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Sobre “Angústia” (1936)

romance de Graciliano Ramos (1892-1953)

É possível ficcionalizar a angústia humana?

Continuamos em nossa série de obras que ficcionalizam o desconforto individual,


quando o ser se debate contra forças que não pode controlar. São narrações em 1ª pessoa
que mostram o mal-estar do eu diante do coletivo, do cidadão nas entranhas da
sociedade, onde uma voz se confessa e, ao mesmo tempo, nos condena.

Desde o 'homem do subsolo', na obra do autor russo Dostoiévski, passando pelo literato
faminto de Hamsun, até o nauseado Roquetin, percebemos a tentativa de expressar o
desconforto humano, o que faz que ações irracionais brotem apenas para torturar o
protagonista, vítima e carrasco de si mesmo. Afinal, dispor-se contra a sociedade é
prejudicar-se, pois aqueles que mandam sabem ser carismáticos e ocuparem os melhores
cargos e postos. Os misantropos sofrem nos arquivos e nas sarjetas. Seres plenos de
consciência e capazes de longas observações e confissões, os sociopatas nos despertam
a curiosidade. Como conseguem acumular tanto sofrer?

Vários protagonistas-narradores desfilam diante de nossos olhos, todos problemáticos e


fascinantes, nunca satisfeitos, sempre irônicos e desafiantes. Literatos ou não, inocentes
ou não, todos têm algo a dizer – daí termos as narrativas. O que não é diferente com o
amargo Luís da Silva na obra “Angústia” de Graciliano Ramos, um texto pesado e
ácido, que golpeia o leitor, sem frescuras. Com seu estilo seco e direto, sem
desperdícios e floreamentos, o autor alagoano quer tornar o leitor um cúmplice do
drama narrado. Seu desejo é que a obra possa revirar vísceras e expor as hipocrisias
cotidianas, as relações de poder, a dialética dominador-dominado, sejam entre patrões e
proletários, ou entre homens e mulheres.

Há toda uma força de ímpeto e flagelação em Angústia, que, logo lembramos, foi
finalizada durante a penosa detenção do autor nas prisões do fascismo varguista (como
se percebe no testemunho “Memórias do Cárcere”, publicado postumamente em 1953).
Certamente devido a uma narração em 1ª pessoa - assim já notamos em obras tais como
“Notas do Subsolo”, “Fome”, “Pergunte ao Pó”, dentre outras - com o protagonista e
narrador Luís da Silva, a figura do intelectual nordestino com ancestrais ruralistas,
sempre em dilemas morais e existenciais, entre o amargor e a consciência.

Na obra, ele narra fatos já ocorridos , cerca de 30 dias antes, e rememora o passado, os
tempos dos antepassados, a vida semi-feudal do sertão, os contrapontos na cidade,
centro urbano de novas relações sociais, anonimato e decadência de costumes. No
estilo, temos frases curtas, repetitivas, a compor um labirinto de obsessão, ao reafirmar
para melhor negar, ao confessar para melhor se culpar, o narrador não oculta sua
amargura com o mundo que o cerca, com a hipocrisia e dupla-face dos seus
contemporâneos.
Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci
completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas
sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
(p. 7)

E “visões” estas que ocupam as últimas dez páginas, com toques surrealistas, cubistas,
mesclando factual e ficcional, delírios e sentimento de culpa, ruminações de desilusões,
uma vida inteira desperdiçada, sem reconhecimento e sem a mulher amada. O que
realmente aconteceu que o afetou tanto ? “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura
nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e
inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.” (p. 7)

Um ressentimento contra os vagabundos, os políticos e os literatos. Quem são aqueles


que escrevem? Quem são aqueles que exibem seus nomes em capas de livros? São eles
os mercenários das palavras, os prostituídos da arte? “E os autores, resignados,
mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.”
(p. 7)

A obsessão doentia por um tal Julião Tavares, sujeito intrometido, de posses, que anda
em rodas literárias e farejando donzelas incautas. O que liga o narrador ao antipático
Tavares? É certamente um dos eixos de leitura – até o ápice, onde os destinos de ambos
estará ligado. Outra obsessão: uma mocinha caprichosa chamada Marina. Nome que
deixa o narrador marulhado, com enjoo em terra firme. O que terá feito a moça para
deixá-lo tão angustiado?

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome,
arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não
consigo formas combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma
lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. (p. 8)

Ele confessa ser incapaz de escrever, de se concentrar num artigo, de esquecer seus
traumas, fontes de angústia e rancor, “O artigo que me pediram afasta-se do papel. É
verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo
demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo
estúpido.” (p. 8) E mais “Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão
sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, [...]” (p. 9)

Preso a uma vida de rotinas e horários, sem paixão e sem realizações, o funcionário
público Luís da Silva deixa fermentar em si um denso bolor de amargura, de
ressentimento e desejos de destruição, assim mais propenso ao ‘princípio de morte’, em
termos freudianos. “O que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa
criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio...Penso no meu cadáver, magríssimo, com
os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do
cigarro cruzados no peito fundo.” (p. 9)

Ele tenta se libertar seus traumas e obsessões, mas é inútil, sua mente de intelectual foi
atropelada por sofrimento e atos irracionais, ele mesmo confessa, “Enxoto as imagens
lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares.
Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não
quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.” (p. 9) Em alguns momentos, o
narrador, em sua reclusão, lembra o ‘homem do subsolo’ do livro de Dostoiévski,
recluso em seu subterrâneo, insociável e amargurado, confessando suas mesquinharias.

p2

Quando Luís da Silva explicita seu desejo pela vizinha, ele entra em novo ciclo de
circunstâncias, sua vida social vai mudar, seus recursos financeiros serão avaliados,
precisará ter uma imagem pública de homem correto capaz de constituir família. Ele não
pode ser mais o solteirão amargurado. Mas ele continua a ser o mesmo. Se irrita com a
família da noiva, por exemplo. Enquanto julga e avalia todos os que estão ao redor, os
vizinhos, os colegas, os amigos. Todos julgam a todos, sem isenção.

E, ao mesmo tempo, cessa um certo julgamento sobre Marina, a quem o protagonista


deseja. Quem ama o fútil, interessante lhe parece, seria uma variação aqui. Pois Luís
passa a ver a Marina que ele quer ver, não a Marina tal como ela é – vaidosa, fútil,
volúvel. O primeiro julgamento que ele tivera ao vê-la! Ele cria uma outra imagem da
mulher desejada,

Aquilo viera pouco a pouco, sem a gente sentir. Naturalmente gastei meses construindo
esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela.
Antes de eu conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa
grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se combinavam
bem, davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada. […] Foi difícil
reunir essas coisas e muitas outras, formar com elas a máquina que ia encontrar-me à
noite, ao pé da mangueira. Preguiçosa, ingrata, leviana. Os defeitos, porém, só me
pareceram censuráveis no começo das nossas relações. (p. 67)

Logo as disparidades – tal como narradas - entre o noivo e a noiva já evidenciam uma
'tragédia antecipada', assim como é perceptível no romance “São Bernardo” (de 1934) a
distância entre o conservador Paulo Honório e Madalena, a professora progressista, que
acaba por sucumbir ao autoritarismo (e ciúmes) dele.

Ao desposar Marina, o protagonista precisa ingressar na família, ter novas relações


sociais, apresentar-se na condição de pretendente, ser respeitável e agradável, conseguir
o consentimento, etc. É toda uma encenação ritual de 'casamento' na qual é preciso
atuar. Mas o protagonista não hesita, usa seus recursos de funcionário público para
comprar tecidos para as roupas da noiva. Mas dinheiro seria necessário para móveis,
utensílios, etc, em suma, toda uma vida em comum. O desejo por Marina justificaria tal
mudança de expectativas? Ele não se arrependeria depois? O caso é que ele narra já
arrependido – depois dos acontecimentos. A amargura do remorso preenche tudo.

A mente obsessiva do narrador lembra de todos os detalhes da época narrada, das


impressões e mal-entendidos – e contrapõe a própria pobreza com a soberba riqueza do
rival (logo sabemos quem é o rival...) - para apresentar a sequência de sua decadência –
o motivo de sua perturbação (da qual ele se restabelece, como é explicitado na primeira
frase do romance...) Ele é incapaz de assimilar a vaidade da noiva, que gasta o dinheiro
(ganho com tanto sofrimento e auto-renúncia) e, logo em seguida, a leviandade da
mocinha que dá atenção a outro.
Quando ela está mais rendido ao desejo é que o golpe é mais fundo, “um choque
tremendo” – ele presencia uma troca de olhares entre o rival (o filho de rico Julião) e a
noiva. E o pernóstico falastrão não hesita em manter seu palavrório, sua fala de literato
de aparências, sua pose de poeta nacionalista. É quando o protagonista perde a
paciência. O que é pior: evidencia-se o ciúme e o rival não sossegará até conquistar a
mocinha leviana (que logo pagará o preço da infidelidade...) É todo um jogo trágico de
egos que leva a nada – todos perdem, principalmente o protagonista-narrador.

E sempre que o protagonista tem uma derrota em sua vida medíocre o que ele faz? Se
lembra logo da vida de seus antepassados, senhores ruralistas, figuras patriarcais que
mandavam e desmandavam –e não levavam desaforos. Ou seja, ainda mais derrotado, o
narrador se sente em comparação! Ele descende de 'senhores feudais' mas agora
reduzido a um mero funcionários público apagado – e enganado. O que os seus
antepassados pensariam de tal homem frouxo? Um metido à literato? Desprezo,
certamente.

O lado agressivo de Luís da Silva continua, mas adormecido, pois ele se limita a
resmungar e ofender, mas não libera os impulsos homicidas, tão soltos na época de seus
antepassados, que castigavam negros e caçavam índios. Ele digere a própria ira em
volteios e perambulações, a falar consigo mesmo, a falar sozinho pelos caminhos, a
registrar o drama que agora podemos ler, atenciosos ou indiferentes ao seu sofrimento,

Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os
objetos expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira, admirando aquelas
porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem
importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social. (p.
78)

Ele olha o conservadorismo de seus avós e bisavós, com admiração, e aponta a


decadência social, onde as mulheres mandam nos destinos dos homens. Olha o quanto
os antepassados foram produtivos, desbravadores, os criadores de gado, ou colhendo
vastas plantações, e agora ele reduzido a um literato... Ele desconfia das letras, da
escrita - É preciso deixar de literatura! (Mesmo quando o que ele faz é isso mesmo:
literatura) Sim, “acabe com essa literatura” e “A linguagem escrita é uma safadeza que
vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras.” (p. 79)

Tal como os personagens de Dostoiévski, o protagonista aqui perambula e se envolve


com prostitutas, apenas para aumentar seu senso de culpa, ter consciência de seu abismo
moral (basta comparar com o homem do subsolo, em “Notas do Subsolo” do autor
russo), compartilhar a miséria com o outro, testemunhar que a decadência não abraça
apenas o seu caráter amargurado.

Mais sobre Notas do Subsolo em:


http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2013/03/sobre-notas-do-subsolo-de-f-
dostoievski.html
Claro que a mocinha tenta se explicar, mas a amargura do protagonista não aceita
explicações – assim como a 'macheza' do Paulo Honório, o sertanejo arrivista. Ela jura
inocência e fidelidade – não pode evitar os olhares 'cobiçosos' alheios. É claro que Luís
não pode mais ter confiança nela – e muito menos tolerar o rival. Mesmo que as
aparências enganem – e ele se deixe ser enganado... Ele não tem mais certezas, não
pode mais confiar. Mas hesita em condená-la simplesmente. Afinal, ele tem horror às
injustiças. “As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência de
Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados injustamente neste
mundo ruim!” (p. 83)

Ele não confia mais na mulher, mas o drama continua. É uma tragédia anunciada, como
sabemos. Ele se entregas às dívidas para poder agradar a noiva – mas sabe que está a
cavar a própria cova. A moça não hesita em humilhar o noivo, homem de poucas
posses. Ele é vaidosa e, se um noivo mais rico aparecer, ela não vai pensar duas vezes.
Ele sabia o tempo todo que andavas na beira do abismo,

Assim, acabei de encalacrar-me. Marina recebeu os panos friamente, insensível ao


sacrifício que eu fazia, aquela ingrata. Se eu não tivesse cataratas no entendimento, teria
percebido logo que ela estava com a cabeça virada. Virada para um sujeito que podia
pagar-lhe camisas de seda, meias de seda. Que valiam os tecidos grosseiros comprados
ao velho Abraão, ou Salomão, o tio de Moisés? Nem olhou os pobres trapos, que
ficaram em cima de uma cadeira, esquecidos.

Lembro-me perfeitamente da cena muda que houve naquela tarde. Sentada, a cabeça
caída para o encosto da cadeira, as pernas cruzadas, os dedos cruzados num joelho, não
me via, era como se estivesse só. […] p. 85

Ele sabia ou não? Em dado momento ele confessa ter tido “cataratas no entendimento”,
ou seja, uma cegueira apaixonada. Mas lembra de vários mal-entendidos que levou o
relacionamento ao fracasso. Só se percebe depois? Ou melhor, ele só lembrou desses
'ruídos' agora ao narrar? A conservar esta “recordação de coisas mesquinhas” (p. 87)
Ele sabe o quanto é violento, ainda que reprimido, com sua agressividade ancestral
agora atordoada pela vida miserável. “Isto me desapontava, arrancava-me pragas e
insultos, que eu engolia com medo de praticar uma violência.” (p. 85) e “Sentia-me
atordoado, com um nó na garganta. Se falasse, diria injúrias. Uma ingratidão assim!
Não esperava aquilo.” (p. 86) Se ele fosse dono de terras, senhores de escravos,
certamente marcaria a mulher à ferro. Ele seria um Paulo Honório, homem que manda e
os outros obedecem.

Marina não se decide, não dá um fim ao relacionamento, não entrega logo ao


'pretendente' rico (como ela o julga), e isso irrita ainda mais o protagonista enciumado.
Um ser amargurado que conserva recordações mesquinhas, prosaicas, sujas. Nenhum
romantismo aqui. Tudo é dessacralizado, sem ideais. Ela mantém as aparências com o
protagonista, e depois 'fica de prosa' com o rival. Ela faz 'jogo duplo'? Ou é impressão
dele? Quando ela se decidiu pelo moço rico? (O que ela não sabia era que o moço rico
não era um pretendente, mas um aproveitador de donzelas...) Enquanto o drama se
encaminha para o ato final, Luís da Silva tenta manter-se na rotina. “O meu desejo era
desligar-me daquela gente, passar calado, carrancudo, as mãos nos bolsos, o chapéu
embicado. Esforçava-me por me dedicar às minhas ocupações cacetes: escrever
elogios ao governo, ler romances e arranjar uma opinião sobre eles. Não há maçada
pior.” (p. 88)

Sua vida parece a de um preso num labirinto circular, vai e vem e ele se encontra diante
dos mesmos muros, cercas e obstáculos. Angústias, insônias, irritações, tudo num
cenário quase sombrio de delírio – que se agrava após o ato homicida. Ele vê outras
mulheres – na rua ele admira uma mocinha, que julga ser datilógrafa – e pensa que sua
vida poderia ser diferente. Ele não poderia encontrar uma 'cara metade'? Mas seria a
mocinha também infiel? “Se [ela]  não tivesse sumido, é possível que a minha vida fosse
hoje diferente. E talvez não fosse. Duas criaturas juntam-se um minuto, mas entre elas
há um obstáculo. Provavelmente a datilógrafa dos olhos verdes, enquanto sorria para
mim no bonde ou na esquina, pensava numa espécie de Julião Tavares que iria visitá-la
horas depois.” (p. 91)

Em seguida, o moço rico passa a frequentar a casa da mocinha, com consentimento da


família. Mas nada de casório – é tudo uma encenação. E o moço rico sabe que não será
punido – afinal, papai tem bons advogados. Enquanto a família humilde nada pode
fazer. E a vida continua com seus dramas, fatos políticos, revoluções, contra-revoluções,
ações terroristas, crimes passionais. Tudo passa em quase-delírio e deixa lembranças
desencontradas e amargas. Enquanto isso o moço rico passeia com a 'noiva', toma
liberdades, financia luxos – tudo em intenção de luxúria.

Enquanto isso, o protagonista pensava na possível datilógrafa, que seria uma solução
para seu impasse. Ela seria sua companheira, ajudaria em seu trabalho, em suas
redações, apoiaria seu lado artístico, de escritor (e não apenas leitor de obras alheias) –
figura de mulher bem diversa daquela de Marina, ingrata, leviana, só corpo e gestos. Ele
pensa em mulheres, mas não 'cai na farra', não consegue sufocar a amargura e seguir
como se nada o afetasse. Sua mente obsessiva gera mais espectros. Ele não se
concentra, os textos não brotam, suas dívidas engordam, tudo ameaça ruir e desabar. Ele
está amordaçado.

Naquele momento, porém, não pensava em nada disso. Pensava na miséria antiga e
tinha a impressão de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me. No banco do
jardim, com os sapatos gastos, as meias reduzidas a canos, esperava ansiosamente um
auxílio qualquer. Estudava as caras, numa agonia. (p. 98)

Ele que vive problemas com seus 'amores', “o amor para mim sempre fora uma coisa
dolorosa, complicada e incompleta” (p. 102), enquanto seus antepassados nem
pensavam em amor, mas tinham esposa, outras mulheres e seduziam escravas. O que ele
quer é se vingar pelas agulhadas do ciúme. O balofo rival, o moço rico, deverá pagar.
Ainda mais quando se fica sabendo da gravidez precoce da mocinha. Antes disso, ele
até cogitava em aceitar Marina de volta, quando ela descobrisse que tipo de gente era o
moço rico. “Tantos caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança
os atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e ziguezagues, e dá topadas
de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.” (p. 103)
Nem tudo é compreensível, nem tudo é racional. Pelo contrário, o drama todo é
irracional. Não daria certo, por que insistir? Só pela paixão? Ele mesmo não
compreende, ele se perde em lacunas, suas lembranças são feitas de mosaicos, de
tapeçarias desfiadas, numa trama narrada depois do delírio pós-crime (assim como
percebemos na narrativa de O Estrangeiro / O Estranho, de Albert Camus, depoimento
de um criminoso 'acidental'...), “Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-
se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações
surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com
indiferença. Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares
por onde transitei perdem a nitidez.“ (p. 106)

A Marina se diverte, o moço rico aproveita, só o protagonista não tem sossego, anda a
esmo, sem ânimo, sem amizades, a criticar só vizinhos, a desperdiçar literatura, pobre
escriba incompreendido entre proletários e mendigos, sem acesso aos donos do poder.
Não há solidariedade de classe, o narrador é um burocrata, um funcionário público,
“parafuso insignificante na máquina do Estado”, um isolado entre as classes sociais,
incapaz de aderir a uma revolução, ao mesmo tempo em que serve aos interesses do
governo. Entre os homens humilde, de 'várias profissões', ele não sente simpatia, ele
afastado pela literatura, pelo serviço estatal, pela amargura. Toda uma cena de vida das
classes baixas é aqui retratada.

Sabemos que o autor Graciliano Ramos foi acusado de envolvimento com os grupos
comunistas, e sofreu pensa de detenção no regime varguista, relatada em “Memórias do
Cárcere” (publicadas postumamente em 1953), mas o narrador Luís da Silva não se
sente à vontade com os camaradas esquerdistas, imagina-se julgado. “Está claro que
não inspiro confiança aos trabalhadores” e “'Camarada Luís da Silva, antes da
revolução você elogiava os políticos safados do interior, os prefeitos ladrões. Onde
está o dinheiro que essa gente lhe deu?'” (p. 119)

Deslocado entre dominados e dominadores, o protagonista só consegue mesmo é


complicar ainda mais sua miséria, a levar tudo para o drama e o crime. Ele complica a
própria vida e a vida alheia, ele se perde em acontecimentos insignificantes que se
avolumam e desencadeiam sinistros. Ele anda meio a multidão da cidade e
mesquinharias lhe chamam a atenção. O drama de Marina segue paralelamente e
intricadamente próximo – as vidas estão desmoronando juntas. Ele é enganado pela
mocinha e ela é enganada pelo moço rico – está grávida e abandonada. A miséria só
aumenta.

Daqui em diante a queda é vertiginosa. A angústia vem dos fatos e do narrado, onde real
e delírio se mesclam, sobram lembranças doloridas, um complexo de culpa, uma
sensação de tempo perdido. Marina está grávida de outro homem, um crápula com
recursos para se safar, um pernóstico moço rico literato que seduz mocinhas (não tão
'inocentes', pois estão interessadas no dinheiro alheio...), e o que pode o protagonista
fazer senão proclamar sua miséria? Daí a angústia que nomeia a obra.

Da angústia ao crime o labirinto é tortuoso, mas inevitável. Drama atraindo drama e só


falta a arma e a oportunidade. Uma corda deixada no bolso, uma árvore no caminho, a
vítima desatenta. Temos uma árvore do enforcado, temos a doença que se materializa no
crime, no horror do cadáver. Mas é um drama anunciado – desde a primeira linha. Sem
o drama não haveria motivo para a narrativa – não haveria o delírio que a enredou.

A figura de Julião Tavares concentra o ódio de Luís da Silva. Eis ali o rival, o moço
rico, o literato pedante, o homem do discurso, mas sem ação, o filho da Elite, o
aproveitador de donzelas, em suma, simboliza tudo o que o protagonista odeia. Não
falta ódio para pavimentar a estrada ao crime. O narrador sabia disso – sabe que só falta
a oportunidade. É uma vingança o que ele quer – por sua condição de miséria. Alguém
deve pagar, então que seja o moço rico, gordo e frívolo. O que impede o crime? O
medo, a falta de coragem, a opinião pública, a consciência? Tudo circunstancial, como
logo se vê. Deve Julião Tavares ser eliminado? Alguns julgam que sim, outros não.
Depende dos interesses. Aqui o interesse do protagonista é o que importa.

Na medida em que obsessão aumenta, a atenção contínua, o apego aos detalhes


mesquinhos, a urgência do crime se avoluma, como a exigir uma válvula de escape – a
eliminação física do outro. História, revolução, honra, tudo se esfumaça perto da
urgência de desinfectar, livrar-se do rival, do homem sem honra, mas que é bem
recebido em toda parte, porque tem pai rico. Enquanto isso, Marina vai se livrar do filho
não-desejado, se encaminha para uma parteira de periferia, uma 'fazedora de anjos', uma
especialista em abortos que atende as moças enganadas e rejeitadas.

O que pode fazer o protagonista? Todas as suas leituras, sua quase-erudição, seu apego
aos livros, tudo inútil quando tenta se comunicar – incompreendido por quem está acima
e por quem está abaixo. Não pode consolar a mulher enganada que preferiu o outro, não
pode evitar que o aborto ocorra. É inútil. E ninguém saberá e a família de marina
seguirá em sua pobreza. E outros moços ricos podem aparecer com mais promessas e
mais gravidez indesejada.

E quanto ao narrador ele tenta humilhar Marina, mas só consegue se rebaixar. Ela é
vítima tanto quanto ele. Ele, a empregada, a família de Marina, o judeu que se julga
revolucionário, o mendigo andarilho, o funcionário, o chefe de repartição, o soldado na
esquina, todos vítimas da ordem social, onde uns vencem e o restante perde. E Julião
Tavares continua livre a seduzir donzelas incautas, as novas clientes para as 'fazedoras
de anjos'. Promessas de casamento e riqueza que atraem as mocinhas para a teia de
aranha do moço rico pseudo-literato. O que o protagonista pode fazer, senão enforcar o
crápula? O problema é que é um canalha simpático, afetuoso, balofo e bem-tratado que
se acha no direito de emitir opiniões nacionalistas e escrever versos.

O sedutor é seguido, o protagonista-narrador tem pensamento distorcidos e homicidas,


quer vingança e justiça, ideias e rancores se entrelaçam na cena do crime, tudo se
precipita, a narração não é racional, é deslocada, desconexa, explicações em excesso
que nada explicam, em cenas de antepassados, em cenas de infância, antigos amores,
mulheres de outrora, oportunidades perdidas, um catálogo caótico de uma vida
mesquinha, uma confissão de anti-herói. No que ele é melhor do que o moço rico? Ele,
se fosse rico, também desvirginaria mocinhas inocentes?

Ele anda num semi-delírio, a seguir o moço rico, que tem tudo o que ele não tem -
“para que seguir o homem odioso que tinha tudo, mulheres, cigarros?” (p. 187) - e sabe
que vai até o fim : o ato criminoso. Seguimos ansiosos e angustiados, entre os impulsos
e hesitações, ódios e piedades do obsessivo narrador, até que o corpo esteja suspenso na
árvore. O criminoso ainda hesita, “porque era que o miserável não corria, não se
livrava dos meus instintos ruins?” e “queria que ele se afastasse de mim” (p. 190), mas
é arrastado para a vítima. Ao eliminar o rival, ele se sente forte, elevado acima dos
outros mesquinhos. Ele julga fazer justiça, ainda que distorcida. Tudo é narrado em
detalhes, excessivamente detalhado, excessivamente explicativo sem elucidar, no
entanto. E depois o delírio.

Assim é. Ele pratica o crime e se atordoa, deixa-se ficar ao lado do cadáver, depois
perambula pelas ruas, sem rumos. “Vagar a noite inteira, como um judeu errante!
Continuei a andar.” (p. 200) Seus passos o conduzem, ele anda em círculos, ele volta ao
local do crime, ele se afasta, ele pensa estar senso seguido, tudo é confuso – o que é
real? o que é delírio? - ainda mais suas aproximações com os semelhantes, sempre
incompletas, até um mendigo o despreza, “O isolamento em companhia de uma pessoa
era mais opressivo que a solidão completa.” (p. 202) O narrador imagina os olhares
alheios, o julgamento, a condenação, a sua falta de palavras, como se defender?, como
se comportar? “Todos os gestos eram culpas graves.” Afinal, tudo desmorona, junto
com sua vida mesquinha. “Um rumor enchia-me os ouvidos, burburinho que ia
crescendo e me dava a impressão de que a casa, a cidade, tudo, caía lentamente.” (p.
206)

O delírio – narrado e rememorado – ocupa as últimas dez páginas sem interrupções,


parágrafos, mas abundante em colagens, mudanças de perspectivas, dialogismo, jogos
de palavras, figuras de pensamento, vultos cotidianos, personagens esfumaçadas, tipos
urbanos, funcionários, amigos, boêmios, em suma, todo um mosaico de sandices que
exteriorizam a angústia que vitima o criminoso. É como se o Raskólnikov (de “Crime e
Castigo”, de Dostoiévski) tivesse então voz e expressão para testemunhar seu martírio
psicológico. (O mesmo veremos em “O Estrangeiro” / “O Estranho” de Camus) Um
martírio que une factual e ficcional onde detalhes são aumentados e a agonia
avolumada.

O que sobra então? Verdade ou ficção? Crime ou imaginação? “Aquele silêncio,


aqueles rumores comuns, espantavam-me. Seria tudo ilusão?” (p. 209) e “Ia
adormecer, perder a consciência. As coisas afastavam-se ou aproximavam-se de
maneira absurda, as palavras moviam-se. Não ter consciência.” (p. 214) Temos apenas
o relato, o que podemos ler, depois do delírio, quando o protagonista-narrador Luís da
Silva se encontra em recuperação. Nenhum narrador onisciente aqui, acima do drama,
mas alguém que vivenciou tudo.

Não sabemos se ele, o narrador e criminoso confesso, será condenado pelos outros. (Ele
que até espera 'fazer um livro na prisão' – como, aliás, aconteceu com o autor Graciliano
Ramos, prisioneiro do fascismo getulista!) Mas já sabemos que ele se condena – na
condição de vítima e de criminoso. Sabe que o moço rico nada vale, mas que ele, o
funcionário metido a literato, não tem o direito de sair a eliminar os salafrários da vida.
O preço a se pagar é muito alto, para ele e para a sociedade. Um homicídio não é uma
solução, mas um golpe contra si mesmo.
Fonte: RAMOS, Graciliano. Angústia. 57ª ed. Rio, São Paulo: Record, 2004.
abr/mai/13
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com

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