vieillard – de celui-là
que taquine encore une maîtresse. Quant à tes livres , Cosconius, avec leur
language si respectable et si édifiant, ils sont faits pour être lus des adolescentes
et des vierges‖.

182
posse de uma villa no Tibur -; V.62 e V.78 - jantares que oferece -; VI.
43 e VII. 92 - propriedade em Nomentum-; VII. 49- presentes enviados
de sua villa suburbana) -, não esconde sua condição social. Chama de
maneira veemente a atenção para si próprio e para sua fama como
escritor.

Confesso-te, ó Calístrato, sempre fui pobre; e continuo


sendo pobre. Todavia, não sou um pobre e ignorado
cavaleiro. Toda gente me lê; e ouço dizer: Ei-lo, ei-lo!
Estou obtendo, durante a vida, o que poucos têm
depois da morte. Mas tu possuis prédios com cem
colunas e um cofre cheio de ouro: teus são os campos
da egípcia Siene e perto da gálica Parma os teus
inúmeros rebanhos são tosquiados. Assim tu és assim
sou eu. Na verdade, o que eu sou, tu nunca poderás ser;
pelo contrário, qualquer vagabundo poderá tornar-se o
que o que tu és (MATIALIS, Epigramme.V.13. 1961,
p.151)111.

Marcial dá conselhos grátis, mas nunca esquece que é o cliente


de um patrono. O poeta espanhol sabia das dificuldades de não ter
dinheiro. Torna-se, por vezes, difícil resistir ao termo bajulador. A
única escolha fora de seu alcance, se quisesse prosseguir na sua
profissão, era a dos patroni. A condição de cliente em Roma implicava
a realização de algumas obrigações para com o patronus, como as
visitas matinais. Marcial reclama, constantemente, dessas atividades e
mostra-se desatencioso a essa prática; ironicamente desculpa-se:

111 No original: ―Je suis, je l´avoue, et je toujours été pauvre; mais je ne suis pas
um Chevalier vulgaire ni mal reputé; mais j´ai dans le monde entier bien des
levteurs, et sur mon passage on dit: ‗ C´est lui!‘ Cet que la mort a procure `fort
peu d´hommes, l avie me l´ai déjà donné. Pour t´ apart, ton toit repose sur une
centaine des colonnes, et ton coffre-fort détient une fortune d´affranchi; aux
bords du Nil, une grand partie des guérets de Syène te reconnaissent pour
maître, et Parme la Gauloise t´envoie les toisons d´innombrables troupeaux.
Voilà ce que nous sommes, toi et moi, mais ce que je suis, tu ne peux pas l´être;
ce que tu es, toi, n´importe quel individu peut l´être.‖

183
Enquanto eu te faço escolta e reconduzo-te a tua casa,
enquanto empresto os ouvidos as tuas tagarelices e que
aprovo tudo o que dizes e fazes, que versos, Labellus,
poderiam ter nascido! Isso não te parece um prejuízo!
[...] (MATIALIS, Epigramme, XI.24. 1961, p. 127,
tradução nossa)112.
No final de sua vida Marcial retorna à Espanha, sua
terra natal (MATIALIS, Epigrammes, XII. 18; XII,
.31,tradução nossa).

Viver e sobreviver em Roma aos olhos de Marcial

Reconhecendo a experiência social de Marcial apresentaremos


os temas do cotidiano levando em conta o ethos citadino romano. Para
tratar do tema elegemos algumas práticas de convivência na Urbs,
entre elas: jantares, lazer, presentes bem como a ética que as definiam
aos olhos do poeta espanhol para quem somente o acaso permitiria
sobreviver em Roma como escritor.

Ó Sexto, qual é a coisa, qual é a ousadia que te atrai a


Roma? O que é que tu esperas aqui, o que é que tu
procuras? Dize-me. ‗- Eu discutirei as causas com
eloquência maior que a de Túlio, e nos vossos tribunais
não haverá um igual.‘ Atestino e Cive discutem causas-
tu os conheces bem: mas não ganham nem para pagar o
aluguel. ‗- Bom, se não puder discutir causas, eu
comporei versos. Quando tu ouvires os meus versos,
pensarás que são de Vergílio.‘ Louco: todos os que tu
vês tremer de frio sob as capas ralas são Ovídios e
Vergílios. ‗-Então irei às salas dos grandes.‘ Também
estas não dão comida senão a poucos; os outros
morrem de fome. ‗- Que devo fazer? Aconselha-me:
mas, em todo o caso, eu quero viver em Roma.‘ Se tu és

112 No original: ― Pendant que je te fais escorte et te reconduis chez toi, pendant
que je prête l´oreille à tes bavardages et que j´approuve tout ce que tu dis et
fais, que des vers, Labullus, auraient pu naître! Cela ne te paraît-il os um
dommage [...]‖ .

184
honesto, ó Sexto, só poderás viver aqui por acaso
(MATIALIS, Epigramme , III.38. 1961, p. 94, tradução
de G. Leoni e Neyde Ramos de Assis)113.

Jantares

O hábito de jantar, mais do que a satisfação de uma


necessidade natural, representava a última atividade diária do romano,
estando diretamente vinculado a ideia de uma atividade prazerosa que
contava com a presença de convidados.
Na historiografia a respeito da vida cotidiana dos romanos,
encontramos descrições similares sobre o hábito de jantar. Todos os
estudos apresentam a cena como a principal refeição que acontece
logo após o banho. No triclinium os convidados eram dispostos de
acordo com a categoria social a que pertenciam. J. Carcopino (1990)
lembra que o dono da casa convidava para jantar um grande número
de pessoas, mas abstinha-se de tratar os seus hóspedes como a si
mesmo.
Marcial revela sua indignação perante um tratamento
diferenciado, mas coloca-se na condição de cliente. Nestas
circunstâncias, o jantar lhe é oferecido como pagamento. Ele prefere
abdicar da sportulae e usufruir de um cardápio comum.
O jantar transformado em sportula coloca um problema
cotidiano. O patronus não é o mesmo protetor de outrora, existindo
uma verdadeira solidariedade entre os ricos. A relação entre patrono e

113 No original: ―Quel motif, ou plutôt, quelle outrecuidance, te conduit à Rome,


Sextus? Qu´en attends-tu, ou qu´y viens-tu chercher? Réponds. – ‗Je plaiderei,
dis-tu, avec plus d´éloquence que Cicéron, lui- même, et je n´aurais de rivail sur
aucun des trois forums‘-. Atestinus a plaidé, Civis aussi (tu les connaissais tous
les deux): mais ni l´un ni l´autre n´a pu y gagner de quoi payer son loyer.- ‗ Si
rien ne nous échoit de se côté, nous composerons des vers. Quand tu les
entendras, tu dirás: ‗ Cela, c´est du Virgile!‘ – Tu perds la tête: tous ce que tu
vois par là grelotter dans leurs manteaux râpés, ce sont autant d´Ovides et de
Virgiles. - ´Je fréquenterais l´atrium des grandes maisons‘.- C´est à peine si trois
ou quatre malheureux ont trouvé ainsi à se nourrir: tous les autres, le teint
livide, meurent de faim. - `que faire? Donne-moi un conseil, car je suis bien
décidé à vivre à Rome‘. – Si tu es honnête, tu peux y vivre, Sextus, par chance!‖

185
cliente estava pautada na avareza. Segundo R. Marache, ―[...] se ele
convida o cliente para jantar, pois é necessário mostrar que se é capaz
de encher sua casa de clientes, ele não o admite realmente em sua
mesa‖ (MARACHE, 1961, p. 15)114. Marache identifica o clientelismo
como um problema de caráter social, tema que vem a ser o centro da
poesia de Marcial.

Tu deste ontem eu reconheço, um perfume de boa


qualidade aos teus convidados, mas não lhes deste nada
para comer. É coisa divertida cheirar bem e morrer de
fome (MATIALIS, Epigramme, III,12. 1961, p. 87,
tradução nossa)115.
Tu pensas que este homem- que se mostra teu amigo na
mesa e na ceia – tem no peito uma verdadeira amizade?
Ele gosta do javali, dos salmonetes, das partes moles do
corpo, das ostras: não de ti. Se a minha ceia fosse tão
boa, ele seria também meu amigo (MATIALIS,
Epigramme, IX, 14. 1961, p. 39, tradução nossa)116.

Nosso poeta também destaca aqueles que estão


perpetuamente à procura de um convite para jantar como forma de
sobrevivência; ―Filão jura que nunca jantou em sua casa. É verdade:
quando não tem um convite, fica sem comer‖ (MATIALIS,
Epigramme,.V.47. 1961. p. 164, tradução nossa)117.
Marcial, também era um anfitrião modesto. Nos jantares que
oferecia predominava uma sobriedade requintada. Ela não era

114 ―No original: ― s´il invite le cliente à diner, car il est nécessaire de faire voir
qu´on est capable de remplir a sa maison des clientes, il n´admet pas réellement
à sa table‖.
115 No original: ― Tu as donné hier., j ´ele reconnais, um parfum de bonne qualité à
tes invites, mais tu ne leur as rien fais servir. C´est choise plaisante que de sentir
bon et crever de faim! ...‖
116 No original: ― Cet homme, dont ta table, dont tes dîners ont fait ton ami, crois-
tu qu´une fidèle amitié habite dans son coeur? Il aime le sanglier, les surmulets,
les tétines de truie, les huîtres, mais non toi. Si ma table est jamais aussi bien
garnie, il sera mon ami.‖
117 No original: ― Philon jure qu´il n´a jamais dîné chez lui , et il di vrai: il ne
dîne point, quand personne ne l´a invité.‖

186
resultante unicamente de um ideal de comportamento moderado, mas
principalmente pelas condições econômicas que possuía. Além disso,
em sua casa não havia necessidade de suportar enfadonhas leituras.
Os epigramas apresentam os diferentes caminhos pelos quais
podemos demonstrar o comportamento romano perante a ‗cena‘.
Eles nos direcionam a lugares comuns, por isso torna-se possível
extrair críticas à suntuosidade, a avareza, a bajulação, assim como
elogios a moderação e simplicidade. Por outro lado, a ‗cena‘ se
configurava como o espaço que permitia entreter relações.

Lazer

A historiografia que trata do cotidiano identifica, entre os


romanos, o gosto pelos jogos - os espetáculos do circo, combate de
gladiadores, jogos de pelota junto aos banhos-, e pelas representações
teatrais. Revela que tais atividades reuniam grande parte da população
urbana por mais da metade do ano do calendário romano. Nos
últimos decênios do século I d.C., a cidade de Roma viu crescer os
edifícios destinados ao lazer, entre eles as termas, os circos e os
teatros, todas construções ligadas à iniciativa pessoal da elite e dos
imperadores.
Segundo L. Duret e J.-P. Néradau (1983) foi no período
imperial que se consolidou uma política voltada ao lazer. Os
espetáculos ocupavam o povo, canalizavam as paixões, reforçavam a
fidelidade das camadas populares para com seu soberano. O
imperador, ao presidir os jogos, comunicava-se com o público por
meio das emoções nascidas dos espetáculos.
Marcial publicou trinta epigramas a respeito dos espetáculos
inaugurais do anfiteatro Flávio e dedicou-os ao imperador
Domiciano. Os dois primeiros epigramas são dirigidos ao grande
edifício. Embora seja difícil precisar a duração dos jogos do circo,
sabe-se que a disputa usual era entre quadrigae. A organização era feita
pelo imperador ou por um magistrado da escola profissional de
equitação ou factiones, cujo número cresceu de dois, na época
republicana, para seis na época de Domiciano.
O circo era o espaço destinado a tais jogos. Nele reuniam-se
ricos e pobres, homens e mulheres com o objetivo de presenciar a

187
vitória de sua equipe. Marcial faz referência a existência de tais
equipes- (MATIALIS, Epigramme X.48, traduação nossa). Entretanto,
com indignação lembra suas cansativas obrigações como cliente, sem
que alguma remuneração correspondesse a sua fadiga, enquanto um
jogador, em menor tempo, recebia uma quantia bem mais vantajosa.

Dê enfim graças, ó Roma, a um cumprimentar esgotado,


a um cliente que não pode mais. Quanto tempo ainda,
misturado desde a alvorada em uma escolta aos clientes
de baixa condição, será preciso ganhar em toda a
jornada meus cem miseráveis quadrantes, enquanto
Scorpus, em uma hora, toca quinze sacos pesados de
ouro ainda ardente da batida, sendo vencedor? [...]
(MATIALIS, Epigramme, X.74, 1961, p. 104, tradução
nossa)118.

O teatro parece não ter inspirado tanto os romanos quanto os


espetáculos do circo, e os de gladiadores. No teatro a mima e a
pantomima eram separadas da produção de execuções clássicas, o que
tendia a estarem limitadas a cenas e discursos selecionados. Recitar
torna-se o principal meio pelo qual as camadas educadas ouviam
drama, como o contraste audio-specto, ou seja, ouvir e observar
atentamente.
No século I d.C. a proliferação de edifícios de espetáculos
teve que lutar para vencer as resistências ancestrais. Até então os
romanos contentavam-se com cenas provisórias montadas e
desmontadas todo ano, quantas vezes fosse necessário. Além disso, o
desinteresse pelo teatro está relacionado com a prática das recitationes
que ocorriam em ambiente privado, servindo para promover o
prestígio pessoal de quem as proporcionava. Todavia, na época de
Nero, o drama gozava de alguma popularidade, quando a nova forma

118 No original: ―Fais enfin grâce, ô Rome, à un complimenteur épuisé, à un cliente


qui n´en peut plus. Combien de temp encore, mêlé dès l´aube à une escorte et
aux clientes e basse condition, me faudra-t-il gagner dans tout ela journée mes
cent misérables liards, alors que Scorpus, dans une heure, touche, s´il est
vainqueur, quinze sacs pesants d´or encore chaud de frappé? [...]‖.

188
de pantomima estava corrompendo as formas velhas da tragédia e da
comédia. Os comoedos recitavam peças da Nova Comédia - Menandro
(342-291 a.C), Terêncio (195/185-159 a.C.) e Plauto (205-184 a.C.).
L. Duret e J.-P. Néradau (1983) identificam sintomas de
desinteresse pelas representações teatrais, mostrando sinais claros de
decadência no período imperial. A tragédia cedeu lugar aos
espetáculos de pantomima. Também a comédia desapareceu em
proveito da mima.
J. Carcopino (1990) afirma que os romanos se deleitavam com
as mimas de Latinus e Panniculus cujos temas eram histórias de
raptos, maridos enganados, além do que as atrizes costumavam
despir-se "[...] da raíz dos cabelos à planta dos pés‖ (CARCOPINO,
1990, p. 271)119. Estas representações faziam enrubescer o próprio
Marcial: ―Não leia, eu te disse, casta leitora, esta parte de um livro
licencioso [...]. Mas se, casta leitora, tu vais ver Panniculus e Latinus
(meus versos não são mais atrevidos que as mimas), continua tua
leitura‖ (MATIALIS, Epigramme, III. 86. p. 1961, p.110, tradução
nossa120.
Astermas também eram espaços de recreação. Estavam entre
as manifestações mais típicas do evergetismo. Tratava-se de doações
que o indivíduo fazia à coletividade. Segundo Paul Veyne era um fato
social, um costume, um direito escrito, uma atitude e um fenômeno
de mentalidade e possuía um valor político-social (2015, p.15).
Durante todo o Império, os edifícios destinados aos banhos
foram construídos em grande número e cada vez mais marcados pela

119 No original: ― Je priais par aventure quelqu´un de me prêter vingt mille


sesterces, ce qui, même s´il m´en eût fait cadeau, ne l´aurait pas beaucoup gêné,
car je m´adressais à un riche et viel ami, dont le coffre-fort détient des
richesses surabondantes. Il me répond: ‗ tu veux être riche? Fais-toi avocat‘.
Donne-moi ce que je demande, Gaius: je ne demande pas de conseil!‖
120 No original: ―Ne lis pas, t´ai-je dit, honnête letrice, cette partie d´un licencieux
(...) Mais, si honnête letrice, tu vas voir Panniculus et Latinus (mes vers ne sont
pas plus impudiques que les mimes), poursuis la lecture.‖

189
suntuosidade. Eram públicos ou privados- quando presentes no
interior de uma domus.
Marcial encontra nos banhos um espaço de lazer, embora faça
alusão à existência de banhos pouco confortáveis como aqueles de
Gryllus e Lupus (MATIALIS, Epigramme, II. 14). Nestas condições, o
convite para banhar-se era também uma forma de sportula para o
cliente.

Todos os deveres que te asseguram um novo amigo [...],


tu exiges, Fabianus, que eu também o faça. Queres que,
todo estremecido, eu te leve sempre minhas saudações
logo pela manhã: que eu me arraste atrás de tua liteira
em pleno barro, que, cansado, eu te faça escolta, na
décima hora ou mesmo mais tarde, até as termas de
Agripina, embora eu me banhe nas termas de Tito. [...]
Devo ser sempre um recruta para tua amizade?
(MATIALIS, Epigramme, III, 36. 1961, p. 93-94,
tradução nossa)121.

Os circos, os teatros e as termas eram locais públicos. Assim,


permitiam delinear um perfil da cidade de Roma. O lazer
proporcionado nesses espaços não era sinônimo da prática do otium.
O termo otium insere-se no quadro da vida moral, social,
política e intelectual, e sofre aos olhos dos romanos, uma
ambiguidade fundamental: ele é às vezes ‗ociosidade‘ e ‗lazer‘. No
período imperial, mais especificamente, ocupa um lugar central,
estando ligado às metamorfoses sofridas e exigidas pela cidade de
Roma, capital do Império.
A aristocracia romana, diante do exercício de funções
públicas, vê no otium uma atividade complementar; nas camadas

121 No original: ―Tu les devoirs que te rend un novel ami [...] tu exiges, Fabianus,
que je te les rende. Tu veux que, tout frissonnant, je t´apporte toujours mes
salutations au point au point du joir; que ta litière me traîne après elle en pleine
boue; que, harassé, je te fasse escorte, à dixième heure ou même plus tard,
jusqu´aux thermes d´Agrippa, alors que moi-même je me baigne à ceux de
Titus. (...) et dois-je toujours être une recrue pour ton amitié? [...]‖.

190
populares confunde-se com o trabalho e a diversão; na vida intelectual
ele recebe um estatuto moral, incluindo as leituras e meditações, e
contempla a volta aos costumes antigos. Tratava-se de um lazer
filosófico desligado do espaço urbano. Enquanto o campo sublinha a
estreita ligação entre o otium litteratum e a cultura animi, a cidade
perpetua o drama de um lazer sem cultura.

Presentes

Já lembramos anteriormente, que os presentes transformaram-


se no pagamento recebido pelo cliente após o cumprimento de seus
compromissos e deveres para com o patrono. O que vai caracterizar
toda a repulsa de Marcial a este hábito é fundamentalmente a avareza
que o determinava.

Tu envias aos velhos e as viúvas imensos presentes e


queres por isso, Gargelianus, que eu te considere
generoso! Não há nada no mundo mais avarento, mais
ladrão do que tu, quando tens a audácia de chamar tuas
armadilhas de presentes! É assim que o anzol enganador
é amável com os peixes ávidos [...]. O que é a
liberalidade, o que chama fazer um presente, eu me
encarrego de ensinar, se tu ignoras: Gargelianus, dê-me
um presente (MATIALIS, Epigramme IV, .56, p. 1961,
p. 134-135, tradução nossa)122.

A doação de presentes podia ocorrer de diferentes formas:


nos convites para jantar, nos convites para os banhos e nas
Saturnálias. Vários presentes recebidos e enviados por Marcial eram

122 No original: ―Tu envoies aux vieillards et aux veuves d´immenses présents, et
tu veux que pour cela, Gargilianus, je te disse généreux! Mais il n´est rien de
plus avare, rien de plus ladre que toi au monde, quando tu as audace d´appeler
tes pièges des présents! C´est ainsi que l´hameçon trompeur a des prévenances
pour les poissons avides, [...] Ce qu´est la libéralité, ce qui s´appelle faire um
cadeau, je me charge de te l´apprendre, si tu ignores: Gargilianus, fais-mois um
cadeau‖.

191
provenientes desta festa e novamente são citados como
compensações avarentas. Por outro lado, Marcial justifica-se
ironicamente pelos presentes que envia. Longe de serem símbolos da
avareza, são o reflexo de sua condição financeira.

Neste mês de dezembro quando roubam de todos os


lados os guardanapos, as pequenas colheres de prata [...]
eu não tenho nada a levar de meu terreno, além de
livros. Eu posso talvez te parecer avarento. É que
detesto as astúcias e os cálculos infelizes que dissimulam
os presentes. Os presentes são como as feras: ignora-se
que o animal voraz é a vítima da esperteza que ele
avalia? Todas as vezes que não oferece nada a um amigo
opulento, ó Quintianus, o pobre faz ato de generosidade
(MATIALIS, Epigramme, V.18. 1961, p.153-154,
tradução nossa)123.

Marcial recebe como fruto de suas relações amigáveis, com


raras exceções, presentes dados como sportula. Seus epigramas
garantiam sua sobrevivência, pois se configuravam como veículos de
propaganda de seus patroni.
É justamente neste quadro social que Marcial vai inserir os
seus interessados conselhos e vai destilar suas críticas aos patronos
que se comportavam como avarentos frente ao seu cliente.
A avareza manifestava-se em diferentes níveis do cotidiano:
nos convites para jantar, nos presentes, nos empréstimos raramente
concedidos. Conceder empréstimos era uma ação raramente
praticada, segundo Marcial. A negação de um pedido de dinheiro era

123 No original: ― En ce mois de décembre, quando volent de tous côtés les


serviettes, et les minces cuillres d´argent, (...) je ne t´ai rien fait porter en dehors
de livres de mon cru. Je vais peut-être te paraître avare et sans usage du monde.
C´est que je deteste les ruses et les calculs malhonnêtes que dissimulent les
présents. Les cadeaux sont comme les hameçons: ignore-t-on que la brème
vorace est victime de la mouche qu´elle a avalée? Toutes les fois qu´il n´offre
rien à un ami opulent, ô Quintianus, le pauvre fait acte de générosité.‖

192
acompanhada de desculpas ingênuas, e quando o empréstimo
acontecia era sempre inferior a quantia solicitada.

Eu lhe pedia, por acaso, oito mil sestércios emprestados:


quantia que também dada de presente, não lhe custava
sacrifício, pois eu a pedia a um velho e rico
companheiro, que tem os cofres cheios de infinitas
riquezas. E este companheiro me disse – ‗Serás rico, se
fores advogado. Gaio, dê-me o que te peço: não te pedi
um conselho (MATIALIS, Epigramme, II.30. p. 1961, p.
64, G.D. Leoni e Neyde Ramos de Assis)124.

Nos exemplos citados observamos que na relação clientelista


se combinavam a avareza e a bajulação. Para R. Marache, o
clientelismo se degradou de tal forma no período imperial, que "[...]
não se considera mais o cidadão pobre como homem [...]", e " [...]
rico e pobre não se encontram mais; são essências diferentes‖
(MARACHE, 1963, p. 12). Marcial foi o intérprete deste mal-estar
profundo; protestou contra a avareza dos ricos e reclamava um
Mecenas; seu cinismo insultante traduzia sua revolta.

Considerações finais

Viver em Roma implicava a prática de hábitos cotidianos-


alimentar, vestir, habitar, divertir, entreter relações. A leitura que
fizemos dos epigramas de Marcial demonstra que esses hábitos do
viver estavam delimitados pela necessidade de sobreviver. Neste
caso, o viver urbano acabava sendo estabelecido por meio de relações
de tipo clientelista.
Alimentar, mais do que a necessidade de uma satisfação e uma
necessidade, quando integrado ao clientelismo revelava sua natureza

124 No original: ― Je priais par aventure quelqu´un de me prêter vingt mille


sesterces, ce qui, même s´il m´en eût fait cadeau, ne l´aurait pas beaucoup gêné,
car je m´adressais à un riche et viel ami, dont le coffre-fort détient des
richesses surabondantes. Il me répond: ‗ tu veux être riche? Fais-toi avocat‘.
Donne-moi ce que je demande, Gaius: je ne demande pas de conseil!‖

193
político-social. Para o patrono receber uma parcela de clientes em sua
domus era sinônimo de notoriedade e riqueza que sustentavam sua
auctoritas. Para o cliente era a garantia da sobrevivência.
Divertir, define a concepção do lazer entre os romanos. Os
espaços públicos consagrados ao lazer, tais como circo, teatro, o
anfiteatro, terma eram centros de aglomeração da população
diferenciada que habitava a Urbs.
A prática desse lazer era contrária ao otium - o lazer privado, o
lazer estudioso, e que constava como privilégio daqueles que
encontravam na cidade de Roma o espaço para o exercício da vida
pública.
Nosepigramas de Marcial encontramos a adulação e a
irreverência como exemplos da prática clientelista. Enquanto poeta
suas atitudes eram irreverentes, na medida em que manifestavam o
desejo de ver reconhecida sua atividade de escritor.
O desconforto e as incertezas que as condições de
sobrevivência em Roma causavam, mostravam-se presentes nos
espaços públicos e privados. As práticas cotidianas, filtradas pelas
relações clientelistas, revelavam as diferenças sociais. A necessidade
da sobrevivência era responsável, muitas vezes, pela construção do
caráter individual e coletivo, como podemos ler nos versos do poeta
espanhol Marco Valério Marcial. Os condimentos importantes em
seus versos eram a ousadia e a voluntariedade. Como cliente que era,
as virtudes morais mais discretas estavam ausentes de sua ética.

REFERÊNCIAS

Fontes impressas

MATIALIS, Marcus Valerius. Epigrammes. Tome I. (Livres I-VII).


Texte étable et traduit par H.J.Izaac. Paris: Belles Lettres, 1961.

MATIALIS, Marcus Valerius. Epigrammes. Tome II. (Livres VIII-


XII). Texte étable et traduit par H.J.Izaac. Paris: Belles Lettres, 1961.

194
Estudos

ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges. (dir.) - Do Império Romano ao


Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Petrópolis: Editora Vozes,


2009.

CARCOPINO, Jérôme. Roma no Apogeu do Império. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

COULANGES, Fustel. A cidade antiga. 5ª ed. São Paulo: Martins


Editora, 2004.

LEONI, G.D. Cem epigramas de Marcial. São Paulo: Livraria


Nobel, 1958.

FUNARI, Pedro Paulo. A vida quotidiana na Roma Antiga. São


Paulo: Annablume, 2003.

GLOTZ, Gustave. A cidade grega. Rio de Janeiro: Difel, 1980.

GRIMAL, Pierre. A Vida em Roma na Antiguidade. Lisboa:


Europa-América, 1981.

NÉRADAU, Jean-Pierre; DURET, L.(Part.). Urbanisme et


Métamorphoses de la Rome Antique. Paris: Belles Lettres, 1983.

PAOLI, U. E. - Vita Romana. La Vie Quotidienne dans la Rome


Antique. Florença: Felice le Monier, 1955.

VEYNE, Paul. Pão e circo. Sociologia histórica de um pluralismo


político. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

195
VEYNE, P. O Império Romano. In: ARIÉS, P. e DUBY, Georges.
(dir.). Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991. p. 19-223.

WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: EDUNB, 1999.

WHITTAKER, C.R.. Do theories of the anciente city. In:


CORNELL, T.J. & LOMAS, K. (eds) Urban society in Roman
Italy. London, UCL, 9-26, 1996

196
Capítulo 11

Educação e Religiosidade na Visión de


Don Túngano (Visão de Túndalo)

Adriana Maria de Souza Zierer

Introdução

Durante o Medievo e em especial ao longo do século XII


houve uma grande produção textos acerca de experiências ao Além-
túmulo, as viagens imaginárias, com o objetivo de mostrar aos seres
humanos como seria a vida depois da morte. Ao mesmo tempo, essas
narrativas visavam estimular tanto clérigos quanto leigos a seguir os
corretos preceitos do Cristianismo para que atingissem o paraíso.
Esses relatos eram considerados verídicos na época e em sua maior
parte, foram compostos por membros da Igreja, principalmente
monges, que cristianizavam elementos da cultura popular e lhe davam
uma roupagem cristã.
Neste sentido, este artigo trata de um texto muito popular, a
Visio Tnugdali, conhecida em português como Visão de Túndalo e que
também foi traduzida em espanhol, versão que iremos nos dedicar
nesse estudo. Retrata o percurso de um cavaleiro, membro da
nobreza, inicialmente um pecador, que sai involuntariamente do seu
corpo e é levado por um anjo para conhecer o inferno, purgatório e
paraíso, voltando a si três dias depois. De acordo com a fonte, ―[...] ni
curaba jamás de ir a la iglesia, ni dar a los pobres por Dios, nem ia às missas‖
(LA VISIÓN..., 2013, p. ???).
Ele não é enterrado devido a um pouco de calor em seu peito
esquerdo. Após a experiência se regenera e conta a sua aventura aos
demais. A narrativa, uma visão pré-dantesca, faz parte de um
numeroso conjunto de viagens ao Além desde a Antiguidade, que
visavam explicar o destino das almas após o trespasse. Os
manuscritos mais antigos são em latim125 e a obra foi redigida por um
monge irlandês, Marcus. Logo houve a tradução para o vernáculo
com versões em francês, alemão, holandês, italiano, catalão (três)126,
servo-croata, português (duas), inglês, gaélico entre outras, com vários
manuscritos em cada versão127, sendo vertida para quinze diferentes
idiomas, nos séculos XII a XVI.
Sabemos pouco sobre Marcus, o elaborador desta ‗visão‘.
Além de sua origem, a Irlanda, no momento de composição do
manuscrito estava em Regensburg, na Alemanha e o dedicou para a
abadessa do mosteiro de Saint Paul, Gilsa ou Gisela.
A narrativa também teve uma grande circulação a partir da
invenção da prensa móvel e na Alemanha circularam várias edições
impressas entre o fim do século XV e início do século XVI. Essas
edições foram compostas tanto na língua alemã (vinte), quanto em
latim (cinco), algumas das quais ilustradas por um conjunto de vinte
ou vinte e uma xilogravuras, inspiradas no texto conservado do
Speculum Historial, de Vincent de Beauvais (PALMER, 1992)128.
Também houve cinco edições impressas na Holanda.

125 Segundo Wieck (1990) seriam cento e cinquenta e quatro manuscritos latinos
conservados, mais quatorze que foram perdidos.
126 De acordo com Miquel y Planas (1914) foram produzidas no final da Idade
Média. Mas há ainda outras edições, além dessas. Conferir nota 5.
127 Ver Quadro dos manuscritos e versões da obra em diferentes idiomas em
PALMER (1982, p. 1).
128 Vincent de Beauvais resumiu a história de Túndalo e a acrescentou na sua
enciclopédia, cuja parte dedicada ao Speculum Historial contém trinta e dois
livros. O relato do cavaleiro é conservado no livro 28, com o título De Raptu
Animae Tundali et eius Visione. Muitos textos da visio em vernáculo, tanto
manuscritos como impressos, foram inspirados nessa versão.

199
A Narrativa e sua Circulação na Espanha e em Portugal

Miquel y Planas (1914, p. 33-118) editou três versões catalãs


da Visio Tnugdali129.. A primeira proveniente do códice Escorial, com o
título de La Visio del Monestir de Clares Valls (fols. 69-86) (versão A)130.
A segunda, Historia de Gaudal (versão B)131, estudada por ele com base
no Códice Hisp. 66, fólios 102-114132 e a terceira, a Historia de Tuglat
(Versão C)133, localizada no Archivo de la Corona de Aragón,
manuscrito 83 de Saint Cugat del Vallés (fls. 102v-127v)134.
A narrativa também esteve entre os primeiros livros impressos
na Espanha, como, por exemplo, na versão publicada em Toledo,
intitulada História Del Virtuoso Cavaleiro Don Túngano. A edição de 1508
se perdeu e poucos anos após foi composta outra, em 1526. A seguir
é possível observar a página inicial desta última edição, cujo título
ressalta o fato de Túngano ser ‗virtuoso‘, isto é, ter se tornado um
bom cristão após o seu retorno do Além (figura 1):

129 Ver também o estudo do editor sobre essas versões (p. 268-274). Além dessas
edições parece haver mais material da Visio. Segundo Antonio Chas, a versão
peninsular mais antiga conservada, provavelmente de fins do século XIV, é o
manuscrito 99-37 do Arquivo e Biblioteca capitular de Toledo, em mal estado
de conservação (CHAS AGUIÓN, 2009, p. 18). Para outras informações desse
manuscrito, ver: Libro de Túngano; Visión de un caballero de Ibernia. Catálogo
Hipertextual de Traducciones Anónimas al Castellano. Disponível em:
<http://www.catalogomedieval.com/busqueda.php?id=225>. Acesso em: 10
jan. 2016.
130 Versão publicada por Miquel e Planas em Llegendas de L’Altra Vida, Barcelona
(1914, p. 35-69).
131 Versão publicada por Miquel y Planas (1914, p. 71-93).
132 Com mutilação nos fólios 112-113 (RODRÍGUEZ BARRAL, 2003, p. 116).
133 Versão publicada em Miquel e Planas (1914, p. 95-118).
134 Para visualizar o fólio 91r desse manuscrito, ver Garsabal (2013, p. 29).

200
Figura 1. História Del Virtuoso Cavaleiro Don Túngano.
Fonte: História Del Virtuoso... (2015).

201
A xilogravura (figura 1) apresenta uma cena que remonta
tanto ao começo da viagem (quando Túngano se sente mal e cai no
chão, numa morte aparente) quanto ao final do relato quando, após o
cavaleiro ter retornado do Além, pedir para tomar a hóstia e se
confessar. Vemos na figura um religioso que segura a sua mão e outro
com um prato estendido com algum alimento, alusão à hóstia e seu
aspecto espiritual (corpo de Cristo).
Também são mostrados vários outros personagens na
imagem, tanto homens quanto mulheres bem vestidos e vários outros
clérigos, o que parece destacar a importância do cavaleiro e a
preocupação de muitas pessoas com ele e com a salvação da sua alma.
É bom lembrar que no período medieval o mundo terreno era
considerado um lugar de passagem, segundo o pensamento da Igreja,
sendo o ser humano um homo viator a caminho do mundo espiritual. A
morte era algo esperado e o maior temor era sofrer um falecimento
súbito sem se confessar, daí a necessidade de absolvição pelos
religiosos para que os cristãos atingissem o Paraíso.
Na composição desta Visio, o papel dos clérigos,
representados pela figura de um monge irlandês, é fundamental. A
narrativa foi vivenciada por um leigo e reinterpretada por um monge
irlandês, Marcus, que redigiu o relato em Regensburg, na Alemanha
para a abadessa G. (Gisela), do mosteiro de Saint Paul, como já
mencionado. Marcus pertencia ao Mosteiro de S. Jacques, fundado
por monges irlandeses.
De acordo com Le Goff, os relatos de viagens ao Além fazem
parte de uma tradição vinda desde a Antiguidade, com os relatos dos
percursos greco-romanos ao Hades (de Ulisses, Enéas, Orfeu, entre
outros), as narrativas orientais, como a Epopeia de Gilgamesh, os
apocalipses apócrifos judaico-cristãos (de Esdras, Pedro, Paulo, entre
outros) e as narrativas irlandesas de viagens marítimas ao Outro
Mundo (LE GOFF, 1994). No caso dos relatos medievais, muitas
vezes foram contados por leigos e readaptados por clérigos,
especialmente os monges, que lhes incutiram vários traços cristãos e
os escreviam em latim.
O grande período de composição das Visões foi o século XII,
sendo a mais conhecida delas a Visio Tnugdali. O objetivo da narrativa
era mostrar aos fiéis as corretas normas de comportamento, apelando

202
para a memória, para que fossem lembradas, contadas oralmente e
seguidas por todos, com o objetivo que pudessem atingir o Paraíso.
Sobre o propósito da experiência do cavaleiro, de acordo como relato
produzido em Toledo, a Visión de Don Túngano (1526):

Y como nuestro Señor Jesucristo es tan piadoso quiso


que este hombre, maguer fuese tan pecador que dejase
a nosotros ejemplo entre todos los que vivimos en este
mundo, de las cosas y penas que vio y pasó porque
nos guardásemos de no hacerlas y obrarlas (La
Visión de Don Túngano, 2013, p.1, grifo nosso).

A ênfase de que Túndalo serviria como exemplo do que não


deveria ser feito aponta um forte caráter educativo no relato,
transformando-o num verdadeiro manual de comportamento cristão
para se atingir a salvação. Após ver e sentir as torturas infernais,
Túndalo (ou Túngano) conta a sua experiência aos demais, pede para
tomar a hóstia (corpo de Cristo, para se purificar; ver a figura 1) e
passou a ter uma vida exemplar para atingir o Paraíso, como pode ser
observado no trecho a seguir:

Y después este caballero Túngano partió e hizo


limosnas de todas las cosas que tenía y las dio a los
pobres y enmendó su vida que bien amonestada y
espantada venía de las penas que sufriera y viera. Y
muy grande sabor, placer y alegría tenía de los grandes
bienes, deleites y cosas que en la Gloria viera (La Visión
de Don Túngano, 2013, p. 1, grifo nosso).

O trecho reforça que ele ‗emendou‘ a sua vida e repartiu as


suas riquezas com os pobres. Portanto, o personagem central passa
do seu momento inicial na narrativa, quando é apresentado como
membro da nobreza (cavaleiro de boa linhagem), forte, bonito, mas
fútil, por se preocupar somente com os prazeres mundanos, para um
exemplo de bom cristão que dava esmolas aos pobres, frequentava as
missas e tinha um comportamento adequado como cristão. Um
verdadeiro modelo a ser seguido pela sociedade.

203
Essa viagem imaginária está associada a preocupações do
século XII, como a reforma conhecida como Gregoriana, movimento
que buscou um fortalecimento da Igreja enquanto instituição, ao
mesmo tempo em que exigiu um comportamento mais puro dos
clérigos, instituindo o celibato obrigatório e proibindo a simonia
(venda de cargos religiosos). Também estabelece a ideia do livre
arbítrio como fundamental para a obtenção da salvação, um aspecto
que é bastante ressaltado na Visio.
O autor irlandês, Marcus, de quem temos poucas
informações, demonstra ser partidário da Reforma Gregoriana e dos
Mac Carthy e da preeminência de Cashel. No prólogo de sua obra
afirma que na Irlanda havia vinte e três cidades, cujos abades
dependiam de dois arcebispados, o de Armagh, situado no Norte, e o
de Cashel, no Sul que seria o mais ‗eminente‘ (Visión de Tundulo, 2010).
Segundo Pontfarcy essa frase denota a preferência do autor pelos Mac
Carthy, que inicialmente haviam governado todo o Munster, província
do sudoeste da Irlanda. Depois ocorre uma divisão do poder, com
lutas entre Mac Carthy (sul) e O‘ Brien (norte). Nesse momento de
ascensão dos O‘Brien, o arcebispado de Cashel passa a ser
subordinado ao de Armagh.
No prólogo da Visio, Marcus descreve dois reis do Munster,
que teriam sido antes inimigos e que depois viraram amigos, os quais
se encontravam num lugar próximo do Paraíso. Sublinha a
generosidade de um deles, Donato, do clã dos Mac Carthy
(PONTFARCY, 2010, XLII), que teria dado todos os seus bens aos
pobres (Visão de Túndulo, 2010) Essa uma atitude caridosa também é
adotada por Túndalo/Túngano ao final da narrativa. Historicamente,
Donato foi irmão de Cormac, rei do Desmond (1124-1138).
Em Portugal a Visão de Túndalo foi traduzida entre o final do
século XIV e o início do século XV, com duas traduções em
manuscritos, nos códices 244 e 266 por monges do mosteiro de
Alcobaça. O século XV é um importante período de circulação da
obra não só em manuscritos, como os de Portugal, mas também nos
primeiros livros impressos (incunábulos) em outros países europeus,
como na Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e Espanha.
A Visão de Túndalo também influenciou as artes plásticas. Um
importante artista influenciado por esta Visio é Bosch, cujas imagens

204
de torturas infernais estão diretamente relacionadas ao relato, que ele
conheceu (BOSING, 2006), pois a Visio teve ampla circulação na
Holanda tanto em manuscritos quanto em textos impressos. Isso
demonstra a atualidade e importância da obra ainda na Baixa Idade
Média, período do Cisma do Ocidente, com dois papas na
Cristandade, em Roma e Avignon, da Peste Negra e do medo da
morte.
Os relatos do século XII falam somente do Inferno, dividido
em Superior e Inferior, e do Paraíso. Já nos relatos do século XV o
Antigo Inferno Superior passa a ser o Purgatório. Além da Visión de
Don Túngano (ver figura 1), entre outros textos do século XV, o códice
244 da versão portuguesa também fala explicitamente desses três
espaços: ―Começase a Estoria dhuun Caualeyro a que chamauan
Tungulu ao qual foron mostradas uisibilmente [...] todas as penas
do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias
que ha no sancto parayso‖ (PEREIRA, 1895, p. 101, grifo nosso).
Os espaços do Além neste período podem ser caracterizados,
de maneira simples, por Inferno (local da danação eterna dos
pecadores), Purgatório (lugar intermediário, onde aqueles que haviam
cometidos pecados ‗leves‘ sofreriam castigos antes de irem ao Reino
Celeste) e Paraíso (dedicado aos puros, lugar de felicidade e bem-
aventurança divina, com a presença do Criador). Além desses espaços
havia ainda o ‗Limbo das Crianças‘ não batizadas e o ‗Limbo dos
Patriarcas‘ (BASCHET, 2006).
É possível perceber o papel da oralidade no texto. Há uma
conversa permanente entre anjo e Túndalo, constituindo numa
espécie de relação entre professor e aluno. A cada tormento, o
cavaleiro pergunta por que cada pecador sofre o pecado e o anjo lhe
responde, admoestando-lhe que evitasse aqueles pecados quando
voltasse ao seu corpo para que pudesse atingir a salvação.
É muito enfatizado que Túndalo deveria ‗contar‘ a sua
experiência aos outros quando voltasse ao seu corpo. Percebe-se
também vários ‗índices de oralidade‘ no texto (ZUMTHOR, 1993)
palavras como ouvir, contar, dizer, e várias passagens referentes a
sons, bons no Paraíso, através de cantos de pessoas e pássaros. Já no
Inferno, os sons são desagradáveis, através de gritos dos humanos
torturados e gemidos de sofrimentos (ZIERER, 2010). Esses índices

205
mostram que a narrativa era muitas vezes transmitida oralmente pelos
clérigos aos leigos em seus sermões, fazendo com que tivesse grande
difusão e auxiliasse o processo de conversão.
De acordo com o códice 244 da versão portuguesa, frei Marcus
havia ouvido o relato diretamente do cavaleiro e o contava à
população no seu escrito, exatamente como o havia ouvido, sendo
uma espécie de testemunha ocular da narrativa.
Sobre a estrutura da narrativa: Túndalo se sente mal quando
estava na casa de um amigo que lhe devia dinheiro, não pôde quitar a
dívida e lhe oferece um jantar. Antes de poder pegar a carne
(relacionada à matéria e aos pecados corporais), ele se sente mal, cai
no chão e fica desacordado durante três dias135, não sendo enterrado
devido a um pouco de calor em seu peito136.
Após sair involuntariamente de seu corpo é cercado por vários
demônios que pretendem levar a sua alma ao Inferno:

[...] vio venir una gran compañía de diablos Y no tan


solamente por la casa donde yacía y estaba el cuerpo,
mas las plazas eran todas llenas de ellos, y cercaron el
ánima de todas partes y la comenzaron a espantar muy
fuertemente y decían: ―Cantemos cantares de muerte y
de comer de fuego. Amiga de tiniebla enemiga de luz.‖
Y con muy gran espanto hacían y decían. ―Cativa
mezquina, éste es el pueblo que tú escogiste, con los
cuales arderás en el fuego del infierno por siempre
jamas. Y mudadas son tus nuevas de tus deleites. ¿Por
qué no eres ahora soberbia como solías?, ¿por qué no
haces fornicio como solías?, ¿por qué no codicias lo
ajeno? y ¿por qué no vuelves escándalo entre los

135 Na versão de Toledo (1526) aparece que ficou desacordado durante quatro
dias, mas na maior parte dos relatos, o tempo é três dias.
136 Tanto a versão de Toledo de 1526 quanto as duas versões portuguesas não
mencionam o fato de T. se sentir mal quando ia ingerir comida, informação que
aparece nas versões latinas e em alguns textos em vernáculo. A narrativa que
circulou nos reinos luso e hispânico (edição de 1526) analisadas aqui já tratam
logo do fato de ele se sentir mal e de sua alma ser levada aos espaços infernais.

206
hombres que se maten como solías? Cinco son tus
vanaglorias y vanidades, ves tu vanagloria y ves tu
alegría, ves tu vano reír, ves tu vano comer, ves tu vano
vestir, ves tu vano calzar que tu tenías, demás que poco
dabas a los pobres, ¿qué son de tu vanaglorias y
locuras que tu hacías?, todo es pasado y tu penarás
siempre por ellas (La Visión de Don Túngano, 2013, p. 2,
grifo nosso).

Como pode ser visto na citação o pecador se desespera e é


acusado pelos seres maléficos de seus pecados, como a soberba,
luxúria, avareza (por não dar esmolas aos pobres), entre outros erros
dos quais precisava se corrigir. Porém logo depois aparece o anjo e
eles iniciam a jornada, inicialmente indo para baixo, onde o cavaleiro
experimenta várias torturas, depois ascendendo aos locais
paradisíacos.
No relato são descritas oito punições num lugar
intermediário137 de purgação, associadas aos sete pecados capitais. O
texto afirma que aqueles que estão ali ainda esperam a salvação no
Juízo Final. Das oito punições que ocorrem no Inferno
Superior/Purgatório Túngano sofre cinco punições, conforme pode
ser visto a seguir (Quadro 1):

Quadro 1. Torturas Sofridas por Túndalo/Túngano138

137 Nas versões do século XII as punições ocorrem no Inferno Superior. Nas do
século XV esse espaço passa a ser o Purgatório. É importante destacar que os
que estavam ali ainda podiam se salvar.
138 Para visualizar outro quadro com todos os castigos passíveis de punição na
Visio Tnugdali (Visão de Túndalo), conferir BASCHET (1981, p.109). Ver
também quadro relacionando os castigos com os sete pecados capitais, em
ZIERER (2010, p. 17). Sobre o quadro, espaços como a Casa de Fristin e a
Forja de Vulcano não são nomeados na versão castelhana (1526) e nas
portuguesas analisadas no texto. Também é importante mencionar que nas
mesmas versões é omitido o fato de que a maior parte dos luxuriosos punidos
são os eclesiásticos. Ver Pereira (1895), Villaverde (1982-1983) e La Visión...
(2013).

207
PECADORES OBSTÁCULO PUNIÇÃO
É obrigado a passar com a vaca que
havia roubado numa ponte com
pregos, embaixo da qual havia
monstros. Do lado oposto, outro
Ladrões Ponte com Pregos
pecador carrega um feixe de trigo. Os
dois se encontram no meio da ponte e
se acusam mutuamente de seus
pecados.
Comido pela Besta. No seu interior
sofre torturas inflingidas por
Avaros Besta Aqueronte139 cahorros, ursos, serpentes e leões.
Depois os pecadores colocados no
fogo e rio de enxofre.
Almas colocadas num imenso forno,
Glutões e assadas, como se fossem pães.
Casa de Fristin (Forno)
Fornicadores

Almas ingeridas por esta Besta. No


seu ventre engravidam. Depois são
Luxuriosos
“paridas’ num lago gelado e ali dão a
(Principalmente Besta Pássaro
luz a serpentes que saem de todas as
Eclesiásticos)
partes de seus corpos e mordem os
pecadores até os ossos.
Almas torturadas por demônios,
Luxuriosos Em marteladas, cortadas, coadas e
Forja de Vulcano
Geral transformadas numa massa.

Entre os monstros que o torturam está a besta Aqueronte,


representada normalmente como a Boca do Inferno na iconografia
sobre essa visão, que engolia os pecadores. Esta besta tinha ali, como
guardiões na entrada da sua boca a presença de dois heróis da
mitologia irlandesa, aqui retratados com aspectos infernais, Fergus e
Connal, um com a cabeça para cima e pés para baixo e o outro de
cabeça para baixo (CAROZZI, 1994).
Na versão castelhana de 1526 o monstro não é nomeado e
seguem os sofrimentos sofridos pela alma em seu interior, quando o
anjo o deixa sozinho:

Y el ángel desapareció y quedó el alma sola, y luego en


ese punto la cercaron los diablos así como canes

139 O nome desta Besta, Aqueronte, não aparece nas fontes portuguesas e na
versão de Toledo (1526).

208
rabiosos y la atormentaron fuertemente y desque le
hubieron dado muchos tormentos la metieron en el
vientre de aquella mala bestia. Cuantas penas allí
sufría no hay hombre que lo pudiese pensar, y mucho
hedor y mucho fuego y otros muchos tormentos
que contar ni decir no se podrían. Y como ella yacía
allí llorando sus penas y culpas y pecados y causándose
así mesma por las cosas y pecados que había hecho, por
los cuales sufría aquellas penas tan grande y cuando no
se cató se vio fuera (La Visión de Don Túngano, 2013, p.
4).

O copista deixa que os ouvintes e leitores da narrativa, mais


imaginassem do que visualizassem os tormentos, na medida em que
apenas afirma que a alma sofreu fogo, fedor e outros muitos
tormentos que não se pode contar nem dizer, aumentando o impacto
dramático da descrição.
Depois disso, o ente celeste e o cavaleiro descem ainda mais,
rumo ao Antigo Inferno Inferior, ou o Inferno propriamente dito,
onde encontram a figura de Lúcifer, que tortura os condenados, mas é
igualmente torturado numa grelha de ferro, conforme citado na
narrativa e também numa representação da mesma no Très Riches
Heures do Duque de Berry, onde o Diabo é mostrado queimando
nesse lugar, com foles atiçados por demônios, ao mesmo tempo em
que ele ‗come‘ as almas pecadoras e as espalha para diversos locais do
Inferno (RUSSEL, 2003).
A Visio afirma o Príncipe das Trevas é ―[...] negro como
carvão [...]‖ (PEREIRA, 1895, p. 110), o que também se confirma na
imagem dos irmãos Limbourg. Lúcifer é retratado por eles de forma
animalesca e, por ser o Príncipe do submundo, porta uma coroa em
sua cabeça, de acordo com a iluminura.

A Visio Tnugdali, as Artes Plásticas e a Educação

Segundo os historiadores Jean-Claude Schmitt (2002, 2007) e


Jêrome Baschet (1996) as imagens tinham o propósito de educar,
relembrar e comover, tendo funções devocionais, rituais, políticas,
entre outras.
209
A imagem medieval ‗presentifica‘, sob as aparências, do
antropomorfo e do familiar, o invisível no visível, Deus no homem, o
ausente no presente, o passado ou o futuro no atual. Ela reitera assim,
a sua maneira, o mistério da Encarnação, pois dá presença, identidade,
matéria e corpo àquilo que é transcendente e inacessível (SCHMITT,
2002).
Nesta busca de compreensão das relações entre o vísível e o
invisível no medievo através da relação entre as imagens materiais e
mentais, muitos estudos tem se voltado à análise da produção
imagética, uma vez que as mesmas nos auxiliam à compreensão do
imaginário desse período.
Além da representação de Lúcifer dos irmãos Limbourg,
citada antes, outro ser monstruoso que aparece na narrativa parecer
ter influenciado a figura de uma besta, em forma de pássaro que
aparece na pintura Jardim das Delícias Terrenas (c. 1500, Museu do
Prado), de Bosch. Nesta imagem há uma ave que come uma criatura e
ao mesmo tempo defeca duas outras. As ações de
comer/defecar/parir estão próximas. Essas almas ‗saem‘ da besta
numa espécie de ovo transparente de onde caem num buraco ou
nascem. Também um humano fora dali defeca no mesmo buraco
onde as almas caem e outro vomita no mesmo local.
A besta não é mostrada exatamente como retratada no relato
sobre Túngano, quando é descrita como tendo um pescoço de ferro,
unhas de ferro e estava num lago gelado, onde depois de consumir as
almas, as fazia nascer (ou as expelia) naquele local (Visión de Túngano,
1895, p. 107-108). A Visión fala sobre esse animal que

Esta bestia era muy desfigurada y muy desemejada a


todas las otras que antes había visto. Esta bestia tiene
dos pies muy grandes, y dos alas en el cuerpo muy
grandes y muy largas, el rostro como fuego, y uñas muy
agudas, y le salía por la boca de su cabeza muy
grandes llamas (La Visión de Don Túngano, 2013, p. 5,
grifo nosso).

Além do seu tamanho gigantesco e suas grandes unhas,


segundo as versões lusas, tinha também grandes chamas que saíam de

210
sua boca, segundo a versão de 1526. Aqueles que sofrem no interior
desta besta, principalmente os eclesiásticos que cometeram a luxúria,
de acordo com as versões latinas, engravidam no ventre da besta e
depois parem monstros por todos os membros do corpo, conforme já
mencionado no Quadro 1, que os mordem até os nervos e ossos.
A versão de Toledo de 1526 não diz que aqueles que sofrem
nela são os eclesiásticos luxuriosos, mas menciona a figura dos
clérigos sofrendo no interior da besta, em virtude de possuírem
línguas que maldizem. Os códices portugueses 244 e 266 do Mosteiro
de Alcobaça também falam da punição às más línguas, mas não
nomeiam os religiosos como sendo punidos por esse castigo. Na
versão castelhana:

Estas penas merecieron aquellos que debían ser


mejores que los otros causo de ello y no lo son,
porque tienen las lenguas en el maldecir sufren los
muesos de las serpientes que ves, esto mismo
acontece a los clérigos y doctores de la santa madre
iglesia y de todos los otros prelados que
gravemente pasasen y sufriesen esta pena (La Visión
de Don Túngano, 2013, p. 6, grifo nosso).

Embora sofra no interior da besta, Túndalo/Túngano não


chega a engravidar de monstros, pois o anjo o salva desse tormento,
como podemos observar no trecho a seguir:

Entonces le desapareció el ángel, y los diablos luego la


prendieron [a alma de Túngano], y la llevaron donde
estaba la bestia, y se la dieron a tragar. Cuanta pena
y cuanto trabajo ella allí sufría no hay hombre que
lo pudiese pensar ni contar. Y después la bestia la
echo de su vientre, y cayó en el lago donde sufría
muy gran dolor y pena. Y entonces el ángel con gran
dolor volvió a ella, y le dijo: ―Vente a mí, amiga mía, ca
no sufrirás más estas penas‖ (La Visión de Don Túngano,
2013, p. 6, grifo nosso).

211
Como podemos observar nesta passagem, o cavaleiro sofre
vários castigos, mas logo depois é salvo de tormentos ainda piores
pela figura do ente celestial, uma vez que após parir bestas os
condenados eram mordidos por elas até os nervos e ossos, o que não
chega a ocorrer com a alma do cavaleiro.
Uma representação dos castigos da Visión de Don Túngano
também inspirou uma pintura do século XVI realizada por um
seguidor do estilo de Bosch. Na imagem (figura 2), vemos a figura de
Túndalo/Túngano, que nessa interpretação da narrativa está
dormindo, e atrás dele se encontra a figura do seu anjo protetor.
Próximo dele, à direita, está escrito Visio Tondaly, ligando diretamente
a pintura com aquela narrativa. Acima do anjo e do cavaleiro
adormecido, vemos um casal nu, Adão e Eva, próximo do qual estão
diabos. O casal parece estar sendo torturado por uma espécie de
tentáculo da serpente. A seguir podemos observar a pintura completa:

Figura 2 Figura 3

Figura 2. Seguidor de Hyeronimus Bosch (1520-1530). La Visión de Tondal.


Inscrição em baixo, do lado esquerdo, em letras góticas Visio Tondaly. Madrid,
Fundación Lázaro Galdiano, Madrid, inv. 2892.

212
http://museolazarogaldiano.wordpress.com/2012/11/27/vision-de-tondal-
seguidor-el-bosco-bosch-museo-lazaro-galdiano-interpretacion-iconografica-
amparo-lopez/
Acesso em: 10 fev. 2016.
Figura 3. Hieronymus Bosch. Detalhe do Inferno. Tríptico de Haywain. (A
Carroça do feno). Museu do Prado, Madrid. (painel lateral)

A imagem (fig. 2) mostra a figura do cavaleiro, aqui numa


espécie de sonho e atrás dele a figura do anjo protetor. Essa
representação inspira-se na Visio, mas fornece uma livre interpretação
da mesma, sem ter a obrigação de mostrar exatamente o que é
contado na narrativa. No centro da imagem há uma grande cabeça
com os olhos vazados, um inverso do que deveria ser a imagem
divina (CECCHI, 2013).
A cabeça está no centro da pintura e acima dela há um pano
que a atravessa de um lado a outro, na altura da testa, apoiado em
duas árvores, uma de cada lado. Vemos uma dessas árvores saindo da
sua orelha e um rato negro entrando no seu ouvido. Em cima da
cabeça um homem nu (Adão?) é torturado por uma serpente e
próximo dele estão uma coruja, um macaco e o outro animal
monstruoso. Num de seus olhos vazados está entrando um rato
negro, símbolo da luxúria.
Do nariz saem moedas, o que representa o inverso do sopro
divino e está ligado ao pecado da avareza. Elas caem em cima dos
pecadores, que estão sendo castigados no interior de uma bacia.
Percebemos entre esses condenados a figura de um religioso, devido à
tonsura em sua cabeça.
Há ainda outros pecados representados na pintura, como a
gula e a ira, através de pessoas numa toca. O pecado da preguiça
também está representado, através do homem que está sobre um leito
(vigiado por um diabo), e sobre o qual passa outro rato. A pessoa
jazida na cama também lembra o momento da morte, quando se
acreditava que as almas eram julgadas. A cena faz alusão ao quadro A
Morte do Avarento (c. 1490, National Gallery of Art), de Bosch,
retratando um moribundo que queria levar um saco de dinheiro para
o Além, motivo pelo qual seria, com toda certeza, condenado ao
Inferno (ZIERER, 2010).

213
O tema da proximidade da morte e do julgamento da alma,
que aparece tanto na figura quanto nos quadros de Bosch, era
recorrente na Baixa Idade Média, quando foram compostos livros
sobre a Arte do Bem Morrer, tratando do momento da morte, e da luta
de Deus e o Diabo pelas almas no momento em que a alma ia deixar
o corpo. Esses livros foram ricamente ilustrados com xilogravuras
(GOMBRICH, 1999).
Voltando à figura 2 do seguidor de Bosch, vemos, no chão,
pessoas atacadas por demônios semi-animalescos com instrumentos
de tortura, como o homem sentado em cima de um dado. Quanto ao
fundo da imagem, do lado direito, lembra uma casa vermelha em
chamas, que aparece em outras pinturas do artista holandês, como,
por exemplo, no detalhe do Tríptico de Hawain (ou Carro de Feno) (c.
1500-1502), num dos volantes laterais da imagem, representando o
Inferno (figura 3).
Essa imagem da casa em chamas, o Inferno, das figuras 2 e 3,
parece ter semelhança com a Casa de Fristin, retratada na Visão de
Túndalo. Nessa casa sofriam tormentos os glutões e fornicadores (ver
Quadro 1). No relato sobre Túndalo, ela representa um imenso forno,
que ao invés de cozer pão, assa as almas pecadoras. Uma versão do
Languedoc da narrativa, afirma que esse forno pune mais fortemente
os religiosos que pecaram (Vision de Tindal, 1903).
É interessante mencionar que na Visio os pecadores são
torturados por objetos do cotidiano que lembram o ato de cozinhar.
O pecado da luxúria e da gula se confundem, sendo as pessoas
castigadas em fogões, frigideiras, fornos e na forja de Vulcano. Por
isso os condenados sofrem através de espetos, são cortados, assados e
transformados numa massa através de marteladas. As representações
de Bosch parecem amplamente inspiradas nas descrições sobre o
cavaleiro pecador.
Após visitar os espaços do Purgatório e o Inferno, onde vê
Lúcifer, Túndalo vai com o anjo rumo ao Paraíso.

O Paraíso na Visio, o Retorno e a Reeducação do Cavaleiro

Num segundo momento, após passar por um lugar


intermediário, uma espécie de antecâmara do Paraíso, onde os

214
habitantes possuíam algumas alegrias, mas também onde um rei é
punido algumas horas por dia, Don Túngano e o anjo chegam ao
Paraíso propriamente dito, dividido em três Muros.
Na época medieval, o muro representa proteção e organização
do espaço e é um elemento constitutivo das cidades, que erguiam
muralhas com finalidade principalmente militar. O fechado está
associado ao Paraíso, já o aberto, com o Inferno, ligado a órgãos
como a boca e o ânus (BASCHET, 1985).
No Paraíso os sentimentos, ligados aos órgãos dos sentidos,
são agradáveis. As paisagens são belas, os aromas são de flores, há
cantos de pássaros e os habitantes do local estão alegres todo o
tempo. Os habitantes estão ali de acordo com o merecimento de cada
um e seguindo uma hierarquia de pureza. Neste sentido, eles chegam
primeiramente ao Muro de Prata, local dos casados que haviam doado
seus bens, sido bons cristãos e que não cometeram o adultério. Um
segundo muro, mais alto e belo que o anterior era o Muro de Ouro,
local dos religiosos e religiosas que haviam sofrido para o
estabelecimento da fé cristã. Um elemento da harmonia deste local era
o fato de que os eleitos cantavam sem precisar mover as bocas e os
instrumentos soam sem serem tocados (PEREIRA, 1895).
Na Visión de Don Túngano, podemos observar a ênfase na
descrição dos instrumentos musicais: ―Y cató a todas partes, y vio
muchos castillos muy hermosos, y muchas tiendas de seda y de
púrpura y de escarlata y de oro y de plata compuestas a maravilla. En
el coro de ellos vio órganos y sal-terios, vihuelas y guitarras, y
otros muchos instrumentos que hacían sones a maravilla‖ (La Visión de
Don Túngano, 2013, p. 10, grifo nosso).
Mais uma vez é possível destacar o forte predomínio da
oralidade como um elemento de harmonia paradisíaca através da
menção de órgãos, saltérios, violas, guitarras, entre outros.
Por fim o Muro de Pedras Preciosas era dedicado aos cristãos
mais puros. Ali estavam além das nove ordens de anjos, importantes
religiosos da Irlanda, como a figura de São Patrício, introdutor do
cristianismo na região, no século V. Além dele, há também a presença
de S. Ruadan, patrono do mosteiro de Lorrha (Tippery) (século VI) e
um dos patronos da Irlanda. Também destacamos ali a presença de
três abades ligados ao movimento de Reforma na Igreja Irlandesa,

215
partidários, portanto da Reforma Gregoriana, tal como o anônimo
Marcus, produtor do relato. Esses abades eram Celestino, abade de
Armagh, Malaquias (seu sucessor), que segundo a Visão de Túndalo,
dava todas as esmolas que recebia aos pobres, e Christianus, abade de
Louth (PONTFARCY, 2010).
No Muro de Pedras Preciosas a alma viu ainda mais beleza e
alegria que nos locais anteriores e, além disso, ―[...] esta alma ouuio
palauras muy marauilhosas e muy sanctas. per tal guisa que non
conuen a nenhuun homen de as dizer‖ (PEREIRA, 1895, p. 118, grifo
nosso). Mas, por ainda ser um pecador, Túndalo necessitava retornar,
mudar o seu comportamento e contar a sua experiência aos demais.
De repente, ele sente o peso do seu corpo e acorda, logo
pedindo para tomar a hóstia e se confessar, o que nos remete ao início
do relato, quando ele desmaia ou entra em coma (ver figura 1). A
partir do seu retorno, o cavaleiro se torna um novo homem, doa seus
bens e se torna um bom cristão. De acordo com o relato:

Todos se maravillaban de las cosas que [Don Túngano]


decía y de los hechos que hacía en la vida que después
vivió. Por ende esto todo que habéis oído, así de las
cosas del infierno y purgatorio y paraíso a nosotros
mucho aprovechará si quisiéremos en ello parar
mientes, porque Nuestro Señor Jesucristo como es
verdadero juez ni deja mal sin pena, ni bien sin
galardón (La Visión de Don Túngano, 2013, p. 12, grifo
nosso).

O final da narrativa reforça o aspecto educativo da obra,


enfatizando o caminho do cavaleiro pelo Inferno, Purgatório e
Paraíso, sua mudança comportamental após o retorno e o fato de que
cada cristão receberá o seu ―galardão‖ de acordo com as suas ações na
terra.

Considerações Finais

A versão castelhana da obra Visio Tnugdali, a Vision de Don


Túngano é um exemplo de uma das formas da Igreja Católica mostrar

216
aos humanos os locais do Além-túmulo, bem como o que cada cristão
deveria fazer para conseguir um bom lugar após a morte. A obra,
produzida no século XII, teve um incremento no final do século XIV
e início do século XV, e neste artigo destacamos a sua tradução na
Península Ibérica, num momento caracterizado pelo medo da morte,
devido à Peste Negra.
Vimos que a obra também teve circulação na forma impressa
no século XVI no reino castelhano, o que reforça a sua importância e
maior ampliação do seu alcance. Compreendemos que essa obra é
uma espécie de manual de pensamento cristão, na medida em que
apresenta um cavaleiro que, num primeiro momento era um pecador
e depois, ao retornar da sua experiência no Além, modifica a sua
conduta.
Por meio dos ensinamentos do anjo, dos castigos sofridos e
das alegrias conhecidas no Paraíso, Don Túngano. transforma o seu
comportamento, entrega seus bens à Igreja e passa a frequentar
missas e realizar a confissão, atitudes desejáveis, segundo os clérigos
para se atingir a salvação. Embora Túngano fosse um homem da
nobreza o seu exemplo e a circulação da narrativa tinham por objetivo
a cristianização de toda a sociedade.
Um dos destaques da Visio e também de outros relatos pré-
dantescos como esse, é a ênfase nos órgãos dos sentidos, visando
fazer com que o indivíduo tornasse a experiência do visionário mais
concreta e próxima da sua realidade. Neste sentido, o relato apela
bastante para os órgãos dos sentidos, com especial ênfase para a visão
e audição, mas com a participação ativa de todas as sensações.
Por isso, tudo o que acontece é visto por Túndalo/Túngano,
tanto os aspectos belos do Paraíso, quanto as imagens aterrorizantes
do Inferno. Ele também escuta, tanto sons agradáveis no Paraíso
(música e cantos) quanto sons terríveis no Inferno (gritos e gemidos).
No Paraíso, o tato é utilizado com as roupas e peças nobres utilizadas
pelos eleitos, inclusive de ouro, em contraste com os corpos
dilacerados nos espaços de punição, através de gadanhos de ferro,
espetos, martelos, fornos, pontes com pregos, entre outros
tormentos. Há ainda os aromas (ligado ao órgão do olfato) e o sabor
(paladar) de flores e frutos dos bons lugares, em oposição ao fedor e
ingestão de enxofre nos locais ruins.

217
Outro elemento ainda importante a ser destacado é que
embora as versões portuguesas e a castelhana analisada neste trabalho
não mencionem os castigos aos maus clérigos, estes também são
punidos no relato, o que prova que a moral cristã era exigida tanto de
leigos quanto dos eclesiásticos. Por fim, a narrativa também foi
interpretada na arte, por Bosch, pintor que se inspirou em várias
punições na composição dos seus quadros, mostrando tormentos
infernais, como também na pintura Visio Tondaly. Esta última foi
produzida por um anônimo que se inspirava no estilo daquele pintor.
Ali Túngano/Túndalo é uma espécie de sonhador, amparado por um
anjo e próximo dele há castigos que aparecem em quadros de Bosch.
O cavaleiro pecador passa de um primeiro momento de má
conduta, ligado aos prazeres carnais, a um modelo de cristão, que
conta, através da oralidade, a sua experiência aos demais,
contribuindo para a conversão da sociedade. Essa obra auxiliou a
construção de um modelo cristão de comportamento através de sua
divulgação em vários idiomas, de forma oral, escrita e através da
iconografia para uma ampla gama de pessoas, no período da chamada
longa duração e nas Idades Média e Moderna.

REFERÊNCIAS

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222
Sobre os Autores

Adriana Maria de Souza Zierer: Possui graduação, mestrado e


doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (2004).
Realizou estágio Pós-Doutoral junto ao GAHOM na EHESS entre
maio de 2013 e julho de 2014. Atualmente é professor Adjunto IV da
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), na graduação e no
Mestrado em História, Ensino e Narrativas, e docente do Mestrado
em História Social (UFMA). Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Antiga e Medieval, atuando principalmente
nos seguintes temas: Imaginário Medieval, Viagens Imaginárias,
Visões do Além-Túmulo, cavalaria, mulher medieval, monarcas
portugueses e rei Artur. É membro do Grupo Raízes Medievais do
Brasil Moderno, que conta com pesquisadores portugueses e
brasileiros. Foi contemplada com bolsa de produtividade da UEMA.

Claudinei Magno Magre Mendes: Possui graduação em História


pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1974),
mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (1983) e
doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1996).
É professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho. Tem experiência na área de História, com ênfase em História,
atuando principalmente nos seguintes temas: história e política,
historiografia, debates políticos, intelectuais e cultura.

Dulce Oliveira Amarante dos Santos: Possui graduação em


História pela Universidade de São Paulo (1971) e doutorado em
História Social pela Universidade de São Paulo (1997). Realizou
estágio de pós doutorado na Universidade Complutense de Madri
(2000) com bolsa de hispanista do Ministério de Assuntos Exteriores
da Espanha; pós-doutorado em História da Medicina na Universidade
de Navarra, em Pamplona, Espanha, em 2012 com bolsa estágio
sênior da CAPES. Atualmente é professora Titular da Universidade
Federal de Goiás. Tem experiência em pesquisa e orientação,
mestrado e doutorado na área de História medieval ibérica, com
ênfase em História das Mulheres e Gênero, Imaginário social e
História social da Medicina. Líder do PEM - Programa de Estudos
Medievais da UFG (CNPq). Integra desde 2006 o Grupo Luso-
brasileiro Raízes Medievais do Brasil Moderno, que se reúne
anualmente, em Portugal e no Brasil, sendo que em 2012, organizou o
VII Encontro do grupo na UFG. Membro eleito em 2014 da
Academia Portuguesa de História.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro: Doutora ès Lettres dEtat


(antigo regime) em História, pela Universidade de Paris X - Nanterre
(1990) e tem Diploma de Estudos Aprofundados - DEA - em
Civilizações do Ocidente Medieval, pela Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais, Paris (1989). Cursou especialização em História da
Arte Francesa na Escola do Museu do Louvre - Paris, França.
Atualmente é professora associada 4, da Universidade de Brasília com
dupla lotação. Atua na área de História Medieval no departamento de
História, onde fundou em 1993 o Programa de Estudos Medievais
(PEM) e é co-fundadora do Grupo de Trabalho Luso Brasileiro de
História Medieval (GT registrado no diretório de pesquisa do CNPq).
É responsável pela Coordenação do GT no Brasil, cuja parte
portuguesa é coordenada pela Profa. Dra. Manuela Mendonça da
Universidade de Lisboa. É professora credenciada do Programa de
Pós Graduação em Artes, Linha de pesquisa, Teoria e História da
Arte, onde desenvolve o projeto Arte, Tempo e Memória: Uma
proposta de reflexão contemporânea sobre o uso e representação de
formas e temas medievais na arte (PPG/Arte). Tem credenciamento
especifico no Programa de Pós-Graduacao em História -Doutorado.
Realizou Pós-doutorado na França (1996-97) e foi Pesquisadora
sênior, junto a universidade de Lisboa, Portugal (2010). Realizou no
mesmo ano pesquisa (sênior) na Biblioteca Real de Bruxelas (2010).

225
Maria Teresa Carrasco Salvados Gonçalves Santos: Licenciadas
em Filosofia pela Universidade de Lisboa (1981), Doutora em
Filosofia pela Universidade de Évora (2001). Atualmente é Professora
Auxiliar do Departamento de Filosofia da Universidade de Évora,
vinculada ao CIDEHUS - Centro Interdisciplinar de História,
Culturas e Sociedades, com especialização em Filosofia da Educação.
Áreas de interesse: Estudos sobre as Mulheres; Filosofia Medieval;
História da Educação; Filosofia para Crianças.

Mário Jorge da Motta Bastos: Bacharel em História pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989), Mestre em História
Social pela Universidade Federal Fluminense (1995) e Doutor em
História Social pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente, é
Professor Associado II do curso de Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, onde atua também no Programa de
Pós-Graduação, além de pesquisador do &quot;Translatio Studii -
Núcleo Dimensões do Medievo&quot;, e do &quot;Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo -
Seção Pré-Capitalismo (NIEP-Marx-PréK)&quot;, grupos de pesquisa
registrados no CNPq. Principais linhas de pesquisa e de orientação:
Economia, Religião e Sociedade na Idade Média Ocidental. Exerce,
atualmente, a função de Coordenador brasileiro do Programa de
Cooperação Internacional de Centros Associados da Pós-Graduação
Brasil-Argentina (CAPG-BA), que vincula os Programas de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e
da Universidad Nacional de La Plata (UNLP), com dotação
orçamentária da CAPES (Brasil) e do Ministério da Educação
(Argentina) para o desenvolvimento do projeto coletivo de pesquisa
intitulado &quot;Anatomia do Pré-Capitalismo (Processo, Poder,
Dominação e Resistência em Sociedades Pré-Capitalistas)&quot.
Raquel de Fátima Parmegiani: Possui graduação, mestrado e
doutorado em História pela Universidade Estadual Paulista - campus
de Assis. Tem experiência na área de História Medieval, atuando
principalmente nos seguintes temas: história do cristianismo na
Hispania (Alta Idade Média), história da leitura na Alta Idade Média,
recepção de textos bíblicos na escrita e na cultura visual na Alta Idade
226
Média. Atualmente é professora adjunta III de história Medieval do
curso de História e da pós- graduação em História da Universidade
Federal de Alagoas.

Renata Lopes Biazotto Venturini: Possui graduação em História


pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1986),
mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1993) e doutorado em História Social pela
Universidade de São Paulo (2000). Atualmente é professora associada,
nível A, da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na
área de História, com ênfase em História Antiga, atuando
principalmente nos seguintes temas: principado romano, instituições
políticas, patronato, poder imperial, epístolas De Caio Plínio Cecíllio
Segundo.

Ricardo Gião Bortolotti: Possui graduação em Filosofia pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1985),
mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1994) e doutorado em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Atualmente é
professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho. Tem experiência na área de História da Filosofia,
Filosofia e Semiótica, com ênfase em epistemologia, metafísica e
linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: signo, hábito,
cognição, evolução e categorias.

Sergio Alberto Feldmann: Possui graduação em História Geral


(General History) pela Universidade de Tel Aviv (Tel Aviv University
- 1975), mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo
(1986) e doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná
(2004). Estágio Pós doutoral no CSIC em Madrid (Espanha) em 2010.
Estágio Pós doutoral de novembro de 2012 a agosto de 2013, na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), sob
orientação de Adeline Rucquoi. Realizou estágio Pós Doutoral em

227
2014 na Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel) no Instituto
Hispânia Judaica. Atualmente é professor associado 1 da Universidade
Federal do Espírito Santo. Orientador de Mestrado e de doutorado
no PPGHIS. Tem experiência na área de História, com ênfase em
História Ibérica Medieval e em História Judaica, atuando
principalmente nos seguintes temas: antiguidade tardia, Cristianismo e
Judaísmo, visigodos, anti semitismo e Isidoro de Sevilha, sangue.

Terezinha Oliveiora: Possui graduação em História pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1986),
mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Carlos (1991) e doutorado em História pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997). Realizou, em 2004, estágio de
Pós-Doutorado em História e Filosofia da Educação na Faculdade de
Educação da USP. Atualmente, é Professora Titular da Universidade
Estadual de Maringá e Diretora da Editora da Universidade Estadual
de Maringá (Eduem). Também é Editora Científica da Revista Acta
Scientiarum Education, Imagens da Educação e membro do
Conselho Editorial da Revista Brasileira de História da Educação.
Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos
da Educação, especialmente em Filosofia e História da Educação,
atuando principalmente nos seguintes temas: transformação social,
história da educação na Idade Média, escolástica, filosofia da educação
na Idade Média, Intelectuais e Instituições Educacionais na Idade
Média e formação de professores.

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