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ANAIS DO III ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES –

ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista


Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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O MESSIAS NA TRADIÇÃO PERSA E SUA VINDA DAS ÁGUAS

Júlia Câmara da Costa


Mestranda da Universidade de Brasília (UnB)
j.camaradacosta@gmail.com

Esta comunicação 1 pretende tornar mais compreensivo o tema do Messias nas


tradições judaica e persa. Para tal, utilizarei o texto judaico pseudepígrafo 4Esdras 13 (séc. I
d.C.), onde é revelado para o visionário, Esdras, a imagem de um homem saindo das águas.
Na interpretação da visão este é o Messias. Sendo assim, a ligação com a cultura iraniana é
evidente, já que no Zoroastrismo, religião que surgiu na Pérsia, o salvador (Saoshyant) surge
também das águas2. Tentarei mostrar a relação do Saoshyant na concepção do Zoroastrismo3,
que é descrito no texto Vendidad e no apocalipse Bahman Yasht4 (também chamado de Zand-i
Vohuman Yasht) com o homem que sai das águas no capítulo 13 do apocalipse judaico
4Esdras. Estes dois personagens apresentam-se num contexto de resistência cultural5, o que
remete ao mito do “rei vindo do Sol”, personagem que vinga a Ásia contra o Ocidente. 6
Apesar de haver relatos sobre o Saoshyant em outros textos persas, o foco deste artigo será em
sua aparição no Vendidad, por fazer clara menção ao nascimento do salvador a partir das
águas de um lago, e no BY, por fazer parte do gênero apocalíptico, assim como o texto
judaico em questão, além de fazer referência ao Saoshyant.
O Vendidad é uma coleção de textos que serve como compendio do Avesta, sendo um
código eclesiástico. Está dividido em 22 capítulos, ou fargards, que tratam de diálogos entre
Zoroastro e Ahura Mazda. Já a respeito do BY, este não é originalmente um apocalipse7, mas
sim “uma compilação secundária de material apocalíptico de diversas origens”, segundo
Hultgård 8 . De qualquer forma, este é o único texto que pode ainda ser chamado de
“apocalipse persa”, pois apresenta elementos, em sua narrativa, de caráter apocalíptico, como
os sinais anunciando o fim do milênio de Zoroastro e outros eventos relacionados ao fim dos
tempos, além do diálogo entre Zoroastro e Ahura Mazda, o “Senhor da Sabedoria”, a visão de
quatro eras e, posteriormente, a visão de sete idades (ambas com forte ligação com o livro de
Daniel). O que se tem hoje do BY é apenas um comentário produzido no período sassânida
(221 a.C.-642 d.C.) do original avéstico (um zand), assim, o texto é escrito em pahlavi, ou
seja, persa médio. O Vendidad também apresenta grave problema de datação, como a maioria
quase que absoluta dos textos persas zoroastrianos. O documento a que temos acesso também
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é escrito em pahlavi e, por conta disso, também é datado por alguns como sendo do período
sassânida. No entanto, especula-se que parte do material do livro seja da época dos Magi9,
durante o período aquemênida (entre 600 e 300 a.C.) e, talvez, que remonte até mesmo aos
primórdios do Zoroastrismo (hipótese que também é conferida ao BY).
Por outro lado, 4Esdras tem sua datação quase que precisa. É de comum acordo entre
os acadêmicos que o livro foi composto por volta de 100 d.C. Isso pelo fato, dentre outros, de
o livro começar com a sentença “no trigésimo ano após a destruição da nossa cidade...”, uma
clara referência à queda de Jerusalém em 70 d.C. Foi provavelmente escrito em hebraico na
Palestina, mas não há um consenso a respeito disso. Nele, o personagem principal tem sete
visões, que são interpretadas por um enviado de Deus, o anjo Uriel. Após ver a punição dos
inimigos, o juízo final, Jerusalém Celeste, o Messias, dentre outros, Esdras é designado a ditar
a cinco homens tudo o que viu, estes produzem noventa e quatro livros em quarenta dias.
4Esdras é um texto pertencente ao gênero apocalíptico do tipo “histórico” que se difere dos
demais textos judaicos dessa natureza. O motivo são suas referências à indução química e a
algo de bom saindo do mar, local do caos por excelência. Este último aspecto do texto é de
extrema importância para a presente pesquisa.
As águas eram, para alguns povos orientais antigos, o reservatório para todas as
possibilidades de existência, precediam toda a forma e sustentavam toda a criação. 10 Na
tradição egípcia, o caos era um oceano ilimitado, chamado Nun e trevas cobriam o abismo
escuro onde se encontravam essas águas. Lá estava a substância a partir da qual se formaria o
mundo.11 É interessante ver como o simbolismo aquático funcionava em sociedades antigas,
sendo este lugar do caos, de onde se origina a ordem, e provedor de criaturas maléficas. Outro
mito que remete a este papel das águas é o relativo à Labu, um gigantesco dragão marinho,
com 480 quilômetros de comprimento e 48 de altura que assolava a ordem do mundo
mesopotâmico. Era dotado de toda a força destrutiva das águas do caos. Nessa mesma linha
de pensamento têm-se o mito védico de Vritra, um arquidemônio, cujo nome significava
“oposição” e geralmente era imaginado como uma serpente gigante repousando sobre a
montanha (que continha em seu interior as águas primordiais). Vritra, que era traiçoeiro e
malévolo, também era associado á um javali flutuando nestas águas.12 Egito, Mesopotâmia e
Índia Védica eram sociedades do Antigo Oriente Próximo, anteriores ao surgimento da
apocalíptica, e que buscavam a ordem do cosmos por meio de batalhas com os seres do caos,
possuindo uma concepção de história circular. Muito diferente é o caso do mundo judaico,
que abarca em sua tradição a idéia de fim dos tempos, julgamento e ida aos céus. Mas, apesar

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das diferenças que estas sociedades apresentam entre si, os textos judaicos continuavam a ver
às águas, em especial o mar, como agente do caos, lugar do desconhecido e assustador.
Exemplo disso é a menção ao mito das “4 idades do mundo” no capítulo 7 do livro de
Daniel13.

Dn 7:2-4
[...] “Eu estava contemplando a minha visão noturna, quando vi quatro
ventos do céu que agitavam o grande mar. E quatro feras monstruosas
subiam do mar, uma diferente da outra. A primeira era semelhante a um leão
com asas de águia” [...].

No entanto, o texto 4Esdras dá um outro simbolismo às águas, totalmente diferente


dos outros textos e tradições que foram vistos. No capítulo 13 deste documento, Esdras tem
sua sexta visão:

4Esdras 13:1-3
[...] “Após sete dias eu sonhei um sonho na noite, e vede, um vento surgiu a
partir do mar e agitou todas as suas ondas. E olhei, e vede, esse vento fez
algo como a figura de um homem que saiu do centro do mar. E olhei, e vede,
que o homem voou com as nuvens do céu” [...].

Logo após, a partir do trecho 13:21, o anjo Uriel interpreta a visão de Esdras. O
homem que vê é “aquele que o Todo Poderoso havia guardado por muitas gerações, a quem
ele mesmo entregará sua criação”. Este, claramente, é o Messias judaico, apresentado de
maneira não usual, pois surge de um ambiente que habitualmente era visto como maligno. O
outro único paralelo que podemos traçar com este caso é com a tradição persa. Nesta, fala-se
da vinda do Saoshyant, que surge parta restaurar a ordem e fazer asha triunfar sobre druj.14 A
crença na vinda do Saoshyant provavelmente prosperou devido aos infortúnios que passaram
os persas, em especial após as conquistas alexandrina e árabe. 15 A princípio, a lenda do
salvador persa diz que o Saoshyant nasce de uma virgem grávida do sêmen de Zoroastro que
se encontra no lago Kasaoya. Esta informação é encontrada no texto Vendidad 19.5.

Vendidad 19.5
[...] “Eu devo matar a bruxa Knathaiti,
Até o vitorioso Saoshyant
Nascer do lago Kasaoya,
Do lado oriental,

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Dos lados do leste” [...].

No BY 9.1-2, também menciona-se o salvador persa, ainda que não seja feita
referência à sua concepção, mas imagina-se que já fosse de conhecimento geral a forma como
seu nascimento ocorreria, estando apenas implícita no texto. Diz-se somente que na idade de
30 anos, conversará com Ahura Mazda e aceitará a religião. Na realidade, o BY já incorpora o
tema de três Saoshyants, bastante comum na tradição. O primeiro deles, citado anteriormente,
nascerá no ano de 1600 e receberá o nome de Usedar. Há uma grande expectativa à chegada
do último deles, pois tornará a criação pura novamente, fará a ressurreição dos mortos e o
dará lugar ao “corpo final”.
Apesar de no Zoroastrismo popular sempre ter sido importante a expectativa de um
Saoshyant, foi criada uma versão mais complexa do mito. A variante do mito com três
Saoshyants consta no Denkard 8.14:12-14 16, onde é relatado que o profeta Zoroastro, ao se
aproximar de sua terceira esposa, por três vezes derramou seu sêmen no solo. Em vez de uma
única porção de sêmen, existem três no fundo do lago. Assim, três virgens predestinadas irão
se banhar neste lago, uma a cada milênio e a cada um dos filhos do profeta terá uma tarefa
redentora. O último deles tornará o mundo maravilhoso. A idéia de múltiplos Saoshyants
também representa os que ajudam Zoroastro em seu trabalho de salvação, podendo, até, ser
uma menção aos seguidores da religião, significando um grupo de pessoas que recusam
ativamente o mal17.
Sendo assim, é evidente a semelhança entre a versão judaica do messias vindo do mar
e do salvador persa concebido no lago Kosaoya. Estamos tratando de duas figuras
escatológicas que estão associadas, de alguma forma, às águas em um momento das narrativas
que remete aos seus surgimentos. Esta característica na descrição do Messias é exclusiva
destes textos - 4Esdras e documentos persas. Dessa forma, fica a questão: teria uma tradição
se apropriado da outra ou este é um caso de mesma idéia em ambientes diferentes? E, se
houve apropriação, como lidar com a datação problemática do acervo persa zoroastriano?
É, em grande, parte por conta dos textos persas que nos deparamos com perguntas
difíceis de serem respondidas no que concerne à discussão da apropriação de temas míticos
dentro dos contextos semítico e indo-europeu. Minha principal fonte de análise no corpus
documental zoroástrico é o BY, por ser o único representante do gênero apocalíptico
“histórico” entre os textos persas (como é 4Esdras, por exemplo, na tradição judaica) e,
obviamente, por fazer referência direta à figura do Saoshyant.

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Alguns temas que incorporarão os textos apocalípticos, tanto no ambiente indo-
europeu quanto no semítico, já aparecem no Avesta Novo18, como nos Yašts 13, 19, no Yasna
26 e no Vendidad 19 (como já foi visto). O Grande Bundahišn19 também apresenta temas
escatológicos e apocalípticos, em especial os capítulos 33 e 34. A história do mundo, desde o
rei mítico Hystaspes ao Saoshyant, salvador iraniano, é descrita no Denkard, o que incorpora
esta passagem no gênero apocalíptico. Além disso, a teoria das quatro idades do mundo já
aparece no Sudgar Nask. Estes e outros textos se assemelham ao BY e integram o grande
grupo de fontes persas que não podem ser precisamente datados. Para uma melhor
compreensão dos detalhes do BY que ajudam na questão da datação do mesmo, é necessário
reproduzir um trecho do capítulo 3:

BY 3:19-29:
[...] “E eu vi uma árvore no qual havia sete galhos, um de ouro, um de prata,
um de cobre, um de latão, um de chumbo, um de aço e um [no qual] ferro foi
misturado [...] O tronco que você viu, este é o material do mundo que eu,
Orhmazd, criei. E os sete galhos que você viu são as sete épocas que virão.
O de ouro é o reino de Wishtasp no qual eu e você conversamos sobre a
religião [...] O de prata é o reino de Ardaxshir, o Kay [...] O de cobre é o
reino de Ardaxshir, o restaurador do mundo [...] O de latão é o reino dos reis
arsácidas, que irão guiar o mundo da heresia do Buddha [...] O de chumbo é
o reino do rei Wahram Gor, que fará visível o espírito da paz [...] O de aço é
o reino do rei Husraw, filho de Kawad [...] O galho no qual ferro foi
misturado [este é o perverso reino dos dēws de cabelo partido da
descendência de Xeshm], quando será o fim do décimo século do nosso
[milênio], ó Spitaman Zarduxsht” [...].

A menção feita a um reino histórico, o de Husraw, ou Cosroés II, (531-579 d.C.), que
aparece no trecho acima é de grande importância para que se date o mesmo. No entanto, este
capítulo parece ser uma adição bem posterior, do séc. VI d.C., ao tema original de “quatro
idades do mundo”, que, possivelmente, remonta a séculos de distância. É importante lembrar
que não devemos confundir a datação do artefato com a datação da idéia. O francês Philippe
Gignoux assume o posto de opositor às idéias recorrentes sobre o assunto. Este se baseia em
alguns argumentos para descartar a originalidade persa no tema dos quatro impérios
simbolizados por metais, assim como para rejeitar a anterioridade persa no que tange o
Saoshyant e outros temas míticos relevantes no Zoroastrismo. Segundo o mesmo, estamos
lidando com tradições míticas e lendárias que foram acrescidas nos textos avésticos durante o
período sassânida. Haveria então muitas reinterpretações durante a passagem dos textos do
avéstico para o pahlavi. Também argumenta que aproximadamente ¾ do Avesta foram

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perdidos durante a conquista Árabe-Islâmica. Logo, não saberíamos sequer se certos textos
existiriam. Quantos textos novos teriam sido compostos em avéstico durante o período parta e
sassânida? Gignoux também propõe uma discussão filológica para demonstrar uma confusão
de temas que não seriam tão antigos, como todos pensam. Além de tudo, ainda discute a
possibilidade do BY ter sido composto no período helenístico, não configurando como um
apocalipse e não podendo manter fortes paralelos com textos que o são20. Também é bastante
questionada a própria existência de Zoroastro, o profeta fundador da religião. Seria ele apenas
uma figura mítica?21
No entanto, no que tange a datação dos textos zoroástricos, um outro argumento a ser
levado em consideração é o testemunho de Plutarco. Este historiador falava sobre a
cosmogonia e escatologia zoroástrica, assim como se encontram nos textos em pahlavi, já em
sua obra Sobre Ísis e Osíris 46-47 de 100 d.C.
Sobre Ísis e Osíris 46-47:

[...] “mas, um tempo destinado deverá vir quando será decretado que
Areimanius, empenhado em trazer a pestilência e a fome, deverá ser por
estes absolutamente aniquilado e deverá desaparecer; e, em seguida, a Terra
deverá ficar em nível plano e lá deverá existir um estilo de vida e uma forma
de governo para um povo abençoado que deverá falar uma só língua.
Theopompus diz que, de acordo com os sagos, um deus irá dominar e o
outro será dominado, cada um num espaço de três mil anos e, mais tarde, por
mais três mil anos eles deverão lutar e guerrear e o único (deus) deverá
desfazer o trabalho do outro e finalmente o Hades deverá passar; e então as
pessoas serão felizes e eles não precisarão nem de comida nem apanhar
nenhuma sombra” [...].

Isto mostra que a tradição iraniana pouco mudou ao decorrer dos séculos. Com o
testemunho de Plutarco fica mais difícil acreditar que o tema do Saoshyant ou o das idades do
mundo com os metais no BY tenha sido uma inserção sassânida, ou seja, a partir de idéias
originalmente judaicas. Mas talvez, uma das saídas mais promissora na discussão sobre os
paralelismos entre os textos zoroástricos e 4Esdras seja a análise do tema da indução química
nas tradições persa e judaica.
Alguns textos persas e 4Esdras, capítulos 9, 12, 14, mostram muitas semelhanças
quanto ao tema de estados alterados de consciência por indução química22.

4Esdras 9:24-25

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[...] “mas vá a um campo de flores onde nenhuma casa tenha sido construída
e coma somente as flores do campo, e não deguste nenhuma carne nem beba
nenhum vinho, mas coma somente flores e reze para o Altíssimo
continuamente – então eu virei e conversarei contigo.
Então eu fui como ele me direcionou, ao campo que ele chamou de Ardat, e
lá eu sentei entre as flores e comi as plantas do campo, e o nutrimento que
elas em ofereceram me saciou. E após sete dias, enquanto eu deitava na
grama, meu coração ficou incomodado de novo, como havia estado antes”
[...].

4Esdras 14:38-39
[...] “E no outro dia, vede, uma voz me chamou, dizendo „Esdras, abra sua
boca e beba o que eu te der para beber‟. Então eu abri minha boca, e vede,
um copo cheio foi oferecido a mim, estava cheio de algo como água, mas
sua cor era de fogo” [...].

O Jamasp Namag, Wizirkad i Denig, Zardush Nameh, a “Conversão de Hystaspes,


trechos do Denkard, o Livro de Artay Viraz e passagens do Videvdat, juntamente com o BY,
listam os textos persas que estão em sintonia com o autor de 4Esdras quanto à indução
química.

BY 3:6-8

[...] “Ele pegou a mão de Zarduxšt, ele Ohrmazd, o espírito generoso, o


Criador do mundo [dos] bens materiais, sagrado pôs sua sabedoria de
onisciência, na forma de água, na mãe de Zarduxsht e disse “beba”. E
Zarduxsht o bebeu. Ele misturou a sabedoria em Zarduxsht. Por sete dias e
noites esteve Zarduxsht na sabedoria de Ohrmazd” [...].

Vale lembrar que a figura de Hystaspes23 é bem mais antiga que a apocalíptica judaica,
ou seja, mais antiga que a figura de Esdras. O tema da taça que dispõe de bebida alucinógena
em 4Esdras já aparece no Yasna 10.17, material encontrado nos Gathas (que para os
estudiosos tem sua datação variando de 1000 a.C. ao séc. VI a.C., dependendo de quando
viveu Zoroastro), além de também constar no BY, como visto. Outro tema, o da flor como
indutor químico (citado aqui por meio de 4Esdras), também já consta da tradição persa.
A partir da leitura das fontes pude constatar que estas apresentam outros temas em
comum, não só a imagem do Messias vindo das águas - algo que não é comum em culturas
antigas, já que o mar é nitidamente um local de onde surgem bestas e não personagens
benignos. O tema da indução química também me pareceu extremamente oportuno na

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pesquisa, já que revela algo que também é exclusivo na literatura judaica, ou seja, só aparece
em 4Esdras, mas que surge com freqüência nos textos zoroástricos.
Por fim, apesar dos paralelismos entre as tradições persa e judaica traçados neste
trabalho serem bastante claros, os problemas de datação das fontes persas me impedem de
chegar a maiores conclusões24. Tendo a crer que a tradição persa é mais antiga que a judaica,
possivelmente influenciando-a, pelos motivos aqui expostos, mas não podemos descartar
outras hipóteses, como a do judaísmo provendo idéias para o pensamento persa, ou, até
mesmo, a de que estas tradições não possuem dependência.

Notas

1
Alguns trechos de documentos presentes nesta comunicação são traduções minhas de traduções inglesas do
original. Eles são: 4Esdras, retirado de James H. Charlesworth (ed.). The Old Testament Pseudepigrapha:
Apocalyptic Literature & Testaments. Vol. 1. New York / London / Toronto / Sydney / Auckland: Doubleday,
1983. (OTP).; Vendidad, retirado de Almut Hintze. “The rise of the saviour in the Avesta” in: Chr., eds, (ed.).
Iran und Turfan. Harrassowitz (Wiesbaden), 1995, pp. 77-97.; BY, retirado de Carlo G. Cereti (ed.). The Zand I
Wahman Yasn, A Zoroastrian Apocalypse. Roma: Istituto Italiano per il Medio ed Estremo Oriente, 1995;
Plutarco, retirado de F. Babbit (trad.). Plutharch. Moralia.Vol. 5. Cambrigde, Mass. / London: Loeb Classical
Library, 1936.
2
David Winston. “The Iranian component in the Bible, Apocrypha and Qumran: a review of the evidence” in:
History of Religions 5 (1966): 183-216.
3
Religião dualista, onde o bem e o mal são representados por Ahura Mazda (primeiro deus e “Senhor da
Sabedoria”) e Angra Manyu (que está ao lado da desordem do mundo). Zoroastro (que, supõe-se, ter vivido por
volta de 1200 a.C.) teria visto Ahura Mazda e acreditado ser o profeta escolhido para difundir a nova ordem
religiosa. O panteão zoroástrico é bem parecido com o do mundo védico, como vários outros aspectos da
religião, por isso a comparação constante de temas do zoroastrismo com o mundo indiano. O Avesta é tido como
o conjunto de inscrições (em sua maioria hinos, gathas, que falam de seu criador Ahura Mazda) mais antigo da
tradição zoroástrica. Mary Boyce. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices. London / New York:
Routledge & Kegan Paul, 1979. Ver também Geo Widengren et alli. Apocalyptique iranienne et dualisme
qoumrânien. Paris: Adrien Maisonneuve, 1995.
4
De agora em diante, o Bahman Yašt será abreviado para BY.
5
Samuel Eddy. The king is dead: studies in the Near Eastern resistance to Hellenism 334-31 B.C. Lincoln:
University of Nebraska Press, 1961.
6
É claro que, neste caso, o único que realmente representa o Oriente é o Saoshyant persa. Ainda assim, a figura
messiânica do capítulo 13 de 4Esdras tem o intuito de combater a cultura romana. Enquanto a tradição persa está
preocupada em se defender do helenismo, s judeus do séc. I d.C. fazem uma interpretação romanizante do
complexo mítico do “rei vindo do Sol”.
7
Segundo a bem aceita definição de Collins, o que insere um texto no gênero apocalíptico é a combinação de
fatores como: visões, sinais anunciando o fim dos tempos, diálogo com um ente superior (normalmente um
intermediário entre o homem e Deus). Collins trata a apocalíptica como um gênero literário, mas compreende
que esta é apenas uma forma de classificá-la. Assim, divide os apocalipses em dois grandes grupos: os de
“viagem ao além” e os “históricos”. É também importante pensar na literatura apocalíptica como forma de
resistência ao helenismo ou ao período romano, ou seja, uma forma de periodização da história. É óbvio que isto
se observa mais claramente na apocalíptica judaica, já que a sobreposição de eras históricas com míticas na
apocalíptica persa torna a análise da resistência muito mais confusa. Desta forma, o caráter esotérico se sobrepõe
neste gênero aplicado ao caso iraniano. Contudo, os apocalipses podem transparecer quietismo, nem sempre
apoiando uma revolução militar. Antes de tudo, a função dos apocalipses é prover uma visão mais compreensiva
do cosmos sobre a ordem dos céus ou do curso predeterminado da história. Para conhecer mais sobre a discussão
acerca do gênero apocalíptico ver John J. Collins. “The Apocalyptic Genre” in: The Apocalyptic Imagination.
Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1998.

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8
Anders Hultgård. “Persian apocalypticism” in: John. J. Collins (ed.). The Encyclopedia of Apocalypticism in
Judaism and Christianity. New York: Continuum, 1998, p. 43.
9
Tribo da antiga Média que era responsável por práticas religiosas e funerárias de povos iranianos. Acabaram
por aceitar o Zoroastrismo e desenvolveram o Zurvanismo, que se tornou a forma predominante do Zoroastrismo
durante o período sassânida. Estabeleceram-se durante o período aquemênida (séc. VI a.C.).
10
Mircea Eliade. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 110.
11
Norman Cohn. Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens da crença no apocalipse. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996, p. 18.
12
Cohn, op.cit. p. 91.
13
A partir deste momento, Daniel será abreviado para Dn.
14
asha era o princípio imutável que evocava bondade e “verdade”. Já druj é a negação de asha, princípio de
falsidade ou distorção, uma força de desordem atuando incessantemente sobre o mundo.
15
Mahnaz Moazami. “Millennialism, Eschatology, as Messianic figures in Iranian Tradition” in: Journal of
Millennial Studies 2 (winter 2000): 1-16.
16
Sumário de um possível Avesta original. Para saber mais sobre o tema ver E.W. West (ed.). “Pahlavi Texts -
Part V” in: Sacred Books of the East. Vol. 24. Oxford: Clarendon Press, 1880.
17
Almut Hintze. “The rise of the saviour in the Avesta” in: Chr., eds, (ed.). Iran und Turfan. Harrassowitz
(Wiesbaden), 1995, pp. 77-97.
18
O Avesta Novo compôs grande parte do Avesta, conjunto de escrituras antigas do Zoroastrismo, incluindo
Yašts, o Vendidad e algumas partes do Yasna. Alguns estudiosos o remontam ao séc. VIII a.C., enquanto que a
religião zoroástrica pode remontar até a 1200 a.C., como já foi mencionado anteriormente. Um dos motivos para
que se chegue a esta conclusão é o que em vários textos de tradição zoroastriana o ambiente recriado é o de
pastores assentados, mas ainda não agricultores, o que condiz com a época.
19
Segundo Collins, o Bundahishn mantém-se em duas recensões: o “Grande Bundahishn” e o “Pequeno
Bundahishn”, indiano. Como já foi citado no capítulo anterior, Mary Boyce considera que estes textos podem ser
em parte pré-zoroastrianos. Ver John J. Collins (ed.). Persian Apocalypses. Semeia 14 (1979): 207-217.
20
Philippe Gignoux. “L‟apocalyptique iranienne est-elle vraiment la source d‟autres apocalypses?” in: AAASH 31
(1985-88): 67-78.
21
A.V. Williams Jackson. “On the date of Zoroaster” in: Journal of the American Oriental Society 1 (1986): 1-
22.
22
Para mais informações sobre o assunto ver Anders Hultgård. “Ecstasy and vision” in: Holm, Nils (ed.).
Religious Ecstasy. Based on Papers read at the Symposium on Religious Ecstasy held at Abo, Finland, on the
26th-28th of August 1981. Stockholm: Almqvist & Wiksell International, 1982, pp. 218-225. Também ver Vicente
Dobroruka. “Chemically-induced visions in the Forth Book of Ezra in light of comparative Persian material” in:
Jewish Studies Quarterly. Vol. 13.1. Princeton: Mohr Siebeck, 2006, pp. 1-26.
23
Tido como o rei mítico protetor de Zoroastro, além de também ser o nome do pai do rei Dário I.
24
Boyce me parece uma leitura dinâmica e elucidadiva sobre o tema, além das já propostas. Mary Boyce. On the
Antiquity of Zoroastrian apocalyptic. Bulletin of the School of Oriental and African Studies 47 (1984): 57-75.

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