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PERÍODO DO PALEOLÍTICO.

MAGIA E NATURALISMO
In HAUSER, Harnold, História Social da Arte e da Cultura, (s/l, Vega/Estante Editora, pp.15-36

O naturalismo pré-histórico. A Arte ao serviço da vida quotidiana corrente, como instrumento de uma
técnica mágica. A arte corno continuação directa da realidade. A fase pré-histórica e a Idade da Magia.

A concepção legendária da Idade do Ouro é antiquíssima. Não é fácil determinar com rigor
a razão sociológica desta veneração pelo passado; poderá talvez filiar-se na solidariedade da
família e da tribo ou no empenho das classes privilegiadas em basear os seus privilégios na
hereditariedade. Seja, porém, qual for a explicação adequada, não há dúvida de que a convicção de
que o antigo, só por ser antigo, é sempre melhor, possui ainda tanta força que historiadores e
arqueólogos nem sempre se coíbem de forçar a história para tentar provar que a expressão artística
que mais os solicita é também a mais antiga. Uns, baseiam a arte em princípios estritamente
formais, na estilização e idealização da vida; outros, partindo do princípio de que a reprodução e
preservação da existência natural das coisas constitui o mais antigo testemunho de manifestação
da actividade artística, vêem por esse facto na arte um meio de dominar e subjugar a realidade. Por
outras palavras: conforme as suas tendências, autocráticas e conservadoras, ou liberais e
progressivas, assim consideram como primitivas as formas de arte ornamental e geométrica ou as
expressões imitativas e naturalísticas.1

1
Esta antítese está também na base da discussão - de importância fundamental para a arqueologia - na
qual ALOIS RIEGL (Stilfragen, 1893) examina a doutrina de SEMPER, de que a arte se desenvolve a
partir do espírito das técnicas. Para GOTTFRIED SEMPER (Der Stil in deu technischen und tektonischen
Kuensten, 1860) a arte não é mais do que um produto acessório da actividade do artífice, e a
quintessência daquelas formas decorativas que resultam da qualidade específica dos materiais
empregados, conforme o método por que são tratados e do fim prático a que se destina o objecto
produzido. Em oposição a este ponto de vista, RIEGL sublinha que toda a arte - mesmo a ornamental -
tem origens imitativas, naturalísticas, e as formas geometricamente estilizadas não se situam de modo
algum nos primórdios da história da Arte, antes representam um fenómeno mais recente, como que a
criação de um sentimento artístico já largamente cultivado. Em consequência das suas investigações,
RIEGL opõe à teoria materialista-mecanicista, defendida por SEMPER - que classifica de «réplica do
darwinismo no campo da vida cultural» - a sua própria doutrina, baseada no pensamento criador de arte,
segundo a qual as formas artísticas não seguem, pura e simplesmente, as imposições da matéria prima
e da ferramenta, mas surgem e são realizadas exactamente no decorrer da luta da «intenção artística»
propositada (Kunstwollen) contra essas condições materiais. A ideia metodológica que a este respeito
RIEGL introduz na sua discussão da dialéctica do mental e do material, do conteúdo e do meio de
expressão, do querer e do substracto do querer, e que constitui essencialmente o suplemento à teoria de
SEMPER, ainda que não invalide completamente tem significado fundamental para a teoria completa da
arte.
A adesão a uma ou outra das duas escolas de pensamento ideologicamente diferentes manifesta-se
expressamente a todo o momento na teorização arquelógica. dos vários eruditos. ALEXANDER CONZE
(Zur Gesch. der Aufaenge griechischer Kunst, in Sitzuugsóerichte der Wieuer Akademie, 1870, 1873;
Sitzungsberichte den Berliner Akademie, 1896; Urspruog der bildenden Kunst, 1897); JULIUS LANGE
(Darstellungeu des Menschen in der aelteren griech. Kunst, 1899); EMMANUEL LOEWY (Die
Naturwiedergabe ia der aelteren. griech. Kunst, 1900); WILHELM WUNDT (Eleinente der

1
Os monumentos da arte primitiva que chegaram até nós sugerem no entanto, claramente e
com segurança que vai aumentando à medida que a investigação progride, que o naturalismo tem
direito a reivindicar primeiro lugar e, desta forma, torna-se cada vez mais difícil sustentar, a teoria
do primado de, uma arte, afastada da vida e da natureza.2
O que, porém, mais importa, no que respeita ao naturalismo pré-histórico, não é ser este,
ou não, mais antigo do que o estilo geométrico, mas sim o facto de revelar já todas as fases típicas
de desenvolvimento por que a arte virá a passar nos tempos posteriores, não constituindo, de modo
algum, um mero fenómeno instintivo, estático e à margem da história, como o consideram os
eruditos obcecados pela arte geométrica e rigorosamente formal.
É uma arte que, partindo da fidelidade linear à natureza, e na qual as formas individuais
estão ainda exteriorizadas rígida e laboriosamente, se encaminha para uma técnica muito mais ágil
e sugestiva, quase impressionista. Trata-se de um processo que revela como se foi aperfeiçoando a
compreensão acerca da maneira de dar a impressão óptima final numa forma progressivamente
mais pictórica, instantânea e aparentemente espontânea. A exactidão do desenho atingiu tal nível
de virtuosismo que tornou possível traduzir atitudes e aspectos sucessivamente mais complicados,
movimentos e gestos cada vez mais dinâmicos, assim como esboços e intersecções cada vez mais
arrojados. Este naturalismo não constitui, porém, uma fórmula fixa e estacionária; apresenta antes
um carácter vivo e cambiante, que aborda a tradução da realidade pelos meios de expressão mais
variados e atinge o seu objectivo com maior ou menor perícia. O estado de natureza,
indiscriminadamente instintivo, foi há muito ultrapassado; mas falta ainda percorrer um longo
caminho até se chegar àquele estado de cultura em que foram criadas as fórmulas artísticas

Voelkerpsychologie, 1912); KARL LAMPRECHT (Bericht ueber deu Berliner Kongress fuer AesthetiK und
allg. Kunstwiss., 1913), todos eles tendem, como académicos conservadores e professores universitários
que são, a relacionar a natureza e os inícios da arte com os princípios do ornamentalismo geométrico o
do funcionalismo técnico. E quando, de facto, admitem, como LOEWY ou CONZE no seu último período,
a prioridade do naturalismo, tentam, no entanto, limitar o significado de tal aceitação procurando
demonstrar a existência, até nos monumentos do primitivo naturalismo, das características estilísticas
mais importantes da chamada arte arcaica, tais como frontalidade, falta de perspectiva e de profundidade
espacial, prioridade de formações de grupo e integração de elementos pictóricos. ERNST GROSSE (i)ie
Anfaenge der Kunst, 1894); SALOMON REINACH Répertoire de l'art quaternaire, 1913 ; La Sculpture en
Europe, L'Anthropologie, V-VII, 1894-6) ; HENRI BREUIL (La caverne d' Altamira, 1906; L' Age des
peintures d' Altamira in Revue Préhistorique, 1906, 1, pp. 237-49), e seus discípulos, G. H. LUQUET (Les
origines de lʼ art figuré, Jahrb. fuer praehist. ui. ethnogr. Kunst, 1926, pp. 1 ff.; L'Art primitif, 1930; Le
Réalisme dans l'art paléolithique, L' Anthropologie, 1923, XXXIII, pp. 17-48); HUGO OBERMAIER (El
Hombre fósil, 1916; Urgeschichte der Menschheit, 1931; ; Altamira, 1929); HERBERT KUEIIN (Kunst und
Kultur der Vorzeit Europas, 1929; Die Kunst den Primitiven, 1923); M. C.
BURKITT (Prehistory, 1921; Tine Old Stone Age, 1933); v. GORDON CHILDE (Man makes himself,
1936), todos, pelo contrário, reconhecem sem reserva o primado da arte naturalista e insistem
precisamente na sua tendência «inarcaica, na sua naturalidade e vitalidade.

2
ADAMA VAN SCHELTEMA (Die Kunst unserer Vorzeit, 1936) assume, talvez, a situação mais difícil de
todas, pois que sendo ideologicamente um dos mais reaccionários, é em questões de erudição um
arqueologista particularmente competente.

2
rígidas.

FIG. 1 - Bisonte do caverna de Niaux (Ariège). Belo exemplar de arte paleolítica. Note-se que o artista paleolítico punha
especial cuidado em distinguir na representação pictórica o bisonte do boi. O carácter naturalista do desenho paleolítico está bem
patente nesta figura. Apresentado de perfil, a necessidade de transplantar as três dimensões
do original para as duas dimensões da gravura, levou' o artista a recorrer a uma perspectiva compósita como se vê pela
representação dos dois chifres e pela posição dos membros posteriores. O carácter mágico da representação é claramente sugerido
pela seta. (Segundo desenho de BREUIL)

Estamos perante o que é talvez o mais estranho fenómeno de toda a história da arte, dado
que não existe qualquer paralelismo entre esta arte pré-histórica e a arte infantil ou a arte da maior
parte dos povos primitivos da actualidade. Os desenhos das crianças e as manifestações artísticas
dos actuais povos primitivos, são racionais e não sensoriais: revelam O que a criança e o artista
primitivo conhecem, não o que no momento vêem; dão-nos uma concepção teórica e sintética do
objecto, e não uma sua representação óptica e orgânica. Eles consideram simultaneamente a
perspectiva de frente e de perfil do objecto que representam, e por vezes até, a perspectiva vista de
um ângulo superior nada omitem do que consideram, por conhecimento, fazer parte do objecto;
aumentam a escala do que é importante biológica e praticamente; mas desprezam tudo, por mais
impressivo que em si seja, desde que não desempenhe papel directo no conjunto do objecto. A
característica peculiar dos desenhos naturalistas da Idade da Pedra Lascada é, ao contrário, a de
nos darem uma impressão visual de forma tão directa, pura e liberta de todos os adornos e
restrições intelectuais, que teremos de esperar pelo movimento impressionista para encontrar um
paralelo na arte mais recente. Há estudos de movimento que nos fazem lembrar as modernas
fotografias instantâneas.
Nada de semelhante se nos depara na história da Arte ate ao aparecimento das pinturas
de um Degas ou de um Toulouse-Lautrec; e, desta maneira, tais manifestações artísticas
apresentam-se, aos olhos não educados pelo impressionismo, como algo de mal desenhado e
ininteligível. Os pintores da Idade Paleolítica souberam já encontrar, a olho nu, cambiantes
delicadas que o homem moderno só consegue descortinar com o auxílio de instrumentos
complicados. Semelhante capacidade havia, porém, desaparecido na Idade da Pedra Polida,
quando a percepção directa da sensação foi substituída, em grau mais ou menos elevado, pela
inflexibilidade e estabilidade do conceptualismo. O artista paleolítico pinta apenas aquilo que vê;
unicamente aquilo que pode apanhar num momento determinado e numa certa perspectiva do
objecto. Nada sabe ainda acerca da heterogeneidade óptica dos vários elementos do quadro e dos

3
métodos racionalistas da composição. As características com que nos familiarizaram os desenhos
das crianças e a arte dos povos primitivos actuais são-lhe totalmente estranhas, e principalmente
não existe nele qualquer técnica de composição capaz de o levar a esboçar uma perspectiva
compósita (por exemplo, unia silhueta de perfil com os olhos vistos de frente). Aparentemente a arte
paleolítica atingiu, sem qualquer obstáculo, a unidade da percepção visual só realizada pela arte
moderna após um século de controvérsias. Se é certo que aperfeiçoou os métodos, não os
modificou todavia. O dualismo do visível e do invisível, do que é visto e do que é simplesmente
conhecido, é-lhe totalmente estranho.
Que motivos e que objectivos se escondem por detrás desta arte? Seria ela a
manifestação de um prazer que por si mesmo se impunha ao registo e repetição? Seria a satisfação
de um instinto lúdico que impelia a cobrir as superfícies vazias com linhas e formas, esboços e
ornamentações? Seria apenas o fruto de um ócio ou teria qualquer finalidade prática? Constituiria
uma pura recreação, ou um instrumento útil? Seria um ópio, um luxo, ou um meio de luta pela
alimentação e subsistência? Sabemos que essa é a arte dos caçadores primitivos, que viviam em
nível económico improdutivo e parasitário, que eram obrigados a apanhar ou a capturar os meios de
subsistência, em vez de os produzir; seres que, segundo parece, viviam ainda num estádio de
individualismo primitivo, estabelecidos em moldes sociais instáveis e quase inteiramente
inorgânicos, agrupados em pequenas hordas isoladas, que não acreditavam nem em divindades
nem em outra vida para além da morte.

Nesta fase de vida exclusivamente prática, tudo girava, como é óbvio, em torno da mera
preocupação de arranjar alimentos; nada justifica, portanto, que se admita que a arte satisfazia a
qualquer outro objectivo que não fosse o de constituir simples meio de auxiliar a obtenção desses
alimentos. Os dados que até nós chegaram inculcam que ela constituía instrumento de uma técnica
mágica e, como tal, dotado de funções pragmáticas, visando directamente objectivos económicos.
Semelhante magia, porém, nada tinha de comum, ao que parece, com aquilo que
designamos na linguagem corrente por religião. Não se conheciam orações, não se adoravam
poderes secretos, nem se estabelecia um nexo entre seres extraterrenos de natureza espiritual e
qualquer espécie de fé. Por isso mesmo, não preenche ela os requisitos daquela atitude espiritual
que tem sido considerada como o limite das condições mínimas de uma autêntica religião.3 Era uma

3
E. B. TYLOR, Primitive Culture, 1913, 3, p. 424.

4
técnica sem mistério, um procedimento de mero facto, a aplicação objectiva de métodos que pouco
tinham de comum com o misticismo ou o esoterismo; algo que se aproxima dos nossos actos de
armar uma ratoeira, estrumar um terreno, ou tomar um medicamento. As pinturas faziam parte da
técnica deste processo de magia; eram a «ratoeira» em que a caça havia de cair, ou a «ratoeira»
com o animal já capturado. É que os desenhos constituíam simultaneamente a representação e a
coisa representada; eram simultaneamente o desejo e a realização do desejo. O caçador e o pintor
da era paleolítica supunham encontrar-se na posse do próprio objecto desde que possuíssem a sua
imagem; julgavam adquirir poder sobre o objecto por intermédio da sua representação. Acreditavam
que o animal verdadeiro sofria, no mesmo preciso momento, a morte do animal morto em efígie A
representação pictórica nada mais era, a seus olhos, do que a antecipação do efeito desejado; o
evento real. Seguir-se-ia inevitavelmente à acção mágica da representação, ou melhor, aquela
estava contida nesta, separando-as apenas os meios, supostos irreais, do espaço e no tempo. Não
se tratava, pois, de uma questão de funções simbólicas de substituição, mas sim de uma acção que
era em si mesma a obtenção do fim procurado. Não era o pensamento o que matava, nem a fé o
que originava o milagre: era antes o acto concreto e actual, a representação pictórica, em si e por si
mesma, que produzia o efeito mágico.
Quando o artista paleolítico pintava um animal na rocha, produzia um animal real. Para ele,
o mundo de ficção e o da representação, a esfera da arte e a da simples imitação, não constituíam
ainda por si só um domínio especial, diferente e separado da realidade empírica; não punha ainda
em confronto as duas esferas, considerando-as como distintas; via numa a continuação directa e
indiferenciada da outra. Deve ter tido perante a Arte a mesma atitude do pele-vermelha Sioux a que
alude Levy-Bruhl, o qual disse acerca do explorador a quem viu fazer um desenho: “Sei que este
homem meteu vários bisontes neste livro. Eu estava lá quando ele o fez, e desde então nunca mais
tornei a ver bisontes”.4 Este conceito de arte como continuação directa da realidade corrente não
desapareceu ainda por completo, a despeito do predomínio posterior da concepção da arte como
algo que se opõe a realidade. A lenda de Pigmalião que se apaixonou por Galateia, a estátua que
ele próprio criara, provém desta atitude mental. Atitude semelhante é a dos pintores chineses e
japoneses, quando pintam uma árvore ou uma flor, não com o fim de sintetizar, idealizar ou
aperfeiçoar a imagem que a vida lhes fornece, como sucede com as obras de arte do ocidente, mas
unicamente para acrescentarem à vida mais um ramo ou uma flor verdadeiras. As anedotas e os
contos chineses acerca das relações entre o artista e a sua obra, das relações entre a Pintura e a

4
LÉVY-BRUHL, Les fonctitns mentales dans les sociétés inférieurs, 1910, p. 42.

5
realidade, a aparência e a existência, a ficção e a vida, levam a mesma conclusão: contos
maravilhosos em que se narra, por exemplo, como as figuras de um quadro saem dele para uma
paisagem real, para a vida real.
Em todos estes exemplos se esbatem as fronteiras entre a arte e a realidade.
Porém, enquanto na arte dos tempos históricos a continuidade destes dois domínios
constitui uma ficção dentro da ficção, na pintura da Idade da Pedra Lascada ela constitui ainda um
facto, uma prova de que a arte se encontra inteiramente ao serviço da vida.
Qualquer outra explicação da arte paleolítica, como seja., por exemplo, a de
considerar a arte como forma expressiva ou decorativa, é insustentável. Todos os vestígios
nos induzem a discordar de semelhante interpretação. Não é legítimo deixar de tomar em
consideração, acima de tudo, o facto de as pinturas se encontrarem, na maioria dos casos,
escondidas em cantos de cavernas inacessíveis e totalmente às escuras, onde o seu valor
como «decorações» seria fatalmente nulo. A sua sobreposição, à maneira de palimpsestos,
o que destrói todo e qualquer efeito decorativo, contraria igualmente aquela interpretação,
tanto mais que nada forçava os artistas a pintar as figuras sobrepostas, visto que
dispunham de espaço bastante. Esta verdadeira sobreposição revela, pois, que as pinturas
não eram realizadas com o objectivo de proporcionar à vista qualquer deleite estético, mas
sim para obter um desiderato em que o elemento mais importante consistia em colocá-las
em certas cavernas, e em lugares determinados isto é, em certos locais considerados
especialmente apropriados para a magia. Não pode, consequentemente, falar-se de
intenção decorativa nem de necessidade de exprimir e comunicar uma emoção estética,
dado que as pinturas eram mais escondidas do que exibidas.
Como já se observou, dois motivos podem impulsionar o aparecimento de obras de arte:
umas são feitas com o único fim de existirem por si mesmas, outras para serem vistas.5
A arte religiosa criada puramente para honrar os deuses, e mais ou menos toda a obra de
arte produzida para aligeirar a carga que pesa no coração do artista, possuem, como a arte de
magia da Idade da Pedra Lascada, este carácter secreto.
O artista paleolítico, embora exclusivamente interessado na eficácia da magia, deve

5
WALTER BENJAMIN, l'Oeuvre d'art à l'époqne de sa reproduction mécanisée, in Zeitschrift fuer
Sozialforschung, 1936, V, p. 45.

6
contudo ter retirado certa satisfação estética do seu trabalho, embora considerasse a
potencialidade estética desse trabalho como um simples meio ao serviço de um fim prático. Esta
situação é claramente retratada nas relações existentes entre o gesto e a magia nas danças reli-
giosas dos povos primitivos. Tal como sucede nestas danças, os prazeres da imitação e da
verosimilhança encontram-se fundidos com a acção praticada por motivos religiosos. E, assim, o
pintor pré-histórico deve ter sentido prazer ao retratar os animais nas suas atitudes características,
não obstante procurar atingir, acima de tudo, os objectivos mágicos que a pintura servia.
A melhor prova de que esta arte visava objectivos mágicos e não estéticos, pelo menos
nos seus aspectos conscientes, reside no facto de, em tais pinturas, os animais serem muitas
vezes representados atravessados por dardos e flechas, ou serem mesmo agredidos com aqueles
instrumentos logo após o acabamento da obra. Tratava-se, sem dúvida, de os matar em efígie. Que
a arte paleolítica estava ligada a acções mágicas prova-o, finalmente, a representação de figuras
humanas disfarçadas de animais, cuja maioria se relaciona evidentemente com a execução mímico-
mágica daquelas danças a que atrás aludimos. Nestas pinturas encontramos muitas vezes- como
sucede, por exemplo, nos Trois Fréres - combinações de máscaras de animais, o que seria
inteiramente ininteligível se a eles não presidisse uma intenção mágica.6
Além disso, a correlação da pintura paleolítica com a magia ajuda-nos a explicar melhor o
naturalismo desta arte. A representação, cujo objectivo era criar uma duplicação do modelo, e que
não tinha portanto como objectivo indicar, imitar ou simular, mas sim substituir (no sentido literal do
termo, isto é, tomar o lugar de), não poderia ser senão naturalista. O animal que devia ser evocado
para a vida real constituía a contrapartida do animal representado; aquele, porém, não poderia
adquirir verdadeira existência se a pintura não fosse fiel e genuína. Era precisamente o carácter
magico desta arte que a forçava a ser naturalista. Representação que não apresentasse
semelhança com o objecto representado não era apenas imperfeita: carecia de sentido e não
atingia o seu objectivo.

Tem-se afirmado que a Idade Mágica, justamente a primeira de que possuímos


testemunho em obras de arte, foi precedida de uma fase pré-mágica.7 A Idade da Magia,

6
Para a interpretação da arte mágica paleolítica, cfr., H. OBERMAIER ir Renilerikon der Vorgertch.,
1926, VII, p. 145, e Altamira, pp. 19-20; H. OBEMAIER-H. KUEHN, Bushman Art, 1930, p. 57; H.
KUEHN, Kunst und Kultur der Vorzeít, pp. 457-75; M. C. BURKITT, Prehistory, pp. 309-13.
7
ALFRED VIERKANDT, Die Anfaenge der Kunst, in Globus, 1907; K. BETH, Religion und Magie, 2. ed.,
1927.

7
perfeitamente estruturada, com o seu ritual fixo e a sua técnica prodigiosa já cristalizada em
fórmulas, deve representar o termo da evolução de uma época de actividade empírica não
regulamentada, constituída por simples tentativas e mera experimentação.
As fórmulas mágicas tiveram de revelar a sua eficácia antes de serem esquematizadas.
Elas não podem ter sido o resultado de simples especulação; devem antes ter sido encontradas
sem que fossem conscientemente procuradas, desenvolvendo-se lenta e gradualmente. É possível
que o homem pré-mágico tenha descoberto por mero acaso a conexão entre a cópia e o original;
todavia esta descoberta deve ter provocado nele um efeito enorme. Porém, talvez que todo o
mundo da magia, com o seu axioma da dependência mútua entre as coisas semelhantes, tenha
provindo desta experiência. As duas ideias básicas que, como já foi salientado, constituem
condições prévias da Arte, devem ter-se desenvolvido na idade da experiência e descoberta pré--
mágicas, nomeadamente as ideias de semelhança e imitação e a ideia de produzir algo a partir do
nada, que é de facto a autêntica condição de Arte criadora.8
Os contornos de mãos, que têm sido encontradas em muitos lugares próximo das pinturas
das cavernas onde existem pinturas, e que parecem ser o resultado da impressão deixada por
mãos reais, fizeram provavelmente nascer no homem a ideia de criação (de poiein), dando-lhe a
consciência da possibilidade de uma coisa artificial e sem vida se tornar perfeitamente semelhante
ao original vivo e autêntico. Este mero jogo nada tinha que ver inicialmente, como é óbvio, nem com
a Arte nem com a Magia: teria de se transformar primeiramente em instrumento de magia, e só
então viria a ser uma forma de arte; porque a solução de continuidade existente entre estas
impressões manuais e as mais primitivas representações de animais da Idade da Pedra Lascada é
tão grande, e existe tamanha falta de dados relativos a uma possível transição entre ambas, que
dificilmente nos é permitido admitir a hipótese de uma evolução contínua das formas artísticas a
partir de simples formas lúdicas, embora seja lícito supor a existência de laços de conexão exterior,
e com toda a probabilidade esse liame deverá encontrar-se na função mágica da imitação. Mas,
mesmo estas actividades lúdicas, estas formas pré-mágicas, apresentam uma tendência
naturalista, qual seja a de imitar a realidade, embora mecanicamente, e não podem, de forma
alguma, ser consideradas como a expressão de um princípio meramente decorativo e anti-
naturalista.

8
G. H. LUQUET, Les Origines de l'art figuré, Ipek, 1926.

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