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1

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é focalizar alguns pontos da constelação


que constitui o Trabalho das Passagens, de Walter Benjamin, onde, o autor em
questão, demonstra o impacto causado pela modernidade – caracterizada como a
época das multidões – sobre a arte, e o fazer artístico. O foco central deste trabalho
será analisar as alterações ocorridas na obra de arte após o surgimento das
inovações tecnológicas, aquilo que Walter Benjamin denominou de
reprodutibilidade técnica.

O trabalho será constituído de três partes. A primeira, que possui


um caráter introdutório e explicativo, será reservada para esclarecer sobre o
caminho percorrido por Walter Benjamin até esse projeto constelacional,
denominado de Trabalho das Passagens em referência às passagens parisienses –
reflexo direto da modernidade – e cujo ponto de partida é o estudo, por parte de
Benjamin, da obra de Charles Baudelaire, isto é, de sua lírica, mas que se estende
ao estudo da arte em geral.

Na segunda – que é a parte central, a espinha dorsal do trabalho –


o foco direciona-se para o conceito de aura que as obras de arte possuem, e as
modificações ocorridas nesta aura após o advento da reprodutibilidade técnica da
arte, ou seja, como a inovação tecnológica altera a produção e a percepção
artística.

Por último, está que será a parte conclusiva do trabalho, será


analisado o problema do fazer artístico, isto é, será posto em discussão, as
observações e as soluções propostas por Walter Benjamin, sobre o papel, e a
posição que o artista deveria tomar, nesse turbilhão de impasses acarretados pela
modernidade.
2

1 WALTER BENJAMIN E O TRABALHO DAS PASSAGENS

Neste capítulo serão apresentados fatores que influenciaram Walter


Benjamin a adotar uma perspectiva marxista (posicionamento político e a
metodologia) e um modelo de escrever singular, modelo este tão diferente do
adotado pelos ditames acadêmicos. Esses fatores serão tanto de natureza pessoal,
isto é, a interrupção de sua trajetória acadêmica, quanto fatores de ordem política
mundial – entre estes: o crescente perigo nazista e o desenvolvimento do
capitalismo e, conseqüentemente, os seus modos de produção.

1.1 A RUA QUE LEVA AS PASSAGENS

É imprescindível a contextualização ao examinar a obra de Walter


Benjamin – as cicatrizes deixadas pela I Grande Guerra, a gênese do nazismo, o
surgimento da metrópole como logradouro das multidões, o desenvolvimento
desenfreado da técnica, o perigo iminente de uma nova guerra. Mas, além destes
fatores, não podemos deixar de lado a grande importância do contato com Asja
Lacis, contato este que acarretou a guinada de Benjamin para o materialismo
histórico. Ao conhecer

Asja Lacis, em 1924, Benjamin se movia ainda na esfera tradicional


da germanística, apesar do estilo hermético por ele desenvolvido em
seus comentários. A partir de 1924, move-se na direção de uma
política revolucionária, aproximando-se mais e mais do materialismo
histórico.1

A partir deste encontro, Benjamin situa-se cada vez mais próximo


da atualidade do seu tempo, proximidade esta refletida em sua primeira obra não
acadêmica Rua de mão única, escrita em 1926 e publicada em 1928, juntamente
com a ‘fracassada’ tese sobre o barroco alemão. Em Rua de mão única a

1
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 166.
3

importância do encontro evidencia-se na abertura do livro, quando Benjamin


remete diretamente a Asja:

Esta rua chama-se


Rua Asja Lacis,
em homenagem àquela que,
na qualidade de engenheiro,
a rasgou dentro do autor.2

Outra influência que se nota neste livro é sua forma surrealista,


demonstrando como Benjamin estava ligado intimamente as vanguardas artísticas
daquele momento histórico. Porém sua proximidade ao surrealismo não era
somente estilística, mas também política, pois

tanto na radicalidade política quanto no trabalho sobre elementos do


inconsciente, sonhos, fantasias e divagações, Benjamin pode se
considerar herdeiro do surrealismo, assim como este herdou a
radicalidade do movimento dadaísta. Comum a ambos é a
progressiva aproximação ao movimento comunista, considerado
ainda como porta-voz dos elementos revolucionários da Europa da
década de 20.3

Mesmo esta obra parecendo fragmentária – devido à forma surreal


adotada e por descrever sobre coisas alheias entre si como filatelia, brinquedos,
livros e prostitutas, etc – o escopo do livro é a função da literatura, ou seja, mesmo
Benjamin em Rua de mão única “tratar de assuntos aparentemente superficiais,
estranhos ou marginais, estava procurando iluminar, de novos ângulos, a sua
preocupação central relativa à literatura” 4. Para isso, os vários aforismos que
constituem esse livro perfazem uma trajetória que “leva do interior burguês à
realidade crua das ruas e desta à convocação revolucionária” 5. Ao percorrer este
caminho Benjamin vai revelando o impacto do capitalismo e das novas técnicas
sobre as massas – e conseqüentemente sobre a arte – , demonstrando, assim, a
necessidade de desenvolver uma “nova função da literatura e da cultura em geral” 6,

2
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. p. 9.
3
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 166.
4
KOTHE, Flávio René. Para ler Benjamin. p. 54.
5
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 167.
6
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 169.
4

que terá como objetivo destruir a cultura burguesa e voltar-se para o que está
acontecendo nas ruas. A problemática levantada no livro consiste no fenômeno da
redução da cultura a uma mercadoria como qualquer outra coisa, circunstância esta
descrita por Benjamin em relação à escrita quando esta “é inexoravelmente
arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do
caos econômico”7. É nesse contexto que se faz necessário o desenvolvimento da
nova função da literatura. Através desta nova função da literatura ocorreria a
refuncionalização do fenômeno da propaganda, isto é, esta nova forma de
comunicação visual (reclame), que surge da necessidade de chamar a atenção de
quem passa nas ruas em favor deste ou daquele produto, seria adaptada e utilizada
para uma política revolucionária, o que foi que aconteceu quando esta nova forma
foi utilizada para a “intervenção social e política pelos dadaístas e pelos
surrealistas.”8 Sobre esta relação entre arte/reclame Benjamin escreve no aforismo
Guarda-livros juramentado que

está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento da escrita


não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico
labor em ciência e economia, antes está chegando o momento que
quantidade vira em qualidade e a escritura, que avança sempre
mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova forma,
excêntrica figuralidade, tomará posse, de uma só vez, de seu teor
adequado. Nessa escrita-imagem os poetas, que então, como nos
tempos primitivos, serão primeiramente e antes de tudo calígrafos,
só poderão colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem
fazer muito alarde de si) sua construção se efetua: os do diagrama
estatístico e técnico. Com a fundação de uma escrita conversível
internacional eles renovarão sua autoridade na vida dos povos e
encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações
de renovação retórica se demonstrarão como devaneios góticos.9

Benjamin também destaca a posição do crítico literário neste novo


contexto cultural, no aforismo intitulado de A técnica do crítico em treze teses.
Nestas trezes teses nota-se a necessidade de posicionamento político neste novo
ambiente que surge, como fica claro nas duas primeiras teses: “I. O crítico é
estrategista na batalha da literatura. II. Quem não é capaz de tomar partido tem de
calar-se.”10 Assim a “função estratégica do crítico na luta cultural situa-se no
7
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. p. 28.
8
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 170.
9
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. p. 28.
10
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. p. 32.
5

contexto mais amplo da luta de classes, apontando diretamente para a urgência de


tomar partido em favor do proletariado” 11. A necessidade de um posicionamento
político fica clara nesta carta, de Benjamin a Scholem, remetida em 29 de maio de
1926, de Paris:

A tarefa é, por isto, justamente aqui decidir-se, não de uma vez por
todas, mas em cada instante. Mas decidir. [...] Proceder nas coisas
essenciais sempre de forma radical, nunca conseqüente, seria
também minha atitude, se um dia viesse a aderir ao partido
comunista.12

Benjamin afirma que a catástrofe é eminente no contexto atual do


desenvolvimento técnico, pois,

possa a burguesia vencer ou ser vencida na luta, ela permanece


condenada a sucumbir pelas contradições internas que no curso do
desenvolvimento se tornam mortais para ela. A questão é apenas
se ela sucumbirá por si própria ou através do proletariado. A
permanência ou o fim de um desenvolvimento cultural de três
milênios são decididos pela resposta a isso. A história nada sabe da
má infinitude na imagem dos dois combatentes eternamente
lutando. O verdadeiro político só calcula em termos de prazos. E se
a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento
quase calculável do desenvolvimento econômico e técnico (a
inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo está perdido. Antes
que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima
seja cortado. Ataque, perigo e ritmo do político são técnicos – não
cavalheirescos.13

Diante desta turbulência o “futuro da cultura depende da eliminação


de uma classe que sobrevive só na medida em que reduz tudo a mercadoria e que
bloqueia, por isto mesmo, todo desenvolvimento para lá do mundo das
mercadorias”14, por isto, para Benjamin a “nova função da arte e da literatura será,
pois, estratégica no combate político em que se decide o rumo da humanidade” 15.

O livro Rua de mão única irá marcar definitivamente a produção


intelectual de Walter Benjamin, que a partir deste ponto assume uma posição cada
11
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 170.
12
BENJAMIN, Walter, Briefe I, p. 425. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p.167.
13
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. p. 45-46
14
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 170
15
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 171
6

vez mais politizada e, principalmente, preocupada com a nova função da literatura e


da arte, pois esta “rua sem volta da modernidade leva para a claridade de um
combate em que cabe ao proletariado fazer a revolução e apropriar-se
coletivamente das novas técnicas, do contrário destinadas a cavar a cova da
humanidade”.16

Ao escolher como caminho esta rua de mão única Benjamin inicia


uma jornada que irá culminar com a reflexão sobre a arte no século XIX, uma
reflexão, sóbria e original, que terá no Trabalho das Passagens seu ápice.

1.2 O TRABALHO DAS PASSAGENS

O posicionamento político adotado por Benjamin, no livro Rua de


mão única, ao lado da classe proletária contra as forças auto-destrutivas da classe
burguesa, e de seu aparato técnico, irá influenciar diretamente no seu futuro
Trabalho das Passagens, trabalho este cujo foco central serão as mudanças que
ocorreram na arte no século XIX, principalmente através do estudo da lírica de
Baudelaire. Além do posicionamento político, a influência surrealista também será
constante no novo projeto benjaminiano, tanto pela forma com que se constrói o
texto – devido o caráter ‘fragmentário’, quanto pelos temas abordados pelo seu
estudo.

Quanto aos textos que fazem parte da constelação denominada de


Trabalho das Passagens não se sabe muito bem ao certo quais são na sua
totalidade – devido o fato de Benjamin não tê-los organizado pessoalmente pelo fim
trágico a que se submeteu – supõem-se que seja os seguintes: Paris, a capital do
século XIX, A Paris do Segundo Império em Baudelaire (constituída dos ensaios: A
Boêmia, O Flaneur, A Modernidade), Sobre alguns temas em Baudelaire (estes três
trabalhos constituíram uma parte autônoma dentro do Trabalho das Passagens),
ainda fariam parte do projeto os textos: Central Parque, A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica, Teses sobre o conceito de história, e alguns
fragmentos de manuscritos.

16
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 171
7

Apesar de ocupar continuadamente o centro dos interesses de


Benjamin desde 1934, o projeto sobre as passagens de Paris nunca
chegou a conhecer uma redação, mesmo que provisória. O que Rolf
Tiedemann publicou, em 1983, sob o título Das Passagen-Werk ou
A obra das passagens, em dois volumes de tamanho considerável,
reúne essencialmente, ao lado dos esboços do projeto (uma de
1935 e outra de 1939) e das primeiras notas (ainda dos anos 20),
uma massa de apontamentos e materiais preparatórios deste
estudo, formada por alguns fragmentos de Benjamin e uma enorme
quantidade de extratos tirados de livros e outras fontes, cobrindo
suas investigações desde 1927.17

Nas primeiras notas do Trabalho das passagens, que remontam a


1927, é evidente a influência surrealista. Esta influência será proporcionada através
da leitura do livro Le paysan de Paris, de Louis Aragon, por Walter Benjamin, leitura
esta que lhe causou forte impressão como descrito numa carta de Benjamin para
Adorno em 31 de maio de 1935, nesta carta Benjamin diz que “en las tardes,
acostado, nunca podía leer más de dos o tres páginas antes de que mi pulso se
aceleraba tanto que tenía que abandonar el libro” 18. A influência de Aragon pode ser
vista tanto pelos temas abordados como pelo caráter fragmentário do projeto das
passagens. “Em Aragon encontra-se não só o objeto geral das passagens, mas
também a articulação do sonho e realidade, prostituição e morte, o reclame, a
revolta, Paris e suas ruas, característicos do projeto das passagens de Benjamin” 19.
O livro de Aragon

utilizaba un lenguaje sagrado para retratar el amor sensual, y


glorificaba lo profano como origen de la verdad revelada,
combinando elementos de los extremos del misticismo y del
materialismo, que formaban ahora los polos del pensamiento de
Benjamín. En tanto modelo estético, el surrealismo aparecía como
mucho más compatible con sus propósitos que el romanticismo del
período burgués anterior, y el libro de Aragon se transformó en la
inspiración de su estudio sobre el París del siglo XIX, el
Passagenarbeit, sobre el cual Benjamín trabajó por el resto de su
vida.20

Esta série de notas escritas sob forte influência surrealista, foram


17
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 186.
18
BENJAMIN, Walter. Briefe II, pp. 662-663 in BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica
negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y el Instituto de Frankfurt. p. 253.
19
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 172.
20
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 253.
8

“publicadas em A obra das passagens sob o título “Passagens de Paris I” e escritas


ainda em 1927, provavelmente em Paris” 21. Já em janeiro de 1928 Benjamin
escreve a Scholem uma carta dizendo sobre o papel que teria este ensaio sobre as
passagens parisienses na sua produção intelectual, nesta carta ele diz que após

concluído de uma ou de outra forma o trabalho com que ando


ocupado no momento, cauteloso e provisoriamente – o bem
estranho e extremamente precário ensaio “Passagens de Paris.
Uma fantasmagoria dialética” (pois nunca escrevi com risco tão
grande de insucesso), então se terá fechado para mim um ciclo de
produção – o da “Rua de mão única” – em sentido semelhante ao
modo como o livro do drama barroco fechou o [ciclo] germanístico.22

Porém, a precariedade mencionada do trabalho, devido a


proximidade com os surrealistas, acaba por tornar a tarefa de concluir o ensaio,
iniciado em 1927, sobre as passagens parisienses um problema para Benjamin.
Para tentar ilustrar os pontos de divergência entre o seu ensaio sobre as passagens
parisienses e o trabalho dos surrealistas Benjamin escreve em 1929 o ensaio
intitulado “O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. Ao
escrever este ensaio Benjamin queria

esclarecer as diferenças entre o trabalho dos surrealistas e o projeto


das passagens, mas, ao dirigir contra os surrealistas uma crítica na
linha do materialismo histórico, estava apenas adiando o momento
decisivo em que dirigiria uma crítica semelhante contra seu próprio
projeto, [...], construído que estava sobre um conjunto de imagens
mais do que sobre categorias e relações conceituais.23

A dificuldade de Benjamin para dar uma sustentação metodológica


para seu trabalho sobre as passagens parisienses ficou ainda mais evidente após a

intensificação, a partir de 1928, do diálogo com Adorno e


Horkheimer e outros intelectuais já na época mais próximos do
materialismo dialético, leva ao reconhecimento da precariedade dos
fundamentos metodológicos do empreendimento, que é então
abandonado no início de 1930.”24
21
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 172.
22
BENJAMIN, Briefe I, p. 455. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 172-173.
23
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 174-175
24
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 175.
9

Na tentativa de contornar este problema surgido pela falta de


fundamentos metodológicos Benjamin se vê na necessidade de delinear um
programa de estudos, como demonstrado nesta carta de Benjamin a Scholem em
janeiro de 1930,

vejo que para chegar ao fim e dar uma armação firme a todo este
trabalho faz-se necessário um estudo tanto de certos aspectos de
Hegel, quanto de certas partes do “Capital”. O que hoje me parece
claro é que , para este livro tanto quanto para o “Barroco alemão”,
não poderei deixar de lado uma introdução sobre a teoria do
conhecimento – e desta vez sobretudo sobre a teoria do
conhecimento da história.25

Benjamin somente retoma o projeto sobre as passagens em 1934,


tendo como motivação o apoio do Instituto para Pesquisa Social. Neste mesmo ano
Benjamin se encontra exilado, fugindo da ascensão do nazismo, e passa a maior
parte do tempo em Paris, é nesta cidade que começa a estabelecer um novo plano
de trabalho. Em 1935 envia para o Instituto um esboço do seu projeto sobre as
passagens parisienses, intitulado Paris, a capital do século XIX, sendo que este “foi
bem acolhido por Horkheimer, passando o projeto a ser financiado pelo Instituto.” 26

De certa forma o projeto sobre as passagens pode ser comparado


com o outro texto de Benjamin sobre o drama barroco alemão, pois, enquanto este
situava-se para falar da arte no século XVII, o seu novo projeto iria dirigir o foco
sobre a arte no século XIX. Benjamin em uma carta afirma que: “Se lá foi o conceito
de drama barroco, aqui seria o do caráter fetichista da mercadoria”. 27 Assim, o ponto
central deste novo projeto será baseado em “um conceito do materialismo histórico,
tal como desenvolvido por Marx no início do Capital”28.

O texto Paris, a capital do século XIX compõe-se de seis partes. A


primeira parte é intitulada de Fourier ou as Passagens, nesta primeira parte
“Benjamin mostra que as “passagens”, em que o ferro e o vidro foram aplicados
inovadoramente na arquitetura, se tornaram centros de comércio de luxo e arte
nelas se pôs a serviço dos comerciantes.” 29 As passagens “como que utopias
25
BENJAMIN, Briefe II, p. 506. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 175
26
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 176.
27
BENJAMIN, Briefe II, p. 654. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 176
28
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 176.
29
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 75
10

concretas, passaram a representar o progresso em que uma época sonhava o seu


futuro: as passagens se tornaram “Wunschbild”, isto é, a imagem de um desejo.” 30
A segunda parte, que mantém uma relação com os ensaios sobre a
reprodutibilidade técnica e sobre a história da fotografia, é denominada de Daguerre
ou os Panoramas. Nesta parte Benjamin se ocupa em demonstrar como é que os
panoramas que eram “pinturas que tentavam imitar perfeitamente a natureza,
trazendo-a de volta à cidade, prenunciavam a fotografia (inventada por Daguerre),
que, por sua vez, levou à invenção do cinema mudo e falado” 31. Na terceira parte,
cujo título é Grandville ou as Exposições Mundiais, Benjamin “refere-se às
exposições internacionais, realizadas em Paris no século XIX, como se fossem
peregrinações ao fetiche “mercadoria””. 32 Segundo Benjamin essas exposições
mundiais “transfiguram o valor de troca das mercadorias. Elas criam um ambiente
em que desaparece seu valor de uso. Elas abrem uma fantasmagoria em que o
homem entra para se deixar distrair” 33. Esta terceira parte também mantém uma
certa relação com o ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, pois, quando Benjamin
fala sobre a sobreposição do valor de troca pelo valor de uso nesta parte do
trabalho, corresponderá com a sobreposição citada no ensaio sobre a
reprodutibilidade, onde o valor de exposição sobrepõe o valor de culto 34. A quarta
parte, Louis-Philippe ou o Interior, “enfatiza a crescente diferença entre a vida
pública e vida privada no capitalismo. A arte encontra refúgio na segunda, mas
como diversão e alimento para as ilusões. Tal função será depois mais plenamente
preenchida pelo cinema”35. Na quinta parte denominada Baudelaire ou as Ruas de
Paris “Benjamin preocupa-se em determinar o problema da relação entre a
inovação artística e a inovação no mercado”36. Dentro do projeto de Benjamin

caberia a Baudelaire uma atenção especial, por chegar à expressão,


em sua poesia lírica, todo o complexo da vida moderna , registrada,
não como agrado do olhar patriótico, mas com o incômodo do
estranho [...]. Na lírica de Baudelaire, Benjamin descobre o namoro
do artista com o mercado, o mundo das mercadorias sendo tomado
30
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 75
31
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 76
32
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 76
33
BENJAMIN, Das Passagen-Werk, GS V, p. 50. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p.
179.
34
Este ponto relacionado com a perda da aura após o advento da reprodutibilidade técnica será
melhor explicitado na segunda parte deste trabalho.
35
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 77.
36
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 78.
11

como objeto da poesia, em sua forma imediata e fantasmagórica.


Como flaneur que percorre as ruas de Paris à procura de novidades,
mas também no intuito de localizar brechas no mercado para sua
própria mercadoria, o poeta vai realizando lentamente a desilusão
diante do mundo moderno, descrita por fim como a perda de sua
auréola no lamaçal da rua: seu último refúgio é a multidão.37

A sexta parte do projeto sobre as passagens parisienses intitulada


de Haussmann ou as Barricadas “indicia claramente a intenção marxista de
Benjamin. Como se sabe, Marx interpretou a construção dos grandes boulevards
pelo prefeito parisiense Haussmann como uma maneira de evitar a construção de
barricadas durante os levantes dos operários” 38. O projeto consistia, assim, de
imagens que Benjamin encontrava presentes na produção literária de Baudelaire:
“Uma tal imagem fornece a mercadoria pura e simples: como fetiche. Uma tal
imagem apresentam as passagens, que são tanto casa quanto rua. Uma tal imagem
oferece a prostituta, que é vendedora e mercadoria em uma só pessoa.” 39 Estas
imagens Benjamin denominou como imagens dialéticas, nestas imagens ele
enxerga a “articulação do inconsciente coletivo” 40,

nelas o coletivo projeta seus desejos, mas partindo da própria


fantasmagoria do universo das mercadorias, em que todo desejo é
sistematicamente passado para trás. Tal como no sonho, também
nestas fantasias do coletivo moderno o desejo só se realiza
ilusoriamente. Trata-se, pois, de explodir, com o trabalho da crítica
filosófica, o caráter estático destas imagens, liberando o desejo para
o espaço real de sua realização, assim como no sonho sempre se
trata de despertar para a realidade. O mérito do poeta consiste em
ter registrado estas imagens do coletivo, abrindo a arte para o
universo da modernidade; a tarefa do filósofo é quebrar estas
imagens em que se encontra aprisionado o desejo do homem
moderno, liberando-o para a atualidade de sua realidade.41

Benjamin sustentava que as imagens dialéticas propostas no


projeto sobre as passagens

37
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 180.
38
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 79.
39
BENJAMIN, Das Passagen-Werk, GS V, p. 55. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p.
180.
40
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 180.
41
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 180-181.
12

proporcionara una reconstrucción visual de la historia pasada es sus


detalles fragmentarios. Éstos funcionarían para el lector como los
relámpagos del recuerdo, y el fantasma que erraba por sus ruinas
del presente era el fantasma de una revolución fracasada, el sueño
no realizado de una sociedad sin clases.42

Como já dito acima o projeto foi bem recebido por Horkheimer,


fazendo com que este passasse a ser financiado pelo Instituto, porém, Adorno
dirigiu ao projeto uma série de críticas, sendo que, uma delas atacou diretamente as
imagens dialéticas de Benjamin:

Se você coloca a imagem dialética como “sonho” no consciente,


então com isto o conceito não apenas se tornou banal e vulgar, mas
perdeu também aquela força conclusiva objetiva, a qual
precisamente poderia legitimá-lo do ponto de vista materialista. O
caráter fetichista da mercadoria não é um fato da consciência, mas
dialético no sentido eminente de que ele produz consciência.43

Como esta crítica atingia diretamente o fundamento metodológico


do projeto de Benjamin, fez com que ele, sob pressão de Adorno, tentasse “numa
série de apontamentos registrados como “teoria do conhecimento”, esclarecer a
base metodológica de seu projeto.” 44

Mas é a partir de 1937 que o projeto passa por uma mudança


repentina. Benjamin decide começar o trabalho escrevendo primeiramente o
capítulo sobre Baudelaire e as ruas de Paris. Dessa decisão surge o texto intitulado
de A Paris do Segundo Império em Baudelaire, que se constitui de três capítulos –
A Boêmia, O Flâneur, A Modernidade. Vários temas abordados por Benjamin em
Paris, capital do século XIX, são retomados agora em A Paris do Segundo Império.
O capítulo A Boêmia é uma tentativa de Benjamin de verificar a situação de
Baudelaire política e literariamente. O capítulo inicia-se com Benjamin citando Marx,
onde este inclui os conspiradores profissionais entre a boêmia parisiense, e
continuando Benjamin afirma que para “rememorar a fisionomia de Baudelaire
significa falar da semelhança que ele exibe com esse tipo político.” 45 Ao tentar
42
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 292.
43
ADORNO, T. W., Über Walter Benjamin, p. 112. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p.
182.
44
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 182.
45
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 9
13

equiparar Baudelaire com o conspirador, “Benjamin procura determinar o grau de


consciência política de Baudelaire, e as contradições nele existentes.” 46 Benjamin
afirma que a discussão para Baudelaire

não é sua seara. Ele o evita mesmo quando as evidentes


contradições em teses que adota sucessivamente exigiriam um
debate. O Salão de 1846 ele o dedicou “aos burgueses”; aparece
como seu porta-voz, e seu gesto não é o do advocatus diaboli. Mais
tarde, por exemplo em sua invectiva contra a escola do bon sens,
encontra para a “honnête’ burguesia” e para o notário – afigura do
respeito no meio burguês – os traços do boêmio mais raivoso. Por
volta de 1850, proclama que a arte não deve ser separada da
utilidade; alguns anos depois, defende “l’art pour l’art”.47

Literariamente falando, a situação de Baudelaire nunca foi das


melhores pois “até o fim da sua vida, Baudelaire, permaneceu mal colocado no
mercado literário.”48 “E através de suas experiências no mercado literário é que
chegou a maior consciência da sociedade. Não que tivesse tido uma consciência
socialista, mas soube muito bem que, como qualquer pequeno-burguês ou
proletário, tinha de vender a sua força de trabalho no mercado.” 49 À situação a que
estava submetido o literato, isto é, de por a venda o seu produto, Baudelaire
comparava com a situação da prostituta, que vende o seu próprio corpo.

Confrontá-lo – e, em primeiro lugar, a si mesmo – com a puta lhe era


habitual. Disso fala o soneto À Musa Venal. O grande poema
introdutório de As Flores do Mal, Ao Leitor, apresenta o poeta na
posição desvantajosa de quem aceita moedas sonantes por suas
confissões. [...] Baudelaire sabia como se situava, em verdade, o
literato: como flâneur ele se dirige à feira; pensa que é para olhar,
mas, na verdade, já é para procurar um comprador.50

E será a figura do flâneur o tema central do segundo capítulo,


intitulado, justamente, de O Flâneur. Segundo Benjamin o ato de flanar “dificilmente
poderia ter-se desenvolvido em toda a plenitude sem as galerias *.”51 Nas passagens
46
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 83.
47
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 10
48
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 29.
49
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 87.
50
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 29-30.
*
Leiam-se passagens.
51
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 34.
14

o flâneur se sentia em casa, elas são o “meio-termo entre a rua e o interior da


casa”52.

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos


prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro
paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas
são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no
salão do burguês; os muros são a escrivaninha onde apóia o bloco
de apontamentos; as bancas de jornais são suas bibliotecas, e os
terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o
ambiente.53

Neste ambiente surge um novo gênero literário que “vê as massas


urbanas como asilo de criminosos e tipos perigosos” 54, este novo gênero é o das
histórias de detetives. Baudelaire traduziu um dos grandes escritores desse gênero,
Edgar Allan Poe. “Poe aparece como o mestre da apresentação de fenômenos
patológicos do moderno mundo urbano, mas seu olhar ainda é o do detetive, que
persegue o elemento patológico e associal. Baudelaire ao contrário, identifica-se
com o associal, refugia-se na massa, para fugir de seus credores” 55. Baudelaire,
como o flâneur precisa da multidão, que se torna um “objeto novo na poesia lírica” 56,
mas ele precisa da multidão para ficar só, pois, “Baudelaire amava a solidão, mas a
queria na multidão.”57 Portanto, é nas passagens que o flâneur encontra o seu
refúgio, entretanto o ritmo que adota é totalmente diferente daquele que é
submetida a multidão, absortas apenas com a sua sobrevivência. Naquela época
existia

o transeunte, que se enfia na multidão, mas havia também o flâneur,


que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade.
Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim
contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em
especialistas. Protesta igualmente contra a sua industriosidade. Por
algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas
para passear pelas galerias. De bom grado, o flâneur deixava que
elas lhe prescrevessem o ritmo de caminhar. Se o tivessem seguido,
o progresso deveria ter aprendido esse passo.

52
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 35.
53
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 35.
54
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 193.
55
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 194.
56
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 56.
57
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 47.
15

O terceiro capítulo de A Paris do Segundo Império em Baudelaire


tem como título A modernidade. Aqui neste capítulo Benjamin descreve o modo
pelo qual Baudelaire concebe a modernidade. Em uma carta de Benjamin a Adorno,
ele afirma que quando se fala de modernidade “este é um termo do próprio
Baudelaire, como ressalta do texto”58. No capítulo anterior, a conclusão de Benjamin
põe Baudelaire como um herói, sendo que, é por esta característica que ele se
separa da multidão. Benjamin afirma que o “herói é o verdadeiro objeto da
modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma
constituição heróica.”59

A modernidade opõe-se, neste sentido, de todas as formas ao


impulso produtivo natural do homem, condenando-o a uma morte
em vida. Para reagir a esta massificação aniquilante, o homem
moderno só pode contar consigo mesmo e, pó isto, o herói moderno
é um tipo associal, representando ora o flâneur, ora o apache ou
ainda o dandy.60

Baudelaire devia ser visto, então, como um Hércules moderno, pois


na “época que lhe coube viver, nada lhe está mais próximo da “tarefa” do herói
antigo, dos “trabalhos” de um Hércules, do que a que se impôs a si mesmo como
sua: dar forma à modernidade.”61

Entretanto por causa de algumas críticas de Adorno, que tinham


como conseqüência a impossibilidade de publicação do texto na revista do Instituto,
fato este que lhe causaria problemas financeiros, Benjamin reformula o capítulo
sobre o flâneur. Desta revisão surge um novo texto sob o título de Sobre alguns
temas em Baudelaire, sendo que, este foi publicado em 1940 na revista do Instituto.
“Desta vez, Benjamin evita a técnica da justaposição e situa a figura do flâneur no
âmbito de uma construção teórica mais abrangente, em que retoma suas reflexões
sobre a atrofia da experiência no mundo moderno.” 62 A sua análise parte dos
leitores do século XIX, os quais ele afirma que “preferem os prazeres dos sentidos e
estão afeitos ao spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade” 63.

58
BENJAMIN, W. Briefe. p. 792. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 195.
59
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 73.
60
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 196.
61
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 80.
62
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 197.
63
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 103.
16

Neste contexto, “a tese básica de Benjamin é a de que Baudelaire teria posto o


choque (usado pelo surrealista como cavalo de batalha “pour épater le bourgeois”)
no cerne de sua produção” 64. Ainda sobre o papel do choque na poesia de
Baudelaire e sua relação com a modernidade, Benjamin afirma que Baudelaire
“determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a
desintegração da aura na vivência do choque.” 65

O Trabalho das Passagens ainda é constituído do texto Central


Parque – que é uma reunião de fragmentos; e das famosas Teses sobre o conceito
da História, sendo este o último texto redigido por Benjamin e que possuía uma
“importancia teórica central, ya que intentaba ser la introducción metodológica al
Passagenarbeit.”66

Ainda faz parte do projeto sobre as passagens o ensaio A obra de


arte na era de sua reprodutibilidade técnica que foi escrito entre os projetos de
Paris, a capital do século XIX e de A Paris do segundo Império em Baudelaire.
Neste ensaio Benjamin registra o contexto procedente dos desenvolvimentos
técnicos e sociais do século XIX, sendo que, estes foram analisados de forma
exaustiva por Benjamin em todas as fases do seu projeto sobre as passagens
parisienses. Neste ensaio Benjamin analisa as modificações ocorridas na arte após
o advento da reprodutibilidade técnica, análises estas que serão o objeto de estudo
do próximo capítulo.

64
KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. p. 101.
65
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. p. 145.
66
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 330.
17

2 A ARTE E A REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

A relação do ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade


técnica com o Trabalho das Passagens é apontada por Benjamin em uma carta
dirigida a Horkheimer:

Se o senhor Pollock me deu com sua presença o estímulo para


redigir a exposição do projeto, então a última carta do senhor foi a
ocasião para colocar de lado a imagem histórica da coisa, ora
provisoriamente fixada, em favor de considerações construtivas que
determinarão a imagem geral da obra. Por mais provisórias que
possam ser estas considerações construtivas na formação em que
as fixei, ainda assim posso dizer que elas constituem um avanço na
direção de uma teoria materialista da arte, que conduz por seu turno
bem para lá do projeto conhecido pelo senhor. Desta vez trata-se de
indicar o lugar preciso na atualidade, para o qual apontará minha
construção histórica como a um ponto de fuga. Se o assunto do livro
é o destino da arte no século dezenove, então este destino só nos
tem algo a dizer, porque está preso no tiquetaquear de um relógio,
cuja hora ecoou apenas em nossos ouvidos. Para nós, quero com
isto dizer, soou a hora do destino da arte, e registrei seus sinais em
uma série de considerações provisórias que levam o título de “A
obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.67

Através desta carta fica claro que o intuito do ensaio é de situar na


atualidade* as observações feitas por Benjamin por meio do seu estudo do século
dezenove. Portanto, o ensaio, cujas considerações remeteriam a uma teoria
materialista da arte, funcionaria como um ponto de fuga para o estudo sobre as
passagens parisienses e, conseqüentemente, sobre o destino da arte no século
XIX.

Este é um dos textos de Benjamin que mais sofreu modificações


por parte do Instituto. “La copia en francés fue alterada de modo considerable por la
gente conectada al Zeitschrift en París. […] Las modificaciones estaban dirigidas
fundamentalmente a eliminar formulaciones que podían ser fácilmente tomadas por

67
BENJAMIN, W. Briefe II, p. 690. in BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 183.
*
Entenda-se aqui atualidade como o momento histórico em que Benjamin escreve o ensaio sobre
a reprodutibilidade técnica.
18

“una confesión política” (es decir comunista)”68.

Conforme denúncia da revista Alternative, várias modificações foram


feitas: “les forces constructives de l’humanité” em vez de “der
Kommunismus” (o comunismo); “les doctrines totalitaires” em vez de
“der Faschismus” (o fascismo); “la guerre moderne” em vez de “der
imperialistische Krieg” (a guerra imperialista); “les masses tendent à
la transformation des conditions de proprieté” em vez de “die
Massen haben ein Recht auf Veränderung der
Bigentumsverhältnisse” (as massas têm o direito de transformar as
relações de propriedade); “le travail lui-même prend la parole” em
vez de “in der Sowjetunion kommt die Arbeit selber zu Wort” (na
União soviética o próprio trabalho toma a palavra)69, etc.

Com esta série de modificações é evidente que Benjamin se via


pressionado pelo Instituto, pois sem as modificações o texto dificilmente seria
publicado pela revista, fazendo com que isto lhe acarretasse sérios problemas
financeiros, assim, a única saída para ele era ceder a essas pressões.

A ênfase marxista que Benjamin dá ao seu ensaio é afirmada por


Jeanne Marie Gagnebin70, e por Gershom Scholem, amigo pessoal de Benjamin,
quando diz: “nos anos seguintes ele embarcou numa tentativa – de início hesitante,
depois, especialmente desde 1930, com crescente determinação – de absorver o
materialismo histórico em seu sistema de pensamento e fazer dele a base para a
sua produção literária”71. Porém, a sua estética não estava apoiada em critérios
marxistas tradicionais, Benjamin afirmava que seu marxismo neste ensaio “no era
de naturaleza dogmática, sino heurística, experimental” 72. Assim, opondo-se “a la
estética marxista ortodoxa y a sus análisis reduccionistas en términos de modos de
producción socio-económicos externos a la propia obra de arte, Benjamin tomaba el
método crítico cognoscitivo de Marx y lo aplicaba en interior de la superestructura
artística misma.”73
68
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 293.
69
GALLAS, Helga. “Wie es zu den Eingriffen in Benjamins Texte kam morder Über die
Herstellbarkeit Von Einverständnis.” Alternative. p. 80. in KOTHE, Flávio René. Benjamin &
Adorno. p. 34-35.
70
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Prefácio, p. 12.
71
SCHOLEM, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: judaica I. p. 183.
72
SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: Die Geschichte ciner Freundschaft, p. 251. in BUCK-
MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y el
Instituto de Frankfurt. p. 299.
73
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 294.
19

Destarte, a leitura benjaminiana parte de um caminho adverso à das


teorias estéticas convencionais, que analisam a obra de arte a partir de “conceitos
tradicionais – como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e
conteúdo”74. Para analisar a obra de arte, neste novo contexto, ele incorpora novos
conceitos a sua teoria estética, e é sobre a incorporação destes novos conceitos
que Benjamin afirma na introdução de seu ensaio A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica que os “conceitos seguintes, novos na teoria da arte,
distinguem-se dos outros pela circunstância de não serem de modo algum
apropriáveis pelo fascismo. Em compensação, podem ser utilizados para a
formulação de exigências revolucionárias na política artística.” 75 Sobre este
posicionamento teórico de Benjamin, em prol de uma política artística
revolucionária, afirma Gagnebin que ele

se atém aos processos sociais, culturais e artísticos de


fragmentação crescente e de secularização triunfante, para não
tentar tirar dali uma tendência irreversível, mas, sim possíveis
instrumentos que uma política verdadeiramente “materialista”
deveria poder reconhecer e aproveitar em favor da maioria dos
excluídos da cultura, em vez de deixar a classe dominante se
apoderar deles e deles fazer novos meios de dominação. Tal é, pelo
menos, a exigência teórica e política que orienta as afirmações,
muitas vezes ousadas, do ensaio sobre a reprodutibilidade técnica
ou do pequeno texto “Experiência e pobreza”.76

Para Benjamin a arte sempre foi passível de reprodução, afirma ele


que “a obra de arte sempre foi reprodutível” 77. Através da imitação o que alguém
fazia sempre podia ser repetido por outros. “Essa imitação era praticada por
discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e
finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro.” 78 Porém, com a
introdução da reprodução técnica ocorrem profundas alterações nas formas de
produção e percepção da arte, “a reprodução técnica da obra de arte representa um
processo novo, que vem se desenvolvendo na história intermitentemente, através
de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescentes.” 79

74
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166.
75
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166.
76
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. p. 64.
77
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166.
78
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166.
79
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166.
20

Como exemplo das transformações sofridas pela técnica, Benjamin demonstra a


evolução na reprodução do desenho, que foi se desenvolvendo primeiramente com
a xilogravura, depois com as chapas de cobre, a água-forte, e com a litografia. Com
esta

a técnica de reprodução atinge uma etapa essencialmente nova.


Esse procedimento muito mais preciso, que distingue a transcrição
do desenho numa pedra de sua incisão sobre um bloco de madeira
ou uma prancha de cobre, que permitiu às artes gráficas pela
primeira vez colocar no mercado suas produções não somente em
massa, como já acontecia antes, mas também sob a forma de
criações sempre novas.80

Com isto abre-se um novo campo de atuação das artes gráficas: a


ilustração da vida cotidiana, por meio dos jornais ilustrados.

Entretanto, “a litografia ainda estava em seus primórdios, quando foi


ultrapassada pela fotografia”81. E será a partir da invenção da fotografia que as
possibilidades da técnica alterarão, essencialmente, a produção e a percepção das
obras de arte.

Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi


liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que
agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais
depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução das
imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no
mesmo nível que a palavra oral. Se o jornal ilustrado estava contido
virtualmente na litografia, o cinema falado esta contido virtualmente
na fotografia.82

Além da fotografia, o desenvolvimento da reprodução técnica do


som também desempenhará um papel fundamental para as mudanças que ocorrem
sobre a obra de arte. Através do advento da reprodução sonora

as técnicas de reprodução atingiram tal nível que, em decorrência,


ficaram em condições não apenas de se dedicar a todas as obras de
arte do passado e de modificar de modo profundo os seus meios de
80
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 166-167.
81
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 167.
82
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 167.
21

influência, mas de elas próprias se imporem, como formas originais


de arte.83

Assim, para Benjamin a reprodução técnica não só alterará a forma


como nos relacionamos com a arte produzida antes da introdução destas novas
formas de reprodução – através da reprodução de quadros por meio de fotos e de
concertos por meio dos discos – , mas, sobretudo, suscitará uma questão
fundamental para Benjamin, a de que essas novas formas de reprodução podem, e
devem, ser consideradas como procedimentos criadores de obras de arte – sendo
este o caso da arte cinematográfica.

Com a reprodução – não só a técnica, mas, também a manual – ,


uma característica das obras de arte é posta em questão, a sua autenticidade.
Benjamin afirma que o que constitui a autenticidade de uma obra de arte é o “aqui e
agora do original [...], e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até
os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo.” 84.
Assim, este elemento, que em qualquer reprodução falta, remete-se a um caráter de
unicidade da obra de arte, isto é, relaciona-se com “sua existência única, no lugar
onde se encontra.”85 Entretanto, por duas razões a reprodução técnica sobrepõe-se
à reprodução manual, pois, enquanto, esta frente ao original é considerada uma
falsificação, o mesmo não ocorre à reprodução técnica.

Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica


tem mais autonomia que a reprodução manual. Ela pode, por
exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original,
acessíveis à objetiva – ajustável e capaz de selecionar
arbitrariamente o seu ângulo de observação – , mas não acessíveis
ao olhar humano. Ela pode, também, graças a procedimentos como
ampliação ou câmara lenta, fixar imagens que fogem inteiramente à
ótica natural. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar
a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original.
Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a
forma da fotografia, seja do disco.86

Ora, se a autenticidade de uma obra de arte nos remete à noção da


tradição, a “quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua
83
BENJAMIN, W. HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W.; HABERMAS, J.. Textos escolhidos. p. 12.
84
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 167.
85
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 167.
86
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 168.
22

origem, desde sua duração material até seu testemunho histórico” 87, o que será
atingido com a reprodução técnica, será, justamente, “a autoridade da coisa, seu
peso tradicional.”88 Depois de afirmar que com a reprodução, a autenticidade do
objeto é abalada, Benjamin introduz no ensaio o conceito de aura, dizendo que
essas características, duração material e testemunho histórico, podem ser
resumidas por este conceito, e “o que se atrofia na era de sua reprodutibilidade
técnica da obra de arte é a sua aura”89.

De certa forma Benjamin vê esse processo de maneira positiva,


pois, ele irá possibilitar um certo tipo de popularização das imagens reproduzidas,
quando se multiplica a imagem pela reprodução, substitui-se

a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida


em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do
espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto
reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da
tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da
humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos
de massa, em nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema.
Sua função social não é concebível, mesmo em seus traços mais
positivos, e precisamente neles, sem seu lado destrutivo e catártico:
a liquidação do valor tradicional do patrimônio da cultura.90

Contudo, a reprodução técnica acarreta transformações nas formas


de produção e percepção artísticas, que irão desencadear o atrofiamento da aura.
Este conceito aparece primeiramente, na obra de Benjamin, no ensaio intitulado de
Pequena história da fotografia, de 1931, aqui quando ele introduz o conceito de
aura, “não se trata mais de uma reflexão geral sobre o destino da arte, mas de um
aspecto da história da fotografia.”91 Neste ensaio encontra-se uma descrição de
aura que irá se encontrar em todas as versões do ensaio sobre “A obra de arte”:

Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de


elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa
distante, por mais próxima que ela esteja. Observar, em repouso,
numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou

87
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 168.
88
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 168.
89
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 168.
90
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 168-169.
91
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. p. 206.
23

um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a
hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa
montanha, desse galho.92

Porém, no ensaio sobre “A obra de arte” o enfoque é mais


generalizado, se lá a preocupação, de Benjamin, com a aura era em relação com os
primórdios da fotografia, isto é, “estava ligada às condições técnicas de uma fraca
sensibilidade à luz e às condições humanas da ausência de exteriorização
ostentatória da pose”93, aqui será de como o filme provoca uma crise no âmbito das
artes em geral, fazendo com que a aura – característica das obras de arte inseridas
naquilo que Benjamin denominou de tradição – entre em declínio. Afirma Benjamin
que esse declínio

deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente


difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas
“ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das
massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de
todos os fatos através de sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais
irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto
possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução.
Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela
nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades
cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se
associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e
a repetibilidade.94

Deste modo, a reprodução técnica ataca diretamente as obras de


arte que estão inseridas no contexto da tradição. Nestas, o que as identificam
dentro da tradição, é a “unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura.” 95
Também será característica, fundamental para se inserir uma obra de arte dentro
desta tradição, a sua forma de expressão identificada através do culto. Esta
característica remonta as origens da arte, onde estas estavam ligadas “a serviço de
um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é
que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de
sua função ritual.”96 Esta origem mágico-religiosa da obra de arte, e sua ligação

92
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 101.
93
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. p. 212.
94
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 170.
95
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
96
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
24

intrínseca com o ritual, implicam numa

intersubjetividade entre a obra e o espectador. Um depósito de


significações que o observador introduz no objeto. Essas
significações são partilhadas por uma comunidade e chegam até o
observador individual pela tradição e pela recepção coletiva. A aura
é uma vida doada ao objeto por inseri-lo no conjunto de relações
sociais.97

Assim, a aura de uma obra de arte relaciona-se, não apenas, com o


conceito de unicidade, que a identifica dentro da tradição, mas também, com esta
intersubjetividade, que também esta vinculada com a tradição e com o ritual. Este
vínculo da aura com o ritual, faz com que a aura impeça “a avaliação da arte
enquanto tal. Benjamin vai falar de uma existência parasitária da obra de arte no
ritual. Quem contempla a aura mantém uma atitude de veneração que não se dirige
à obra mesma, mas a vida que a está parasitando.” 98

Com o surgimento da fotografia – segundo Benjamin, a “primeira


técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária” 99 – , a obra de arte assume
uma perspectiva não antes imaginada. Diante da crise proporcionada pela fotografia
“a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência
parasitária, destacando-se do ritual.”100 Essa emancipação da obra de arte acaba
por ocasionar a destruição do caráter da autenticidade, sendo, dessa forma, ilógico
falar de originais ou cópias, de agora em diante “a questão da autenticidade das
cópias não tem nenhum sentido.” 101 Essa emancipação leva Benjamin a concluir
que “no momento em que o critério da autenticidade deixa de aplicar-se à produção
artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual,
ela passa a fundar-se em outra práxis: a política.” 102 Porém, a perda da aura não
implica na destituição daquela intersubjetividade, apenas redireciona-se o foco da
interpretação das significações contidas na obra de arte, o que antes era vinculado
ao ritual, e sua condição parasitária, passa agora a ser condicionada a uma função
política, este redirecionamento vai “permitir que a experiência privada do

97
DURÃO, Aylton Barbieri. O fragmentário em W. Benjamin. p. 13.
98
DURÃO, Aylton Barbieri. O fragmentário em W. Benjamin. p. 22.
99
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
100
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
101
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
102
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171-172.
25

observador isolado se torne uma experiência pública e universal. Benjamin se refere


a ela como uma iluminação profana generalizada. Isso faria com que as fagulhas de
emancipação se transformasse em um incêndio: é a revolução.” 103

As obras de arte, agora, livres dos grilhões que as prendiam, faz


com que Benjamin formule uma das questões centrais de sua análise, ou seja, de
que as novas técnicas de reprodução produzam, não mais obras de arte auráticas,
mas sim obras sobre as quais os problemas da autenticidade não são mais
pertinentes. E esse é o caso das obras cinematográficas, onde não mais existe a
unicidade da obra; onde toda cópia é idêntica ao original.

Ao relacionar a arte aurática com o ritual, Benjamin identifica a


percepção dessas obras de arte com o que ele denomina de valor de culto. Não é
por acaso que ele utiliza-se de um termo teológico, tendo em vista a relação deste
tipo de arte com as suas origens mágicas, religiosas. Esse termo é utilizado pelo
fato da exclusividade do acesso às obras em questão. Afirma Benjamin que

o valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras


de arte: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo
sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o
ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média são
invisíveis, do solo, para o observador.104

Do lado oposto ao valor de culto Benjamin coloca uma nova forma


de percepção da arte, a qual ele denomina de valor de exposição. A diferença
fundamental entre eles é, justamente, a exponibilidade das obras de arte, isto é, a
diferença está no valor quantitativo de acessibilidade às obras de arte. Assim, o
valor de exposição remete a possibilidade de acesso do maior número de pessoas
às obras de arte, e também ao acesso de um maior número de obras arte pelo
público. Neste novo contexto as obras cinematográficas assumem um
posicionamento central, pois o

filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e


reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada
vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho

103
DURÃO, Aylton Barbieri. O fragmentário em W. Benjamin. p. 24.
104
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 173.
26

técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é esse


a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro
sentido.105

Diferentemente da percepção de um quadro ou de um livro que é,


basicamente, individualizada, nos filmes essa percepção passa a ser coletivizada.
“A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de
produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a difusão em massa
da obra cinematográfica, como a torna obrigatória.” 106 Esta característica da obra
cinematográfica será vista com bons olhos por Benjamin, pois, “afirmaba su
potencial para “movilizar a las masas” a través del efecto de shock y de la distancia
crítica.”107 Ora, é a partir da análise destas modificações profundas na arte,
produzidas pela reprodução técnica, que Benjamin propôs a “refuncionalização da
arte”108. Esta refuncionalização da arte visava principalmente a sua função social,
pois, a partir do declínio do valor de culto frente ao valor de exposição, este passa a
atribuir à arte “funções inteiramente novas, entre as quais a “artística” a única de
que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária” 109. Esta nova
situação em que se encontra a arte é muito diferente daquela imposta pela doutrina
da art pour l’art, onde a arte aparece “sob a forma de uma arte pura, que não rejeita
apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva” 110, e que
Benjamin sustentava ser “el paralelo estético del fascismo”111.

Ao atribuir a arte uma nova função, neste caso a sua função social,
Benjamin tinha em vista a utilização da arte pelo fascismo, isto é, a estetização da
política pelo fascismo, pois, o “uso da técnica cinematográfica era bem claro em
meados dos anos 30: uma construção mitológica da política fascista, em que
conceitos tradicionais como genialidade, criatividade, valor eterno, estilo e
expressão encontraram seu último refúgio.” 112 Assim, a atribuição desta função
social corrobora com o posicionamento político de Benjamin em favor do

105
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 174.
106
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 172.
107
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 296.
108
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 173.
109
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 173.
110
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 171.
111
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 296.
112
BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. p. 185.
27

proletariado, iniciado no seu livro Rua de mão única, e que apesar

de la diversidad de interpretaciones que el ensayo sobre la obra de


arte despertaba a nivel teórico, existía coherencia política en la
posición de Benjamin. El ensayo constituía un gesto de solidariedad,
ante todo no hacia sus amigos intelectuales, sino con la clase
obrera. Debemos recordar que para Benjamin, así como para
Adorno, la verdad era relativa al presente histórico. Esto significaba
que la interpretación del desarrollo dialéctico del arte era una
construcción del pasado en tanto éste formaba una constelación con
las condiciones presentes.113

Com a estetização da política pelo fascismo o homem da massa


passa a identificar-se com determinada coisa, seja esta coisa o duce, a nação ou
uma raça superior. Esta estetização da política tem seus esforços convergidos para
um único ponto, e Benjamin afirma que este “ponto é a guerra” 114, esta que é a
manifestação extrema e absoluta da técnica. Contra esta estetização da política,
onde o “fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar
as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir” 115, é que
Benjamin propõe a refuncionalização da arte, ou seja, a apropriação da técnica
cinematográfica, para que se torne possível alcançar, e mobilizar, as massas para a
revolução. Se o fascismo sugeriu a estetização da política, Benjamin respondeu
com a politização da arte.

113
BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin y
el Instituto de Frankfurt. p. 300.
114
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 195.
115
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 194.
28

3 O FAZER ARTÍSTICO

Em 1934, um ano antes de escrever o ensaio sobre A obra de arte


na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin profere uma conferência no
Instituto para o Estudo do Fascismo, intitulada O autor como produtor, onde aborda
o papel do escritor , mas que pode ser estendida a qualquer intelectual-artista, e a
necessidade destes redefinirem o seu papel dentro do momento histórico que lhe
serve como pano de fundo. Nesta conferência Benjamin é fortemente influenciado
por Bertolt Brecht, e a sua noção de refuncionalização da arte, conceito este
também utilizado por Benjamin no ensaio sobre A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica.

Para abordar esta problemática, isto é, o papel e o posicionamento


do artista, Benjamin inicia sua conferência discorrendo sobre como seria o
tratamento destinado aos poetas na República de Platão, este “tinha um alto
conceito do poder da poesia. Porém julgava-a prejudicial, supérflua numa
comunidade perfeita”116. Em conseqüência disto o destino dos poetas, na
comunidade perfeita de Platão, seria o banimento. Afirma Benjamin, que desde este
posicionamento radical de Platão dedicado aos poetas,

a questão do direito a existência do poeta raramente tem sido


colocada com essa ênfase; mas ela se coloca hoje. Não se coloca,
em geral, nessa forma. Mas a questão vos é mais ou menos familiar
sob a forma do problema da autonomia do autor: sua liberdade de
escrever o que quiser.117

Para Benjamin, por causa do contexto histórico em que se


encontrava, o autor devia se posicionar e, de certa forma, abdicar de sua
autonomia. Afirma ele que

a situação social contemporânea o força a decidir a favor de que


causa colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras
116
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 120.
117
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 120.
29

destinadas à diversão, não reconhece essa alternativa. Vós lhe


demonstrais que, sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos
interesses de classe. O escritor progressista conhece essa
alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual
se coloca ao lado do proletariado. É o fim de sua autonomia. Sua
atividade é orientada em função do que for útil ao proletariado, na
luta de classes. Costuma-se dizer que ele obedece a uma
tendência.118

O posicionamento do artista em favor da causa proletária tem como


conseqüência o fim de sua autonomia, mas, e quanto à qualidade de sua produção
artística? Do debate que surge desta relação, isto é, entre a tendência política e a
qualidade artística, podem surgir duas formulações. Na primeira formulação, “uma
obra caracterizada pela tendência justa não precisa ter qualquer outra qualidade” 119,
e na segunda, “uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter
necessariamente todas as outras qualidades” 120. Benjamin fica com esta segunda
formulação. Para ele

a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de


vista político quando for também correta do ponto de vista literário.
Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma
tendência literária. Acrescento imediatamente que é essa tendência
literária, e nenhuma outra, contida implícita ou explicitamente em
toda tendência política correta, que determina a qualidade da obra.
Portanto, a tendência política correta de uma obra inclui sua
qualidade literária, porque inclui sua tendência literária.121

Benjamin segue a sua análise, sobre a tarefa do intelectual-artista,


sugerindo uma alteração da pergunta proposta pela crítica materialista na sua
abordagem as obras artísticas para entender mais claramente a relação entre
tendência e qualidade. Afirma ele que quando essa crítica abordava uma obra
“costumava perguntar como ela se vinculava às relações sociais de produção da
época”122. Ao invés disto, a sua proposta é a de perguntar “como ela se situa dentro
dessas relações?”123. O objetivo desta pergunta é a de demonstrar qual “a função
exercida pela obra no interior das relações literárias de produção de uma época. Em
118
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 120.
119
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 121.
120
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 121.
121
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 121.
122
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 122.
123
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 122.
30

outras palavras, ela visa de modo imediato a técnica literária das obras.” 124 E é
através deste conceito, o de técnica, que se torna possível analisar as obras
literárias à partir de uma perspectiva materialista. E será, também, através do
conceito de técnica que Benjamin irá depurar a relação existente entre tendência e
qualidade, afirma ele

o conceito de técnica pode ajudar-nos a definir corretamente a


relação entre tendência e qualidade, mencionada no início. Se em
nossa primeira formulação dissemos que a tendência política correta
de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua
tendência literária, é possível agora dizer, mais precisamente, que
essa tendência literária pode consistir num progresso ou num
retrocesso da técnica literária.125

Para esclarecer ainda mais essa relação


(tendência/qualidade/técnica) Benjamin utiliza-se de um exemplo concreto das
condições literárias de sua época. Ele usa como referência, para demonstrar a
“interdependência funcional que existe sempre entre a tendência política correta e a
técnica literária progressista”126, o escritor Sergei Tretiakov. Este fazia uma distinção
“entre o escritor operativo e o informativo. A missão do primeiro não é relatar, mas
combater, não ser espectador, mas participante ativo.” 127 E foi este primeiro tipo que
ele personificou, participando diretamente de atividades político-culturais na comuna
Farol Comunista, junto aos camponeses, no período da coletivização da terra na
Rússia. Benjamin escolhe o exemplo de Tretiakov, justamente, para mostrar

como é vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia


de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de
nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de
expressão adequadas às energias literárias do nosso tempo.128

Ele utiliza-se deste exemplo para demonstrar que em sua época as


formas literárias estavam passando por um “grande processo de fusão” 129, e que
continuar a acreditar e estabelecer oposições entre elas acabariam por se tornar
124
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 122
125
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 122-123.
126
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 123.
127
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 123.
128
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 123.
129
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 124.
31

uma discussão estéril. Esse processo de fusão fica patente no jornal. É na imprensa
soviética que Benjamin vai buscar as bases para defender a “tese do intelectual
como produtor”130. Na imprensa soviética

se percebe que o processo de fusão, já mencionado, não somente


ultrapassa as distinções convencionais entre os gêneros, entre
ensaístas e ficcionistas, entre investigadores e vulgarizadores, mas
questiona a própria distinção entre autor e leitor. Nesse processo, a
imprensa é a instancia decisiva, e por isso é dela que tem que partir
qualquer análise do intelectual como produtor.131

Era esta a situação russa, porém, na Europa Ocidental o cenário


era outro, a imprensa estava nas mãos, como o próprio Benjamin coloca, do
inimigo, ou seja, estava sob o domínio do capital. Neste cenário os intelectuais de
esquerda não atingiam, realmente, o propósito de suas convicções.

Um dos fenômenos mais decisivos dos últimos dez anos foi o fato
de que um segmento considerável da inteligência alemã, sob a
pressão das circunstâncias econômicas, experimentou, ao nível das
opiniões, um desenvolvimento revolucionário sem, no entanto, poder
pensar de um ponto de vista realmente revolucionário seu próprio
trabalho, sua relação com os meio de produção e sua técnica.132

Dessa forma, o intelectual não se transforma num produtor, isto é,


não assume um posicionamento dentro do processo de produção. Ele está ao lado
do proletariado, apenas, de uma forma ideal, ele compartilha com o proletariado,
somente, as suas convicções, opiniões e disposições e nada mais, portanto, ele
assume o “lugar de um protetor, de um mecenas ideológico. Um lugar
impossível.”133 Este se torna um lugar impossível, pois, para Benjamin o verdadeiro
“lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em
função de sua posição no processo produtivo.” 134

É neste momento que Benjamin insere o conceito de


refuncionalização de Brecht. Conceito este que será fundamental na caracterização

130
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 125.
131
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 125.
132
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 125.
133
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 127.
134
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 127.
32

do intelectual como produtor.

Brecht criou o conceito de “refuncionalização” para caracterizar a


transformação de formas e instrumentos de produção por uma
inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos
meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o
primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não
abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do
possível, num sentido socialista. No prefácio de Versuche (Ensaios),
esclarece Brecht: “a publicação deste texto ocorre num momento em
que certos trabalhos não devem mais corresponder a experiências
individuais, com caráter de obras, e sim visar a utilização
(reestruturação) de certos institutos e instituições”.135

Benjamin afirma “que o aparelho burguês de produção e publicação


pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até
mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a
existência das classes que o controlam.” 136 Assim, a refuncionalização seria a arma
capaz de possibilitar a modificação deste aparelho produtivo, ela teria como
objetivo, não mais abastecê-lo, mas sim modificá-lo, em favorecimento do regime
socialista. No caso da fotografia, que dentro do aparelho produtivo burguês obedece
a modismos (transformando até mesmo a miséria em objeto de contemplação
artística, em objeto de consumo), Benjamin defende que se deva modificar esta
situação, exigindo dos fotógrafos “a capacidade de colocar em suas imagens
legendas explicativas que as liberem da moda e lhes confiram um valor de uso
revolucionário.”137 Neste caso modificar o aparelho, e não abastecê-lo, “significaria
derrubar uma daquelas barreiras, superar uma daquelas contradições que
acorrentam o trabalho produtivo da inteligência. Nesse caso, trata-se da barreira
entre a escrita e a imagem.”138 Aqui retorna a questão sobre a fusão das formas
literárias, acrescentando a essa fusão as novas formas técnicas de manifestação
artística, como a fotografia e cinema, e também outras como o concerto musical. A
única forma de refuncionalizar o concerto musical para os objetivos revolucionários
seria a de fundi-lo, amalgamá-lo, com a forma literária, isto é, “a tarefa de
transformar o concerto não é possível sem a cooperação da palavra. Somente ela,

135
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 127.
136
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 128.
137
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 129.
138
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 129.
33

como diz Eisler, pode transformar um concerto num comício político.” 139

Assim, o intelectual que se ocupa da tarefa de refuncionalizar os


meios de produção tem que ter como objetivo, além de se apropriar dos meios e
remodelá-los tendo em vista fins revolucionários, a necessidade de que a sua obra
adquira “um comportamento prescritivo, pedagógico” 140. Afirma Benjamin que o

escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O


caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro
lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em
segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais
perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz
consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua
capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou
espectadores.

Contudo, as observações de Benjamin indicavam, não regras, mas,


exemplos direcionados aos intelectuais, que se sentiam solidários a causa
proletária, a tomarem um posicionamento mais concreto. Este posicionamento, de
certa forma, seria a de traírem a classe de sua origem, destituindo-a de seu
aparelho de produção e, realmente, modificando-o para revolução proletária. Para
isso, essas observações exigiam, apenas uma coisa, do intelectual-artista. E esta
seria “a reflexão: refletir sobre a sua posição no processo produtivo.“ 141

139
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 130.
140
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 132.
141
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. p. 134.
34

CONCLUSÃO

Os pontos luminosos da constelação benjaminiana, observados


neste trabalho, podem ser vistos, exatamente, como propostos pela metáfora usada
pelo autor, isto é, podem ser vistos como estrelas. Estrelas que, até já, se
extinguiram, mas que seu brilho e influência continuam a nos guiar, como as
estrelas guiavam os antigos navegadores que se lançavam no imenso mar
desconhecido. Hoje as suas observações sobre os rumos da arte, e do fazer
artístico, após o advento da reprodutibilidade técnica assumem um caráter, quase,
profético. Profético, pois, o alcance e as possibilidades que a tecnologia digital e a
Internet proporcionaram para a produção e a recepção artística são inimagináveis.
Hoje o valor de exposição, notado por Benjamin, assumiu proporções mundiais,
com o advento de ferramentas como o YouTube *, onde o compartilhamento de
vídeos se tornou ilimitado, o que possibilita novas discussões acerca da influência
dessas novas técnicas sobre a arte. Por outro lado, algumas das suas observações
não se sustentaram por muito tempo, como a sua afirmação, na conferência
intitulada “O autor como produtor”, de que o regime socialista soviético não
perseguiria os poetas, como na República de Platão, fazendo com que certas
estrelas que compunham sua constelação se apagassem.

Hoje já não existe mais aquele embate entre o capitalismo e o


proletariado, embate este que foi a influência da maioria das observações de
Benjamin abordadas neste trabalho. Entretanto, as estrelas do universo
benjaminiano continuam a emitir sua forte luminosidade para nós, mantendo viva,
assim, a possibilidade de reformular suas observações, o que teria como
conseqüência a criação de novas constelações.

*
Programa criado para o compartilhamento de vídeos na Internet.
35

BIBLIOGRAFIA

BECKENKAMP, Joãosinho. Seis modernos. – Pelotas: Ed. Universitária / UFPel,


2005.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. [tradução


José Carlos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista] – 2. ed. – São Paulo:
Brasiliense, 1991. (Obras escolhidas; v. 3)

______________ . Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história


da cultura. [tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin] –
7. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1)

______________ . Rua de mão única. [tradução Rubens Rodrigues Torres Filho,


José Carlos Martins Barbosa] – 5 ed. – São Paulo: Brasiliense, 2000. (Obras
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______________ . HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W.; HABERMAS, J.. Textos


escolhidos. [traduções José Lino Grünnewald ... et al.] – São Paulo : Abril
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BUCK-MORSS, Susan. Origen de la dialéctica negativa: Theodor W. Adorno, Walter


Benjamin y el Instituto de Frankfurt. [traducción Nora Rabotnikof Maskivker] – 1.
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DURÃO, Aylton Barbieri. O fragmentário em Walter Benjamin. In: Boletim CCH, 28.
Londrina : Eduel, 1995.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:


Perspectiva: FAPESP: Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 1994. (Coleção estudos: 142)

KOTHE, Flávio René. Benjamin & Adorno. Confrontos. – São Paulo: Ática, 1978.
(Ensaios; 46) Originalmente apresentado como tese de doutoramento à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, em 1975.
36

________________ . Para ler Benjamin. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.


(Série para ler)

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin.


[tradução Maria Elena Ortiz Assumpção; revisão técnica Márcio Seligmann] –
Bauru, SP : EDUSC, 2003. (Coleção Ciências Sociais)

SCHOLEM, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: judaica I. [seleção


de textos: Haroldo de Campos, J. Guinsburg] Ed. Perspectiva – São Paulo, 1994.
(Coleção Debates)

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