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O contrato de EPC para construção de grandes obras

de engenharia e o novo Código Civil


José Emilio Nunes Pinto
Advogado em São Paulo do José Emilio Nunes Pinto Advogados
Elaborado em 03.2002.

http://www.pmkb.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=105&Itemid=25

1. O regime de concessão de serviços públicos instituído através da Lei nº 8.987, de


13 de fevereiro de 1995, assim como a criação de regimes especiais de
autorização para exploração de instalações de geração de energia elétrica pelo
setor privado, na modalidade de produção independente de energia elétrica, ou,
ainda, de estabelecimento de infra-estrutura de transporte de petróleo, gás natural
e seus derivados, por meio de instalações de grande porte, como oleodutos,
gasodutos e polidutos, deram lugar à negociação de contratos de construção de
grandes obras de engenharia, geralmente sob o regime da empreitada global.
2. Os EPCs (Engineering, Procurement and Construction Contracts), contratos de
construção de obras de grande porte, de origem anglo-saxã, guardam, à luz do
direito pátrio vigente, pontos em comum com os contratos de empreitada global,
sendo de ressaltar que algumas das cláusulas-padrão dos EPCs encontram
tratamento legal nas disposições dos contratos de empreitada contidas no Código
Civil vigente.
3. A despeito da importância que assumem tais contratos e na medida em que se
referem a obras de grande porte, no quadro atual essa importância é ainda maior.
A razão dessa maior relevância está no fato dessas operações serem, em sua quase
totalidade, financiadas por estruturas do denominado "project finance". De acordo
com essas estruturas de financiamento, os financiadores olharão sobretudo para a
estabilidade e consistência do fluxo de caixa da empresa financiada. Em outras
palavras, não se estará fundamentado no valor dos ativos incorporados ao projeto
em si, mas na capacidade atrelada a esses ativos de gerar receitas decorrentes da
operação e manutenção do projeto. Essa modalidade de financiamento altera
substancialmente a ótica de análise de risco dos financiadores. Assim sendo,
quaisquer riscos inerentes ou relativos ao projeto, em geral de grande importância
na avaliação dos financiadores, assumem uma importância maior, na medida em
que a sua materialização fatalmente afetará a estabilidade e consistência do fluxo
de caixa, o que vale dizer – a capacidade de repagamento das obrigações relativas
ao empréstimo pelo tomador.
4. Em face de tudo isso, há que se levar em conta a consistência das obrigações e
direitos emergentes dos instrumentos contratuais que dão suporte ao projeto – os
Contratos do Projeto. Em regra, todos os direitos ou expectativas de direito de que
seja o tomador do empréstimo titular são cedidos, imediata ou condicionalmente,
aos financiadores, como integrantes desse conjunto de garantias de que se cerca o
financiador. Por essa razão, é importante que aludidos contratos outorguem
direitos aos financiadores de ingressar no projeto ou no controle operacional
deste, exercendo os direitos e as obrigações assumidas originalmente pelo
tomador, de forma a evitar ou sanear eventos que possam afetar a consistência e a
estabilidade do fluxo de caixa e, no limite, de assegurar a suficiência de fundos
para o cumprimento das obrigações decorrentes do financiamento.
5. Em qualquer dessas operações, o patrocinador do projeto costuma contratar um
empreiteiro para construir as instalações do projeto. Esse empreiteiro, no jargão
mais recente do setor, é chamado de Epcista, numa alusão à parte contratada num
contrato dessa natureza e denominado, em inglês, pelo acrônimo de EPC.
Considerando que as operações de "project finance" podem ser sintetizadas como
tendo como elemento dominante o exercício de determinação, alocação e
mitigação de riscos, não há como se ignorar a importância desempenhada em face
do patrocinador do projeto e de terceiros pelo contrato de empreitada. A partir da
expectativa de conclusão, em certa data, de determinadas instalações, desenvolve-
se uma cadeia de direitos e obrigações de natureza variada e em que não
necessariamente coincidem as partes. Ou seja: muito embora cada projeto dessa
natureza deva ser analisado como um projeto integrado, na realidade e geralmente
não o é. Os direitos e obrigações são desencadeados por falhas ou
inadimplementos no curso da cadeia de contratantes, gerando, a partir desse
evento, direitos e obrigações indenizatórios ou relativos a penalidades. A
dificuldade com que se defrontam os que estejam envolvidos em operações dessa
natureza é justamente harmonizar cláusulas, direitos e obrigações contidos em
diversos instrumentos contratuais, inclusive dos que não sejam partes
contratantes.
6. Nesse marco contratual, não há contratos mais importantes que outros. Todos os
instrumentos contratuais exercem um papel relevante, mas o contrato de
empreitada é o primeiro na lista de precedência, na medida em que sem ele a
instalação não existe e, consequentemente, o projeto estará fatalmente
comprometido. Um bom exemplo disso são as usinas térmicas movidas a gás
natural, projetos esses que não podem prescindir do combustível gás natural. Para
isso, necessário será que existam instalações de transporte desse combustível,
assim como a usina térmica somente poderá gerar se estiver instalada. Projetos
dessa natureza envolvem cadeias contratuais distintas, mas relacionadas. No
exemplo formulado, estaremos diante de dois contratos de empreitada de
construção; do meio físico de transporte (o gasoduto) e dos ativos de geração (a
usina térmica).
7. Até então, a flexibilidade das normas do Código Civil de 1916 relativamente à
empreitada têm permitido a celebração de contratos EPC, nos padrões adotados
internacionalmente e aceitos pelos financiadores como contratos que asseguram a
financiabilidade dos projetos. O tratamento dos riscos e dos direitos e obrigações
das partes estão garantidos, quanto à sua legalidade e exequibilidade, pelas
disposições legais vigentes no Brasil. Dada a similaridade existente entre os EPCs
e o contrato de empreitada, entendeu-se que o EPC seria uma manifestação da
empreitada e teria a mesma natureza jurídica desta. Mas isso é ou não uma
verdade absoluta? É o que pretendemos analisar também neste Artigo.
8. Por oportuno, vale a pena lembrar que, na adoção de estruturas de "project
finance", o risco determinado e que não venha a ser adequadamente alocado e
mitigado gerará sempre um impacto no patrocinador do projeto, seja pelo
aumento dos custos do empréstimo, seja pela necessidade de aporte de garantias
do patrocinador ou de garantias bancárias ou securitárias adicionais, ou seja,
acarretará sempre um aumento de custo do projeto.
9. O contrato de empreitada está regulado nos art. 610 a 626 da Lei nº 10.406, de 10
de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, revogando integralmente o de
1916. Se bem que mantenha, em linhas gerais, a normatização da codificação
anterior, o novo Código Civil traz inovações na matéria relativa à empreitada que,
de um lado, podem tornar os EPCs mais onerosos, além de exigir alterações em
seus textos que representarão uma mudança nos padrões adotados
internacionalmente. Ao apontarmos essas alterações, não estaremos
necessariamente as criticando, nem mesmo afirmando que elas são desarrazoadas.
O que se pretende com este Artigo é examinar em detalhe o que muda na
legislação brasileira e qual será o impacto, caso exista, sobre novos contratos e
sobre contratos em vigor e em curso de execução.
10. Vale lembrar que alterações de lei são tratadas detalhadamente em contratos de
longo prazo em operações dessa natureza, com consequências diferenciadas,
variando da revisão dos preços a evento excusável no contexto da força maior.
Cada situação acarretará consequências adicionais e obrigações variadas, além do
risco sempre iminente de se defrontarem as partes com atrasos, sejam decorrentes
de negociações extensas ou de arbitragens para determinação de obrigações. Ao
fim e ao cabo, prejudicado estará o consumidor final de um bem ou de um
serviço, para não se falar em prejuízos ao interesse público, na mais extensa
acepção da expressão.
11. O foco deste Artigo será, portanto, a análise das disposições legais relativas à
empreitada na ótica da determinação e alocação de riscos contratuais de forma a
que se possa avaliar o impacto do marco legal sobre a construção de grandes
obras de engenharia.
12. Questão sempre relevante é a contida no art. 612 e que repete a linguagem hoje
contida no art. 1239 do Código de 1916, ou seja, os riscos associados com a
denominada empreitada de lavor. A situação estaria solucionada, caso, em termos
práticos, se pudesse determinar que existem somente as duas alternativas previstas
na lei, ou seja, a empreitada global em que o empreiteiro fornece materiais e mão
de obra ou a empreitada de lavor, caso em que a obrigação do empreiteiro se
resumiria à disponibilização de mão de obra. Muito embora na prática se busque
sempre um contrato de empreitada global, casos há (e não são poucos) em que a
relação se completa de forma mista, valendo dizer que o dono da obra chama a si
a responsabilidade pelo fornecimento de determinados materiais ou
equipamentos, enquanto que o empreiteiro se encarrega do fornecimento de
outros, além da prestação da mão de obra. Em casos como esse, o Código de 1916
já indicava a solução, o que se repete no novo Código. Tome-se, por exemplo, a
construção de uma usina térmica em que o dono da obra se obriga a fornecer
certos materiais ou equipamentos, como seria o caso de turbinas de geração,
enquanto ao empreiteiro caberia o fornecimento dos demais materiais e
equipamentos e da mão de obra. Quaisquer riscos relativos ou associados à
entrega das turbinas estarão a cargo do contratante, enquanto ao empreiteiro
caberia assumir os demais riscos relativos ao que se obrigou a fornecer. Essa
questão se repete não apenas no Brasil, assim como em outros países. Essa
questão se resume na determinação da extensão que o atraso sofrido pelo
contratante na entrega das turbinas impediu que o empreiteiro desse continuidade
a seu trabalho, numa ou em outras frentes. Além disso, qual a extensão desse
atraso no atraso final experimentado pelo empreiteiro e, ainda, como tratar esse
atraso se o empreiteiro já estava em mora ou a mora surgiu na intercorrência do
atraso do contratante. A situação se torna mais complexa ainda se lembrarmos
que, em operações dessa natureza, o empreiteiro é geralmente um consórcio de
empresas e não raramente um consórcio internacional. Outro aspecto importante é
o fato das dúvidas e questionamentos que possam surgir de parte do fabricante do
equipamento, em especial do fato de na montagem o empreiteiro não haver
observado adequadamente as instruções do fabricante, alegando-se derivar disso
os problemas de funcionamento ou eficiência operacional. Questões como essa
não se pode esperar sejam resolvidas por disposições legais expressas. A solução
dessas questões passa pela análise de uma multiplicidade de fatos e circunstâncias
e da aplicação de diversas disposições legais e princípios de direito. Esta é a razão
pela qual, à falta de uma acordo entre as partes, a controvérsia escapa fatalmente
para o âmbito de uma arbitragem. O procedimento, no caso, é bastante complexo,
exigindo perícias e análises minuciosas das circunstâncias e disposições
contratuais, já que o atraso do contratante poderá se caracterizar, no contrato de
compra de turbinas, como evento de força maior, e esse mesmo evento estar ou
não integrado na força maior sob o contrato de empreitada. Por esse motivo, os
financiadores têm uma preferência clara por contratos de empreitada global, já
que deixariam bem clara as responsabilidades das partes.
13. Em obras das do porte que se está mencionando e cuidando neste Artigo, a
empreitada global se caracteriza por ser de preço certo, data determinada de
conclusão e chave na mão, caso em que o contratante recebe a obra em condições
de operar a instalação. O fato de ser a obra a preço certo, os aumentos de preço
dependerão de ajuste entre o contratante e o empreiteiro. Esses ajustes se
materializam nas denominadas ordens de mudança, sejam elas propostas pelo
empreiteiro ou pelo contratante. O conceito está previsto no art. 619 do novo
Código, repetindo em parte as disposições do art. 1246 do Código de 1916 e
incorporando avanços significativos da doutrina e da jurisprudência. Uma questão
bastante discutida sempre foi a existência de instruções escritas do contratante. No
novo Código, embora se mantenha o princípio geral, é ele relativizado. Passar-se-
á a admitir o que poderíamos denominar de concordância tácita, caso o
contratante esteja sempre presente à obra e não conteste as modificações
introduzidas pelo empreiteiro e que venham a torná-la mais onerosa. O que é
importante, neste caso, é reter o conceito e a autorização legal como fundamentos
de cláusulas contratuais expressas. Em contratos de empreitada global do tipo
EPC, as partes costumam regular minuciosamente as ordens de mudança, não
abrindo espaço para que surjam dúvidas ou dificuldades de aferição do
consentimento. A metodologia para a proposta dessas ordens de mudança e de sua
aprovação engloba inclusive o estabelecimento de prazos para processamento.
Quanto a isso, os riscos de consentimento tácito estariam afastados. No entanto, a
questão que persiste é a da aprovação tácita, já que obras dessa natureza são
acompanhadas de perto por empresa de engenharia para fiscalizar a execução in
locu e todos os eventos estão lançados no denominado diário da obra. Na prática,
muito embora a determinação de situações que exijam ordens de mudança estarão
previstas no próprio diário e nas comunicações entre a fiscalização, o empreiteiro
e o contratante, dada a natureza cogente do par. único do art. 619, parece
recomendável que as partes estabeleçam contratualmente a obrigação do
empreiteiro de sempre se submeter à metodologia prevista e que implique em
alterações do preço, sobretudo nos casos de extrema urgência relativos à saúde,
segurança de coisas e pessoas e de preservação do meio ambiente. Além disso,
muitos contratos dessa natureza estabelecem a obrigação imposta ao empreiteiro
de dar seqüência à alteração mesmo em que haja discordância quanto ao preço,
sempre em prol da continuidade e conclusão tempestiva da obra. Neste caso,
estaria afastada a aplicação do par. único como consentimento tácito, já que as
partes estabelecem que a fixação do preço seja submetida a arbitragem.
14. A grande novidade e de maior impacto em contratos dessa natureza está contida
no art. 618 do Código Civil e que altera substancialmente o entendimento da
doutrina e jurisprudências à luz da situação vigente na legislação codificada de
1916. Trata-se da garantia do empreiteiro. No regime do Código de 1916,
estabelecia-se que a garantia seria de 5 (cinco) anos e que a doutrina e
jurisprudência passaram a denominar de garantia qüinqüenal. Ao longo do tempo,
foi-se solidificando, a despeito de opiniões contrárias, a posição de que esse prazo
de garantia poderia vir a ser reduzido pelas partes por ajuste contratual, inclusive
ao nível de decisões judiciais, como ocorre em outros países, como é o caso da
França. Com a sanção do novo Código Civil, no entanto, a situação modificou-se
substancialmente. A nova lei estabelece que o prazo da garantia qüinqüenal passa
a ser irredutível, pondo fim a essa discussão doutrinária e jurisprudencial. A
norma do art. 618 é de ordem pública e tem caráter cogente, cuja linguagem é
peremptória, tornando o prazo insuscetível de ser alterado pelas partes. Portanto, a
partir da entrada em vigor do Código Civil, em janeiro de 2003, os contratos de
empreitada global deverão prever obrigatoriamente a garantia qüinqüenal, sendo
que qualquer outro prazo menor que se venha a estabelecer não prevalecerá em
face da legislação aplicável.
15. Desnecessário dizer que a adoção dessa nova disposição legal terá impacto direto
e imediato sobre os contratos EPC. Na prática, o que se tem visto é que as
garantias não têm excedido o prazo médio de 24 meses, o que elevaria em três
anos a responsabilidade dos empreiteiros. É bastante importante que se tenha em
mente o motivo dessa garantia. O empreiteiro foi escolhido dentre profissionais
habilitados para construir obra de grande porte e se obrigou a entregá-la em
perfeitas condições de operação e isenta de quaisquer vícios e defeitos. Assim
sendo, caso existam vícios e defeitos aparentes ou ocultos, a legislação dá a eles
tratamento diferenciado; em caso de vícios aparentes, poderá o contratante rejeitar
o recebimento da obra, quanto aos ocultos, fixa prazo para que o empreiteiro os
corrija. O impacto decorre sobretudo em relação a custos associados à duração
dessa garantia. Muito embora o Código Civil não contenha qualquer disposição
quanto à obrigatoriedade do empreiteiro de oferecer caução ou outra garantia para
assegurar a satisfação da garantia qüinqüenal, a prática vigente é a do melhor
administrador de negócios, que deve cercar-se de meios seguros que permitam
exigir o cumprimento da obrigação. Caso o empreiteiro deixe de cumprir a
obrigação, poderia o contratante buscar terceiro que o fizesse, lançando mão da
garantia para cobrir o custo associado. Por outro lado, caso a situação econômica
do empreiteiro viesse a se deteriorar chegando inclusive à insolvência, teria o
contratante acesso a uma garantia para honrar os pagamentos. Essa prática é
aplicável a quaisquer períodos de duração da garantia do empreiteiro. Por outro
lado, os empreiteiros normalmente preferem receber os fundos a que fazem jus,
liberando-se cauções ou retenções de valores, dando aos contratantes em
substituição garantias bancárias ou coberturas securitárias. O impacto da extensão
do prazo é financeiro já que este custo adicional estará, de uma forma ou de outra,
refletido no custo fixo do EPC.
16. Não se entenda como leviandade propugnar por um prazo legal que admita
redução. É importante lembrar que a garantia qüinqüenal não surgiu
aleatoriamente quanto à sua duração. Muito embora não se possa determinar a
motivação para a escolha pelo período de 5 anos, certo é que isso deva ter
ocorrido em função do prazo médio verificado para que o contratante possa se dar
conta da existência de vícios ocultos. No direito francês, o prazo de
responsabilidade é decenal, sendo que, ao final da década de 70, a legislação
passou a exigir que essa obrigação estivesse coberta por seguro. A questão que
permanece é saber se, em face do desenvolvimento da engenharia e das técnicas e
tecnologia da construção, pode o contratante detectar vícios ocultos em prazo
inferior a 5 anos ou, ainda, se mesmo se mantendo o período de 5 anos seria ele
suficiente para que os vícios fossem detectados. Quanto à questão do seguro, é
importante lembrar que o mercado brasileiro sofre limitações nessa área, inclusive
quanto a montantes de resseguro. O estágio atual do mercado securitário brasileiro
e os custos associados com a contratação de apólices para cobertura desses riscos
não representam efeito neutralizador desses custos adicionais.
17. Mas a questão da garantia não se resume na construção. A letra do art. 618 do
Código Civil estabelece que a garantia qüinqüenal irredutível se aplica à solidez e
segurança do trabalho, assim em razão dos materiais como do solo. Analisemos,
em primeiro lugar, a questão relativa ao solo. Estamos diante de uma inovação da
lei codificada. No regime do Código de 1916, a denúncia da má condição do solo
parecia eximir o empreiteiro da responsabilidade. Insista-se na expressão
"parecia". Esta era a linguagem da lei, mas a doutrina, em vários casos, a
interpretou como um absurdo a referida disposição legal, dizendo que denunciar
não seria suficiente, devendo o empreiteiro recusar-se a realizar a obra se as
condições do solo eram adversas ou inadequadas à construção e delas ele tivesse
conhecimento. Vale lembrar que a determinação das condições adversas ou
inadequadas necessita conhecimento técnico e suporte tecnológico, o que somente
ele poderia determinar. Na nova lei, no entanto, eliminou-se a ressalva, valendo
dizer que a responsabilidade permanece para o empreiteiro, a despeito de a haver
denunciado. Como preconizado pela doutrina, na vigência da lei anterior, o
comportamento a ser adotado pelo empreiteiro deverá ser o de recusar a missão de
construir se puder determinar as circunstâncias inadequadas ou adversas e, a
despeito de seus esforços, o contratante se recusar a tomar as medidas corretivas
necessárias. Do contrário, aceitando construir, a despeito de saber dessas
condições, estará ele assumindo a responsabilidade pela garantia. A pergunta que
fica é como poderá ele assegurar a solidez e segurança da construção se o solo
sobre o qual se erigiu a obra não era adequado ou estava afetado por condições
adversas.
18. Para informação do leitor, em muitos casos e, em especial, de projetos de
construção de usinas térmicas de cogeração adjacentes a complexos industriais
destinadas a assegurar o suprimento de energia e vapor àquela indústria específica
ou a um conjunto de indústrias e/ou complexo comercial, a empresa promotora do
investimento assegura uma parcela de terreno em área maior de sua propriedade
para a construção da usina. Não necessariamente essa cessão de área se faz por
meio de venda e compra, mas utilizando outras modalidades prevista em lei, como
o usufruto ou comodato. Com a vigência do novo Código Civil, no entanto, abre-
se a possibilidade de, em situações como esta, se servirem as partes do instituto do
direito de superfície, caso em que a empresa titular da usina térmica seria o
superficiário. Se, do ponto de vista imobiliário, esta novidade traz a solução de
vários problemas com que nos defrontamos em aplicar o usufruto ou o comodato,
certo é que a questão da solidez assume, neste caso, contornos mais complexos.
Na forma do par. único do art. 1369 do novo Código, o direito do superficiário
não se estende, em princípio, ao de realização de obras no subsolo, a não ser que
isso seja inerente ao objeto da concessão. Evidentemente que, em se destinando à
construção de uma usina térmica, não se poderá afirmar que, no limite necessário
à construção das fundações dos prédios que irão receber as turbinas e demais
equipamentos, a obra no subsolo não estaria autorizada, já que é da essência da
construção civil. Entretanto e na medida em que se trate de um terreno com
condições adversas ou inadequadas, como mencionado na hipótese examinada e
visando a eliminar a responsabilidade do empreiteiro e fazer valer a declaração
deste de solidez e segurança da construção, a obra no subsolo poderá ser mais
ampla do que o necessário para fixação das fundações ou poderá, inclusive, exigir
que se estenda a parcelas do subsolo não relativas à extensão do direito de
superfície. Portanto, parece razoável que, no instrumento de concessão, se insira
disposição segundo a qual o proprietário não se oporá a obras no subsolo de seu
terreno, e não apenas no subsolo relativo à superfície concedida, se essas obras se
destinarem a adequar o solo às condições necessárias à solidez e segurança da
construção.
19. Outro aspecto muito relevante é o relativo à garantia qüinqüenal do empreiteiro
em razão dos materiais empregados nas obras de grande porte. A linguagem do
dispositivo da lei codificada é idêntica, neste ponto, à do Código de 1916.
Evidentemente que quando se previu a hipótese, o legislador tinha em mente a
construção de edifícios, pontes e viadutos, caso em que a expressão "materiais"
seria de fácil compreensão e determinação. No contexto das empreitadas globais
chave na mão a que nos referimos e, em especial, destinadas à construção de
usinas térmicas e gasodutos, oleodutos e polidutos, a determinação de materiais
não é tão simples como pode parecer. No que tange a parcelas de construção civil,
tais como o ferro, areia, concreto e tubos, não vemos maior complexidade em
serem os mesmos determinados como materiais para efeitos da lei. Na realidade, a
própria doutrina, ao comentar a empreitada global por preço fixo, alegava que
alterações de preço de componentes da obra poderiam fazer com que materiais de
qualidade inferior ao especificado viessem a ser utilizados para manter as
margens originais do empreiteiro. Muito embora seja esta posição contrária à
responsabilidade profissional e censurável, a verdade é que a lei sempre buscou
assegurar que a responsabilidade por materiais mitigasse esse risco.
20. Se levarmos em conta que as obras de grande porte na área de infra-estrutura são
geralmente contratadas na forma de empreitada global chave na mão, certo é que
será responsabilidade do empreiteiro o fornecimento de máquinas e
equipamentos, tais como turbinas, compressores, caldeiras e equipamentos
auxiliares. Serão estes materiais para fins do art. 618 do Código?. Admitindo-se
que venham a ser definidos como tal, forçoso será reconhecer que a garantia
qüinqüenal do empreiteiro se estenderia aos mesmos. Ocorre, no entanto, que,
nesse casos, a prática adotada é o repasse da garantia dos fabricantes ao
contratante. Os prazos de garantia, por seu turno, são de duração menor que os
cinco anos previstos em lei e são contados a partir da data de realização dos testes,
o que não coincide necessariamente com o prazo a partir do qual se conta a
garantia legal. Poder-se-ia argumentar que a garantia contratual é independente da
garantia legal. No entanto, a questão com que nos defrontamos é saber se o
empreiteiro assumiria uma obrigação quando não estará ele coberto por garantia
do fabricante. Parece bastante oneroso e desarrazoado impor ao empreiteiro essa
obrigação. Por que haveria ele de assumi-la se o fabricante não a estende por esse
prazo?
21. Em nosso entendimento, a despeito da letra da lei, equipamentos e máquinas não
se enquadram no conceito de materiais. Certamente o legislador não tinha em
mente a nova realidade de mercado ao redigir a disposição. No entanto, a despeito
de se aplicar a lei a esses contratos, caberá à doutrina e à jurisprudência
interpretar a extensão do dispositivo. É importante lembrar que os fabricantes
desses equipamentos estabeleceram as garantias de desempenho dos
equipamentos à luz de testes e da experiência que tenham acumulado na
comercialização de seus equipamentos. Em geral, essas garantias são aceitas
internacionalmente e extensivas ao mercado brasileiro. Portanto, entendemos que,
a despeito da linguagem obscura da lei, obscuridade essa decorrente do fato de
não terem sido levadas em conta as novas modalidades operacionais pelo
legislador, não se deva interpretar como materiais os equipamentos e máquinas
incorporados pelo empreiteiro ao projeto, sendo que permaneceria, a nosso ver,
vigente a garantia do fornecedor, prevalecendo sobre a garantia qüinqüenal.
22. Pode-se, no entanto, alegar que esse entendimento é contrário à ordem pública e à
norma cogente contida na lei. Sem entrar na discussão se o contratante é um
"consumidor" ou não para fins do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de
1990, o Código de Defesa do Consumidor, a realidade é que aquela lei
estabeleceu prazos bens menores para a garantia a ser assegurada pelos
fabricantes de equipamentos, nacionais ou estrangeiros. Ora, independentemente
da posição de consumidor ou não, à vista da lei, certo é que o mesmo produto não
poderá exigir maior prazo de garantia por ser adquirido por alguém que não é tido
como consumidor. O bem é o mesmo e suas qualidades e especificações não se
alteram. Assim sendo, entendemos que a realidade fática nos faz concluir que,
sendo ou não considerados materiais, o prazo de garantia não pode ser maior do
que o que tiver sido acordado pelo fabricante, ou melhor, a responsabilidade do
empreiteiro estaria limitada à obrigação de repassar integralmente ao contratante
as garantias do fornecedor e pelo prazo por ele acordado.
23. Alteração substancial se produziu em relação ao prazo concedido ao contratante
para reclamar de vícios que surjam no prazo de garantia. Na vigência do Código
de 1916, entendeu a jurisprudência, inclusive com posição sumulada (Súmula nº
194 do Superior Tribunal de Justiça), que o contratante teria o prazo de 20 anos a
contar da data em que apareça o vício para reclamar do empreiteiro. No novo
Código, no entanto, o prazo deixou de ser prescricional e passou a ser
decadencial, e reduzido a 180 (cento e oitenta) dias da data em que o vício for
detectado. A adoção desse prazo exíguo requer que o contratante esteja alerta para
assegurar seus direitos contratuais e decorrentes de lei. Vale lembrar, no entanto,
que, em contratos da natureza do examinado neste Artigo, as controvérsias que
venham a surgir na execução do contrato são dirimidas por arbitragem, excluindo-
se a apreciação pelo Poder Judiciário, na forma permitida pela legislação em
vigor. Dessa forma, a disposição constante do par. único do art. 618 deverá ser
interpretada de forma a fazer com que a arbitragem seja requerida pelo contratante
no prazo legal, caso as partes não tenham chegado a um acordo em razão da
adoção dos mecanismos de solução de controvérsias previstos nos contratos.
24. A introdução do princípio previsto no art. 620 do novo Código passa a ser, sem
dúvida, questão primordial na negociação de contratos dessa natureza. Novamente
aqui, a exemplo de outras disposições legais, o Código parece querer proteger o
contratante, considerando-o hipossuficiente em face do empreiteiro. Essa
disposição demonstra claramente que o legislador, em nenhum momento, levou
em consideração a nova realidade dos contratos de empreitada e, em especial, os
de grandes obras. Todos os que estejam envolvidos em operações dessa natureza
conhecem bastante bem as longas e intermináveis negociações entre contratantes
e empreiteiros para a determinação do valor da empreitada global chave na mão.
Ademais, em muitos desses contratos, a fixação do preço está fundada em
procedimento denominado "open book". Por aplicação desse procedimento, o
dono da obra tem acesso aos custos e margens incorridos pelo empreiteiro e
levados em consideração para a fixação do valor global da obra. A aplicação da
disposição contida no art. 620 gerará, sem dúvida, instabilidade nas relações
contratuais. É verdade que se trata de uma faculdade outorgada ao dono da obra,
mas a redação do dispositivo é bastante frágil. Ocorrendo a hipótese de redução
em relação a alguns itens, em determinado momento, e requerendo o contratante a
revisão, a dúvida que fica da leitura é se a diferença apurada torna-se
obrigatoriamente ressarcível ao contratante. Temos que ter em mente, no entanto,
que, em contratos dessa natureza, o empreiteiro já corre o risco do aumento dos
componentes que entraram na formação do preço, sem direito a qualquer
aumento, a não ser que esse aumento se enquadre na definição da teoria da
imprevisão, agora elevada à categoria legal, na forma do art. 478 e seguintes, sob
o título de onerosidade excessiva. Do ponto de vista das empreitadas globais,
parece que o melhor procedimento será a exigência da renúncia por parte do
contratante a essa faculdade legal, sob pena de criarmos uma instabilidade tal que
dará ela lugar ao desaparecimento desse tipo de contrato ou o tornará oneroso, na
medida em que o empreiteiro buscará proteger-se, desde o início, dessas eventuais
reduções. Agregue-se a isso, como mencionado, que o empreiteiro, em operações
dessa natureza, é, na mais das vezes, um consórcio de empresas de que participam
empresas internacionais, fornecedoras de bens e serviços que têm seus valores
estabelecidos em moeda estrangeira. Na medida em que a moeda brasileira flutua
livremente em face de moedas estrangeiras, caberia, ainda, determinar se
reduções, em reais, decorrentes de apreciação da moeda brasileira reduziriam ou
não os preços. Não seria justo que o consórcio se visse obrigado a reduzir preços
em reais quando a obrigação em moeda estrangeira permanece inalterada. Por
último, vale lembrar que contratos dessa natureza para os projetos considerados
são contratos de longa duração. Na sistemática legal atual, a indexação
inflacionária somente poderá ocorrer anualmente. Em suma, não há a menor
dúvida de que a inserção desse princípio visa a proteger a hipossuficiência, o que
não é o caso nas grandes obras.
25. Outro aspecto importante decorrente da sistemática da nova lei codificada é a
possibilidade conferida ao empreiteiro de suspender a execução da obra à
ocorrência das hipóteses previstas em lei. O grande problema se encontra no art.
625 (II) ao estabelecer que o empreiteiro poderá exercer essa faculdade "quando,
no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução,
resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que
torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao
reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços."
26. No mundo real de que estamos falando neste Artigo, não é raro que as hipóteses
mencionadas na lei venham a ocorrer. É evidente que se o evento é imprevisível, a
situação merece uma solução. Causas geológicas ou hídricas são menos
complexas (e nunca diríamos mais fáceis) de solucionar. Passa a ser
extremamente relevante que se definam, em contrato, os parâmetros para fixação
das hipóteses. Certamente, na construção de uma usina hidrelétrica, as
dificuldades hídricas imprevisíveis são de mais difícil definição, até porque o
projeto é, por essência, um projeto hídrico. Mas a extensão da expressão causas
hídricas poderá englobar a pluviometria excessiva. O excesso de chuva, na área da
obra, autorizaria a suspensão pelo empreiteiro? Podemos imaginar duas situações:
a primeira seria o estabelecimento de uma média pluviométrica, com base em
dados oficiais, para determinada região da obra. Assim, se a chuva excedesse essa
média, a faculdade poderia ser exercida. No entanto, obras dessa natureza ou se
estendem por trechos bem longos, como é o caso de dutos em geral, ou as tarefas
exercidas não são afetadas pela pluviometria excessiva. Tomemos, por exemplo,
um gasoduto. No que tange ao assentamento dos tubos ao solo, a chuva excessiva
é fator relevante, mas certamente não o será no que diz respeito à construção civil.
O que importa, no contexto do contrato, é o impacto dessa suspensão no
cumprimento dos prazos contratuais. Há que se regular o modo pelo qual o
empreiteiro afetado por essas causas poderá invocá-las como eventos escusáveis
para o atraso verificado. Por outro lado, o dispositivo poderá colocar o contratante
na situação difícil de estar diante de uma suspensão ou aceitar o aumento do
preço. Portanto, parece importante que se continue a detalhar no texto contratual o
tratamento a ser adotado nessa hipóteses. Ademais, o uso da expressão "ou outras
semelhantes" é muito perigosa. Sabemos todos que, em obras dessa natureza, não
se pode determinar antecipadamente e com absoluta precisão a existência de sítios
arqueológicos ou paleontológicos. Por outro lado, as questões ambientais
assumiram tamanha proporção, no mundo atual, que obras de grande porte podem
ser suspensas por decisões judiciais por longos períodos de tempo. O
procedimento correto a se adotar, no que tange às hipóteses elencadas pela
legislação, será o de regular minuciosamente no contrato o tratamento aplicável,
inclusive determinando o que constituirá ou não evento de força maior. Essa
regulamentação deverá existir e estar mencionada como vinculada à referida
disposição legal e como forma de implementá-la, afastando-se dessa forma uma
aplicação do texto amplo e não discriminado da lei.
27. Muito embora o art. 626 se refira, apenas e tão somente, à morte das partes,
entendemos que, em se tratando de pessoas jurídicas, as partes normalmente a
tratam como extintiva da relação contratual, aplicando-se as disposições
constantes da Lei de Falências. Em caso de falência do contratante, o empreiteiro
terá seu crédito classificado como um crédito com privilégio especial, na forma
do disposto no art. 963 (IV) do novo Código Civil e do art. 102, par. 2º (I) da Lei
de Falências.
28. A entrada em vigor do novo Código Civil, em janeiro de 2003, encontrará uma
série de contratos em vigor e em fase de implementação e que se fundaram nas
disposições constantes do Código de 1916. Ocorre, no entanto, que o tratamento
dos direitos e obrigações constituídos na vigência da lei anterior poderão ser
afetados pela entrada em vigor do novo Código Civil, em razão da disposição
contida no art. 2035 e seu par. único do novo Código Civil. Na realidade, muito
embora a nova legislação determine que a validade daqueles contratos reger-se-á
pela legislação vigente à época de celebração dos mesmos, estatui ainda que os
efeitos produzidos após a vigência do novo Código Civil estarão subordinados às
disposições da nova legislação codificada. Parece-nos que esse tratamento de
direito intertemporal se ajustaria melhor a arranjos contratuais de traço sucessivo
e não ao universo de contratos e obrigações abrangidos pela linguagem da nova
lei. De forma a evitar essa conseqüência, que poderá ser adversa aos interesses
das partes signatárias, a nova lei ressalva aqueles contratos em que haja sido
prevista determinada forma de execução, ou seja, de cumprimento das obrigações
contratuais. De qualquer forma, nenhum ajuste prevalecerá se contrariar preceitos
de ordem pública, ou seja, aqueles estabelecidos pela nova legislação codificada.
29. Em geral, a nova legislação optou por tratar os efeitos dos contratos firmados sob
a regência do Código de 1916 de acordo com os preceitos da nova lei. Isso poderá
trazer conseqüências indesejadas para as operações em curso, cujos contratos se
encontram firmados e em curso de implementação. Como mencionamos
anteriormente, sempre e quando aludidos contratos venham a estar expostos a
disposições legais diversas das que regeram a sua celebração, a cláusula de
mudança de lei com as conseqüências nela previstas tornar-se-á aplicável. Nesse
sentido, é bastante importante que se revejam os contratos em vigor e se
determinem os efeitos decorrentes da aplicação deste dispositivo. Tendo em vista
os interesses a proteger, talvez seja mais adequado uma revisão das disposições
afetadas e que se busque, de imediato, uma forma de solução, lembrando, no
entanto, que deverão ser observadas estritamente as disposições de ordem pública,
sob pena de qualquer texto em contrário não poder prevalecer. Desnecessário
enfatizar que será sempre melhor que se busque ajustar o contrato à nova lei do
que enfrentar questões dessa natureza após a entrada em vigor das aludidas
disposições.
30. Pareceu-nos importante, desde logo, analisar os EPCs à luz das novas disposições
da legislação codificada relativamente à empreitada. É inegável que se tivermos
que aplicar essas disposições, o conjunto de regras muito pouco se adequará à
situação real desse tipo de contratos. Impor-se-á a nós a complexa tarefa de buscar
na prática e na legislação extravagante disposições que se adeqüem à regência
desse tipo contratual, estando certos, no entanto, que o resultado final será um
marco contratual frágil em face da legislação codificada e inadequado à realidade
econômica das respectivas operações, como, aliás, tivemos a oportunidade de
demonstrar nos parágrafos acima.
31. Mas, no entanto, entendemos que a análise dos EPCs comporta outra ótica,
distinta da empreitada pura e simples. Antes mesmo de embarcarmos na análise
sob a nova ótica proposta, é importante que se deixe claro que não estamos
buscando uma forma de nos afastarmos da empreitada, nesse novo marco,
somente porque as disposições legais futuras não são convenientes. Essa não é a
razão. Se assim fosse, estaríamos partindo para uma análise infundada e
inaceitável do contrato, já que viciada por uma premissa equivocada do intérprete.
Além disso, seria uma análise defeituosa e inconsistente com a prática à luz do
Código Civil de 1916. Não seria a mudança das normas legais, tornando-as menos
favoráveis às partes e ao modelo do contrato, que justificaria que abandonássemos
um contrato típico, regulado em lei, substituindo-o por outro. Se o EPC era
regido, à luz do Código Civil de 1916, pelas regras da empreitada, como então
deixaria de sê-lo no marco do novo Código se o instituto é o mesmo?
32. No entanto, é importante que se constate que, em nenhum momento, na vigência
do Código de 1916, deu-se a devida importância à análise da natureza mesma dos
EPCs. Como se assemelham aos contratos de empreitada, nunca nos dedicamos a
determinar a natureza mesma desses contratos. Contribuiu muito para isso o fato
das regras legais e a subsequente construção da doutrina e jurisprudência
reconhecerem flexibilidade às regras legais, inclusive ao não assumir a natureza
cogente de determinadas regras.
33. Ocorre que, na realidade, os EPCs contemplam diversas relações jurídicas entre o
contratante e o epcista. O epcista é empreiteiro na medida em que se obriga a
construir uma obra de grande porte, o epcista será montador sempre e quando
deva proceder à montagem e comissionamento da obra em si, o epcista será
tratado como fornecedor de equipamentos em razão de ter o contrato como objeto
o desenho, projeto, construção, fornecimento e montagem de equipamentos,
comissionamento da obra e teste de desempenho, sendo que o contratante a
receberá na modalidade chave na mão, ou seja, pronta para operá-la. O
enquadramento dessa série complexa de papéis desempenhados pelo epcista no
marco da empreitada é amesquinhar o escopo da relação jurídica existente entre
este e o contratante. Equivaleria enquadrar o contrato num tipo legal com base na
atividade mais preponderante no complexo de todas as atividades, criando-se uma
distinção internamente ao contrato que não corresponde ao que existe na prática.
Dessa forma, estaríamos ignorando que as obrigações assumidas pelas partes no
EPC somente serão consideradas cumpridas quando o epcista tenha
desempenhado seus diversos papéis, o que irá além do cumprimento das
obrigações previstas na empreitada pura e simples. O que dizer então do repasse
pelo epcista ao contratante das garantias outorgadas pelos fornecedores de
equipamentos e máquinas? Esse repasse, em nenhum momento, é da natureza da
empreitada e diz respeito à garantia intrínseca a um contrato de venda e compra
de equipamentos.
34. O que ocorreu, na prática, é que qualquer EPC é, por si só, um arranjo contratual
que traz em seu bojo todo o conjunto de regras destinadas a regular as relações
entre as partes. Cada situação anormal ou atípica é minuciosamente regulada,
assim como qualquer evento que, de qualquer forma, possa alterar a natureza de
contrato com preço fixo, data certa, chave na mão. Em muitas oportunidades
pudemos ouvir afirmações peremptórias de que, devido à sua origem anglo-saxã,
os EPCs eram contratos com linguagem complexa e repetitiva do que a legislação
já previra. Nesse julgamento, se fazia referência expressa ao marco legal da
empreitada mais do que qualquer outra coisa. No entanto, embora de introdução
recente em nosso mercado, o modelo dito complexo e repetitivo foi-se aos poucos
se cristalizando nas diversas operações concretizadas ou em curso, sob a alegação
de que, se assim não fosse, os financiadores não aceitariam participar do aporte de
recursos para o projeto específico.
35. Sob a perspectiva de análise que ora estamos propondo, é bem melhor que
tenhamos agido dessa forma, o que assegurará a consistência desse tipo de
contrato, quer no marco legal atual, quer no futuro. E que ótica é esta em que se
funda nossa proposta? Sem dúvida a ótica que sempre permeou a negociação e
elaboração dos EPCs e que é a única que convém a este tipo de contrato, pontuado
pela complexidade de relações jurídicas entre as mesmas partes, pelos diversos
papéis que estas desempenham ao longo da vida do contrato e pela intervenção de
terceiros, ainda que pela via da cessão de garantias, exonerando-se o epcista,
como é o caso das máquinas e equipamentos.
36. Quando da análise do EPC sob a ótica da empreitada, enfatizamos que aludido
contrato continha elementos distintos daqueles que a lei considera como
essenciais para que esteja tipificada a empreitada. Portanto, a questão que se
impõe nesta análise é determinar se o EPC seria, na realidade, um contrato
atípico, na medida em que as suas características fundamentais não se enquadram
no tipo previsto na legislação codificada.
37. Admitindo-se para raciocinar que o EPC seria um contrato atípico, resta saber
como seria ele tratado à luz do novo Código Civil. Com a promulgação deste, o
art. 425 cuida especificamente de contratos atípicos, permitindo às partes que
estipulem essa modalidade contratual, com base na liberdade de contratar
consagrada no art. 421, desde que as partes submetam esses contratos aos
princípios de probidade e boa fé, na linguagem do art. 422. Muito embora essa
faculdade tenha sido elevada à categoria legal, vale lembrar que, mesmo na
vigência do Código Civil de 1916, a doutrina e jurisprudência jamais negaram-na
às partes contratantes. A título exemplificativo, sublinhamos que determinados
contratos típicos no novo Código Civil eram tratados como atípicos na vigência
do Código Civil de 1916.
38. A existência de contratos atípicos, em nosso direito, visa atender ao dinamismo
das relações em sociedade, especialmente as de natureza econômica. Não pode a
legislação tipificar todos os tipos de contratos, especialmente porque, ao longo da
vigência da lei, surgem relações jurídicas novas. Por outro lado, há que se ter em
mente que o mundo jurídico não poderá ignorar a existência da realidade dos
fatos, nem mesmo dos instrumentos que o regem. Certo é que, em se tratando de
contratos típicos, como é o caso da empreitada, a regulação das relações entre
contratante e empreiteiro está delineada pelas normas legais aplicáveis, bastando
às partes regular as omissões eventuais e aspectos específicos da contratação em
si. Nos contratos atípicos, no entanto, as partes deverão fazer constar do
instrumento contratual respectivo o conjunto de normas que regerá a relação
contratual, lembrando-se que em favor delas não operará a legislação codificada,
salvo no que se referir a princípios gerais aplicáveis aos contratos.
39. Contratos atípicos não é novidade no mundo jurídico. O Direito Romano já
reconhecia a existência desse tipo de relação contratual e classificava os contratos
atípicos em vários tipos. No Brasil, a melhor doutrina1 nos fornece uma
classificação ampla dos contratos atípicos. Dentre estes, vale ressaltar os contratos
atípicos mistos categoria em que se inserem, a nosso ver, os EPCs, já que
englobam obrigações das partes que são encontradas em mais de um contrato
típico. No entanto, a correlação entre essas obrigações e respectivas
contraprestações faz com que se crie um arranjo contratual diverso dos dois ou
mais de que essas obrigações se originam, representando uma verdadeira fusão
das disposições de ambos num todo unitário.

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