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NOTAS SOBRE O SENTIDO COMUM EM TOMÁS DE

AQUINO E ARENDT
BORTOLOTTI, Ricardo Gião – Dep. de História – UNESP/Assis

A pluralidade é a lei da Terra1

Introdução

Desde os gregos, a procura pela verdade, seja na unidade do múltiplo seja na


imobilidade do ser, gerou discussões calorosas e escolas prósperas como a de Platão,
filósofo que propôs a realidade do mundo ideal em detrimento do mundo dos sentidos. A
busca pela essência, por uma realidade extra-sensorial, que fundamente as variações do
múltiplo dos sentidos, atravessou séculos, encarnando-se na modernidade. Com Descartes,
a verdade somente pode ser observada pelo matemático, pela mediação do método, o qual
abandona os sentidos. Em Kant, os fenômenos controlados por critérios transcendentais
ocultam a coisa-em-si, um mundo incognoscível, mas pensável. Esses autores, citados a
modo de ilustração, com Hegel e Marx, inauguram uma maneira de pensar, cujos frutos já
podem ser encontrados na famosa frase de Bacon: “saber é poder”. O telescópio e outras
invenções não deixam dúvidas de como o saber transforma a realidade, compreendida não
mais pelas belas teorias, mas pelo próprio resultado do método voltado para o
conhecimento científico do mundo.
Mas nem toda esfera do humano deve ser perpassada pelo método, sem que gere
violência. A natureza se faz compreender para quem domina a matemática, mas o mundo
humano não se encaixa na necessidade matemática, como bem dizia Hume, ou seja, nas
questões cotidianas estamos às voltas com nossa bagagem de experiência, com o nosso
passado, o qual não determina matematicamente o futuro. Estamos entregues ao acaso, a
confiar nas crenças que formamos ao longo do tempo. Muito antes de Hume, um pensador
da política havia mostrado como opera o mundo humano regido pelo poder, e não somente
pela razão; seu nome: Maquiavel.

1
Arendt (1992a, p. 17).

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O mundo suprassensível ou a defesa desse universo não foi inteiramente
descartado, mas manteve-se nas diversas ideologias do mundo moderno. Nietzsche tentou
rachá-lo com o seu martelo filosófico, pondo por terra os argumentos pró-mundo das
ideias. Não somente ele, mas o positivismo comteano, num primeiro momento, também
negou o transcendente, no qual residiria a verdade. Peirce, de seu lado, defende o acesso a
signos, e não a existência de uma essência, incognoscível e distante do poder de conhecer
humano. A suposição de um mundo comum, no entanto, não invalida a investigação
científica, pelo contrário, partimos dele, da constatação do senso comum, para, com
pesquisa, científica ou não, alcançarmos a verdade, proposta pela aplicação do método.
Ora, uma coisa, pode-se dizer, é o conhecimento científico, baseado na tecnologia que lhe
compete a fim de alcançar um produto final; outro, a conduta dos homens no espaço
público, na esfera da política, e que envolve promessas, mentiras, perdão etc. Para ambos
os casos, ciência ou política, partimos do mundo comum, caminhamos nele e retornamos a
ele.
É com a intenção de discutir a problemática que envolve a participação política ou
o mundo comum, que propomos o nome de Arendt, como objeto central de nosso trabalho.
Em várias de suas obras, discute a noção de senso comum, mas tomaremos,
particularmente, A vida do espírito. Nele, a autora afirma que a realidade, além de ser
percebida por um contexto mundano, o qual inclui todos os seres cuja percepção é a
mesma que a minha, é também percebida pelo trabalho conjunto de nossos cinco sentidos
juntamente com um sexto sentido, o sensus communis, que mantém os cinco unidos em
torno da percepção de um mesmo objeto (ARENDT, 1992a, p. 39). Sentido inteiramente
necessário num mundo de aparências, em que o erro e a confusão são originados a todo
instante. Com efeito, nossa experiência no mundo comum traduz-se pela pluralidade de
opiniões, baseada na rede de comunicação que perfaz a esfera social. A realidade mundana
consiste nessa rede signíca, na aparência que gera aparência, a partir do dinamismo do
espaço público. Mas, mesmo na pluralidade da esfera pública, produz-se sentido, e não um
mundo sem nexo. Esses sentidos, produzidos da comunicabilidade social não são ditados
por regras universais, possíveis no contexto científico, mas são gerados dos juízos emitidos
da participação dos cidadãos. Ora, este trabalho procurará mostrar o que significa o senso
comum, tanto para Tomás de Aquino, pensador que define o senso comum, e é utilizado

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por Arendt a fim de ilustrar a sua posição, que pende para uma interpretação particular de
Kant. Iniciaremos, pois, este trabalho, com a exposição dessa noção para Tomás de Aquino
e, em seguida, a apresentação do pensamento de Arendt.

1 - Tomás de Aquino e o senso comum


Nil in intellectu quin prius fuerit in sensu2

Para Tomás de Aquino a atividade psíquica é composta de três graus: a vida


vegetativa, a vida sensitiva e a vida intelectual (GARDEIL, 2013, p. 16). A principal
atividade do homem como ser inteligente está na atividade intelectual, que depende, para a
verdade de suas asserções, da sensibilidade. Nos animais, a sensibilidade não estabelece
fins, senão a própria natureza, pois aqueles carecem de inteligência, própria dos homens,
que a utilizam para a atividade da reflexão (GARDEIL, 2013, p. 28). Ora, no homem, além
da potência intelectiva, há também a sensitiva, a apetitiva, a vegetativa e a motiva
(GARDEIL, 2013, p. 43).
Ainda, com Gardeil (2013, 43-44), deparamos com quatro modos de vida:

Encontram-se aqui seres que têm apenas faculdades vegetativas (as plantas); outros que,
além disso, têm a faculdade sensitiva, mas sem serem dotadas de motricidade (os animais
inferiores); outros, ainda que, além disso, têm a faculdade de se mover (os animais
superiores, que vão, por si mesmos, em busca daquilo que lhes é necessário para viver);
outros, por fim, que possuem, além disso, a inteligência (os homens). O apetite, por sua
vez, não é característico de nenhum gênero particular da vida, visto que é encontrado
analogicamente em todo ser.

A vida vegetativa é responsável pelo seu aspecto biológico. A vida sensitiva e a


intelectual interessam-nos por estarem integradas no homem, que, como ser racional, é
superior aos animais, dotados de vida sensitiva. Veremos que o intelecto não opera sem os
sentidos ou independente das potências sensitivas, que apreendem o mundo externo.

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1.1 - Os sentidos e o conhecimento sensível

Para Tomás de Aquino, somos dotados de sentidos externos e internos. Pelos


primeiros somos afetados de imediato, enquanto pelos segundos, de modo mediato, pois
dependem daqueles, os quais conservam, podendo reproduzi-los (GARDEIL, 2013, p. 53).
Além desses sentidos, Aquino propõe o sensus communis, que possui, entre outros
atributos, o poder de sintetizar as impressões dos outros sentidos, uma reflexão superficial,
dando lugar à percepção do objeto, uma espécie de retrato do objeto. A partir dele,
podemos falar de certa “consciência sensível” (GARDEIL, 2013, p. 64).
Iniciemos com os sentidos externos. São em número de cinco, e reconhecidos pelos
seus “sentidos próprios” (ST I, q.78, a.3; Quaest. disp. de an., a.13 apud GARDEIL, 2013,
p. 66)3. Como, afinal, Tomás define “sentidos próprios”?4 Nas palavras de Boehner e
Gilson (1985, p. 471):

Sentidos próprios são todos os sentidos particulares, que possuem, cada qual, um objeto
exclusivamente próprio. Cada sentido particular é influenciado de modo imediato pelo
objeto sensível; isto se dá pela espécie, que procede do objeto material sob a forma de
cor, de som, etc; esta espécie é recebida pelo respectivo sentido particular, que a
percebe como forma imaterial.

Cada sentido externo próprio refere-se a uma espécie específica, e que lhe diz
respeito. É assim com o objeto da visão, que apresenta ao olho a cor; a audição, o som etc.
Esse é o modo imediato do objeto impressionar o sentido. Cada órgão opera conforme sua
finalidade, ou seja, segundo o que lhe é apropriado.
Mas os sentidos externos não são os únicos, sendo acompanhados pelos sentidos
internos, que se resumem em sentido comum, imaginação, estimativa (nos animais) ou
cogitativa (nos homens) e memória sensível (SERTILLANGES, 1940, p. 124). Assim é
definido o sentido comum, por Sertillanges (1940, p. 114-115):

2
Sertillanges (1940, p. 125).
3
Sobre a classificação dos sentidos em Tomás de Aquino, confira Gardeil (2013, p. 66).
4
Cf. para a discussão dos sentidos próprios, Sertillanges (1940, p. 109s).

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O sentido comum é como o centro de convergência – porque é o ponto de partida – de
todas as atividades sensíveis, em que, graças a ele, nós sentimos que sentimos sicut cum
aliquis videt se videre56.

O sentido em si não distingue nada, apenas sente. Entretanto, ao sentir que ele
sente, “o homem dotado de sentido comum toma consciência do outro, através da
consciência que tem de ser afetado...” (SERTILLANGES, 1940, 115). Essa é uma das
características do senso comum: distinguir o sujeito do objeto. Outra, e que nos interessará
mais de perto, devido à proximidade da exposição de Arendt, está na síntese das sensações,
na integração das várias sensações possibilitadas dos órgãos dos sentidos. Somos afetados
diversamente pelo mesmo objeto, ou seja, as impressões visuais e olfativas, por exemplo,
possuem sentidos apropriados aos seus órgãos, mas sabemos que a percepção é de um
mesmo objeto. E, por fim, uma última característica do senso comum está na apreensão
dos sentidos denominados “comuns”, e que se resumem na apreensão do movimento,
repouso, grandeza, figura e número (De Potentiis animae, c iv apud SERTILLANGES,
1940, 115). Com efeito, o sentido comum não é outra coisa, senão a síntese de onde
derivam todos os sentidos próprios (SERTILLANGES, 1940, 115)7.
Em relação aos outros sentidos internos, apenas explicitaremos sua característica
principal, pois não se trata, neste trabalho, de esgotar o assunto, um tanto complexo. Ora,
se aos sentidos próprio e comum competem à recepção das impressões, à imaginação cabe
conservá-las (SERTILLANGES, 1940, p. 116). Ela retém as espécies, geradas da
percepção imediata, mas que terão papel essencial na constituição do conhecimento. A
estimativa, por sua vez, é uma espécie de julgamento e de escolha, porém, não racional, já

5
Por exemplo, quando alguém vê que está vendo. (ST, Q. 78, a. 4, vol. 2, p. 433). Quando possível,
substituímos as referências de Sertillanges (1940) pela tradução da Suma Teológica (ST) das Edições Loyola.
6
“Em Aristóteles, o ‘sensus communis’ parece cumprir uma função tríplice: em parte, a percepção dos
sensíveis comuns; reflexão sobre a atividade sensível; discernimento e comparação dos objetos pertencentes
a vários sentidos diferentes. São Tomás não presta contas senão das últimas dessas funções.” (GARDEIL,
2013, p. 70).
7
“Não apenas o ‘sensus communis’ tem consciência das atividades de cada um dos sentidos, mas também ele
os aproxima e compara, coisa que os sentidos particulares, cercados pelos limites de seus objetos próprios,
evidentemente não podem fazer.” (GARDEIL, 2013, p. 71). “O sentido particular percebe exclusivamente as
imagens sensíveis dos seus objetos próprios; dentro desta limitada esfera ele é capaz de discernir, por
exemplo, o preto do branco; mas não consegue distinguir entre a cor e o gosto. Para julgar dos objetos
referentes a sentidos diversos, requer-se uma força superior aos sentidos particulares: o sentido comum. Sua
função é perceber todas as impressões e, além disso, o próprio ato da sensação: ‘Unde oportet ad sensum
communem pertinere discretionis iudicium, ad quem referantur, sicut ad communem terminum, omenes

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que é própria do animal, e baseada no instinto, “quer dizer que são como propriedades
naturais, impulsos espontâneos” (SERTILLANGES, 1940, p. 117)8. A estimativa, pela
qual o julgamento parte de abstrações dos objetos apresentados aos sentidos, possui
participação da razão, e é própria do homem. Nesse caso, Tomás de Aquino denomina de
“razão particular ou cogitativa” (III Sent., dist. XXVI, q. 1, art. 2; De Verit., q. XXV, art. 2,
fin.; apud SERTILLANGES, 1940, 118). Sertillanges sintetiza bem a diferença entre a
estimativa e a cogitativa:

A cogitativa difere, pois, da razão propriamente dita na medida em que é realizada no


particular, concluindo do comum, não do universal e necessário. Ela se distingue da
estimativa, uma vez que realmente conclui (compõe e divide), enquanto que aquela julga
passivamente, em virtude de combinações entre o instinto dado com a influência das
imagens atuais ou adquiridas (SERTILLANGES, 1940, p. 119).

A cogitativa auxilia o homem no seu julgamento da experiência particular. A


imaginação, como já dissemos, retém as impressões, para que, no futuro, possamos utilizá-
las. Entretanto, esse sentido interno não possui o poder de associar as imagens com a
temporalidade: “Resta, pois, que a memória é uma associação, no ato de impressão de um
objeto passado e deste tempo” (SERTILLANGES, 1940, 121). Assim, a memória conta
com a imaginação, mas em função do tempo. A imagem destituída dessa relação
permanece uma relação natural, instintiva (SERTILLANGES, 1940, p. 121).
Por fim, se existe a associação de imagens na temporalidade, existe também a
reminiscência, que é o esforço consciente de recordar, como bem nota Sertillanges (1940,
p. 122):

Reminiscência envolve pesquisa. É um movimento de perseguição, uma “caça”, um


processo intencional que pretende despertar em nós as imagens adormecidas, através das
quais representamos as coisas. Naturalmente, deve haver um ponto de partida, e só pode
ser uma memória já dada.

Se o objeto pode ser devidamente representado de forma intencional, também pode


acontecer de assomar-se à consciência de modo fortuito, sem qualquer intenção. A esse

apprehensiones sensuum; a quo etiam percipiantur actiones sensuum, sicut cum aliquis videt se videre’.” (ST
I, 78, 4, ad. 2 apud BOEHNER & GILSON, 1985, p. 471-72).

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tipo de recordação, denominamos “acaso”, que é mais apropriado aos animais, embora não
seja estranho ao homem (SERTILLANGES, 1940, p. 122.).

1.2 – O conhecimento intelectual

Os sentidos, como já dissemos, são importantes no processo de conhecimento


intelectual9, por serem responsáveis pelos primeiros dados de nossa experiência, enquanto
criaturas terrenas. Os sentidos são geradores da “espécie impressa”, primeiro passo do
processo que culminará no conhecimento. Com efeito, o sensus communis ocupa um lugar
intermediário nesse processo, pois ele transmite os primeiros dados da sensação às
potências superiores (GARDEIL, 2013, p. 71). É o sentido que produz a unidade entre os
sentidos próprios, a consciência sensível, “associada ao conhecimento intelectual”
(GARDEIL, 2013, p. 70).
Embora importante, sob o ponto de vista do processo de conhecimento, para o
nosso objetivo, que se restringe ao papel do senso comum, considerado como uma
percepção primeira da multiplicidade dos sentidos, os elementos elencados são essenciais
para entendermos a dinâmica da opinião no espaço público, em Arendt. O juízo, como
veremos, constitui a apreensão imediata dos fenômenos, sem que, no entanto, provoque
uma cisão abismal no modo de encarar os fatos. Em outros termos: se fossemos julgar os
fenômenos a partir de critérios transcendentais, aí, sim, seria lícito falar em cisão entre as
opiniões do senso comum, uma vez que, para o entendimento, seria preciso o domínio de
um esquema mental sofisticado. Tal empreendimento é criticado por Arendt, pois conduz a
imposição de normas e padrões para a conduta política ou do mundo comum. Em suma:
não haveria espaço para a política autêntica, baseada na troca sadia de opiniões.

Com essa última consideração da noção de senso comum, um tanto sucinta diante
da complexidade do pensamento de Aquino, passaremos a exposição do pensamento de

8
Os pássaros não recolhem palhas por prazer, mas tendo em vista o ninho a ser construído. Atividade que
não envolve inteligência (GARDEIL, 2013, p. 72).
9
“A faculdade sensitiva encontra-se na origem de todo conhecimento. É ela que torna possível a atividade
superior ou espiritual” (BOHNER & GILSON, 1985, p. 471).

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Arendt, segundo nosso objetivo principal, que é a compreensão do papel do senso comum
no cotidiano do espaço público.

II

1 – Hannah Arendt e o senso comum

Como é pequena a diferença entre o instruído e o ignorante no julgar,


enquanto há a maior das diferenças no fazer10.

Deve-se estar só a fim de pensar; é preciso companhia


para desfrutar de uma refeição11.

É com o juízo que avaliamos situações. Entretanto, se tomarmos os juízos


elaborados pela ciência, veremos que sua realização e entendimento somente são possíveis
a partir da universalização do particular, ou seja, a compreensão dos dados singulares
somente é possível a partir da mediação dos esquemas teóricos, das leis universais
(JARDIM, 1992a, p. XII). O processo científico abandona o senso comum ao abstrair e
subsumir os particulares nos esquemas gerais12. A substituição da pluralidade por
ideologias totalitárias, as quais impõem verdades universais, condicionou a política, a
esfera da liberdade do indivíduo. Destituído das influências de padrões universais, o juízo
encontra o seu lugar, expressão do senso comum, da forma plural de ver e se relacionar
com o mundo. Por esse prisma, o sensus communis não passa da formulação da experiência
“em juízos evidentes e imediatos” (GALETTO, 2009, p. 47). Por isso, ele é a ponte entre
os homens e as coisas (GALETTO, 2009, p. 87).

1 1 – Realidade e aparência

Os homens nasceram em um mundo que


contém muitas coisas, naturais e artificiais,
vivas e mortas, transitórias e sempiternas. E
o que há de comum entre elas é que
10
Cícero, Sobre os oradores (apud ARENDT, 1992a, p. 375).
11
Arendt (1978, p. 266).
12
A ciência é o refinamento do senso comum (ARENDT, 1992a, p. 43ss).

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aparecem e, portanto, são próprias para
serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e
cheiradas.13

A concepção de um mundo dual, no qual todas as coisas possuem um fundamento


ou uma causa mais elevada, não encontra ressonância em Arendt. O mundo da coisa-em-si
kantiana ou o mundo platônico deu lugar ao mundo da superfície, da aparência. Em outros
termos, o mundo dos fenômenos é o que prevalece, e quando buscamos por trás dele,
deparamos apenas com outro fenômeno. É, pois, nesse mundo que todas as coisas
aparecem, homens, animais, ações etc14. Os homens também se apresentam através de suas
ações e palavras, mostrando, assim, que escolhem, de certo modo, como querem aparecer
(ARENDT, 1992a, p. 28).
Mas o que dizer da realidade do que aparece? A autora responde:

Por um lado, a realidade que percebo é garantida por seu contexto mundano, que inclui
outros seres que percebem como eu; por outro lado, ela é percebida pelo trabalho
conjunto de meus cinco sentidos. O que, desde São Tomás de Aquino, chamamos
sensus communis é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus
cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e
ouço; é a ‘mesma faculdade (que) se estende a todos os objetos dos cinco sentidos’ (ST
15
I, q. 1, 3, a. 2) (ARENDT, 1992a, p. 39) .
Para Arendt, a sensação de realidade diz respeito ao senso comum16, à unidade em
meio à diversidade dos sentidos externos; daquilo que percebemos, e que se apresenta
como um objeto idêntico, embora observado de perspectivas distintas (ARENDT, 1992a,
40). A sensação de realidade depende, segundo a autora, do contexto, “que dota cada
objeto singular de seu significado específico”. Completamos essa afirmação com mais
essas palavras de Arendt (1992a, p. 40):

13
Arendt (1992a, p. 17).
14
Ao falar da vida do espírito utilizamos metáforas (linguagem metafórica do eu comigo mesmo – diálogo
silencioso). As operações da alma são expressas por um olhar, um gesto, um som etc. (ARENDT, 1992a, p.
26). Com a autora: “O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria
experiência, mas o que pensamos dela quando sobre ela refletimos.” (ARENDT, 1992a, p. 26).
15
Em “A crise da cultura: sua importância social e política”, publicado anteriormente A vida do espírito,
assim Arendt define e caracteriza o senso comum: “O common sense, que os franceses tão sugestivamente
chamam de ‘bom-senso’, le bons sense -, nos desvenda a natureza do mundo enquanto este é um mundo
comum; a isso devemos o fato de nossos cinco sentidos e seus dados sensoriais, estritamente pessoais e
‘subjetivos’, se poderem ajustar a um mundo não-subjetivo e ‘objetivo’ que possuímos em comum e
compartilhamos com outros.” (2009, p. 275-76).

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... um sentimento de realidade (realness) ou realidade acompanha de fato todas as
sensações de meus sentidos que, sem ele, não fariam “sentido”. Eis porque São Tomás
definia o senso comum, seu sensus communis, como um “sentido interno” – sensus
interior – que funcionava como a “raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores”
(‘Sensus interior non dicitur communis sicut genus; sed sicut communis radix et
principium exteriorum sensuum’)17

O sentimento de realidade é o senso comum. Abandoná-lo como propôs Descartes,


em prol da verdade do método, é ocultar-se nas alturas do pensamento, distante do mundo
das aparências, pois, com isso, deixa-se o “sensorialmente dado” (ARENDT, 1992a, p.
41)18. E, abandonar o mundo aparente em prol de metáforas cientificamente construídas,
não condiz com a ação dos homens no mundo comum. Estaria em conformidade com a
busca de significados para uma concepção científica de aspectos do real, e que respondem
a finalidades precisas e especificadas pela comunidade de cientistas. A política, quando
observada a partir da construção científica, transformaria a sociedade num experimento,
cujos resultados são previstos por uma teoria universal. O senso comum, revelador de
sentidos entre as pessoas, passaria por correções e perderia a singularidade de seu objeto,
que é subsumido num esquema universal, válido por desfazer a heterogeneidade. O olhar
da razão, com seus critérios, assume o sentir, próprio do senso comum. Na esfera política
geraria um mundo dominado por grupos de poder, os quais impõem suas normas e
escolhas, baseadas em intervenções e metas a serem alcançadas. Esse procedimento
compromete a ação autêntica, conduzida na esfera pública, transformando-a num espaço
para a satisfação privada.

1.2 – Juízo e apreensão do mundo

É o juízo que torna inteligíveis os acontecimentos, os quais permaneceriam sem


qualquer sentido (GALETTO, 2009, p. 92). É, pois, uma das atividades que nos possibilita

16
“A perda do sentido é acompanhada pela perda do senso comum entendido como sentido das realidades,
que significa basicamente que se perde a fé no mundo tal como ele se abre ao homem numa experiência”
(ROVIELLO, 1987, p. 125).
17
ST I, q. 78, a.4; vol. 2, p. 433.

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“compartilhar-o-mundo”, segundo Arendt (2009, 276). Atentemo-nos a uma definição
sintética do juízo:

Resumidamente, a faculdade do juízo tem as seguintes características: permite a


‘mentalidade alargada’, ou a opinião dos demais para que o juízo seja considerado válido;
necessita recorrer à faculdade da imaginação e reflexão assim como ao “sensus
communis”, ou seja, o verdadeiro sentido de comunidade que possuímos por nossa
qualidade essencial de seres sociais. (GOMES, 2012, p. 86).

Arendt busca em Kant os principais aspectos do juízo que lhe interessam, e que
consiste no juízo político. Para Kant, na interpretação de Arendt, o juízo reflexivo ou
estético aplica-se à questão do gosto, e não se encontra condicionado a conceitos
universais, os quais antecederiam o julgamento. Não se trata de uma decisão sobre o certo
e o errado, apropriada à razão (ARENDT, 1992a, p. 369). Se compararmos a Crítica da
Razão Prática com a Crítica do Juízo, prontamente notaríamos que a primeira apela à
universalidade da lei, válida em todos os rincões do universo, que porventura utilizarem a
razão. Por outro lado, a segunda possui sua “validade rigorosamente limitada aos seres
humanos na Terra” (ARENDT, 1992a, p. 370). Assim, não se trata do uso da razão, como
bem afirma Arendt (1992a, p. 370) acerca do juízo sobre a beleza de uma rosa: ao
afirmarmos diante de uma flor “Que rosa bela!”, não o fizemos a partir do raciocínio
“todas as rosas são belas; esta flor é uma rosa; logo, ela é bela”. (ARENDT, 1992a, p. 370;
1992b, pp. 13-14; ZERILLI, 2005, p. 159). Não partimos, pois, de uma regra geral para a
demonstração do particular.
Segundo Arendt, o gosto e o olfato são os sentidos mais discriminatórios, estando
relacionados à particularidade do ato de sentir (ARENDT, 1992a, p. 376), ou seja, o odor
de uma flor pode ser relembrado na presença do objeto, mas jamais suscitado pela
memória. Com efeito, a imaginação e o senso comum são as faculdades que solucionam
essa questão, uma vez que, pela primeira, internalizamos o objeto, sem a necessidade de
sua presença na percepção direta; pelo senso comum, levamos em conta o interesse do
juízo do gosto em sociedade, isto é, vale o compartilhável. Em outros termos, a imaginação

18
Para Kant, na leitura de Arendt, a Razão (Vernunft) é a faculdade de pensar; e o intelecto (Verstand),
responsável pela apreensão de percepções (ARENDT, 1992a, p. 45).

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possibilita a transformação do objeto em algo representável e, portanto, passível de
reflexão (ARENDT, 1992a, p. 376).
A questão que se coloca, e que envolve o senso comum e a comunicabilidade,
reside na escolha entre o que causa prazer ou desprazer, no ato de julgar. Nas palavras de
Arendt:

O próprio ato de aprovação dá prazer; o próprio ato de desaprovação causa desprazer. Daí
a questão: como escolher entre a aprovação e a desaprovação? Um critério podemos
arriscar, consideramos os exemplos: o critério é a comunicabilidade ou o caráter público.
Não ficaremos ultra ansiosos para anunciar nossa alegria na morte de nosso pai ou nossos
sentimentos de ódio ou inveja; não sentiremos, por outro lado, remorsos ao dizer que
gostamos de fazer o trabalho científico e tampouco ocultaremos nossa dor na morte de
um excelente marido. (ARENDT, 1992a, p. 378).

Arendt completa sua opinião, dizendo que o critério de escolha é a


comunicabilidade e o senso comum (1992a, p.378). Entretanto, para distinguir o senso
comum de outros igualmente comuns, Arendt, na leitura de Kant, pressupõe o sensus
communis, um sentido extra, “que nos ajusta a uma comunidade” (ARENDT, 1992a, p.
378; 2009, p. 276)19. Assim, na leitura arendtiana de Kant, lemos:

... O gosto é este “senso de comunidade” (gemeinshaflicher Sinn), e senso significa aqui
‘o efeito de uma reflexão sobre o espírito’. Esta reflexão me afeta como se fosse uma
sensação... “Poderíamos até mesmo definir o senso do gosto como a faculdade de julgar
aquilo que torna comunicável em geral, sem a mediação de um conceito, o nosso
sentimento (como a sensação) em uma representação dada (não a percepção)”
(ARENDT, 1992a, 379).

O juízo do gosto não envolve, como já foi observado, aspectos cognitivos ou


científicos, mas pressupõe um acordo dentre todos, no qual participaria o sensus communis
(ARENDT, 1992a, p. 380). Não se julga com o auxílio de categorias, ou no sentido de
alcançarmos um resultado com a produção de um conceito, mas envolve a imaginação,
reflexão, a comunicabilidade e sociabilidade (DOSTAL, 1984, p. 728). Em outros termos,

19
“Kant, que decerto não era supersensível às coisas belas, era profundamente cônscio da qualidade pública
da beleza; e era devido à relevância pública desta que ele insistia, em oposição ao adágio corriqueiro, em que
os julgamentos de gosto são abertos à discussão, pois ‘esperamos que o mesmo prazer seja partilhado por
outros’ (Crítica do Juízo, §§ 6, 7 e 8). O gosto, portanto, na medida em que, como qualquer outro juízo, apela
ao senso comum, é o próprio oposto dos ‘sentimento íntimos’.” (2009, p. 276).

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embora haja diferenças na concepção de juízo antes e após A vida do espírito20, importa-
nos o papel dessa atividade na criação do espaço público, o qual somos criadores e
criaturas (ARENDT, 1992b, p. 63). O juízo é resultado da vida em comum, e, por isso, ao
possibilitar a aparição do indivíduo na cena pública, o faz sem ferir a realidade, aceita pelo
sentido comum. Os sentidos próprios, familiarizados com o contexto comum, não
poderiam revelar algo inusitado, totalmente distinto da vivência comum21. Por isso que
ideologias totalitárias são recebidas com o recurso da violência, já que são imposições de
visões de mundo específicas da esfera privada. Por exemplo, a colonização de um território
não condiz com a realidade social do grupo dominado (nativos no Brasil, América
espanhola etc), entrando em choque com o modo de compreensão do mundo.
Enfim, o julgamento envolve o pluralismo, as opiniões que partem da esfera
pública, realizado em comum. As opiniões abarcam a imaginação, uma vez que devemos
levar em conta o outro, buscando um sentido comunicável, sem, no entanto, apelar para
conceitos universais, que se imponham acima dos juízos particulares. Com efeito, consiste
na troca de opiniões independente de uma visão uníssona, estabelecida mediante o
sacrifício da voz de cada um.

Considerações finais

O que poderíamos asseverar acerca da relação de Tomás de Aquino com Arendt? O


uso do sensus communis fora proposto desde, pelo menos, Aristóteles, mas Tomás de
Aquino, o reinterpreta. Arendt o utiliza para ilustrar algumas passagens, com o intuito de
fundamentar a pluralidade da esfera social, a qual envolve múltiplas vozes. Para isso,
sedimenta ontologicamente a sua posição, rejeitando o dualismo kantiano entre coisa em si
e fenômeno, aceitando apenas este último. Assim, o espaço que atuamos é o fenomênico,
ou seja, dos elementos que aparecem, sem que haja qualquer substrato ou essência a
fundamentá-los. Somos o que escolhemos ser, na ação e no diálogo no espaço público. Ora,
tendo em vista essa posição, Arendt busca explicitar a opinião ou o juízo político. O espaço

20
A discussão das diferenças pode ser encontrada em Beiner (1992b) e Dostal (1984).
21
“Juízo, especialmente os de gosto, sempre refletem sobre os outros e seus gostos, tomando em
consideração seus possíveis juízos. Isso é necessário, pois sou humano, e não posso viver a parte dos homens.

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político é, segundo a autora, o mundo comum, e nossas opiniões são baseadas no senso
comum, num acordo tácito para garantir a comunicabilidade. Entretanto, esse acordo não
envolve qualquer processo de conceituação ou padrões transcendentais, e sim, o sensus
communis, que da perspectiva kantiana, na Crítica do juízo, consiste no gosto. Trata-se, em
termos gerais, de julgar a partir do outro, ou seja, sei que não rirei da morte de um amigo
em seu funeral, uma vez que isso estaria distante do mundo comum, da experiência em
comum. Assim, o sensus communis, ao reunir em si as várias sensações, tornando a
percepção isolada uma experiência comum, não rejeita a sua comunicação. Em Tomás de
Aquino é o início do processo que leva ao conceito e ao conhecimento intelectual, em
Arendt a condição para a vida em comum.

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.
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Acessado em 10/07/2015 às 14hs.

Julgo como um membro dessa comunidade, e não como um membro de um mundo suprassensível...”
(ARENDT, 1992b, 67 apud DOSTAL, 1984, p. 728).

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