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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 27, pp.

161 - 164, 2010

FRIEDMAN, George. The Next 100 Years – A Forecast For The 21st
Century. New York: The Doubleday Publishing Group, 2009.

Edu Silvestre de Albuquerque*

OS PRÓXIMOS 100 ANOS: UMA PREVISÃO PARA O SÉCULO XXI


George Friedman (Autor), Gabriel Zide Neto (Tradução)
Best Business, Rio de Janeiro, 2009

De que forma o sistema internacional maiores que as famílias (fazem política) e


absorverá a transição demográfica e as novas desenvolvem um senso de lealdade em relação
tecnologias do século XXI? Os Estados Unidos aos lugares e coisas com que nasceram; o
encontrarão novos desafiantes globais? Qual será segundo, de que a personalidade de um país é
a posição do Brasil na nova ordem internacional? condicionada por sua geografia, tanto quanto a
A CIA – Central de Inteligência Americana – gasta relação entre os países. Vindo de um cientista
algumas boas dezenas de milhões de dólares para p ol ít ico ist o pode p a re ce r surp r ee nd ente ,
encomendar a especialistas a elaboração de sobretudo, quando considerado que a geopolítica
ce nár ios pa ra o sistem a i nte rna ci ona l nas representa uma reflexão sempre tímida mesmo
próximas décadas, cujo resultado pode ser no seio do corpo geográfico.
apreciado consultando a edição brasileira de O O húngaro-americano George Friedman é
Relatório da CIA: como será o mundo em 2020, consultor de relações internacionais e assuntos
publicado pela Ediouro em 2006. de segurança e autor de diversos livros, como
Mas o novo livro de George Friedman, Os The Future of War, America’s Secret War e The
próximo 100 anos: uma previsão para o século Edge Intelligence. Friedman veio de uma longa
XXI, promete maior ousadia, além de não ter carreira acadêmica, ensinando ciência política na
custado nada ao bolso dos contribuintes. O Dickinson College, também contribuindo com a
renomado autor norte-americano elabora cenários formação de oficiais de alta patente das forças
do sistema internacional para até o final deste armadas norte-americanas no E. U. Army War
século, utilizando a geografia (e a história) como College. Friedman utilizou-se amplamente da
instrumento de projeção de poder dos Estados teoria dos jogos de guerra, criando modelos
naciona is, d escr ev end o como os “ pa dr õe s computadorizados com emprego na defesa e setor
privado.
tradicionais” de comportamento e arranjos entre
estes se desenvolverão no século XXI. A ousadia Um exemplo emblemático da ousadia
reside na capacidade de pensar o futuro próximo intelectual do autor pode ser vislumbrado na
d a Huma ni da d e nã o me ram ente num a questão da origem da Era Norte-Americana, que,
perspectiva economicista, mas numa perspectiva para muitos, teria emergido com a Segunda
fundamentalmente geopolítica. Diz o autor que a Guerra quando os britâncios tiveram que passar
geopolítica parte de dois princípios: o primeiro, posições logísticas chaves para a Marinha dos
de que as pessoas se organizam em unidades Esta dos Uni dos. M as Fr ie dm an traz nov os
*Professor do Departamento de Geociências da UEPG. E-mail: silvestre@uepg.br
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elementos, destacando os novos fluxos comerciais radicalmente. O declínio da taxa de natalidade


com o Pacífico, que fizeram com que o comércio mundial é outra variável estrutural da análise
t ra nspa cí fi co se i gual asse ao com ér ci o geopolítica do autor, cujos impactos serão maiores
transatlântico na década de 1980, anunciando os nos países industrializados, que dependerão de
EUA como centro do sistema de gravidade novos fluxos imigratórios para reativarem suas
internacional. Com efeito, o nascimento formal economias. Juntas, mudanças tecnológicas e
da Era Norte-Americana, em substituição à Era demográficas influenciarão diretamente no
Atlântica ou Europeia, que ocorreu com a queda balanço de poder do século XXI.
da última potência europeia, a União Soviética,
em dezembro de 1991, seria desdobramento O mundo em 2020. A primeira parte da
daquela situação. obra remete a cenários cujos acontecimentos
recentes já indicam as transformações do sistema
Entretanto, o anúncio da unipolaridade internacional apontadas por Friedman; este é o
norte-americana para o mundo ainda teria que caso das campanhas militares do exército russo
esperar os ataques terroristas de 11 de Setembro na Geórgia em 2008, que anunciam a retomada
de 2001, que p ropor ciona ram um a rea ção da tentativa russa de influenciar sua vizinhança
unilateral norte-americana. Para Friedman, histórica, notadamente, o Cáucaso, a Ásia Central
mesmo que os Estados Unidos tenham que se e o Leste Europeu. Para o autor, a Rússia poderá,
retirar do Afeganistão e Iraque, seus objetivos no máximo, tornar-se uma potência regional,
estratégicos foram alcançados, invaliabilizando a desafiadora dos interesses norte-americanos na
desestabilização dos países da região pelos região. Àqueles que não veem esta ameaça na
fundamentalistas islâmicos. Rússia, mas na China, Friedman responde que
Inobstante, Friedman também lança os chineses estão longe de constituirem um poder
críticas à ocupação (não ao bombardeio) dos dois naval e, além do mais, sequer conseguirão manter
países islâmicos, que expressariam atitudes o país integrado até antes do final da próxima
emotivas da política externa norte-americana, d écad a, p r essi onad os inte rnam e nt e pe los
típicas de um poder ainda bárbaro ou não desequilíbrios regionais entre o Leste (o litoral
totalmente civilizado e característica de países industrializado ligado aos interesses externos) e
em estágio incial de sua história. As divisões o Oeste (o interior pobre e diverso). A China,
internas (étnicas e religiosas) entre os países pr ossegue o aut or, ser á a nte s uma a lia da
islâmicos, prossegue, impediriam por si só a econômica que competidora dos EUA, repetindo
constituição de uma base política comum em o padrão que já vem desde a aproximação dos
torno da Jihad. dois países na década de 1970, naquela ocasião
como estratégia de Washington para isolar os
Segundo Friedman, seus cenários são soviéticos.
construídos a partir dos “ciclos de 50” anos que
dominam as mudanças econômicas e sociais na Apesar do uso da força militar e da pressão
América e no mundo (ainda que não faça qualquer econômica – caso dos gasodutos e oleodutos
referência aos “ciclos de Kondratiev”, parece herdados do período de planejamento soviético
inegável a influência daquele economista marxista –, a Rússia também falhará, por volta de 2020,
russo na ideia dos ciclos longos de Friedman), em reconstituir o Estado russo e reafirmar seu
que alternam momentos de crise econômica e poderio nas fronteiras. O novo desastre russo,
b usca d e sol uçõe s t ecnol óg icas, e xi gi nd o provavelmente, começará nos países bálticos,
reengenharias do sistema internacional que não cuja tentativa de reanexação será barrada pela
são percebidas como satisfatórias para todos os Alemanha ou Polônia, mas certamente com
atores. Assim, no horizonte global se anunciam envolvimento norte-americano; e continuará pelo
duas grandes crises, respectivamente, por volta Cáucaso, com a independência de pequenas
de 2030 e 2080, em que a geografia do mundo r ep úb li ca s a ut ônom as com o a i sl âm ica
ta l como o conhe cem os ser á r ed ese nha da Tchetchênia.
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Nesse momento histórico, entra em cena Assim, o principal desafio dos Estados
outra previsão de Friedman, de que o Japão Unidos depois da nova Guerra Fria contra a
deverá abandonar sua condição de potência Rússia, viria da coalizão nipo-turca, cujas
pacifista e periférica; e que neste caminho divergências estarão cada vez mais acentuadas
poderá convergir com os interesses de outro por volta de 2040. Os japoneses retomariam
país eurasiático periférico, a Turquia como lider sua histórica influência no Leste Asiático
do mundo muçulmano (único país de grande (incluindo os recursos naturais da Sibéria e do
população islâmica e de peso econômico nordeste chinês) e Pacífico, enquanto os turcos
suficiente cujas divisões internas podem ser conquistariam o mundo islâmico e penetariam
equilibradas). Inicialmente, os japoneses e, na Europa, encontrando a resistência do bloco
principalmente, os turcos poderão ser vistos de países do Leste Europeu sob liderança da
com simpatia pelos Estados Unidos para tentar Polônia.
conter a nova expansão russa, mas no médio
Após a vantagem inicial de um ataque
prazo esta percepção deverá mudar. Outra
surpresa dos japoneses ao sistema de defesa
aposta de Friedman é de que será a Polônia, e norte-americano baseado nas órbitas terrestres
não a Alemanha, quem assumirá o papel de (um novo Pearl Harbor), os Estados Unidos cedo
lider no Leste Europeu, vista com menor equilibrariam o jogo e passariam a ofensiva contra
desconfiança por europeus e norte-americanos, a coalizão nipo-turca. Aqui é evidente a dupla
que desejarão um aliado forte na Europa para crença de Friedman, que compa rtilham do
conter os russos e os turcos. conse nso f or ma do nos EU A: p r im ei ra , a
O mundo em 2050. Para Friedman, a inevitabilidade da reemergêcia militar do Japão
crise econômica de 2008-2009 marca apenas o diante do crescimento chinês e da instabilidade
início de uma crise maior – demográfica, de coreana; segunda, a inviolabilidade do território
energia e de inovação –, que manifestar-se-á com norte-americano mesmo nas novas guerras
intensidade total entre o final da década de 2020 globais, que deixaria o sistema industrial-militar
e início de 2030; e cujas soluções procuradas da nação intacto durante todo este século.
pelos países lançarão o mundo em novas tensões Mas para muitos analistas e a grande
que devem culminar numa nova Guerra Mundial mídia, a China é quem encarna a principal ameaça
por volta de 2050. asiática ao poder estadunidense no século XXI.
O l ei tor at e nt o pe rceb e rá q ue e st á Esta é a opinião, por exemplo, de Samuel
entrando numa segunda parte do livro, que trata Huntington, autor do famoso “paradigma do
de cenários de médio e longo prazo, onde, como choque da s civ il izações”, q ue de fe nd e o
o próprio autor admite, as chances de erros argumento de que a principal aliança desafiante
tornam-se maiores que os acertos. Friedman do poder americano virá da aproximação entre a
alega, em sua defesa, que o senso comum é China e os países islâmicos. Para Friedman, o
incapaz de prever acontecimentos fundamentais problem a continuará situado numa aliança
asiático-islâmica, mas seus protagonistas serão
no sistema internacional mesmo em intervalos
Japão e Turquia, respectivamente. É importante
relativamente curtos de 20 anos. Questiona o
destacar que, na sequência dos eventos que
a ut or q ue poucos a nal ista s p re vi ra m o
resultaram na desintegração da União Soviética,
reerguimento da Alemanha na década de 1940,
Friedman já havia estudado um possível conflito
após ter perdido a Primeira Guerra Mundial; ou o
entre EUA e Japão, sendo co-autor de The Coming
Japão como segunda potência econômica antes
War with Japan, em 1991.
do f inal do século XX , just amente com o
beneplácito dos EUA, que foram seus inimigos na O mundo entre 2080 e 2100. Claro que
Segunda Guerra; e que ninguém previu com os EUA sairão como o grande vencedor da Terceira
exatidão o fim da Guerra Fria e a dissolução da Guerra Mundial e, a partir da década de 2060,
União Soviética nos anos 1990. com anda rã o nova fa se d e p rosp er id ad e
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econômica mundial com seu projeto de energia A crença na salvação tecnológica também
baseado no espaço (energia solar reenviada acompanha Friedman, garantindo a continuidade
por micro-ondas). Agora, os novos rivais globais d a Era Am e ri ca na p or me io d o com pl ex o
dos EUA seriam a Polônia, vencedora sobre a industrial-militar, agora baseado no espaço. Em
França e Alemanha nos confrontos europeus; momentos como este, o livro de Friedman
e, pasmem, o México. E, novamente, antigos transforma-se em pura ficção científica, ainda que
inimigos se tornariam agora em aliados, caso o autor se esforçe em manter um raciocínio lógico
da Turquia, que passaria a ser vista como país- baseado nos jogos de guerra e no realismo
cha ve pa ra comba t er o cr esci ment o d a político. Aliás, isto já ocorre quando Friedman
influência polonesa. descreve as batalhas sub-orbitais entre japoneses
e norte-americanos na Guerra Mundial de 2050,
Quando se descortina, ao longo da obra, b em com o a s estrat é gi as m il i ta re s que
o desa fio geo pol ítico r epr esen tad o pela fundamentariam a reação dos Estados Unidos,
ascensão do México no final deste século, a no que lembra outra obra de ficção militar de
lógica do pensamento de George Friedman se sucesso na Guerra Fria real, A terceira guerra
desvela plenamente. A premissa fundamental mundial: Agosto de 1985, publicada em 1980 pela
de sua obra é o deslocamento do conceito editora Bibliex, de autoria do general da OTAN
mackinderiano de heartland da Eurásia para a Sir John Hackett, cujas previsões, evidentemente,
América do Norte; sendo que o o próprio autor não se realizaram.
recorda o papel central desta última em relação
aos fluxos econômicos procedentes do Atlântico E o Bra sil ? O Bra si l ap a re ce no
Norte e do Pacífico. Assim, ao contrário do pensamento de Friedman no lugar de sempre,
geógrafo britânico Halford Mackinder – que via país de grande potencial econômico, mas em
o futuro do mundo no país ou aliança capaz de condição geopolítica periférica aos grandes eixos
dominar a Europa Central –, Friedman acredita formadores de decisão. Por esta razão, seria o
que o futuro do mundo no século XXI advirá da México, e não o Brasil, quem poderia projetar
disputa do “coração da América do Norte” entre poder em direção ao heartland norte-americano,
Estados Unidos e México. Em certo sentido, sendo que estaria reservado ao Brasil uma posição
reproduz a paranóia estadunidense contra a de mero coadjuvante no apoio indireto aos
invasão de imigrantes mexicanos, necessária interesses mexicanos na região, em função dos
diante das tendências de envelhecimento e interesses comuns latino-americanos.
redução da natalidade dos norte-americanos: Ainda que diversos pontos desta obra de
essa p opu la çã o mexican a l ocal iza r- se-á Fri ed ma n p ossa m se r consi de rad os p ura
preferencialmente na fronteira com o México, especulação ou ficção científica, outros tantos não
onde se tornará maioria por volta de 2060, e podem ser ignorados por virem de um intelectual
poderá fazer com que o México deseje, entre tão próximo ao poder. Talvez por esta razão, tenha
2080 e 2100, reaver os territórios perdidos para se tornado, tão rapidamente, best seller do
os Estados Unidos no século XIX. prestigiado jornal New York Times.

Trabalho enviado em fevereiro de 2010

Trabalho aceito em maio de 2010

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