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Aquino e Arendt PDF
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AQUINO E ARENDT
BORTOLOTTI, Ricardo Gião – Dep. de História – UNESP/Assis
Introdução
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Arendt (1992a, p. 17).
Encontram-se aqui seres que têm apenas faculdades vegetativas (as plantas); outros que,
além disso, têm a faculdade sensitiva, mas sem serem dotadas de motricidade (os animais
inferiores); outros, ainda que, além disso, têm a faculdade de se mover (os animais
superiores, que vão, por si mesmos, em busca daquilo que lhes é necessário para viver);
outros, por fim, que possuem, além disso, a inteligência (os homens). O apetite, por sua
vez, não é característico de nenhum gênero particular da vida, visto que é encontrado
analogicamente em todo ser.
Sentidos próprios são todos os sentidos particulares, que possuem, cada qual, um objeto
exclusivamente próprio. Cada sentido particular é influenciado de modo imediato pelo
objeto sensível; isto se dá pela espécie, que procede do objeto material sob a forma de
cor, de som, etc; esta espécie é recebida pelo respectivo sentido particular, que a
percebe como forma imaterial.
Cada sentido externo próprio refere-se a uma espécie específica, e que lhe diz
respeito. É assim com o objeto da visão, que apresenta ao olho a cor; a audição, o som etc.
Esse é o modo imediato do objeto impressionar o sentido. Cada órgão opera conforme sua
finalidade, ou seja, segundo o que lhe é apropriado.
Mas os sentidos externos não são os únicos, sendo acompanhados pelos sentidos
internos, que se resumem em sentido comum, imaginação, estimativa (nos animais) ou
cogitativa (nos homens) e memória sensível (SERTILLANGES, 1940, p. 124). Assim é
definido o sentido comum, por Sertillanges (1940, p. 114-115):
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Sertillanges (1940, p. 125).
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Sobre a classificação dos sentidos em Tomás de Aquino, confira Gardeil (2013, p. 66).
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Cf. para a discussão dos sentidos próprios, Sertillanges (1940, p. 109s).
O sentido em si não distingue nada, apenas sente. Entretanto, ao sentir que ele
sente, “o homem dotado de sentido comum toma consciência do outro, através da
consciência que tem de ser afetado...” (SERTILLANGES, 1940, 115). Essa é uma das
características do senso comum: distinguir o sujeito do objeto. Outra, e que nos interessará
mais de perto, devido à proximidade da exposição de Arendt, está na síntese das sensações,
na integração das várias sensações possibilitadas dos órgãos dos sentidos. Somos afetados
diversamente pelo mesmo objeto, ou seja, as impressões visuais e olfativas, por exemplo,
possuem sentidos apropriados aos seus órgãos, mas sabemos que a percepção é de um
mesmo objeto. E, por fim, uma última característica do senso comum está na apreensão
dos sentidos denominados “comuns”, e que se resumem na apreensão do movimento,
repouso, grandeza, figura e número (De Potentiis animae, c iv apud SERTILLANGES,
1940, 115). Com efeito, o sentido comum não é outra coisa, senão a síntese de onde
derivam todos os sentidos próprios (SERTILLANGES, 1940, 115)7.
Em relação aos outros sentidos internos, apenas explicitaremos sua característica
principal, pois não se trata, neste trabalho, de esgotar o assunto, um tanto complexo. Ora,
se aos sentidos próprio e comum competem à recepção das impressões, à imaginação cabe
conservá-las (SERTILLANGES, 1940, p. 116). Ela retém as espécies, geradas da
percepção imediata, mas que terão papel essencial na constituição do conhecimento. A
estimativa, por sua vez, é uma espécie de julgamento e de escolha, porém, não racional, já
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Por exemplo, quando alguém vê que está vendo. (ST, Q. 78, a. 4, vol. 2, p. 433). Quando possível,
substituímos as referências de Sertillanges (1940) pela tradução da Suma Teológica (ST) das Edições Loyola.
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“Em Aristóteles, o ‘sensus communis’ parece cumprir uma função tríplice: em parte, a percepção dos
sensíveis comuns; reflexão sobre a atividade sensível; discernimento e comparação dos objetos pertencentes
a vários sentidos diferentes. São Tomás não presta contas senão das últimas dessas funções.” (GARDEIL,
2013, p. 70).
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“Não apenas o ‘sensus communis’ tem consciência das atividades de cada um dos sentidos, mas também ele
os aproxima e compara, coisa que os sentidos particulares, cercados pelos limites de seus objetos próprios,
evidentemente não podem fazer.” (GARDEIL, 2013, p. 71). “O sentido particular percebe exclusivamente as
imagens sensíveis dos seus objetos próprios; dentro desta limitada esfera ele é capaz de discernir, por
exemplo, o preto do branco; mas não consegue distinguir entre a cor e o gosto. Para julgar dos objetos
referentes a sentidos diversos, requer-se uma força superior aos sentidos particulares: o sentido comum. Sua
função é perceber todas as impressões e, além disso, o próprio ato da sensação: ‘Unde oportet ad sensum
communem pertinere discretionis iudicium, ad quem referantur, sicut ad communem terminum, omenes
apprehensiones sensuum; a quo etiam percipiantur actiones sensuum, sicut cum aliquis videt se videre’.” (ST
I, 78, 4, ad. 2 apud BOEHNER & GILSON, 1985, p. 471-72).
Com essa última consideração da noção de senso comum, um tanto sucinta diante
da complexidade do pensamento de Aquino, passaremos a exposição do pensamento de
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Os pássaros não recolhem palhas por prazer, mas tendo em vista o ninho a ser construído. Atividade que
não envolve inteligência (GARDEIL, 2013, p. 72).
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“A faculdade sensitiva encontra-se na origem de todo conhecimento. É ela que torna possível a atividade
superior ou espiritual” (BOHNER & GILSON, 1985, p. 471).
II
1 1 – Realidade e aparência
Por um lado, a realidade que percebo é garantida por seu contexto mundano, que inclui
outros seres que percebem como eu; por outro lado, ela é percebida pelo trabalho
conjunto de meus cinco sentidos. O que, desde São Tomás de Aquino, chamamos
sensus communis é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus
cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e
ouço; é a ‘mesma faculdade (que) se estende a todos os objetos dos cinco sentidos’ (ST
15
I, q. 1, 3, a. 2) (ARENDT, 1992a, p. 39) .
Para Arendt, a sensação de realidade diz respeito ao senso comum16, à unidade em
meio à diversidade dos sentidos externos; daquilo que percebemos, e que se apresenta
como um objeto idêntico, embora observado de perspectivas distintas (ARENDT, 1992a,
40). A sensação de realidade depende, segundo a autora, do contexto, “que dota cada
objeto singular de seu significado específico”. Completamos essa afirmação com mais
essas palavras de Arendt (1992a, p. 40):
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Arendt (1992a, p. 17).
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Ao falar da vida do espírito utilizamos metáforas (linguagem metafórica do eu comigo mesmo – diálogo
silencioso). As operações da alma são expressas por um olhar, um gesto, um som etc. (ARENDT, 1992a, p.
26). Com a autora: “O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria
experiência, mas o que pensamos dela quando sobre ela refletimos.” (ARENDT, 1992a, p. 26).
15
Em “A crise da cultura: sua importância social e política”, publicado anteriormente A vida do espírito,
assim Arendt define e caracteriza o senso comum: “O common sense, que os franceses tão sugestivamente
chamam de ‘bom-senso’, le bons sense -, nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo
comum; a isso devemos o fato de nossos cinco sentidos e seus dados sensoriais, estritamente pessoais e
‘subjetivos’, se poderem ajustar a um mundo não-subjetivo e ‘objetivo’ que possuímos em comum e
compartilhamos com outros.” (2009, p. 275-76).
16
“A perda do sentido é acompanhada pela perda do senso comum entendido como sentido das realidades,
que significa basicamente que se perde a fé no mundo tal como ele se abre ao homem numa experiência”
(ROVIELLO, 1987, p. 125).
17
ST I, q. 78, a.4; vol. 2, p. 433.
Arendt busca em Kant os principais aspectos do juízo que lhe interessam, e que
consiste no juízo político. Para Kant, na interpretação de Arendt, o juízo reflexivo ou
estético aplica-se à questão do gosto, e não se encontra condicionado a conceitos
universais, os quais antecederiam o julgamento. Não se trata de uma decisão sobre o certo
e o errado, apropriada à razão (ARENDT, 1992a, p. 369). Se compararmos a Crítica da
Razão Prática com a Crítica do Juízo, prontamente notaríamos que a primeira apela à
universalidade da lei, válida em todos os rincões do universo, que porventura utilizarem a
razão. Por outro lado, a segunda possui sua “validade rigorosamente limitada aos seres
humanos na Terra” (ARENDT, 1992a, p. 370). Assim, não se trata do uso da razão, como
bem afirma Arendt (1992a, p. 370) acerca do juízo sobre a beleza de uma rosa: ao
afirmarmos diante de uma flor “Que rosa bela!”, não o fizemos a partir do raciocínio
“todas as rosas são belas; esta flor é uma rosa; logo, ela é bela”. (ARENDT, 1992a, p. 370;
1992b, pp. 13-14; ZERILLI, 2005, p. 159). Não partimos, pois, de uma regra geral para a
demonstração do particular.
Segundo Arendt, o gosto e o olfato são os sentidos mais discriminatórios, estando
relacionados à particularidade do ato de sentir (ARENDT, 1992a, p. 376), ou seja, o odor
de uma flor pode ser relembrado na presença do objeto, mas jamais suscitado pela
memória. Com efeito, a imaginação e o senso comum são as faculdades que solucionam
essa questão, uma vez que, pela primeira, internalizamos o objeto, sem a necessidade de
sua presença na percepção direta; pelo senso comum, levamos em conta o interesse do
juízo do gosto em sociedade, isto é, vale o compartilhável. Em outros termos, a imaginação
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Para Kant, na leitura de Arendt, a Razão (Vernunft) é a faculdade de pensar; e o intelecto (Verstand),
responsável pela apreensão de percepções (ARENDT, 1992a, p. 45).
O próprio ato de aprovação dá prazer; o próprio ato de desaprovação causa desprazer. Daí
a questão: como escolher entre a aprovação e a desaprovação? Um critério podemos
arriscar, consideramos os exemplos: o critério é a comunicabilidade ou o caráter público.
Não ficaremos ultra ansiosos para anunciar nossa alegria na morte de nosso pai ou nossos
sentimentos de ódio ou inveja; não sentiremos, por outro lado, remorsos ao dizer que
gostamos de fazer o trabalho científico e tampouco ocultaremos nossa dor na morte de
um excelente marido. (ARENDT, 1992a, p. 378).
... O gosto é este “senso de comunidade” (gemeinshaflicher Sinn), e senso significa aqui
‘o efeito de uma reflexão sobre o espírito’. Esta reflexão me afeta como se fosse uma
sensação... “Poderíamos até mesmo definir o senso do gosto como a faculdade de julgar
aquilo que torna comunicável em geral, sem a mediação de um conceito, o nosso
sentimento (como a sensação) em uma representação dada (não a percepção)”
(ARENDT, 1992a, 379).
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“Kant, que decerto não era supersensível às coisas belas, era profundamente cônscio da qualidade pública
da beleza; e era devido à relevância pública desta que ele insistia, em oposição ao adágio corriqueiro, em que
os julgamentos de gosto são abertos à discussão, pois ‘esperamos que o mesmo prazer seja partilhado por
outros’ (Crítica do Juízo, §§ 6, 7 e 8). O gosto, portanto, na medida em que, como qualquer outro juízo, apela
ao senso comum, é o próprio oposto dos ‘sentimento íntimos’.” (2009, p. 276).
Considerações finais
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A discussão das diferenças pode ser encontrada em Beiner (1992b) e Dostal (1984).
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“Juízo, especialmente os de gosto, sempre refletem sobre os outros e seus gostos, tomando em
consideração seus possíveis juízos. Isso é necessário, pois sou humano, e não posso viver a parte dos homens.
Referências
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ARENDT, H. A vida do espírito. Tradução de Antônio Abranges, Cesar A. R. de Almeida
e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Editora UFRJ, 1992a.
___________. The Life of the Mind. New York: Harcourt, Inc., 1978.
___________. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In ARENDT, H.
Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009,
p. 248-281.
___________. Lectures on Kant’s political philosophy. Edited by Ronald Beiner. Chicago:
University of Chicago, 1992b.
BEINER, Ronald. Hannah Arendt on Judging. In: ARENDT, H. Lectures on Knat’s
political philosophy. Chicago: University of Chicago, 1992b.
BOEHNER, P. & GILSON, E. História da Filosofia Cristã. Tradução de Raimundo Vier.
Petrópolis: Vozes, 1985.
DOSTAL, Robert J. Judging Human Action: Arendt’s Appropriation of Kant. The Review
of Metaphycics, Vol. 37, n° 4, 1984, pp. 725-755. http://www.jstor.org/stable/20128082
Acessado em 10/07/2015 às 14hs.
Julgo como um membro dessa comunidade, e não como um membro de um mundo suprassensível...”
(ARENDT, 1992b, 67 apud DOSTAL, 1984, p. 728).