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O “crime da rua Cuba” e o agendamento da monstruosidade

no jornalismo policial dos anos 80

Daniele Ramos Brasiliense (UFRJ)


Resumo

No fim da década de 80, o jornalismo policial brasileiro é surpreendido por um


caso de homicídio que fugia às regras cotidianas dos crimes urbanos da cidade de São
Paulo. O famoso caso “crime da rua Cuba” traz a história de uma casal da alta sociedade
paulista, Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cercília Delmanto, assassinados
misteriosamente em sua casa, no dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 1988. Com o
decorrer das investigações a polícia, apoiada pelos jornais, indica o filho mais velho,
como principal suspeito da morte dos pais. Tal evidência se acirra na história deste
crime pela contribuição da imprensa, especialmente pelo trabalho dos jornalistas
investigativos da época.
Com base neste episódio, o artigo irá mapear as marcas do sentido da
monstruosidade no jornalismo, provocada pela suspeita de um crime de parricídio nunca
oficialmente provado. Importa-nos conhecer a maneira pela qual, os jornais Folha de
São Paulo e Estado de São Paulo agenciam a provável atitude monstruosa na época, do
jovem Jorginho Bouchabki.
Introdução

Nas primeiras semanas do mês de abril, do nosso presente ano de 2008,


estivemos diante de um caso em que o público gritava por uma verdade e a imprensa
prontamente tentava correspondê-lo: o caso do assassinato da menina Isabella Nardoni.
Em momentos de desconhecimento a respeito do sujeito que havia provocado a
brutalidade de espancar uma criança e jogar seu corpo semimorto pela janela do sexto
andar do prédio onde estava, provocou desespero social e sede de respostas. Ora, quem
poderia fazer isso com uma criança no auge da inocência dos seus cinco anos de idade
se não um monstro?
Esse acontecimento foi inicialmente caracterizado pela contradição de uma
realidade ordenada, ou seja, um assassinato sem explicações aparentes, sem indícios de
invasão no local do crime, de alguém com intuito de cometer um assalto ou uma
vingança, mas especialmente, por ter como suspeito mais próximo, Alexandre Nardoni,
o pai de Isabella. Com uma cobertura intensa, logo nos primeiros dias já ouvimos
acusações por parte da imprensa que pintava Alexandre Nardonie sua mulher, Ana
Carolina Jatobá como monstros sociais, sem que tivessem ainda provas concretas de
suas participações no crime, anunciadas por autoridades judiciárias ou policiais. Mas,
não é nenhuma novidade também, que além de espetacularizar as notícias ao aplicar
purpurinas que dêem a ela um tom mais chamativo, a imprensa brasileira tem poder e
autoridade discursiva, que cotidianamente impregna o imaginário social com suas
“verdades” construídas por narrativas agenciadas.
A morte da menina Isabella e todo o suspense que cercava a investigação desse
caso e especialmente a liberação por habeas corpus dada ao casal depois de uma semana
do crime, pelo desembargador Canguçu de Almeida, fizeram com que o repórter do
Fantástico, Caco Barcelos, levantasse do tumulo o assassinato misterioso do casal Jorge
Toufic Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki ocorrido em 1988, na rua cuba
do bairro Jardins, na cidade de São Paulo. O desembargador Canguçu havia dado
também liberdade a Jorge Delmanto Bouchabki, filho do casal e único suspeito do
assassinato na época. Conhecido como “O crime da rua Cuba”, a morte do casal jamais
foi decifrada.
O crime da rua Cuba é um dos casos mais antigos de assassinato de família no
Brasil, onde o agendamento da imprensa marca a trajetória de um típico sujeito monstro
que possivelmente assassinou seus pais a sangue frio, mas que segundo a justiça não
existem provas que o condenem. A imprensa ciente da não existência de provas que
pudessem culpar Jorginho alimentou esse assunto por anos, julgando indiretamente o
rapaz como um monstro criminoso que matou sua própria família. Vale lembrar que
mesmo com todos os indícios apontados para um provável criminoso, o julgamento
deste só deve ser feito após a acusação e condenação judicial feita por provas e
acareações policiais. Portanto, o jornalismo não é a autoridade legal que tem o direito de
proporcionar tal juízo.
Sobre esse agendamento proporcionado pela imprensa no fim dos anos de 1980
que iremos falar neste artigo. Nossa intenção é apresentar sob a forma de reflexão a
cobertura jornalística de um crime sem respostas, mas que obteve em meio às
investigações, sutis verdades apresentadas pelos jornais da época, que não queriam
deixar desamparados seus leitores. A angústia do caso recente da menina Isabella nos
remete a angústia adormecida do crime da Rua Cuba.
Este artigo tem o objetivo de pensar sobre o apontamento por parte da imprensa,
de possíveis verdades que indicam a monstruosidade criminosa de um sujeito que é
diferente e que se encontra no lugar da anormalidade. Justificar um crime e apontar no
um monstro como causador deste é justificar e confirmar os espaços sociais que se
separam entre ordem e desordem.

Desenvolvimento

1- O crime da rua Cuba


No dia 24 de dezembro de 1988 o casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecília
Delmanto Bouchabki foi encontrado morto na cama onde dormiam, com tiros de
revolver na cabeça. Na manhã deste dia, o filho mais velho, Jorginho, havia chegado
por volta das 7 horas na casa da namorada Flávia Cardoso Soares a convidando para um
passeio. Sem entender sua atitude nada comum, Flávia convida o rapaz para dormir,
mas ele não aceita e diz que tem medo de ter pesadelos. O casal de namorados discute.
Antes do meio dia, Jorginho telefona diversas vezes para casa querendo saber se
estava tudo bem por lá. Á tarde, Jorginho volta para casa e encontra as empregadas e o
irmão intrigados com o sono duradouro dos seus pais que ainda não haviam levantado.
Jorginho pede para uma das empregadas para espiar da janela. Ela apóia uma escada e
com um cabo de vassoura, ao conseguir empurrar um pouco a janela de correr, a
empregada consegue ver o casal deitado cobertos por um lençol como se ainda
estivessem dormindo. Jorginho não quis entrar pela janela ou tentar arrombar a porta do
quarto de seus pais por medo de encontrar algum assaltante.
Correu então pelas ruas e ao encontrar uma viatura policial os chamou para que
fossem averiguar o que havia acontecido no quarto dos pais. Os policiais entraram pela
janela e ao puxar o lençol deram conta que ali havia ocorrido um assassinato.
No ano anterior ao crime, um ladrão havia invadido o quarto do casal e foi pego pela
polícia que o prendeu imediatamente. Cogitou-se a possibilidade de vingança deste
sujeito, mas logo depois, encontraram o rapaz em outra cidade onde vivia há algum
tempo.
A mãe de Jorginho era filha de um dos maiores juristas do país, Dante Delmanto e o
delegado que primeiro chegou a casa era o tio de Maria Cecília. Um caso de assassinato
numa família influente chamou maior atenção dos jornais e das autoridades policiais.
De acordo com uma inicial perícia a posição dos corpos mostrava a possibilidade do
marido ter matado a mulher e logo depois se matado. Mas não havia revolver algum na
cena do crime que pudesse levar essa história a diante. A perícia também detectou que
os corpos foram mexidos e o local do crime arrumado.
Sem sinais de arrombamento nas portas e com os muros de plantas intactos, sem
aspecto algum de deterioração, a possibilidade de invasão externa para a casa foi
descartada. O assassino estava dentro de casa, conhecia os cômodos e tinha a chave da
porta do quarto onde as vítimas foram encontradas. Tiros não foram ouvidos, nem a
cadela que tomava conta do quintal havia se manifestado naquela madrugada. O
mistério então, do crime da rua Cuba se firmava diante desses sinais.
Jorge e Maria Cecília estavam sendo ameaçados de morte por donos de uma
construtora da casa que haviam comprado no litoral de São Paulo.Mas depois do
depoimento que deram na delegacia, ficou fora de cogitação qualquer tipo de
envolvimento destes sujeitos no crime.
A polícia resolve acusar Jorginho por diversos motivos. O primeiro deles está ligado
às informações que a polícia colheu de depoimentos de pessoas que conviviam com a
família. Muitos disseram que Jorginho era agressivo e andava dando trabalho para os
pais e que uma vez atirou a prancha de surf na direção do pai.
Outra evidência mostrada pela polícia para incriminar o filho mais velho, era que
Jorginho entregou a chave do quarto na hora em que o delegado chegou, ou seja, ele
tinha a chave e não tentou abrir a porta para ver o que estava acontecendo com os pais.
E se a porta estava fechada e ele estava com uma chave, poderia ter invadido o quarto e
matado os pais. Na noite anterior ao crime, Jorginho havia mentido para o pai ao contar
que havia passado no vestibular e na manhã do dia 24 o resultado oficial sairia e isso
seria muito vergonhoso para o rapaz.
O revolver do vigia da rua cuba, do mesmo calibre da arma usada contra os
Bouchabki sumiu dias antes da guarita do guarda, no mesmo momento em que Jorginho
chamou o vigia para fazer um concerto na sua casa. Um outro indício muito comentado
pela sociedade foi o fato de logo depois da morte dos pais Jorginho ele se dirigiu ao
clube para se divertir na piscina. Isso aparentava frieza e desapego ao luto familiar.
Todos as acusações feitas pela polícia foram amparadas pelas autoridades que
faziam parte da família e que com seu poder acabaram desconstruindo em defesa de
Jorginho e por proteção ao rapaz alguns indícios apontados pela polícia como
importantes. Mesmo com toda a acusação não se conseguiu provas concretas da
participação de Jorginho no crime e muito menos sua confissão.
O crime da rua Cuba então, é um momento da história da cobertura jornalística de
crimes no Brasil muito contraditória, sem resultados plenos. Mas no entanto, não é por
isso que de alguma forma a imprensa não tenha se colocado como uma autoridade
julgadora, mesmo de forma indireta. Seus discursos são criações retóricas que fizeram
com que Jorginho se enquadrasse no perfil de um monstro.
O agendamento da monstruosidade

Com o aumento da violência urbana a partir de 1980 os jornais acompanharam sua


evolução paralelamente. Nos anos 80 o jornalismo policial, então, deixa de ocupar um
lugar menorizado nos jornais brasileiros e passa a ser considerado tão importante como
a editoria de política, por exemplo. A cumplicidade entre jornalistas e policiais já
existiam desde a década de 60, mas se firmou ainda mais nessa época. Nos começo dos
anos de 1990 os assuntos de segurança pública passam a ser fundamentais para os
leitores que acompanham o avanço de um pais violento.
Com isso, os jornais marcam suas pautas policiais com as reportagens sobre crimes
que chamem a atenção do público e o trabalho de espetacularização se fortalece a partir
desse agendamento.
As ocorrências violentas das cidades eram gerenciadas pelos textos dos jornalistas
policiais que ficavam com a parte mais emocionante do jornal, onde o sangue escorria.
E foi no momento auge do final da década de 80 que o crime da rua Cuba ocorreu. Era
uma história perfeita para prender o leitor, um crime misterioso sem aparentes
conclusões.

O jornalismo policial especificamente aposta suas fichas nessa escolha simbólica


dos sujeitos envolvidos direta ou indiretamente num crime, condenados ou não, para
que seus discursos se tornem mais confiantes. Não podemos deixar de lembrar do
personagem Mão Branca criado na década de 1970 como uma forma de materialização
da criminalidade. Portanto, verdadeiros ou criados, os sujeitos monstruosos sempre são
prioridade na construção dos discursos da imprensa. Os títulos e textos que apontam os
sujeitos como monstros, assassinos frios e violentos são a base de uma reportagem
policial que irá fazer sucesso entre os leitores.
Enquanto apontar um bandido, traficante ou seqüestrador como monstro faz com
que aumente sua fama de mal e ele se torne uma celebridade criminosa como acontece
hoje em dia com os grandes personagens do tráfico do Rio de Janeiro, por exemplo, ou
como aconteceu com a criação de Mão Branca, ao mesmo tempo, o uso deste padrão de
tipificação de sujeitos criminosos se encaixam em personagens que não foram
condenados pela justiça, mas que sem pudor, o jornalismo policial se encarrega de faze-
lo.
Os manuais de redação são claros ao dizerem que não existe culpado antes do
julgamento de um crime, mas sim acusado. Ora mais isso muda alguma coisa para
apontar uma pessoa indiciada por um crime como um monstro? Não muda, pois mesmo
como suspeito, as manchetes desejam apontar um personagem que se enquadre como
culpado do crime, por mais que se escolha nos textos o uso da palavra acusado,
indiciado, ao invés de criminoso ou assassino. O jornalismo cotidianamente e há anos
procura sempre apontar um culpado aos seus leitores que aguardam tal resposta.
Interessa-nos aqui, pensar a diferença, como essência da identidade criminosa,
que a partir da representação é marcada pela exclusão. Kathryn Woodward fala sobre
sistemas classificatórios que demarcam o lugar da diferença. Citando Durkheim, a
autora se apóia na idéia de que o sistema classificatório gera ordem à vida social e
produz os significados por afirmações discursivas e por rituais (WOODWARD in
SILVA, 2000).
As concepções de Durkheim acerca da relação entre autoridade moral e consciência
coletiva (DURKHEIM, 1970) podem ser tomadas para pensarmos a atuação da
imprensa, que, ao produzir sentidos através de práticas rituais, estimula os valores uma
vez classificados pela sociedade. Ou seja, a mídia utiliza-se de sistemas classificatórios
observados na cultura para dar sentido e construir representações do mundo social.
Woodward diz que, entre os membros de uma sociedade, há um consenso sobre como
classificar as coisas para manter a ordem social. Neste sentido, entendemos que a mídia
ajuda na padronização e naturalização dos valores determinados pela cultura, e organiza
assim os sentidos separando o puro do impuro e o que pertence à ordem do que não
pertence.
A idéia de ordem e desordem nasce a partir de uma classificação simbólica. Os
criminosos só constituem o lugar da transgressão e da exclusão quando classificados
como tais. Mary Douglas, em Pureza e Perigo, diz que se enxergarmos a diferença
entre dentro e fora, masculino e feminino, com e contra, iremos criar uma aparência de
ordem. Porém, quando as noções de sagrado e impuro se misturam, entramos na idéia
de tabu. O tabu é o elemento demoníaco que não pode ser tocado, é algo intocável,
proibido, misterioso, consagrado e perigoso.
As primeiras reportagens sobre o crime da rua Cuba dão evidência de culpa ao filho
do casal Jorge Delmanto. O jornal Estado de S.Paulo trás na capa do dia 20 de abril,
meses depois de muita investigação sobre o assassinato dos Bouchabki o título:
“Polícia indicia Jorginho no caso rua Cuba”. A matéria traz duas fotos do lado
esquerdo Jorginho e ao lado a cama do casal morto coberto por um lençol. Os destaques
dos subtítulos das fotografias estampadas em larga resolução eram: “Jorginho, principal
suspeito”e “ crime na véspera de Natal”. Essa matéria coloca Jorginho em um lugar de
destaque não apenas por causa do apontamento policial sobre sua possível participação
no crime, mas especialmente como forma de resposta sobre a “verdade” daquele
misterioso assassinato no qual a sociedade clamava por respostas concretas.
O poder de revelação de um acontecimento, dado por um mediador como o
jornal, contém uma autoridade mundana, onde suas objetividades em pronunciar os
fatos e suas técnicas de ordem se misturam a esta composição do sistema cultural, que
se baseia, como mostra Geertz, apenas em crenças consolidadas. A proclamação da
experiência, ao mesmo tempo em que reafirma, provoca e retifica estereótipos e
normaliza preconceitos, também empobrece determinadas experiências.
A naturalização dos fatos contribui também para a afirmação da imagem dos
sujeitos sociais a partir do senso comum. Tratar a realidade de forma diferente, como
mostra Clifford Geertz (1997), é mais do que uma surpresa empírica, é um desafio
cultural, no mundo onde o aceitável é o que é comum. A familiaridade nos cega,
segundo o autor, quando ficamos imersos no cotidiano.
Sobre essa afirmação de imagens dos sujeitos sociais, Michel Foucault, em sua
obra Os anormais, fala sobre o poder dos discursos psiquiátricos da década de 50
(séc.XX), que tinham, de certa forma, autoridade para condenar um criminoso, ao
relatar seus comportamentos. Foucault classifica tais discursos como grotescos pelo fato
de serem criados por pessoas desqualificadas que detinham efeitos de poder
(FOUCAULT, 2001: 16). Para ele, os discursos sobre os criminosos são “enunciados
que possuem o estatuto de discursos verdadeiros, que detêm efeitos judiciários
consideráveis e que têm, no entanto, a curiosa propriedade de ser alheios a todas as
regras, mesmo as mais elementares de formação de um discurso científico (...)”
(FOUCAULT, 2001:14). Esta observação de Foucault nos remete ao pensamento sobre
os jornalistas e sua relação com os discursos providenciados pelas noções do senso
comum sobre sujeitos identificados como criminosos na sociedade contemporânea. As
“rotinas interacionais”, como propôs Fairclough, são similares no caso dos discursos
psiquiátricos da época e das narrativas jornalísticas sobre as imagens dos indivíduos.
As concepções arraigadas do senso comum fazem com que os jornalistas
construam lógicas de pensamentos não contraditórias, como as dos relatos psiquiátricos
da década de 50, mesmo na tentativa de usar regras como a neutralidade. Foucault, ao
analisar os relatos dos peritos, percebe que seus valores são princípios para descrever o
criminoso e para criar hipóteses sobre as realidades dos crimes cometidos. Estes
profissionais demonstram ter pensamentos naturalizados pelo senso comum e pelas
noções de tabu existentes na história social. Os raciocínios não se baseiam nas
realidades contraditórias, mas, como relata Foucault, o pensamento se valida de uma
falsa objetividade onde os psiquiatras declaram: “nós como peritos, não temos de dizer
se ele cometeu o crime que lhe imputamos. Mas suponhamos que ele tenha cometido”
(FOUCAULT, 2001: 21). A partir disso, criam-se hipóteses a respeito dos acusados e
geralmente as narrativas são sobre sujeitos que ocupam o lugar da desordem, da
impureza. São indivíduos que quebraram algum tipo de tabu e, portanto, precisam ser
separados.
Assim fazem também os jornalistas, quando, ao relatarem os fatos, apresentam
os criminosos como personagens que são incapazes de interagir com o mundo ordenado,
ou que têm preferência pelo lugar da desordem, sendo estes motivos que os levam ao
crime. As narrativas espetaculares fazem muitas vezes com que a realidade passe do ato
à conduta, como explica Foucault. O comportamento histórico da vida de um criminoso
relatado por um poder discursivo não é nunca visto fora do crime. Todos seus atos são
justificados pela sua maneira de viver a vida. Explica Foucault: “descrever seu caráter
de delinqüente, descrever o fundo das condutas criminosas que ele vem trazendo
consigo desde a infância, é evidentemente contribuir para fazê-lo passar da condição de
réu ao estatuto de condenado” (FOUCAULT, 2001:27).
Como se organiza o discurso da imprensa sobre a condição do sujeito que
cometeu o crime? A imprensa demonstra, a partir das suas idéias tradicionais do senso
comum, o perigo social e faz um discurso direcionado somente para o medo.
A idéia de normalidade nos faz pensar imediatamente a construção do anormal e
do monstruoso. Sobre isso, Foucault diz: “só há monstruosidade onde a desordem da lei
natural vem tocar, abalar, inquietar o direito...” (FOUCAULT, 2001:79). Para ele, a
desordem da natureza e a idéia de formação de um homem mais animal abalam a ordem
e, daí, faz surgir o monstro. É neste sentido que as identidades dos criminosos são
constituídas, como monstros sociais, seres dignos de estar separados do mundo da
normalidade, pessoas dignas de morte de acordo com a mentalidade dos que ocupam o
lugar da ordem. É este, por exemplo, o objeto da investigação foucaultiana em Eu,
Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: como se constroem os
diferentes discursos da ordem sobre um acontecimento “monstruoso”, no caso, um
crime de parricídio (FOUCAULT, 1977).
Jorge Delmanto, o principal suspeito da morte dos seus pais em entrevista quatro
anos depois, fala a Folha de S. Paulo sob sua tipificação monstruosa por parte da
imprensa que buscou desde a morte dos seus pais até o último julgamento que o
absolvera transforma-lo em bode expiatório para uma resposta ao caso que jamais havia
sido provado. A morte da família Bouchabki não poderia ser relacionada diretamente ao
filho mais velho do casal, Jorge Delmanto, sem que se concluísse sua culpa por parte da
justiça.

A história de Jorginho nos remete ao caso de Lizzie Bordem em Massachusetts, na


Nova Inglaterra do século XIX. Uma acusação de parricídio cai sobre a jovem Lizzie
Borden, que era a única suspeita por matar seu pai e madrasta a machadadas. Ao
contrário dos monstros originais e cotidianos (pobres, camponeses, sem referência de
família), considerados assim naquela época, Lizzie era uma moça jovem que ensinava
catequese todos os domingos na igreja, única herdeira de um rico patrimônio construído
pelos seus antecedentes e não uma simples camponesa pobre e descrente da ordem
cristã, pronta para ser condenada por uma típica prática de bruxaria. Seus advogados
conseguiram sua absolvição no julgamento, com argumentos sobre sua fidelidade à
igreja e sua descendência nobre.1
Mas mesmo sendo absolvida pela justiça, Lizzie é condenada pela imprensa da
cidade que, com intuito de vender seu jornal, constrói uma rima popular que começa a
circular na época em que ela passou pelo tribunal. A história do julgamento de Lizzie
teve grande abrangência nacional americana, visto que a jovem e rica donzela não teria
motivo nenhum aparente, assim como Jorge Delmanto, segundo os conceitos
estabelecidos pela ordem, para matar sua família, mas estava sendo acusada pelo
assassinato. A imprensa, então, se responsabiliza em anunciar este possível monstro e,
com ideais consolidados em um determinado tipo de sabá estereotipado, permite com
que sua imagem se aproxime no imaginário social a imagem de uma bruxa. Por muitos
anos, esse episódio foi lembrado pelos jornais, quando o crime fazia aniversário. A
imprensa acusava Lizzie todos os anos, embora ela tivesse sido considerada inocente
pelos juízes. A rima feita para propagar a história de Lizzie é até hoje cantada por
crianças em brincadeira de corda e especialmente em dias de Hallooween: “Lizzie
Borden took an axe; age gave has mother forty wacks; when she saw what she sad
done; she gave her father forty-one”.

Aqui fica a hipótese de que, mesmo tendo passado o tempo de caça às bruxas, na
Idade Média, e os tribunais já não estivessem mais condenando as mulheres por
participação em um sabá, o imaginário coletivo, depois de séculos, não deixa de fazê-lo.
Reparamos, no caso de Lizzie Borden, na condenação da jovem pela imprensa, com sua
fala autorizada, mesmo que a justiça, por falta de provas ou por não conseguir distinguir
ao certo a ordem da desordem, neste caso, diga que há inocência. Por isso, Lizzie
permanece até hoje no imaginário do que diz respeito à bruxaria, pelo folclore popular
das festas de halloween. As marcas populares do sabá, os estereótipos naturalizados por
séculos, davam direito, à sociedade do século XIX e à imprensa da época, a fazer tal
condenação. A grande massa, então, movida por um discurso sobre a verdadeira ordem
e sentindo-se ameaçada por tamanho ser monstruoso, promove uma espécie de
“julgamento merecido” e, consequentemente, sua condenação.

1
As pistas do crime que acabaram levando Lizzie ao tribunal foram todas justificadas, mesmo as mais
evidentes. Em quatro de agosto de 1892, Lizzie Borden anuncia para a empregada doméstica de sua
família que seu pai estava morto. Logo depois, sua madrasta também é encontrada com marcas da mesma
ferramenta que causou a morte do marido. Suspeitou-se de um machado encontrado no porão que, mesmo
sem ter marcas de sangue, estava com a alça destruída, como se tivesse passado por uma bruta limpeza.
Encontraram sangue nas roupas do quarto de Lizzie, mas essa prova também foi anulada por conta do
período menstrual pelo qual a acusada passava.
Esse julgamento merecido parte da condenação agendada pela imprensa, quando há
exploração da imagem de um culpado. Jorge Delmanto passou a ser o personagem
principal do crime da rua Cuba, onde sua monstruosidade é elegida pela sociedade
como resposta a um crime sem esclarecimentos. Jorginho é a celebridade do crime.
A imprensa individualiza uma realidade absolutamente contraditória como o crime
da rua Cuba ao reduzir seus sentidos a existência de um personagem que ilustre sua
história, que para o leitor será a “verdade” que mais se aproxima daquilo que ele crê que
possa ter acontecido. Faz parte do esquema de construção narrativa da imprensa sobre
um determinado fato, eleger um símbolo que aponte uma “verdade” mais conivente.
Jorge Delmanto além de personagem principal do caso da rua Cuba talvez tenha se
tornado para os jornalistas de policia uma espécie de inimigo, pois com tamanha
aproximação que estes profissionais tinham com a delegacia e especialmente, neste
caso, com o delegado Veloso Sampaio que indiciou Jorginho como suspeito foi afastado
do caso por insistir que ele era o autor do assassinato dos pais.

Meses depois do afastamento do delegado Sampaio, Jorginho volta a depor no


tribunal do júri e a imprensa faz a cobertura e como uma espécie de vingança chama
atenção de uma possível performace feita por Jorginho sob orientação de seu advogado.
Jorginho permanece o principal suspeito de suas narrativas. Esquece-se todas as
contradições do acontecimento e todas as lentes se voltam para a celebridade acusada.
O título da matéria na Folha de S.Paulo do dia 3 de junho de 1989 diz: “Jorginho chora
3 vezes no depoimento que seu advogado considera “excelente”.” A narrativa se
encaminha dessa forma: “A performace de Jorginho foi aplicada e eficiente na
demonstração da distância entre seu temperamento, sua personalidade e a
possibilidade de ter cometido o terrível crime de matar os pais na véspera do Natal de
1988. Ele foi seguro, tranqüilo, respeitoso, respondeu a todas as questões da juíza sem
cair em contradições, se manteve circunspeto com certa dose contida de sentimento e
choro a cada clímax emocional. José Carlos Dias achou “excelente” o desempenho de
Jorginho. A boa atuação de Jorginho ia contra todas as denúncias da investigação
policial, segundo o acusado, passadas integralmente à imprensa, o que Dias pediu a
juíza fazer constar e o advogado dava uma espécie de troco. “Agora respira-se um
clima diferente: o caso sai da alçada da polícia e passa à plenitude da razão
judiciária”, disse.”
Como se fosse um lobo na pele de cordeiro o comportamento de Jorginho é descrito
no momento em que estava no tribunal. A ênfase do jornal é dada a provável teatral
apresentação do rapaz a justiça. Mas em nenhum momento se coloca em questão se ele
havia feito uma performance, isso é tratado como verdade. É como se o monstro
Jorginho estivesse enganando as autoridades em cumplicidade com seu advogado ao
forçar o choro e ao se comportar bem, coisa que não é natural quando se trata de um
indivíduo reconhecido como monstro após ter sido apontado pela polícia como
assassino de seus pais.
Em novembro deste mesmo ano, o jornal Tribuna da imprensa no Rio publica a
matéria do jornalista José Louzeiro com o título: “Uma pedra no caminho da eficaz
polícia de SP: o crime da rua Cuba.” A polícia de São Paulo passava por bons
momentos nessa época, pois havia sido referência no pais por trabalhos importantes
como o de decifrar a ossada do carrasco nazista Joseph Mengale. E era sobre isso que
Louzeiro estava destacando em sua matéria, o bom trabalho da polícia e a contradição
do crime da família Bouchabki não solucionado. Mas toda a narrativa que Louzeiro faz
do crime parte dos movimentos feitos por Jorginho no dia do crime, seu histórico de
depoimentos e tudo que o poderia julgar como culpado do crime. José Louzeiro se
baseou no livro do colega jornalista de casos policiais, Percival de Souza, que na época
acabava de ter sido publicado. “O Crime da Rua Cuba” é o livro que acusa
deliberadamente em sua narrativa Jorge Delmanto de cometer tal atrocidade com sua
família. Toda a história é contada sob a observação policial do delegado Sampaio e os
rastros e indícios que poderiam ter julgado o filho mais velho como culpado.
Dessa forma ficou conhecido o crime da rua Cuba, pelas narrativas que se
agendaram para incriminar o personagem Jorginho que uma vez indiciado pela polícia
que nunca conseguiu de fato provar sua participação no crime, ficou taxado como um
indivíduo monstruoso que se encontrava no lugar da desordem social e que com isso
merecia a exclusão, ainda que fosse por exibição da sua figura nos jornais como
mentiroso.

Conclusão

O jornalista especializado em assuntos criminais se dedica a reportar a realidade


violenta da sociedade. Não é mais novidade que a partir de seus discursos, os jornais
enfatizam os crimes cotidianos sob a forma espetacular e como nos filmes de ação e
suspense hollywoodianos convocam a massa por agendamento, a acompanhar os fatos.
A chance de chamar a atenção do público com grandes coberturas de casos
policiais nunca é deixada de lado, ao contrário, quanto mais ênfase for dada a este tipo
de acontecimento, mais autoridade se ganha para apontar suas verdades. Os
infográficos, as fotografias e os textos bem elaborados formam um conjunto discursivo
que contribui para apontar uma “verdade” sobre determinado fato, embora o emblema
jornalístico ainda seja a imparcialidade. Mas é dessa “verdade” que o leitor gosta e essa
preferência se dá por rejeição á dúvida, por não aceitar uma não-resposta ou não-
justificativa sobre qualquer acontecimento que mesmo distante de sua vida pessoal,
fazem parte de sua realidade social. A sociedade se sente desamparada, “sem chão”,
desequilibrada se não conhecer “verdades”, causas ou comprovações sobre os
acontecimentos violentos que a cercam. É mais simples então, por questões de conforto
e segurança, reconhecer verdades afirmativas, impregnadas por um senso comum, do
que entender as contradições que cercam a humanidade em constante conflito.

Bibliografia

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