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Peste negra provocou


retrocesso na arte; Covid-19
também poderá impactar
setor
Historiadora Maria Berbara analisa efeitos da
pandemia na Idade Média e indaga sobre o
futuro da produção artística após coronavírus

Maria Berbara*
11/04/2020 - 17:45 / Atualizado em 11/04/2020 - 18:18

Enterro massivo de vítimas da peste em Tournai. Detalhe de uma


miniatura das Crônicas de Gilles Li Muisis (ca. 1350) Foto:
Reprodução

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RIO — Nos tempos que correm tornou-


se frequente recordar a grande
pandemia de peste bubônica que
assolou a Eurásia entre 1347 e 1351. Se
já é difícil averiguar com exatidão — ou
mesmo sem ela — números de
infectados e vítimas da Covid-19 hoje
em dia, determinar quantas pessoas
pereceram durante o fatídico verão
boreal de 1348, quando a pandemia
atingiu seu pico, é missão impossível.

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Crise nas artes: SP-Arte é cancelada,


e galeristas receberão de imediato
apenas um terço do valor investido

A partir de crônicas, imagens, censos,


documentos administrativos e
evidências genéticas, porém, pode-se
fazer uma estimativa: a peste negra —
mors nigra, como já em 1350 foi
batizada — estendeu-se da Pérsia ao
Egito, da Itália ao Marrocos, da Irlanda
à Rússia, e dizimou entre 75 e 200
milhões de pessoas ao longo dos quatro
anos que precederam e sucederam o
pico da pandemia.

Di Ferrero: Recuperado do
coronavírus, cantor reúne famosos em
clipe com mensagem de esperança

A enfermidade, causada pela Yersinia


pestis, uma bactéria zoonótica
geralmente encontrada em mamíferos
de pequeno porte e em suas moscas,
tem uma taxa de mortalidade
extremamente alta — entre 30% e 60%,
segundo dados da Organização Mundial
da Saúde — para o tipo bubônico, que
foi o que assolou a Eurásia em meados
do século XIV.

Sua presença, estabelecida por estudos


de aDNA (“ancient DNA”, ou DNA
antigo) em sítios de sepultamento
coletivo pesquisados em distintas
localidades europeias, confirma a
extensão cataclísmica da pandemia
medieval. Crônicas contemporâneas
falam da putrefação de pilhas de
cadáveres em plena rua, dos
sepultamentos em massa, do fanatismo
místico, do banditismo, do caos
econômico e social.

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Na Suíça: Feira Art Basel é adiada


para setembro devido ao coronavírus

Petrarca, o grande humanista, escreveu


em 1350 uma carta a um amigo
expressando sua melancolia perante as
perdas sofridas — incluindo a da sua
célebre musa, Laura, a quem a peste
ceifou em maio de 1348: “Como a
posteridade entenderá que houve uma
época em que, sem dilúvios, sem a
conflagração do céu ou da terra, sem
guerras ou outros desastres visíveis,
não esta ou aquela parte do mundo,
mas todo o globo despovoou-se? Onde
já se viu ou ouviu semelhante
calamidade? Em quais anais pode ser
lido que lares ficaram vazios; cidades,
abandonadas; colheitas,
negligenciadas; campos abarrotados de
cadáveres, e um horrível e violento
deserto foi criado em todo o mundo?”

Christian Dunker: 'O verbo é


acalmar-se, e não ser acalmado pelos
outros', escreve psicanalista sobre
coronavírus

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O grande clássico no campo dos


estudos histórico-artísticos sobre a
peste negra continua sendo “Painting in
Florence and Siena after the Black
Death”, publicado pelo americano
Millard Meiss em 1951. Embora
centrado na Toscana, o livro
estabeleceu um importante paradigma
para a análise de outras regiões
europeias. A tese central do historiador
da arte é que a inventividade
revolucionária de Giotto, falecido em
1337 — alguns anos antes do início da
peste, portanto — e de outros
inovadores mestres ativos no início do
século seria seguida por um retrocesso,
um retorno ao conservadorismo
religioso, à hierarquia espiritual, à
representação do divino em detrimento
do humano e ao que ele define como
uma atmosfera de medo, pessimismo e
culpa.

Cenas de "A vida de Maria Madalena", afresco de Giotto di


Bondone (circa 1320) Foto: Reprodução

Meiss aponta que, graças à enorme


prosperidade de que a Toscana havia
desfrutado nas primeiras décadas do
século XIV, membros das oligarquias
capitalistas nascentes que governavam
Florença e Siena haviam se convertido
nos mecenas principais da arte religiosa
toscana, estimulando artistas que,
como Giotto ou os irmãos Lorenzetti,
representavam cenas religiosas
imbuídas de uma espiritualidade serena
e de sentimentos profundamente
humanos. A partir da crise pandêmica
dos anos 1340, o sistema financeiro e
comercial toscano colapsa e uma
profunda recessão econômica se
instaura.

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Quarentena: De Péricles a Pedro


Sampaio, as próximas lives para assistir
do sofá de casa

Muitas das antigas oligarquias se


extinguem, e o clero se enriquece
graças a doações e testamentos de ricos
mortos. Meiss estima que a população
sienense tenha decaído de 42 mil para
15 mil pessoas, e a florentina, de 90 mil
para 45 mil. Muitos pintores, escultores
e arquitetos de renome são vitimados
pela peste, e jovens aprendizes
assumem suas funções. Seu público
também se transforma: ao invés de
sólidas e pujantes oligarquias, agora
ordens religiosas, imigrantes e novos
ricos que prosperaram na crise
transformam-se nos grandes
consumidores de uma arte
doutrinariamente ortodoxa, onde a
humanidade dos albores do século é
substituída por uma maior ênfase no
mundo sobrenatural e na autoridade da
Igreja.

Amor e ódio:Como Drummond


mudou de opinião sobre Machado de
Assis

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Os terrores do Juízo Final e da danação


eterna ganham ênfase nos programas
iconográficos, e multiplicam-se, em
toda a Europa, imagens macabras de
esqueletos e cadáveres em putrefação
tomando de assalto cidades e campos.
Embora, nas décadas seguintes à sua
publicação, o livro de Meiss tenha
recebido críticas pontuais, a tese central
de que a peste negra tenha alterado o
curso da história da arte toscana — e,
por extensão, do Renascimento, tal
como o conhecemos — permanece
sólida.

Democratizar ou elitizar

Não esqueçamos que Meiss escreveu


seu clássico poucos anos depois do fim
da Segunda Guerra, com os olhos e a
alma saturados pelas imagens terríveis
da morte e da destruição em massa.
Como a Covid-19 transformará a
produção, apreciação e interpretação da
arte e sua história? Alguns dos efeitos
da pandemia, nesse campo, já se fazem
sentir. Em poucas semanas museus
foram fechados, mostras suspensas, e
conferências canceladas. As artes
visuais, subitamente, devem renunciar
à esfera pública na qual circulam e da
qual se nutrem.

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Novamente a história pode dar-nos


exemplos de como as artes reagiram a
crises análogas: após a peste negra, por
exemplo, parece ter havido um
incremento na produção de obras
devocionais menores e mais baratas,
destinadas ao culto privado, em
detrimento de grandes encomendas
cívicas e religiosas. Muito mais
recentemente, nos anos 1980, o forte
ressurgimento da iconografia macabra
(recordemos, por exemplo, a famosa
caveira cravejada de brilhantes de
Damien Hirst, a série de caveiras de
Andy Warhol ou o autorretrato apoiado
em uma bengala encimada por um
crânio, de Robert Mapplethorpe) foi
por alguns críticos associada aos
horrores da Aids.

Em casa:Festivais online
movimentam classe musical durante a
quarentena

A recessão atingirá fortissimamente


todos os setores da sociedade, e as artes
— excluídas, assim como as
humanidades, do horizonte prioritário
de financiamento público — não serão
poupadas. Por outro lado, o consumo
virtual de produtos artísticos nunca foi
tão alto, e, paradoxalmente, grande
parte da população mundial que, antes,
não dispunha de meios econômicos
para frequentar museus, óperas ou
teatros, pode momentaneamente
desfrutar de exposições e espetáculos
transmitidos gratuitamente online.
Uma das questões mais relevantes que
se discute no momento é, precisamente,
se a virtualização das atividades
artístico-culturais pode democratizar,
ou pelo contrário, elitizar ainda mais a
sua prática e consumo, relegando-a à
esfera privilegiada dos que podem ter
acesso permanente a uma internet de
boa qualidade.

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'Tirei o time': Carlos Vereza critica


postura de Bolsonaro com Mandetta e
rompe com governo em rede social

Mas, para além do sistema de arte,


como a pandemia afetará a própria
produção artística? Que novas alianças
serão feitas entre a arte, a
espiritualidade e a ciência? Em um
mundo de “distanciamento social”, de
que modo artistas poderão interagir
com seu público? A qual novo horizonte
cultural nos levará a inescapável crise
social, moral, cultural e existencial que
nos acometerá coletivamente?
Certamente é cedo para responder a
essas questões. Mas, enquanto nos
preparamos para o impacto, podemos
formular essas perguntas e lançá-las,
como fez Petrarca, ao futuro.

Maria Berbara é mestre em História


da Arte pela Unicamp, doutora em
história da arte pela Universidade de
Hamburgo (Alemanha) e autora de
diversos estudos no âmbito do
renascimento italiano e ibérico

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