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Wendel Francis Gomes Silva – 2016045099

UFMG – UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ATIVIDADE AVALIATIVA

Após a leitura dos dois textos, elabore respostas às seguintes questões: 

1.  Compare a principal personagem feminina de Um copo de cólera com as


personagens Anica (O amante do Crato) e a porteira (Marido). Estabeleça relações de
semelhança e diferença entre elas. 

A personagem de Um copo de cólera, não nomeada durante a novela, é apenas


referida pelo namorado como “pilantra”, “jornalistinha de merda”, “femeazinha”, num
contínuo ataque que mostra o desprezo e o discurso misógino que aparece em sua fala.
A personagem retruca e se defende através do deboche, da retórica e da afronta perante
o comportamento agressivo, verbal e físico do namorado. Apesar disso a relação de
abuso oscila entre o erotismo e a intimidade sexual que compartilham e as agressões
desatinadas por motivo fútil, nesse episódio relatado devido a presença de saúvas a
destruir sua cerca - viva e o comentário da namorada. Há o movimento de
distanciamento por parte da mulher após a humilhação e agressão física, mas ao final da
novela, na última parte, vemos o seu retorno a casa dele, a sua “cela”, o que nos permite
entrever a ambigüidade da personagem, pois apesar de confrontar o parceiro também
sente por ele “virulenta vertigem de ternura”, retornando ao ciclo abusivo e vicioso da
relação entre ambos.
Nesse ponto, a personagem da Porteira do conto Marido de Lídia Jorge, se
aproxima daquela em Um copo de cólera, ambas se sentem presas a uma relação
abusiva da qual não são capazes de se desvincular, todavia, por razões diversas. Para a
primeira, a ideologia religiosa soa mais alto e convincente do que as tentativas de ajuda
recebida pelos moradores do prédio em que vive, vista como um complô para lhe
separar de sua “metade”. Na segunda o apelo erótico e sexual lhe envolve com tal
intensidade que lhe coloca submissa e suscetível às vontades do homem, apesar dos
abusos e caprichos. A primeira busca a solução para sua situação através da fé cega, da
resignação e do sacrifício em conviver com o marido, bêbado inveterado e agressivo, e
por sua submissão paga com a própria vida. Lúcia, simbolicamente morre queimada
pelo marido, que assim como no conto de Raduan Nassar não é nomeado, acesa com
uma vela, apontando para a ironia e correlação entre seu nome e o desenvolver da
trama. A segunda se refugia na linguagem, na retórica, no confronto direto que expõe e
critica o comportamento “fascista” do companheiro. De certa forma a personagem se
sobressai ao discurso de ódio do outro, mas em troca é agredida fisicamente, rendida
pela força física e sexual do namorado que acaba por rechaçá-la para longe de si, e no
fim vemos que o último capítulo retorna a cena da chegada da namorada à casa, o que
nos indica o movimento cíclico nessa relação.
Diferente de ambas, Anica, nome dado a ela pela avó, é uma personagem em
profundo conflito interno a rememorar de forma fragmentada os episódios traumáticos
de sua infância, em específico o que leva à morte de seu primo Tino. Ambos
conviveram em um ambiente paradisíaco, alusão ao Paraíso de Adão e Eva, descrição
de um locusamoenus interrompido também por uma serpente que morde o garoto e este
oculta o fato de Ana ter possivelmente responsável pelo fato. A relação que mantinha
com primo não é totalmente descrita e os detalhes se encontram na subjetividade da
narradora, que parece, através da escrita, simbolicamente se curar desse passado que lhe
assombra até a vida adulta. A personagem sofre, não por uma relação abusiva, mas por
um profundo sentimento de remorso e culpa que lhe corrói a sanidade e a faz se
questionar mesmo sobre as memórias que resgata da infância.

2. Comente a elaboração de linguagem presente tanto em Um copo de cólera quanto em


"O amante do Crato" e "Marido". 

O primeiro texto é estruturado em sete partes: “A chegada”, “Na Cama”, “O


levantar”, “O banho”, “O café da manhã”, “O esporro” e “A chegada”. Antônio Sérgio
Bueno observa em sua análise da novela, “O tamanho da Cólera”, que “pode-se pensar
que cada parte funciona como uma espécie de espiral, sendo que a primeira e a última
partes constituem-se nos pontos inicial e final dessa espiral”. Da primeira à sexta parte o
foco narrativo se recai sobre o personagem masculino e a última à personagem
feminino. Cada uma das partes é estruturada em um único parágrafo, intensificando a
sensação de fluxo de consciência do narrador que oscila entre a descrição das cenas e as
próprias reflexões desatinadas, num movimento pendular entre uma linguagem
rebuscada/erudita e chula/ofensiva. Temos acesso direto à consciência do narrador,
descrevendo o contato íntimo e posteriormente a elaboração pessoal para responder a
namorada durante o confronto verbal com a mesma. Na última parte o foco narrativo se
altera para a visão da namorada chegando à casa. O trabalho da linguagem é altamente
elaborado, conciso, fluido que nos mostra a habilidade do autor para construir a
narrativa prescindindo da divisão em parágrafos menores.
Em oposição a este, temos a narrativa de “O amante do Crato”, que mimetiza de
certa forma o teor confessional e a tentativa de organizar e estruturar a memória pessoal.
O texto é marcado formalmente por inúmeras cisões, fragmentando a leitura, como se a
narradora tomasse fôlego entre um trecho e outro montando aos poucos os detalhes que
aparecem pouco esclarecidos no início do texto. A linguagem aqui é altamente subjetiva
e poderia perfeitamente ter sido retirada das páginas de um diário, o que coloca o leitor
em posição de dúvida sobre a veracidade dos fatos visto que a própria narradora já
reconhece ao início do texto “Não estou certa que isto tenha acontecido”, admitindo seu
esforço pessoal de organizar as lembranças involuntárias que lhe surgem da infância.
Ambos os contos citados tomam como ponto de vista um “eu-subjetivo” em uma
tentativa de organizar, descrever as experiências, o que não ocorre, por exemplo, no
conto “Marido”. Ao longo do texto, não temos informações claras sobre o narrador,
todavia pode-se entrever que ele tem acesso aos detalhes da vida da personagem
principal Lúcia e por ela sente certa empatia, já que roga repetidamente no primeiro
parágrafo à Regina, Nossa Senhora, que proteja a porteira e o marido. O conto de
desenrola entrecortado por trechos da oração “Salve Rainha” da tradição católica e
diversas expressões em latim, dando a entender que o narrador também seria católico. O
foco narrativo é o do observador/expectador que presencia toda a situação e relata de
seu ponto de vista a vida e a morte de Lúcia. O trabalho da linguagem no conto confere
ao texto certo ar de piedade, compaixão pelo “sacrifício” da porteira, e permite ao leitor
entrever alguns detalhes do espaço em que a trama de desenrola, um prédio de dez
andares, e alguns personagens descritos genericamente, o marido, a assistente social,
médico, anciães, etc.

3. Em relação à unidade de tempo, estabeleça relações de semelhança e diferença entre a


novela de Raduan Nassar e o conto de Maria Velho da Costa e Lídia Jorge. 

Na novela de Raduan Nassar e no Conto de Lídia Jorge, observamos a


preponderância pelo tempo psicológico, visto que o ponto de vista narrativo é o de
primeira pessoa. No primeiro caso observamos o narrador descrever o encontro do
casal, a noite que passam juntos, o despertar e em seguida as agressões que se iniciam
por causa de um incidente casual. O texto segue o fluxo intenso da consciência do
narrador e seguimos de perto seus pensamentos, suas reações e a forma como
explicitamente manipula suas falas. Podemos recriar a cena durante um curto período de
tempo, que vai do momento de encontro do casal até o dia seguinte. Na parte final do
conto, entretanto, vemos uma ruptura para um instante diferente, um futuro
indeterminado posterior aos eventos do início do conto, narrada na perspectiva da
mulher, criando o efeito do eterno retorno e do ciclo problemático dessa relação.
Já no conto “O amante do Crato”, de Mario Velho da Costa, a relação temporal
é mais complexa, pouco definida, ambígua, num limbo que oscila entre o tempo do
enunciado e o tempo da enunciação. A narradora busca organizar os flashbacks dos
eventos ocorridos em uma infância distante, nebulosa e, através desse esforço, lidar com
os conflitos do presente e os sentimentos não resolvidos perante a experiência
traumática. Não se tem informações sobre o tempo da enunciação ou o espaço em que
ele ocorre, tornando o texto um lugar de experimentação da linguagem e expressão da
fragmentada estrutura psicológica da narradora.
Comparado aos dois textos, o conto “Marido” possui uma estrutura mais linear
das unidades de tempo e ação que vão seguindo a oração do narrador à “Regina e a
Rex” na medida em que avança contando e descrevendo os eventos em uma ordem mais
cronológica, mais uniforme que os aqueles textos. É possível, através da descrição no
conto, recriar todo o desenrolar da história, pois o narrador acaba revelando detalhes da
vida íntima da porteira que somente um observador próximo seria capaz, entrecortando
o texto com as próprias intervenções rogativas e opiniões pessoais sobre a porteira. A
perspectiva é de um observador que nos revela inclusive alguns estados emocionais de
Lúcia, mas não revela o período em que a enredo se passa, tornando o conto atemporal e
o desenvolvimento desencadeado dos fatos vai construindo aos poucos o drama do
enredo e encaminhando o leitor para o desfecho inevitável.

4. Comente a perspectiva enunciativa crítica à violência tanto em Um copo de


cólera  quanto em "Marido", de Lídia Jorge. 

Em ambos os textos percebe-se o tom de denúncia às relações abusivas e à


violência contra a mulher, porém através de estratégias diferentes. No caso de Um copo
de cólera, a denúncia se estabelece a partir do profundo desprezo que o personagem
principal parece sentir pela mulher, seja através dos adjetivos no diminutivo, das
palavras desmoralizantes ou dos xingamentos desvelados que alcançam a violência
física, ou mesmo na manipulação explícita com a qual envolve a parceira. Aqui o
homem utiliza a força verbal, física e sexual para manter a mulher sob o julgo de seus
caprichos ao mesmo tempo em que supostamente e ambiguamente se entrega aos
cuidados da parceira. Isso fica explícito no trecho que descreve o banho do casal: “e eu
ali, todo quieto e largado aos seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela
cumprisse sozinha esse trabalho”. Durante essa parte, em específico, o narrador se
entrega aos cuidados da namorada, que ao final da novela, confirma a relação de
interdependência viciosa que mantém:
“não era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez
que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de repente por uma virulenta
vertigem de ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir
inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto.”

As falas dos personagens funcionam bem para denunciar as mazelas do


relacionamento, a violência, a submissão da mulher e a sua incapacidade de se
desvincular da situação. A esgrima verbal que se estabelece na parte “O esporro” nos
permite entrever que a personagem ainda tenta articular sua defesa e afronta contra o
namorado, mas apontada pelo narrador como populista e defensora de posições políticas
equivocadas e apesar de tudo vê-se rendida ante ao erotismo vicioso do homem.
No texto, ambos os personagens da relação não são nomeados, senão por aqueles
impropérios que atribuem entre si. No conto de Lídia Jorge, o “Marido” também
permanece não nomeado, o que confere aos personagens certa generalização. No caso
deste conto, apenas Lúcia é descrita e seu nome é altamente simbólico para os eventos
da narrativa. A crítica presente no conto “O Marido” é direcionada à submissão da
mulher e a sua alienação perante a situação. Assim como a personagem de Um copo de
cólera, Lúcia possui um cuidado maternal com seu marido, “ela é que o vestia, ela é que
determinava a comida, ela é que o mandava ver os pombos”, indicando a codependência
a que se submetem perante a mulher, simultânea e paradoxalmente vista como mãe e
esposa.
No caso de Lúcia, entretanto, a alienação possui suas origens na crença religiosa,
que lhe compele a um estado de profunda submissão ao marido e a incapacidade de
romper os laços matrimoniais acreditando na santidade do sacramento. O prédio, lugar
em que trabalha e mora simultaneamente, é também uma metáfora para a prisão
ideológica em que vive e a personagem não vê possibilidades de se desatar do
matrimônio. O narrador confirma que “a porteira sabe, nunca dará um passo para se
separar do marido. Pensando nisso chega a sentir um sentimento anticristão”. Nesse
caso, porém, a decisão de permanecer ainda mais submissa custa-lhe a vida, acesa em
chamas como a vela de devoção que era seu porto seguro, de forma que seu sacrifício
permaneça como um alerta para todas as “Lúcias”.

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