Você está na página 1de 15

ZARATUSTRA E O RENASCER DO TRÁGICO

«E como suportaria eu ser homem,


se o ser humano não fosse também
poeta decifrador de enigmas e re
dentor do acaso?))

Assim Falava Zaratustra, II, 20.

O que Nietzsche valorizou em O Nascimento da Tra


gédia foi o encontro imediato e irrecusável do homem com o
carácter mais originaL do ser. Encontro que se revelou como
uma espécie d pathos jnoduzido pela unidade primordial
de que progressriãmente a racionalidade o tinha afastado.
Alas, mais do que encontro, o que O Nascimento da Tra
gédia celebrou foi essa fusão entre indivíduo e ser, consegui
da pela música, miticamenteficcionada pelo jovem Nietzsche
como música dionisíaca e que misturava, como mais nenhuma
outra, a expréssão estética, o arcaico, o primordial e o terrí—
fico. Não que Nietzsche defendesse na altura d’O Nasci
mento da Tragédia que fosse possível uma cultura unica
mente dionisíaca, isto é, submersa no elemento irracional e
na anulação da individualidade. O que para ele estava em
causa era o facto de o esquecimento a que a cultura de raiz
socrática tinha votado as formas de expressão não apolíneas
se ter desenvolvido de tal modo, que a nós, homens modernos,
se tornou inacessível algo de fundamental na experiência esté
tica’. Ê verdade que a cultura, entendida como sistema de
formas apolíneas de expressão, tem como função criar distân

Ver o nosso Prefácio a O Nascimento da Tragédia, primeiro volume


das Obras Escolhidas de Nieszscbe, com o título: «O Nascimento da
Suprema Máscara: Dioniso», Círculo dc Leitores, Lisboa, 1996.
IV NIETZSCHE PREFÁCIO V

cias e disfarces entre os homens e a experiência trágica, enca torno de Dioniso, a figura do semideus mítico em que os
rando-se esta como o conhecimento do excessivo e da fusão do clássicos gregos concentravam todas as consequências dessa
individual no universal. Seria uma espécie de camada inter descoberta da perda do lugar central do homem. Então a ex-
média que libertaria o homem de uma constante tensão exigi • periência dionisíaca não apenas revela ao homem a sua con
da pela experiência dionisíaca e o reconfortaria na contem • dição descentrada, que pode ir mesmo ao limite de uma noção
plação defonnasperfeitas e harmoniosas (apolíneas). Foram • dejoguete nas mãos dos deuses, mas permite ainda o retomo
os Gregos que desenvolveram de uma forma mais elaborada a essa unidade perdida. Não será através do conhecimento
que qualquer outra cultura esse sistema intermédio deformas conceptual-lógico que essa unidade é recuperada e reconhecida
individualizadas, um estrato de distancia ção, sob a forma como redenção do indivíduo, mas sim através de uma re
das artes apolíneas. gressão que só a vivência do mito proporciona. Note-se que
Passados mais de dez anos do aparecimento d’O Nasci
se deve entender aqui o termo regressão num sentido aproxi
mento da Tragédia, Nietzsche não mantém a mesma con
madamente técnico freudiano: o retorno aformas de compor
fiança no poder quase salvífico da tragédia, ou melhor, nas
tamento preexistentes à constituição do elemento racional da
capacidades de transfiguração absoluta, tanto de um ponto
de vista individual como colectivo, da experiência do mito vida psíquica. O inconsciente é um lastro que o conhecimento
trágico. Estas são considerações necessárias para se perceber de superfície não atinge, mas está sempre presente e cotnple
em que sentido o Zaratustra representa um renascer da tra tamente activo. Veremos como Nietzsche, já no Zaratustra,
gédia. Se é verdade que agora Nietzsche não vê da mesma designa este lastro profundo e activo como o «si próprio»
forma a experiência trágica, nem o papel do mito que as tra (das Selbst), acabando por lhe fazer corresponder o concei
gédias clássicas encenavam, nem por isso ele abandona o con to de corpo, nomeadamente no capítulo com o título, ((Dos Des
ceito do trágico na composição do Zaratustra. Pode afir prezadores do Corpo». A aproximação com a psicanálise não é
mar-se que as premissas da valorização do trágico persistem. abusiva, se pensarmos que a unidade originária do ser, central
Quando o sujeito descobre que era um falso agente, uma er n’O Nascimento da Tragédia, opera de modo semelhante
rónea causa última de acções, que a sua vontade era afinal a um inconsciente colectivo, com os seus arquétipos e os seus
um centro fictício de decisão e que na verdade mais não re fantasmas, o seu poder de condicionar o real consciente e de
presentava do que um acontecimento (ou uma série de
acontecimentos) na inabrangível cadeia do ser, nessa altura
toda a auto-representação do lugar do homem na realidade se
1 exercer o seu apelo irrecusável (a necessidade de regressão).
Deveremos descontar, nesta aproximação, como é óbvio, o va
lor metafísico que Nietzsche atribui ao processo regressivo ele
altera. O mito trágico narra, por um lado, a descoberta que próprio.
o homem faz da sua dolorosa deslocação do centro para um O mito trágico opera como o veículo dessa regressão ao
qualquer lugar dessa totalidade. O jovem Nietzsche todo indferenciado, a que Nietzsche atribui o estatuto de
d’O Nascimento da Tragédia acreditava que o mito ti coisa em si metafísica. Essa experiência regressiva manifis
nha recursos suficientes para que de certa forma o sujeito re ta-se como êxtase, mas sobretudo funciona no contexto
tornasse ao seio dessa totalidade, depois da consciência dessa d’o Nascimento da Tragédia como ((consolação metafí
exclusão dolorosa. E assim que se deve compreender naquela sica)), nas palavras do próprio Nietzsche: ((uma consolação
obra o retomar do mito trágico no drama wagneriano e o Te- metafísica arrebata-nos momentaneamente à engrenagem das
PREFÁCIO VII
VI YIETZSCHE

gressa nos escritos de Nietzsche, traz apenas Ariadne»’, si


figuras em mutação. Somos realmente, por certos instantes, a
própria essência primordial e sentimos os seus irrefreáveis ari gnificando assim a nova situação em que Dioniso ou
Zaratustra se encontra: a unidade com o ser não tem lugar
dez e prazer existenciais; a luta, a tortura, a destruição das
aparências surgem-nos agora como necessárias perante o excesso pela e na regressão experienciada através do drama musical
de inúmeras formas de existência que se impulsionam e cho (ou da música sob a forma de drama). Agora Nietzschefa
cam num ímpeto vital, perante a exuberante fecundidade da la-nos de um sim à vida que o homem ue a si própTio. se
vontade universal; somos perpassados pelo furioso espinho ultrapassou deverá assumir como tarefa activa, mas essa
destes sofrimentos no mesmo instante em que nos tornámos, afirmação essencial não se consuma como termo de uma re
por assim dizer, um só com o incomensurável Prazer existen gessâoa um em si, a um informe em que o sujeito se funde
dal originário e em que pressentimos a indestrutibilidade e em qui encontra verdade e consolo metafisicos. Quando
eternidade de tal prazer, em êxtase dionisíaco»’. Sabemos Nietzsche, pela primeira vez n’A Gala Ciência (Livro
que na teoria da tragédia do jovem Nietzsche esse movimento Quarto § 342), introduz a figura de Zaratustra, começa esse
de regressão e identificação ao ser é sobretudo propiciado pe fragmento de apresentação com o título, «Jncipit tragoedia»
la música e pouco tem a ver com a intriga, que apenas passa (cComeça a tragédia»). Aos trinta anos Zaratustra abando
para primeiro plano a partir de Eurípides. Esse elemento nou o local onde vivera, algures na Pérsia, e retirou-se para
musical, em que Nietzsche situou o próprio nascimento da a montanha, onde permaneceu por dez anos, depois do que
tragédia, dilui-se, no entanto, à medida que o afastamento decidiu voltar ao convívio dos homens. Assim começou o seu
de Wagner se conswna. O corte com a estética musical de ensinamento e também o seu declínio (Untergang), como
Wagner2 corresponde à impossibilidade da continuação da refere Nietzsche, ao encerrar aquele belíssimo fragmento.
crença desse reencontro metaJïsico com a unidade do ser, de Note-se que o termo Untergang deve entender-se no duplo
um êxtase salvffico, sob a máscara de Dioniso. E, no entan sentido de movimento em direcção ao inferior, tanto espiri
to, Zaratustra é identificado por Nietzsche com DionisoÇ tual, como fisico. Que signjficará pois aqui, ((Começa a tra
ou melhor, será uma máscara de Dioniso, o qual desse modo • gédia»? Face ao que já vimos não estará em causa simples
retorna com dijhenças e semelhanças que deverão ser esclare mente a tal consciência da perca de um lugar central do
cidas. Laurence Lampert afirma que «quando Dioniso Te- agente e do reconhecimento de uma ordem incontrolável e in
desafiada. Esse é o pressuposto paradigmático
O .Ná.,rimenu, da Tm,édia, primeiro volume das Obras Escolhidar de
da tragédia clássica. No entanto, veremos melhor que aquilo
Xie:znhe, Circulo de Leitores, Lisboa, 1996. págs. 1 18-1 19. • sensatamente
que Zaratustra descobre não é apenas a ilusão que representa
2
o que evidentemente não se pode separar do corte de relações um sujeito dotado de uma vontade livre que moldaria o seu
pessoais com Wagner e tudo o que o caracterizava como pessoa e
ideólogo de um neo-romantismo cristão, processo que se prolonga destino. Para além disso, ele descobre que já não é possível
pelos anos que se seguem à l. edição d’O Nascimeaio da Tragédia
(1072) e termina com a publicação de Humano, Demasiado Iiumaap
(1878). Deusa da mitologia grega, que, apaixonada por Teseu, o ajudou
Nietzscl,e realiza essa identificação muito claramente tio Erre fla a descobrir o caminho no labirinto em que se encontrava o Mino
ma (1888). Ao caracterizar o ilha zaratusiflano, afirma que «este é tauro, oferecendo-lhe um novelo de fio, que ele desenrolou, para as
outra vez o conceito de Dioniso”, Este flama (-lssim Falara Zaratus sim conseguir regressar. Mais tarde é desposada por Dioniso, de
ira, 6). Para informação pormenorizada sobre a figura mítica no con quens leve quatro flilsos. Cf. Lampcrt, Nieishee Teaching, edição ci
texto clássico, ver a entrada «Dioniso» no Dkionddo da lfiIalogia Gre tada em rcfrrncsas bibliográficas, no final deste prefácio, pág. 231
ga e Romana, de Pierre Grimal, Difel, Lisboa.
VIII NIETZSCHE PREFÁCIO IX

regressar a uma origem primordial, mesmo que esta surgisse jecto da figura central, que inicia com a mesma idade de
transfigurada numa experiência estética absolutamente nova, Cristo, após o que se decide transmitir a sua sabedoria aos
musical ou outra. A pergunta pois que em geral se coloca ao homens. A mensagem de ambos pretende ser revolucionária e
Zaratustra, pelo menos a partir do ponto de vista herme não simplesmente reformista: assim como Cristo não teve co
nêutico que escolhemos, será a seguinte: O que se revela afi mo objectivo reformar o judaísmo, assim também Zaratustra
nal a Nietzsche que o impede de repetir o movimento de re não quer reformar a tábua de valores sobre a qual nos vamos
gressão, a favor do qual O Nascimento da Tragédia mantendo à superfície. De igual modo os sermões de Cristo
tinha argumentado? eram ouvidos como insuportavelmente subversivos pelos Fari
Torna-se evidentemente necessário definir um itinerário seus, assim Zaratustra foi aconselhado a sair da cidade
(Prólogo, 8),já que o odiavam os bons e os justos: «odeiam-
pelo interior da obra. Somente aquele permitirá esclarecer a
-te os crentes da verdadeira fé e chamam-te um perigo para a
questão levantada. Antes disso, convirá reparar nalgumas multidão». Desprezado e escarnecido, a sua vida não teve o
características do texto, que o leitor fará bem em ter presente mesmo desfecho da vida de Cristo, mas a sua prédica talvez
e que tornarão mais justjficada a escolha do itinerário que tenha sido ainda mais solitária e incompreendida. Na verda
mais à frente se propõe. Desde logo, o estilo que individua de, nem com verdadeiros discípulos contava e os pensamentos
liza o Zaratustra como obra filosófica e literária. A ques mais profundos eram afinal confiados aos seus animais, a
tão não é de menor importância, pois que a compreensão, as serpente e a águia, imaginários interlocutores em que a sua
características de estilo, para além de ajudarem a definir o alma se desdobrava.
sujeito/autor, limitam drasticamente as alternativas de inter As semelhanças poderão pois multiplicar-se, mesmo ao
pretação’. nível do pormenor à primeira vista irrelevante. Porém, se o
Salta à vista como o estilo do Zaratustra tem muito de estilo, situações e elementos de conteúdo são tão próximos é
bíblico, com as suas parábolas, os seus quadros ricos em precisamente porque Nietzsche quis criar o ambiente mais
analogias de intenção didáctica, um sujeito narrador essen propício à configuração de uma figura contrária, antípoda
cialmente descritivo, mas sem se furtar a momentos de gran mesmo dessa outra que durante vinte séculos dominou a cul
diloquência. Alas assim como os relatos dos discípulos não se tura ocidental. Por isso o ambiente só poderia ser o bíblico
confundem com simples hagiografias, assim também o evangélico e a figura antinómica é a do Crucjficado e todo o
«evangelista» de Zaratustra mantém a distância, retirando esmagador conjunto de referências que o nome de Cristo
do material narrativo aquilo que seria objectivamente mais abrange. Para Nietzsche não havia dúvidas quanto à nature
relevante. Há ainda, como nos Evangelhos, o relato do tra za fundadora para a nossa cultura do texto bíblico, sendo
pois do ambiente do Novo Testamento que deveria surgir um
outro Novo Testamento: «Ê uma “poesia” ou um quinto
Sobre a questão do estilo ver um dos primeiros comentários que “evangelho”, para o qual ainda não existe qualquer nome.)?’
transforma o estilo em questão central em Nietzsche: «La Question
du Stylc», dc ,Jacques Derrida, in Nietzsche aujourd’hui (PIou, Paris,
1973, vol. 1, págs. 235-287). Sobre o mesmo tema ver também dc
B. Magnos, 5. Stewart e J.-P. Mileur, Nietzsch?s C’ase-Phitosaphy as! Em carta de 13 de Fevereiro de 1883 ao editor Sclsmeitzner. Pa
and Literatare, especialmente o cap. 1 (Roudedge, New York and ra mais informação, retirada da correspondência, acerca do Zaratus
London, 1993). Especial atenção sobre a questão do estilo merece o ira, ver nosso <A’o fundo sou todos os nomes da História» — Nietzsche, os
livro de Alexander Nebamas: Melzsche-Lifr as Literatare (Harvard vinte anos fundamentais a partir das suas cartas, Círculo de Leitores, Lis
UP, Cambridge MA/London, 1985). boa, 1996.
X NIETZSCHE PREFÁCIO XI

À5 semelhanças correspondem dferenças, que não têm lico, como sabemos a maior semelhança pode conter as dfr
passado despercebidas à maior parte dos co,nentadores. Por renças mais significativas. Basta agora falarmos da que se
exemplo, enquanto no texto bíblico prevalece a parábola como refere ao conceito de redenção. Todo o ensino de Cristo se
forma didáctica, no Zaratustra a forma privilegiada é o orienta para a salva çõo fora deste mundo, a superação por
ditirambo, uma espécie de petit poème en prose (desen isso da contingência das coisas terrenas e da sua temporali
volvido em autores como Baudelaire) insuflado de musicali dade. «Permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles
dade e eventualmente inspirador da dança. Podemos imagi que vos falam de esperanças cxl raterrestres»’, eis o que Za
nar Zaratustra, dançando entre os discípulos, qual Dioniso ratustra tem a comunicar aos homens e pode considerar-se di
ao som de um ditirambo. !Qietzsche fala ainda do seu estilo, visa de toda a obra. i\ste sentido, o ensino de Zaratustra
n’O Crepúsculo dos Ídolos (O que eu Devo aos An consiste precisamente no inverso da prédica a favor da crença
tigos), como de um estilo epigramático (epigrama: pequeno num mundo futuro e da necessidade de redenção. Por outras
texto, fragmento que serve para o louvor ou o exemplo), par palavras, se há redenção ela consiste na glor(ficação da terra
ticularmente com Salústio. Também a ode horaciana terá si como símbolo do não transcendente e no abandono puro e
do especialmente inspiradora do estilo zaratustriano. Quer no simples da enraizadíssima noção de uma temporalidade con
epigrama, quer na ode de Horácio, Nietzsche tomou conheci tingente, na luta contra essa contingência a favor de uma
mento da expressão literária exemplar que transpôs para o temporalidadefutura, essa sim, essencial. Encontramos aqui
Zaratustra. Nas suas palavras, essas formas literárias de o ponto onde se cruzam os grandes temas do Zaratustra,
ram-lhe o gosto por um estilo que será como um ((mosaico de nomeadamente o do eterno retorno. Voltaremos a este e ou
palavras, onde cada palavra como som, como lugar, como tros conceitos-chave do livro, mas não sem que antes procure
conceito, para a direita e para a esquerda e sobre a totalida mos saber algo da figura lendária de Zaratustra, até para
de espalha a sua força, este minimum em extensão e núme compreender melhor o simbolismo complexo, de difícil inter
ro de sinais, este maximum de energia dos sinais que assim pretação que preenche o livro.
é atingido — tudo isso é romano e se alguém me quiser acre É provável que Nietzsche, enquanto estudante em Leip
ditar, nobre por excelência. Nietzsche gostava de referir-se zig, tenha conhecido a vida lendária de Zaratustra, profeta e
ao lado plástico, mesmo sensual, da sua escrita e evoca fre autor dos Gathas ou cançães, que são parte das escrituras
quentemente a figura do dançarino, cuja expressão envolve sagradas da Pérsia, na altura já na maior parte traduzidas
sempre o corpo todo. Zaratustra, ele próprio, é um dançari para inglês e alemão. Zaratustra deve ter sido uma figura
no, já que se exprime não com movimentos do espírito, mas real, embora seja praticamente impossível separar os seus fei
do corpo e o discurso deverá ser ágil e não linear, \uma car tos reais dos imaginários. Ainda que a sua localização geo
ta a Rohde de 1884 confidencia que o seu ((estilo é uma gráfica e cronológica seja difícil. é quase certo ter vivido en
dança; um jogo de simetrias de toda a espécie e uma omis tre os séculos vii e tia. C., talvez no Noroeste da Pérsia.
são e escarnecimento dessas simetrias»’. Terá ensinado na corte de um rei chamado Vishtapa e a len
udas, voltando comparação com o estilo bíblico evangé da diz que começou por converter à sua doutrina a rainha e,
através desta, o rei. Os Gathas devem ser documentos au-

0/,. cit., pág. 98 e segs.


Zaratuslra, Prólogo, 3.
Xl 1 NIETZSCHE rREFÁcI0 XIII

tênticos e também é provável que tenha sido Zaratustra o seu O Zaratustra é como o mapa de uma região cheia de
autor. E admitido que historicamente se deve a esta figura a recantos inesperados, de espaços inóspitos e de oásis revigo
doutrina do carácter cosmológico da luta entre bem e mal, ou rantes. Ao discurso literariamente sublime, sucede—se muitas
entre os poderes da luz e das trevas, não sendo possível refr vezes o discurso, desse mesmo ponto de vista, medíocre ou pe
renciar outra doutrina anterior deste tipo. Tratou-se em lo menos de duvidoso gosto. Nesse mapa pode entrar-se por
grande parte de uma antecipação defuturas religiões e a Za onde quisermos e os itinerários possíveis são praticamente in
ratustra atribui-se a propensão para lutar contra as práticas finitos. No entanto,, alguns proporcionam certamente vistas
defritiçaria, pelo que se deverá considerar o seu ensino sábio mais abrangentes. E muito provável que o leitor se sinta co
e avançado. Notável é que também tenha retirado da sua cos mo Teseu no seu labirinto, mas sem um fio de Ariadne que o
oriente para um princípio. A concentração de símbolos e de

1
mologia a noção da repetição circular dos acontecimentos,
uma espécie de retorno de anos cósmicos, o que sem dúvida é personagens é enorme, tornando mais dficil a compreensão e
uma antiga ideia oriental, absorvida mais tarde pelos pita objectivos filosoficos. O que a seguir se propõe é apenas um
góricos e recorda particulannente o pensamento cósmico e itinerário entre outros, mas, em nossa opinião, a escolha in
simbólico de um Heraclito. Por outro lado, retirou desse en clui perspectivas de maior amplitude e trata-se do que se po
sino algumas consequências de moral prática, como, por de considerar uma primeira visita de exploração. Fica ao lei
exemplo, a crença de que aquilo que verdadeiramente conta é tor a possibilidade de ele próprio escolher, mais tarde, outros
a atitude moral, a posição interior e não os fritos externos. percursos, talvez mais minuciosos, mais «pessoais». Vamos dar
Esta terá sido a figura que inspirou Nietesche, que nela en especial atenção a certos tópicos das três primeiras partes.
controu o simbolismo suficiente para construir a personagem- A Primeira Parte é antecedida de um Prólogo, formado
-chave da sua obra. Zaratustra começa por lhe aparecer como por dez capítulos. É uma peça importante e um dos sítios de
uma extraordinária revelação. Desta vez para lhe comunicar paragem obrigatória do nosso itinerário. Nele aparecem já,

1
que o princípio da vida está para além do bem e do com alguma elaboração, alguns dos temas maiores do livro e
mal, um pouco como se o próprio Zaratustra pudesse ter re decerto cria o ambiente em que Zaratustra falou depois do
vtsto a sua doutrina. O próprio Nietzsche descreve, mais tar seu retiro de dez anos, nas montanhas, longe dos homens.
de no Ecce Homo (Assim Falava Zaratustra). a cir O primeiro fragmento equivale ipsis verbis ao último frag
mento do Livro Quarto d’A Gaia Ciências menos o titulo
cunstância precisa em que essa revelação se produziu, na
«Inczpit tragoedia» (((Começa a tragédia”) Depois de déc
Riviera italiana, entre Santa Margherita e Porto Fino, anos de solidão nas montanhas, Zaratustra irige-se ao Sol,
«seu mil pés para além dos homens e do tempo». A altitude num primeiro discurso em que justjflca a sua decisão de vol
é simbólica da solidão, a que Nietzsche sobe e donde, numa tar para o meio dos homens: «Gostaria de oferecer e de re
cadência que animará o livro, desce para comunicar com os partir a minha sapiência (Weishcit), até que os sábios entre
homens. A sua redacção começou em 1883 e acabou dois anos os homens voltem a ter gosto na sua tolice e os pobres, na sua
mais tarde. Este é constituído por quatro partes e cada uma riqueza.» Nada mais é adiantado quanto ao modo de comu
das três primeiras foi escrita em poucos dias (dez!), respecti nicar essa sapiência, a não ser que deverá «descer ao abis
vamente na Riviera italiana, em Sils-Maria, na Suíça alpi mo», isto é, ir para baixo e declinar, tal como o astro mais bri
na e de novo na Riviera. A quarta parte demorou mais tem lhante. O Sol é símbolo desse declínio, mas também da subida
po e foi escrita ao sabor do nomadismo do seu autor.

a ao mais alto. Não surge, como na alegoria platónica da


X!V NIETZSCHE PRErÁCI0 xv

caverna, como um princípio do ser, mais alto e metáfora de passagem em relação a quê? Ao sobre-humano. Assim, im
um deus que cria porque não é invejoso. Zaratustra dirige-se porta desde já notar que Zaratustra não é ele próprio o so
ao astTo como seu semelhante, suportando o zénite e o ocaso. bre-humano, mas sim quem o ensina. O sobre-humano como
A imagética 4 como se vê, familiar da tradição filosofica caracterizãção da superação do homem, mas sem que se pense
ocidental. No segundo capítulo, Zaratustra encontra um ve aí numi movimento em direcção a um inundo ran.çendente_
lho santo, que vive na floresta e recusa qualquer forma de eis uma primeira noção. Por isso é importante reter a relação
convívio com os homens. E o eremita religioso, para quem a entre qIma e corto e pensar,,or contraste, uma outra própria.
vida apenas tem valor como oportunidade para louvar o que daquele’ ihoiiüíóde ultrapassagem. «Outrora, a alma
está para além dos homens, isto 4 Deus. O diálogo com Za olhãbá com desdém para o corpo, e, então, esse desprezo era o
ratustra, que o eremita reconhece após os dez anos que aquele que havia de mais elevado: a alma queria o corpo magro, re
passou nas montanhas, deixa transparecer um certo ressenti pelente e esfaimado. Pensava assim escapar a este e à terra.»
mento em relação aos homens, chegando a aconselhar Zara Na retórica zarastutriana a favor do advento do novo tipo
tustra a nada lhes dar, antes a desistir do seu convívio. que é o sobre-humano, o corpo ocupa um lugar central e re
O homem é demasiado imperfeito, defende o santo. Para quê corrente. A filosofia de Zaratustra é jjualistg,no sentido
pretender mudar o que é essencial? A figura do velho santo, o em g z/i4e qualquer conceito de gjegzadae x.bjçcti
primeiro ser humano a ser encontrado por Zaratustra, no seu varnente captável, para_além do conjunto de fenómenos, de
declínio, reúne alguns traços centrais da galeria nietzschiana signado por corpo. Este capítulo termina com a intervenção
de tipos, nomeadamente o asceta e o ressentido contra a tida. dos espectadores, protestando contra a apresentação do sobre-
São tipos ainda mais elaboradamente tratados em Para a -humano, o que obviamente anuncia uma dificuldade funda
Genealogia da Moral (1887), mas que no Zaratustra mental no relacionamento e comunicação entre Zaratustra e
adquirem alguma consistência dramática. Há vontade de as suas audiências.
persuadir no discurso do santo e o diálogo contém uma certa O discurso de Zaratustra continua no capítulo seguinte
estrutura argumentativa. Quando Zaratustra se separa do do Prólogo e, desta vez, outras características do sobre-
Á velho santo reafirma o que será o facto verdadeiramente in -humano são mencionados, introduzidas pela expressão,
contornável e que decerto mais pesou na sua decisão de voltar «Amo aquele que.... Somos levados a pensar que o conteúdo
para junto dos homens: a morte de Deus. «Será, então, Pos-/\
sível? Este velho santo ainda nada ouviu dizer, na sua fio 1 do conceito vai-il ampliando, ao longo do livro, e alguns tra
ços vão-se repetindo e reforçando. Alas uma outra figura
surge (no quinto capítulo) no discurso de Zaratustra. que é
f— resta, de que Deus morreu!»
O terceiro capítulo marca o nwontro de Zaratustra com
o público, reunido anonimamente na praça, para presenciar
um espectáculo. Começa por, abruptamente, declarar ao que
vem: ensinar o sobre-humano (das Ubermensch). Este en
1 igualmente central, a do último homem. Nieftsche dá esta
designação ao homem moderno, dà época dominada pela
ciência e pela técnica e que instituiu um certo tipo de domí
nio. A caracterização deste último homem éjá bastante.
J sino parece decorrer imediatamente da constatação desse facto completa e reaparecerá no livro com outras designações. Ê a
essencial de que Deus morreu. Que, para além disso, o ho figura do actual niilista, caracterizado por uma conversão a
mem deve ser superado é o elemento novo da filosofia de um certo conceito de felicidade, o qual exclui o risco de qual-
Nietzsche, particularmente se atendermos à questão: ultra quer espécie. Digamos que se trata do homem dos nossos dias
44
XVI NIETZSCHE PREFÁCIO XVII
Â,-.,t tt ‘%

que acima de tudo preza a segurança e imagina um futuro ca, onde cada um exprime seguramente as suas ideias, no
mundo sem riscos e profundamente igualitário. Zaratustra contexto de uma tranquilidade bovina. A referência encontra-
apercebe-se, no final do seu último discurso de ouvir a au -se em Platão (A República, 557 c-d e 558 a-d) e Nietzs
diência gritar: «Dá-nos esse último homem, ó Zaratustra! che retoma-a ftara designar a cidade democrática moderna,
Transforma-nos nesses últimos homens! Assitn, nós oferece certamente aquela onde habita o último homem.
mos-te o super-homem.» Compreende-se que a sequência do O primeiro discurso, agora dirigido apenas aos discípu
Prólogo seja essencialmente preenchida com as reflexões de los, ensina as condïções, ou melhor, as transformações, a que
Zaratustra acerca da rejeição do seu ensino por parte da p0- estes se devem submeter. São três as metamorfoses do espíri
pulação em geral. A ilação retirada é então a de que éprefe to: na primeira, o espírito transforma-se em ëamelq nq se
rireI falar a um núcleo de companheiros a ter que enfrentar a gunda, este transforma-se em leão; e, finalmente, este, em
falta de comunicação com uma audiência, diríamos, univer criança. São pois três os estadõs de espírito necessários para
sal. E como se a capacidade retórica não fosse adequada a se ser permeável ao ensino de Zaratustra, simbolizando o ca
«fazer passar» a mensagem. Como se esta não fosse trans melo aquele que se aventura na mais inósLrita e temível terrg,
missível a um auditório universal, até porque este é no fundo o deserto, o coragnn e a força de vontade que leva à
dominado por interesses específicos e, por assim dizer, selec— criïção de valorêt,a criança, reftresent4ndo a inocência, o co-,
‘ciona o que quer ouvir. Das figuras com que se cruza no nieçr de novo e certamente o desconhecimento do sentimeflto
Prólogo, a mais importante é ofunámbulo que realiza um maLi pesado e bloqueador, o ressentimento. Notável é que a
número arriscado, ao atravessar ïpkiça pública sobre uma descrição das metamorfoses equivalha a uma descrição do que
corda esticada. Este representa o gosto pelo risco, contra o Nietzsche por vezes chama as «novas virtudes”, tema que
r perfil traçado do último homem. Teni a simpatia de Zara prossegue no capítulo seguinte. No centro dar metamorfoses en
tustrae, obviamente, a antipatia da multidão. Acaba por contra-se a passagem do «eu devo», rara o «eu quero, objecti
vado na extraordinária possibilidade de criar outros valores’..
cair, para contentamento da multidão, sendo recolhido por
Mas não é de menor significado a última metamorfose, pois
Zaratustra que o leva consïgo para enterrar. O Prólogo ter
mina com Zaratustra remetido à sua solidão, mas determi
nado em prosseguir o seu caminho. Juntam-se-lhe a águia e À criação de novos valores chamou Nietzsche «Lransmutaçãrs»
a serpente, que o teriam acompanhado na sua estada de dez (Umwertang), operação que traduzida parte substancial do seu pro
anos nas montanhas. A águia, animal de Zeus, e a serpente jecto. Aquilo que é transmutãvel não é apenas um conjunto de valo
res derivado e uma conjuntura de curta e média duração, mas sim
de Apoio, simbolizando as virtudes do orgulho e da prudên aquele que a cultura ocidental instituiu como verdadeiramente es
cia. A frase de encerramento é a mesma de abertura: «Assim trutural. Um dos discursos de Zaratustra onde a criação como
começou o declínio de Zaratustra.» transmutação é mais assumido num estilo decalcado do sermão é o
intitulado «Das Tábuas Antigas e Novas». Com grande profusão de
A Primeira Parte elabora alguns dos temas já delimita metáforas e carga simbólica, os diversos fragmentos de que se com
dos no Prólogo, com particular destaque para a afirmação põe este capítulo da Terceira Parte (30) compõem o essencial da re
da primazia do corpo e das virtudes que exprimem esta pri tórica de Zaratustra, acerca da quebra das antigas tábuas da moral
e da instituição de novas, embora esscncialmente o discurso se de
mazia. Para além disso, introduz o conceito decisivo de von senvolva em torno da natureza ilusória do par dc opostos bem/mal.
tade de poder, no capítulo intitulado «Dos Mil e Um Por outro lado, a traosmutação tem essencialmente a ver coo’ a prá
tica do juízo perspectivista, o qual selecciona um ponto de vista para
Fins». Os discursos desta parte têm lugar na cidade chama a avaliação, como pressuposto que esse é um ponto de vista em com
da «vaca malhada”, evocando assim um lugar colorido ou de petição com outros pontos de vista. No contexto de pensamento de
diversidade colorida, própria de uma sociedade democráti Nietzsclte, este é dominado pelo ponto de vista da vontade de poder.
Sobre este sema ver o nossa Prefácio ao Humano, Demasiado Humano,
segundo volume das Obras Escolhidas de Nktzschs, Circulo de Leitorcs,
XVIII NIETZSCHE

representa a predisposição do esftfritj ti desejafi (não simpies-


1 PREFÁCIO XIX

Selbst) e o eu, Nietzsche clarifica a diferença entre as ins


mente aceigsJ o retomo dos acontecimentos, num jogo sempre tâncias subordinante e subordinada no sujeito. E notável co
novo. Efi6kdisposição vai revelar-se necessária para o n mo Nietzsche consegue descrever essa instância subordinante,
sino daquilo que o próprio Nietzsche considera o fulcro do precisamente servindo-se da descrição dessa relação entre si
Zaratustra: o eterno retomo do idêntico. próprio e consciência ou eu. Pode induzir em erro o facto do
Ainda nesta Primeira Parte, escolheríamos para lugares tenno utilizado para designar a entidade subordinante ser si
de paragem do nosso itinerário os capítulos, «Dos Despreza- próprio, o que sugere um plano reflexivo, um eu que reflecte
dores do Corpo)) e o já mencionado ((Dos Alil e Um Fins”. em si.Ã’o entanto, o si próprio é praticamente identificado
O primeiro contém o discurso mais relevante ftara a com com o corpo. «E no teu corpo que ele reside, ele é o teu cor
preensão do conceito de corpo e desenvolve-se como diatribe po.» Será ainda um erro interpretá-lo como uma substância.
) contra os que desprezanïo corpo e acreditam na primazia de para além das manfestaçües corpóreas. Seria cair no ilusório
/ uma outra entidade a que geralmente chamam alma ou espí
rito ou, ainda, ratão. Para a criança não há entidade sepa
dualismo ontológico. Por isso, talvez seja mais correcto refe
ri-lo como a estrutura de individualidade de que a cons
L rada do Corpo e dominante em relação a este, lembra Zara ciência é parte ou, mais propriamente, instrumento. Estnstu—
tustra. «A alma é apenas uma palavra que designa algo ra «soberana do eu”, o si próprio reserva zonas de
existente no corpo» e «o corpo (der Leib) é uma grande ra desconhecido à pesquisa do eu, já que ele é o próprio instiga
zão. Uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e dor dessa pesquisa. O discurso encerra com a reflexão de
uma paz, um rebanho e um pastor». A primazia do corpo Zaratustra, segundo a qual não é possível àquele que despre
significa, em primeiro lugar, a rejeição do dualismo de za o corpo encontrar o caminho que leva ao sobre-humano.
tri riesana. E um erro fundamental acreditar-se que se E lógico que assim seja. Apenas está disponível para trilhar
conhece melhor a alma do que o corpo: a entidade que se pro esse caminho aquele que se preocupa e se interroga acerca dos
cura, acaba por perder-se nos labirintos daquele. Em conse sinais do corpo e dele faz o domínio privilegiado da sua in
quência, mesmo quando mais recentemente se substituiu a ai— vestigação.
rna por outra instância, a que chamamos razão e lhe O discurso contido em «Dos Alil e Um Fins» é de deci
atribuímos afiitüldade de discernir essa substância (e por is siva importância e completa a descoberta da instância subor
so a abna pudesse reflectir em si mesma), mesmo nesse caso dinante do si próprïo. Pela primeira vez aparece o conceito
não estamos senão a iludir-nos. Tentar ver claro, através de fulcral de ((vontade de poder» (WiIle zur Macht), assu
um artído. isto 4 da invenção de uma entidade inexistente. mindo esta unia natureza universal. Em todos os povos e cul
Por isso, ((há mais razão no teu corpo que na tua melhor sa turas Zaratustra verificou a existência da dualidade bem!
—S. bedoria». mml, o que se explica pela própria dinâmica da sua autopre
O discurso de Zaratustra possui pois um alcance efliste sercação. Aias para além desse elemento comum, um outro
.mológico e ontológico. Não só é impossível conhecer uma existe ainda mais essencial, a vontade de poder. Este é o solo
substância separada do corpo, como é de facto inexistente es onde crescem os valores e pela primeira vez estes são vistos como
sa substância. Mas contrariamente ao que sucede noutros Jàrrnas de concretização e evolução dessa vontade. A esta luz
textos de Nietzsche, agora é dado mais conteúdo ao próprio é facilmente compreensível que o bom seja ligado àquilo que
conceito. Através da distinção entre o si próprio (das favorece o crescimento do poder e que o mau, inversamen
XX NEETZSCHE PREFÁCIO XXI

te, ao que o diminui. Este é um ponto nuclear do ensino de que a recalcam. «Invulgar e inútil», é como a qualifica Za
Zaratustra e se não representa o seu objectivo último, pelo ratustra, afastando-a das virtudes que se apresentam como
menos é tão indispensável para a compreensão do livro como tal, precisamente por serem vulgares, partilhadas pela multi
a mensagem sobre o eterno retorno, O si próprio é animado dão, e úteis à vida. Deve notar-se como este discurso faz sis
pela vontade de poder e nesta altura do desenvolvimento do tema com os ensinamentos anteriores sobre a noção de corpo,
Zaratustra é possível ligar numa só cadeia os conceitos de como grande razão, e sobre a vontade de poder. A teoria da
corpo, si próprio e vontade de poder. virtude, que Nietzsche retomará’, particularmente no próxi
Importa ir além da verificação do relativismo dos valores mo Para Além do Bem e do Mal, deve acrescentar-se à
e detectar a vontade de poder como fonte de criação das mais tese da vontade de poder e deverá ajudar a esclarecer este con
variadas formas. Percebe-se como Zaratustra quer dar con ceito. Apenas uma correcta compreensão antropológica com
teúdos ao conceito e essencialmente atribuir-lhe qualidades base na vontade de poder pode dar um sentido à doutrina da
criativas. Os discípulos ficam a saber que o aspecto mais virtude que oferece. Por fim, a imagem do grande «meio-
importante da criação é a avaliação: criar é avaliar. Se pen -dia» (grosse Mittag) retoma a analogia solar. O zénite
sarmos que a avaliação supõe um quadro hierárquico, com não corresponde a um estado de sabedoria máxima, mas sim
preende-se como a doutrina da vontade de poder levanta o plesmente a uma passagem do humano ao sobre-humano.
problema da hierarquia, central no pensamento de Nietzsche Na Segunda Parte, volta para junto dos homens, para
e uma das suas principais peças anti-relativistas. O discurso
corrigir e consolidar a sua doutrina. Entretanto havia sido
termina com a afirmação de que falta um fim para a huma
feita desta uma apropriação indevida e por isso impõe-se-lhe
nidade, ou seja, uma forma de avaliar (exercer a vontade de
o regresso. Não é de estranhar que por isso não surjam pro
poder) universal. Nesse caso, o que Zaratustra se propõe ul
priamente temas novos (excluindo «Da Redenção» que anun
trapassar será o relativismo das tábuas de valores e essa pa
rece ser parte integrante do seu ensino. cia a teoria do tempo, essencial no pensamento do eterno re
A Primeira Parte encerra com um capítulo, «Da Virtu torno), mas que se aprofunde, diríamos, o carácter esotérico
de que Oferece», na qual Zaratustra se despede dos discípu da transmissão da doutrina. Desde logo, a forma ditirâmbi
los que o seguem já em apreciável número. É a primeira vez ca do discurso, acompanhado de dança, exprime essa nova
que aqueles são mencionados como discípulos e a despedida, atitude. Os discursos dos capítulos 9 a 11 são outras tantas
para o retorno à montanha, pressupõe que Zaratustra confia canções ditirâmbicas, interpretadas por Zaratustra/Dioniso.
já neles suficientemente para os deixar como repositório e me Essas canções, que glorflcam a vontade, o desejo, a criação,
mória do seu ensino. No entanto, a Segunda Parte do livro enfim as expressões mais genuínas do corpo, preparam o im
começa com um novo declínio de Zaratustra, que regressa aos portante discurso contido em «Da Vitória de si Próprio».
homens por verificar que esse ensino foi adulterado. A virtu Zaratustra dirige-se aos grandes sábios, que são afinal os
de maior é a que se revela ((invulgar e inútil», tal como o criadores de valores. Neste conjunto, pode imaginar—se que
ouro, que se oferece a si próprio, isto é, doutro ponto de vis estão incluídos os fundadores das religiões, os criadores dos
ta, é desejável por si só. Assim a virtude que oferece é uma
força que sempre persiste e actua no íntimo dos homens. Es Cf. Para Além do Bem e do Mal, capítulo intitulado «As Nossas
tes procuram-na insaciavelmente e são outras falsas virtudes Virtudes».
XXII NIETZSCHE 1 PREFÁCIO XXIII
grandes sistemas de ética e os homens políticos que moldaram impulsos (comando e obediência) enquadra-se na metafisica
a história. No fundo, aqueles que instituíram pela primeira dos contrários que Nietzsche desenvolve, pelo menos a partir
vez sistemas de valores, a que povos inteiros obedeceram. Es do Humano, Demasiado Humano’. A vontade de
sencialmente é este o conceito de poder que interessa a Nietzs— poder é pois o nome que Nietzsche dó a esse jogo de contrá
che: a criação de valores a que voluntariamente os homens rios (mandar e obedecer) que a vida ensina ser a raiz do
obedecem. Não se está pois a falar de um domínio que ape comportamento de todo o ser vivo. ((Onde encontrei vida, en
nas subsiste pela violência exercida sobre os submetidos, ou contrei vontade de poder; e até na vontade de quem serve, en
de um poder conseguido através deformas enganosas, que os contrei a vontade de ser amo», eis Zaratustra a revelar aos
seus detentores ardilosamente concebem. Essas ainda são for mais sábios o último segredo da vida. No fim do discurso
mas superficiais de compreender o poder. Os criadores de va Zaratustra nota ainda que aquilo que os homens de saber ou
lores colocam os homens num barco que segue o curso do rio os cientistas da vida até agora pensavam ser o factor essen
(o fluxo do ser e do tempo) e o rio é ((a inexausta vontade cial da vida, uma ((vontade de viver», não é realmente o que
geradora da vida,?. define a vida. Na verdade, não há tal vontade, «pois o que
E mais uma vez à vida que Zaratustra se dirige, como não existe não pode querer; o que tem existência, porém, co
já o fizera nas três canções anteriores, particularmente mo poderia ainda querer a existência?». Assim lhe falou a
n’((A Canção de Dançar”. Através dos seus olhos (e não vida, com os olhos, a mais fidedigna janela para a vida, já
da sua boca) a vida desvendou-lhe o segredo de todo o ser que as palavras, muitas vezes, transviam o pensamento.
vivo. Entre o obedecer e o mandar decorre a vida dos ho O ambiente criado, nesta altura do Zaratustra, é o de
mens. Esses são os impulsos primordiais, de que decorrem uma pedagogia que parece chegar ao limite do ensinável e al
todas as tábuas de valores que «os mais sábios,) impuse guns discursos desta Segunda Farte do livro possuem um tom
ram aos outros homens e a si próprios. No mais secreto do oracular, ainda que não a nível do conteúdo e da argumenta
obedecer surgea vontade de comandar e, nesta, a vontade ção. Seria possível que o livro acabasse na transmissão do se
de obedecer. E magnífica e de importantes consequências gredo da vida. Na verdade, a compreensão de coisas essen
no domínio político a forma como Nietzsche descreve o mo ciais como a natureza dos valores, a vida como necessidade
vimento, a um tempo hierárquico e circular da vontade de
de auto-superação e sobretudo a identflcação do mais elevado
poder. ((Se O mais fraco serve o mais forte, é por ser per da vida com a vontade de poder, parece consumar-se com o
suadido a isso pela sua vontade, que quer ser senhora do discurso incluído em «Da Vitória sobre si Fróprio». Este é o
que seja ainda mais fraco que ele: é o único prazer de que ponto para onde convergem todos os discursos anteriores, no
não pode prescindir. E tal como o pequeno se dedica ao sentido em que todos os mais relevantes problemas e figuras
grande, de modo a ter o gosto de dominar o mais pequeno, dependem, em última análise, da existência da vontade de
também mesmo o maior de todos se dedica e, por amor do
poder, põe assim em jogo a própria vida. Risco e perigo
caracterizam o devotamento do maior de todos, que é um jogo Sobre a metaflsica dos contrários, ver a nossa tntroduçào Geral
no primeiro volume das Obras Escolhidas de Nieftsc&, Círculo de Lei
de dados com a morte.» A relação paradoxal entre os dois tores, Lisboa, 1996.
XXIV NlrrzsCuE PREFÁCIO XXV

poder. Até aqui, poder-se-ia dizer que o Zaratustra é um num para além desta vida. Assim esse resgate ou redenção
tratado filosófico que se apresenta como uma crítica da ética realiza-se, não nos limites da própria vida, mas contra ela.
com base numa antropologia. Mas, a partir do antepenúltimo Se o platonismo queria salvar os fenómenos em constante
capítulo, «Da Redenção», desta Segunda Parte, Nietzsche transformação, ao designar-lhes um fundamento no arquéti
acrescenta uma metafisica, a qual se desenvolve em torno do po, para ló do existente, os grandes criadores de valores fo
tempo’. É a primeira incursão na teoria do tempo do eterno ram platónicos quanto baste, ao remeter para outro mundo e
retorno e representa verdadeiramente o início de uma segunda outro tempo a redenção de todo o passado. O que se venfi
vertente do Zaratustra. A redenção aparece desde logo como ca, na verdade é que esse passado permanece incompreensível,
uma solução do enigma do pesadelo contado por Zaratustra persiste como uma série desconexa de acontecimentos. Os
aos discípulos no discurso imediatamente anterior em criadores de valores resolveram o problema, ao afirmarem
«O Adivinho». O sonho cria o ambiente preparatório, de que aquilo que aconteceu, aconteceu assim, porque essa foi a
grande expectativa, para o dUícil raciocínio que se segue em vontade de um deus. Alas os deuses morreram, como é do co
((Da Redenção». Ali Zaratustra guardava caixões de vidro, nhecimento hó muitos anos de Zaratustra e agora dos seus
respirando o cheiro de eternidades empoeiradas. Todo o tem discípulos. Até o úitimo homem o sabe. Zaratustra propõe
po passado jazia pois, fixo e inerte e a «vida subjugada» então como única alternativa que o aconteceu seja desejado,
olhava para Zaratustra. Este cai em grande prostração e e que se o considere fruto de uma vontade não menos boa que
melancolia, face ao quadro sinistro. Situação psicológica que qualquer outra, que apenas saiba rejeitar o passado e o pro
se repete na próxima parte frO Convalescente»), quando ex cure redimir num outro mundo. A redenção do passado só po
plicitamente o eterno retorno é apresentado, o que se liga de ser assumida agora pela vontade de poder, ou pelo homem
então ao facto deste ser o pensamento mais abismal e que como essencialmente uma vontade de poder. Nesse caso Zara
certamente os discípulos mais dificuldade terão em compreen tustra encontra afónnula precisa para a redenção: «Redimir
der. O problema de que Zaratustra agora fala pode colocar- os que viveram no passado e transformar todo o “aconteci
-se do seguinte modo: se o fundamental da existência reside mento” num “Eu assim o quis” — isso é que seria para
na vontade de poder e se os homens estão condenados a criar mim redenção!» Esta será pois a posição afirmativa, o sim
sempre novas formas de vida, novos valores, numa contínua à vida que só a vontade pode dar,
auto-superação, nesse c&o todo o passado foi em vão e o fu O enigma do pesadelo do capítulo anterior pode então
turo não é mais do que uma consequência desse passadoca decfrar-se: os caixões de vidro encerram os acontecimentos
sual e inútil. Não se trata de uma formulação nova e os do passado, os quais morreram segundo aquela vontade que
grandes criado’res de valores, «os mais sábios» do capítulo os tornou inertes, que os transformou em factos simplesmente
«Da Vitória sobre si Próprio», fundadores das religiões e para esquecer. E o procedimento a que Zaratustra chama
outros, tiveram essa experiência. Cristo, por exemplo, resga «vingança da vontade» e que contém um significado metafi
(ou os pecados dos homens, ao ensinar a verdadeira existência sico (a vontade como criadora da temporalidade histórica) e
certamente também consequências psicológicas. Toda a estru
tura psicológica do homem do ressentimento — futuramente
«O mais espantoso de todos os capirnlns de Assim Falava Zaratus
Ira» é como classifica Laurcnce Lampcrt «Da Redenção» cm ap. di., tratado, sobretudo e Para a Genealogia da Moral — as
pág. 140. senta nesta vingança da vontade contra o «aconteceu».
XXVI NIETZSCHE

A vontade vira-se contra o «aconteceu)), pois que se vi «im


potente perante o que foi feito, ela é uma espectadora malévo
‘ PREFÁCIO

descer, lembra o anão. Por outras palavras, o pensamento


não suporta pairar em zonas em que a argumentação lógica
XXVII

la de tudo quanto é passado)). Sepultar o passado, através de não domina. Isso é o que aquele espírito transmite a Zara
uma transferência do sentido da vida para outro mundo e lustra, sendo a resposta deste extremamente curiosa, pois con
tempo, eis a posição da vontade contra a vida. Como será duz a contra-argumentação para a discussão da temporalida
possível essa reconciliação da vontade e do tempo? E será de de, ou melhor, da lógica da sucessão dos acontecimentos num
sejável? Neste pnto o discurso de Zaratustra interrompe-se e tempo infinito. Estamos pois em plena descrição do pensa
surge a dúvida se a vontade de poder deverá desejar essa re mento abissal do eterno retomo, repetido no final desta parte,
conciliação. O que desde já é manifestado o desejo de recupe em «O Convalescente?) e na continuidade de «Da Reden
rar os fragmentos e uni-los numa totalidade, o que não seria ção». É notável que a argumentação seja de teor racional, is
possível com o passado sepultado pela vontade vingadora. to é assume a forma de uma demonstração que se dirige a
«Caminho por entre os homens como por entre fragmentos do uma prova’. Como o anão é racional deverá admitir que,
futuro: daquele futuro que eu vejo. E todo o meu interesse sendo o tempo infinito e as coisas ligadas, mais finitas, o
consiste em juntar e reunir num todo aquilo que éfragmento, instante presente deve ter já existido e retornará eternamente.
enigma e acaso atroz.)) De qualquer forma, a questão do De facto, como poderíamos nós chegar ao instante presente se
tempo, isto é, da vingança da vontade contra a temporalida atrás deste há um tempo infinito? Ter-se-á de admitir que
de, transformando o passado em algo inerte, apenas pode ser conceber o tempo como linha recta, prolongando-se ao infini
resolvida no quadro da teoria da vontade, de poder. E esta a to, é contraditório com o ter-se alcançado o momento presen
linha de força que domina toda a Terceira Parte do Zara te. Por isso o próprio anão reconhecerá que «Tudo quanto se
tustra. ja direito é mentira. Toda a verdade é curva, o próprio tempo
A Terceira Parte desenvolve-se no aprofundamento do é um círculo.» Evidentemente, a argumentação é especulati
pensamento do eterno retomo do idêntico. Embora as condi va, à luz de princípios científicos da cosmologia. Qual o al
çães que conduzem a este pensamento estejam criadas a partir cance científico que Nietzsche dava ao eterno retorno? Seria
do discurso «Da Redenção)), aí ainda não aparece a figura para ele uma argumentação com alcance apenas retórico, pa
do eterno retomo, O início desta Terceira Parte é marcado ra ajudar à persuasão relativamente à crença na doutrina?
por uma viagem marítima, simbolizando a viagem espiritual E dUicil sabê-lo. A verdade é que Nietzsche trabalhou com
que Zaratustra mais tarde fará, perigosa e solitária. No se regularidade, em notas que vão de 1881 a 1888, o argumento

1
gundo capítulo, intitulado «Da Visão e do Enigma», elefa cosmológico do eterno retorno. Poderá então considerar-se co
la à sua restrita audiência e o tom continua a ser próprio de mo uma espécie de parte teórica da global argumentação a
um ensino esotérico, talvez ainda mais marcado do que na favor do eterno retorno. Os pormenores dessas notas podem
parte anterior. Zaratustra é assaltado por um anão, repre variar, mas encontra-se sempre a mesma implicação do pres
sentando o «espírito da gravidade», expressão que designa o suposto de um mundo, JafiEito quanto ao tempo e finito
racionalismo socrdtico e o criador dos platonismos para o po quanto aos acontecimentos que neste deconim. O que c6nfun-

vo. O assédio do anão mostra como o pensamento mais abis
sal é posto em causa por uma visão racionalista que assalta Para alguns comentadores, a prova do eterno retorno é das raras
o próprio Zaratustra. O que sobe alto, vai ter um dia que ncasi6es de argumentação lógico-racional do Zaratustra.
b
XXVIII NIETZSCHE PREFÁCIO XXIX

diu e confunde os comentadores da noção de eterno retorno éo são de uma moral que há-de vir e amplifica bastante o
frequente cruzamento, no mesmo texto, do argumento cosmo- esclarecimento acerca do que se entende por transmutação dos
lógico (o qual no Zaratustra aparece no contexto da retóri valores. Esta é também uma destruição de tábuas antigas e
ca própria do livro) e do argumento que faz do eterno retorno uma erecção de novas. Grande parte dos comentadores do
o teste decisivo de um global sim à vida. Em ((Da Visão e Zaratustra acha que «O Convalescente» é o lugar central
do Enigma”, é a Segunda Parte que contém o mais secreto de todo o livro e para onde convergem as principais doutrinas
desse pensamento e que Zaratustra só virá a repetir, alguns anteriormente apresentadas. Efectivamente é um eco a;npljfi
capítulos mais à frente em «O Convalescente)), O pensamen cado do segundo capítulo «Da Visão e do Enigma». Zara
to abissal é revelado, praticamente como um segredo, num tustra vive outra vez o seu pensamento mais perigoso e cai em
sussurro, curiosamente, não aos discípulos (talvez estes ainda longa prostração. O regresso à vida, ao ponto mais alto da
não estivessem prontos para o ouvir), mas ao anão do espírito sua projecção solar, configura um movimento de vai-e-vem,
racionalista. «E essa aranha lenta, que rasteja ao luar, e es pendular, o qual parece ser o tipo de movimento próprio do
se mesmo luar, e eu e tu falando um com o nutro em voz bai livro. Declínio e ascensão, doença e convalescença, visão lu
xa, falando em voz baixa de coisas eternas.., não devemos nar, visão solar. O convalescente fala aos seus animais e o
todos necessariamente ter já existido? E voltar a andar por ambiente que se começa a formar vai propiciar um estado de
essa outra azinhaga fora, aí à nossa frente, por essa longa e espírito dionisíaco, enquanto o anterior discurso sobre o eter
horripilante azinhada?...NTão temos de voltar eternamente?» no retorno não conduziu a esse estado. Aqui sim reside uma
Ë num ambiente onírico que este discurso é mantido e não djfrrença importante entre os dois capítulos. Por outro lado,
deixa de ser signjficativo que um pouco à frente Zaratustra Zaratustra dirige-se aos seus animais, às suas mais intrínse
se interrogue se tudo que se disse e as figuras que viu não cas virtudes, como desdobramentos visíveis da sua alma.
passaram de um sonho. A propósito diremos que muitos dos O tema do instante presente, no qual se deve exercer a afir
discursos desta terceira parte ocorrem em sonhos, por outras mação da vontade e que deve servir de modelo para todos os
palavras, o ambiente onírico é o escolhido para a apresenta outros instantes, talvez tenha aqui uma expressão retórica
ção do pensamento mais abissal. mais forte. Notável e novo neste capítulo é ainda a afirma
Os cinco últimos capítulos desta parte são dos mais no ção que no ciclo eterno também regressa eternamente o homem
níveis, não apenas desta parte, mas de todo o livro e particu mesquinho, aquele pequeno homem disfarçado de várias ma
larniente dois deles (((Das Tábuas Antigas e Novas» e «Os neiras ao longo da história. A redenção não parece pois re
Sete Selos») são admiráveis peças literárias. Intilulam-se, presentar um progresso da espécie, num sentido próximo do
por ordem, «Das Tábuas Antigas e Novas” (o mais longo iluminismo clássico. Na vida que retorna haverá sempre um
da Terceira Parte, com trinta fragmentos), «O Convalescen lado das trevas. O argumento cosmológico não é agora apre
te», ((Do Grande Anelo”, «A Segunda Canção de Dançar” sentado na sua forma lógico-racional, e a linguagem escolhi
e «Os Sete Selos (Ou o Canto do Sim e do Amen)”. O pri da é a conhecida em «Da Visão e do Enigma», agora com
meiro retira as ilações para o campo dos valores das teorias alusão ao mito do ((Grande Ano do Devir». Os três capítu
expostas anteriormente, da vontade de poder e do eterno los finais desta parte são outras tantas canções, surgindo a
tempo circular, contra a psicologia do ressentimento. Tra última como magnífico ditirambo dionisíaco. Representa o
ta-se de um capítulo de grande relevância para a compreen clítnax apropriado, provavelmente de todo o livro, em que
XXX NIETZSCHE

Zaratustra é Dioniso que regressa à Terra, depois de um


longo desterro. Foi certamente a essencial descoberta da von
tade de poder, a qual nunca se poderá ultrapassar como que BIBLIOGRAFIA
rem alguns intérpretes de Nietzsche, e a revelação do eterno
retorno de todas as coisas que pennitiu esse triunfante regres
so, O deus da tragédia não volta, para exprïmir uma insu A bibliografia sobre o Assim Falava Zaratustra é
portável finitude do homem face ao todo e a forças que dele muito extensa e grande parte encontra-se publicada
irrompem, desconhecidas. Ele surge após compreender como é em revistas filosóficas. Em muitas das obras referen
possível a redenção da temporalidade e a superação do gran ciadas no primeiro volume desta edição das Obras
de ressentimento. A sua dança celebra essas aquisições para Escolhidas de Nietzsche encontram-se comentários im
a humanidade e sugere leveza e criatividade. Deixará de ser portantes a este livro. Como referências, praticamente
o deus da tragédia? Não, se percebermos que a criação envol obrigatórias, para quem deseje um comentário especí
ve a destruição, que o con)zecimento é só uma perspectiva que fico do Zaratustra, indicam-se os seguintes textos:
não deixa ver a totalidade. Por isso, a tragédia recomeça, • C. G. Jung: Nietzsche’s Zarathustra — Notes oJ the
mas com Dioniso transfigurado e cotn uma sabedoria que só Seminar Given in 1934-9, Part 1, Roudedge, London,
o ensino de Zaratustra permitiu. 1989.
Não se deve reservar para o Zaratustra um comentário • Laurence Lampert: Nietrsche’s Teaching — An Inter
final, uma avaliação sumória. A sua retórica, o seu simbo pretation of «Thus Spoke Zaratustra», Yale University
lismo são uma novidade no género literário que a filosofia Press, New Haven and London, 1986.
também é. Porém a sua importância deve ser medida segundo • Stanlev Rosen: The ÃÍask of Enlightenment: Nietzs
critérios filosoficos. Será que, por exemplo, nele encontramos che’s Zarathustra. Cambridge University Press, Cam
novos elementos para a compreensão do que seja o homem, da bridge, 1996.
natureza dos valores, da racionalidade, da relação entre uni
dade e multiplicidade no tempo e na história? E em tomo
destes problemas clássicos que fundamentalmente o Zaratus—
ira será discutido.
Poeta, decifiador de enigmas e redentor do acaso, eis co
mo se apresenta a si próprio Zaratustra. Agora que o conhe
cemos, não será que ele nos prendeu irre;nediavelmente?

Você também pode gostar