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Diálogo Entre Zen e o Cristianismo
Diálogo Entre Zen e o Cristianismo
Resumo: Thomas Faverel Merton (1915-1968) é considerado um dos escritores católicos mais
influentes do século XX. Monge cisterciense, Merton viveu na Abadia de Gethsemani no
Kentucky-EUA desde 1941 a 1968, data de sua morte precoce, ocorrida na Coréia quando
participava da primeira Convenção da União dos Mosteiros da Ásia. Seus escritos transitaram
desde a poesia ao estudo das religiões comparadas, da mística aos direitos civis e do pacifismo
ao diálogo inter-religioso. Nesse último tema, sua atenção concentrou-se sobre as religiões
orientais, com destaque ao Zen Budismo em sua relação com a mística Católica,
correspondência que iremos nos ater nesse estudo. Cientes que na pós-modernidade o diálogo
inter-religioso comporta a possibilidade de anulação dos padrões de referência identitário,
propomos refletir sobre o diálogo entre o Cristianismo e o Zen Budismo no que tange à
experiência mística, pautados no mergulho do autor nesse delicado terreno. Para tanto,
intentamos reconhecer sua hermenêutica e as bases que sustentam essa dialética, para assim
estabelecer proposições para a interlocução atual. Considerando também o caráter profético
das reflexões mertonianas acerca da influência do utilitarismo moderno sobre o cristianismo e
sua mística ocidental, sustenta-se a utilização de seus escritos pela constatação dessa azáfama
na pós-modernidade. Para tanto, o estudo pautar-se-á na análise qualitativa bibliográfica e
afluirá com destaque às obras: Místicos e Mestres Zen (2006), Zen e as Aves de Rapina (1972)
e A experiência interior (2007). Em contradição a teses progressistas e conservadoras de sua
época, Merton, ao contemplar uma espiritualidade não teísta em sua relação com o
Cristianismo, esforça-se por desvelar os aspectos simétricos que uma e outra conservam. Essa
relação torna-se factível ao confessar na experiência cristã e zen budista razoável contiguidade
através da experiência mística. Seu deslocamento da mística ocidental, permeada pela lógica
formal para a intuição metafísica, porém existencial e empírica do Zen Budismo, aponta em
verdade para o retorno ao Cristianismo primitivo. Nesse sentido, Merton supera a aparente
dialética da negação entre o Cristianismo e o Zen Budismo através da dialética da concessão.
Thomas Merton1
Introdução
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MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970.
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Além do budismo encontram-se protestos contra a atribuição do termo “religião” também ao Cristianismo. Para
Karl Barth (1886-1968), as estruturas culturais e sociais representavam, em verdade, uma “deturpação” do
cristianismo. Também no Islã encontram-se os sufis que “buscam o Fana”, visando a extinção do ser cultural e social
determinado pelas estruturas religiosas, com vistas a atingir a liberdade mística em que o ser se perde e se refaz no
“Baga”. Algo que se aproxima do novo homem cristão, isso de acordo com os místicos e, mesmo com os apóstolos,
pois, como dizia Paulo “Eu vivo, mas neste momento não sou eu, e sim o Cristo que vive em mim” (GL 2, 20).
(MERTON, 1972, p. 10).
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O Dr. Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966), uma das maiores autoridades em Budismo e uma das principais fontes
de Merton no estabelecimento do diálogo inter-religioso.
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Não raramente, o conhecimento superficial de alguns autores sobre o budismo e sobre o monaquismo no
cristianismo, intentam conciliar os monges cistercienses aos monges Zen-Budistas. Há de fato alguma evidente
simetria, considerando que os monges Zen também se distinguem pelo rigor e pela simplicidade de suas vidas, no
“trabalho manual”, na pobreza e singeleza, na disciplina e no viver em comunidade (MERTON, 2006, p. 249). Não
obstante, para os monges Zen a “experiência direta” transcende o conhecimento abstrato e teórico contraído pelo
estudo e pela leitura. Mas com isso não negam que ambos (em seu “devido lugar”) poderiam concorrer para a
licitude de sua formação espiritual4. (MERTON, 2006, p. 255, 256).
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O termo zen advém palavra chinesa “Ch’na”, e indica, de certo modo, “meditação”. Porém, é equivocado
compreender o zen como um “método de meditação” ou ainda como uma “forma de espiritualidade.” (MERTON,
2006).
Conforme a tradição mística cristã, perscrutar o abismo de nosso ser tem a ver
com a libertação do “fluxo ordinário” constantemente saturado de impressões sensíveis,
dos alaridos e ímpetos inconscientes das paixões desregradas. Nesse sentido é que a
liberdade para embrenhar-se no santuário interior do homem é comumente recusada
àqueles que se guiam pela servidão do deleite dos sentidos e pela “autogratificação”.
Apenas o coração verdadeiramente pobre, aquele que não conserva qualquer resquício
do “eu” como morada pode permitir que Deus seja o singular “cenário da ação”, uma
vez que Ele age dentro de Si mesmo (MERTON, 1972; 2007).
[...] é falsamente concebido se for pensado como uma negação da carne, dos
sentidos e da visão, a fim de se chegar a uma experiência mais elevada. Pelo
contrário, a “noite escura dos sentidos” que deixa a casa de carne em repouso
é, no máximo, um começo sério. A verdadeira noite escura é a do espírito, onde
o “sujeito” de todas as formas mais elevadas de visão e de inteligência é
deixado no escuro e no vazio: não como um espelho, puro de todas as
impressões, mas como um vazio sem conhecimento e sem qualquer
capacidade natural de conhecer o sobrenatural [...]. [São João da Cruz], ensina
que a luz de Deus brilha em toda a vacuidade onde não há nenhum sujeito
natural para recebê-la. Para essa vacuidade não há, na realidade, nenhum
caminho. “Entrar no caminho é deixar o caminho,” pois o próprio caminho é
vacuidade.” (MERTON, 2006, p. 29).
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Saber se é possível ao místico cristão avançar em sua experiência sem a “Santa Humanidade do Cristo”, é uma
questão ainda candente, segundo Merton (1972), pois a figura de Cristo é o ícone da contemplação cristã. Mas isso
ocorre também pela falta de distinção entre os fatos psicológicos do misticismo cristão e a teologia objetiva da
experiência cristã.
Nos ombros de Santo Agostinho, Merton salienta que no zen inexistem esforços
para ir “além” do “eu” interior, enquanto que no cristianismo, o “eu” interior é aventado
tão somente como um degrau para se atingir uma “consciência de Deus”: “O homem é
a imagem de Deus e o eu interior é uma espécie de espelho no qual se vê refletido e ao
qual se revela” (MERTON, 2007, p. 19, grifo nosso). Nessa perspectiva, o “eu” interior
comunica-se com o “ser de Deus, o Qual está ‘em nós’. Se entrarmos em nós mesmos,
se encontrarmos nosso verdadeiro eu e se, então passarmos ‘além’ do ‘eu’ interior,
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O dilema humano da comunicação, para Merton (1972, p. 46), “está no fato de que não podemos nos comunicar
ordinariamente sem palavras e sinais, mas, mesmo a experiência ordinária tende a ser falsificada pelos hábitos de
verbalização e racionalização [...]. Em lugar de ver as coisas e os fatos como realmente são, nós os vemos como
reflexos e verificações de sentenças que previamente construímos em nossas mentes.”
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Teologicamente podemos dizer que a “mente de Cristo”, representada por São Paulo aos filipenses, no capítulo 2,
dista imensamente da “mente de buda”, mas podemos inferir que “o total auto esvaziamento do Cristo – e o auto-
esvaziamento que faz o discípulo ser um com êle em Sua quênose [...] pode ser compreendido [...] num sentido muito
semelhante ao Zen no que se relaciona com a psicologia e experiência.” (MERTON, 1972, p. 13).
Considerações finais
Referenciais
MERTON, Thomas. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970.
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Ressalta ainda Merton (2007, p. 19), que se faz realmente necessário fazer uma distinção entre a experiência de
nosso ser mais interior e a consciência de ter-se Deus revelado para nós em nosso eu interior e por meio deste.
Devemos saber que o espelho é distinto da imagem nele refletida, distinção esta que se baseia na fé teologal”.