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Uma Segunda Vida

A Toda a Gente de Bem


Victor Mota

Uma Segunda Vida

Ensaio

Por Victor Mota

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Uma Segunda Vida
A Toda a Gente de Bem
Victor Mota

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Victor Mota

À tia Madalena e ao Jorge Boldt,


bem como a falecido tio Albino

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1.

Se, por acaso da fortuna ou dos infortúnios nos fosse dado viver uma

segunda vida na terra, se é que isto não está já previsto nas religiões

orientais, como a viveríamos? Se acaso reencarnássemos na mesma

família, se não nos fosse dado a escolher alguma forma de vida eterna,

mas uma segunda vida, seja para nos redimirmos ou simplesmente por

dádiva de Deus ou capricho da natureza, como a viveríamos? É isso que

me proponho contar nas linhas seguintes.

Chegados nós a meio da vida e tendo ultrapassado a idade de Cristo e

chegado à idade em que morreu Mozart, se é que o tempo se contará de

uma vida em anos, damo-nos conta da falta de aventuras, seja por

dinheiro, por falta de trabalho, seja simplesmente a falta que sentimos as

envelhecer definitivamente. Levanta-se a questão de se a alma morre com

o corpo e para onde ela irá, para uma segunda vida eterna ou para uma

reencarnação na terra, iniciando um novo ciclo de transformação em algo

que em nada tem a ver com o que já vivemos. E porque a memória do que

vivemos é sobretudo feita de desilusões, acentuamos a meio da vida mais o

que não vivemos do que o que vivemos. Alguns diriam, doutras paragens,

que este autor deveria preocupar-se em viver o resto da sua vida

condignamente e esquecer todas estas hipóteses, que é o que Deus e os


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homens simplesmente nos apresentam. Contudo, este exercício será

legítimo, dado várias circunstâncias da vida do seu autor. Alguns dizem

que o que somos revela-se numa determinada área, como Mozart se

revelou na música ao lado de Bach. O autor não quer sugerir que se pode

revelar por meio da escrita, mas assim o entender o leitor, que assim seja.

Meio trabalhoso para o espírito esta forma de pensar por palavras. Seria

como a nossa vida se fosse ela uma segunda oportunidade para nos

realizarmos, supondo que uma vida não chega para realizarmos o que

queremos humanamente da nossa presença na terra? Não falo de uma

vida completamente diferente, numa época histórica passada ou futura,

como se pudéssemos entrar numa máquina do tempo, mas de uma vida

imediatamente a seguir à nossa morte e nos termos da mesma vida que

vivemos. Que oportunidades aproveitaríamos e que coisas recusaríamos

ou deixaríamos de fazer? Parece tolice pensar-se desta maneira, pois uma

vida humana nos é dada e só uma devemos viver, de acordo com a crença

em que fui educado. Mas há outras crenças, é certo. É isso que pretendo

perspectivar. Que mulheres teríamos e de que maneira, será que

escolheríamos o casamento como forma de amor em vez da paixão? Será

que encontraríamos a nossa alma gémea e a amássemos para sempre, sem

hesitações, todos os dias, numa frenética paixão de amor feita? O que é

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certo é que esta questão do amor e da paixão de coloca fortemente no caso

de termos uma outra vida e uma outra juventude. É certo que a maioria

das pessoas procura assegurar a subsistência económica e depois vê-se

numa situação de escolha de uma qualquer mulher para casarmos. Se o

que está em causa é o amor, tarde ou cedo descobrimos que este está bem

perto de nós desde os nossos primeiros dias de vida e se o negamos, com

escapes doentios, vemo-nos num túnel sem saída mais tarde ou mais cedo.

Por isso aqui advogo que o amor deve ser vivido no meio em que

habitamos e não deve, por experiência confessada do autor, motivar

refúgios na religião ou na ciência. É certo que este caminho por mim

empreendido deve servir de exemplo a quem queira viver uma vida

descansada e feliz, onde a sexualidade seja sã e partilhada com uma

pessoa do sexo oposto. Dizia Platão que a homossexualidade seria a forma

mais perfeita de amor. Pois eu não concordo, pois no amor entre

semelhantes há qualquer coisa de doentio. Não pretendo aqui impor

nenhuma forma de amar, nem discrimino que segue os conselhos de

Platão, mas tento contar a minha experiência da melhor forma que sei,

para que sirva de exemplo a um qualquer jovem leitor que se refugie nas

minhas palavras. Nesta sociedade moderna, a pornografia é um mal

necessário. Mas seria melhor que se promovesse o contacto físico desde

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cedo nos jovens, à revelia de uma imagética perversa, que não nos deixa

descansados e que nos atormenta e nos faz envelhecer e ver como

passíveis de sedução todas as mulheres, numa doentia obsessão pelo sexo.

Pois é isto que eu pretendo esclarecer. Que não vale a pena ver filmes ou

revistas senão por mera pedagogia. Mas da pedagogia à moral vai um

pequeno passo que o mais comum dos mortais sensível e ingénuo não

sabe discernir. Por isso pode cair numa espiral de sensualidade doentia

desde bem cedo e perder grandes oportunidades na vida. Oportunidade

antes de mais de amar, como toda a gente o faz sem contudo a maioria se

aperceber disso. Hoje em dia as pessoas, incluindo e sobretudo os jovens,

estão mais esclarecidos no que diz respeito à sexualidade. Contudo, tudo

vai de um princípio. Se são bem orientados, nada de danação pode surgir

nas suas vidas. Mesmo assim, um dia, mais cedo ou mais tarde, todos nos

tornamos confusos em relação ao sexo, porque a televisão propagandeia o

amor sem qualquer desvelo e aguça a curiosidade mórbida dos espíritos

menos bem preparados. Eu me confesso bastante sensível a estas questões

de sexo e pornografia. É uma questão das sociedades modernas que deve

ser solucionada, se é que o instinto sexual tem ou pode ter regra. Por isso,

a este respeito, tentarei contar o que faria se tivesse uma segunda vida.

Talvez deva acreditar que vida terrena só há uma, pois ao envelhecer,

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noto que o meu corpo está fraco e a minha alma quebrantada. Atravessei

um deserto de que me quero livrar para conviver de novo com os homens

e com Deus, para viver uma vida normal depois de uma sexualidade mal

vivida. Digo e repito, quem sou eu para aconselhar uma boa sexualidade

às pessoas. Parece que neste aspecto, o momentâneo é que conta. Contudo,

procuramos como seres humanos a plena realização e não descansamos

enquanto não a conseguirmos. O amor deve ser vivido e sentido com os

cinco sentidos, mas também com um sexto, o da mulher, para que se

disfrute das belezas interiores da alma de um outro ser que visitamos e

permanece na nossa lembrança todo o tempo. Estar apaixonado é

sensação de sede que nunca mais se acaba, na mais límpida das águas das

fontes. O olhar é antes de mais importante porque ele é o sentido da nossa

civilização. Pelo olhar ela conquista, pelo olhar esta civilização se perde.

Devíamos dar mais importância a outros sentidos, como por exemplo a

audição. No amor, a audição pode ser bastante excitante, bem como o

olfacto. Para os que fumam este último sentido está algo desvirtuado,

contudo, ninguém resiste a um perfume de mulher, que ela deixa, como

lastro da sua beleza. No entanto, também o encantamento tem fim, como o

próprio homem físico. Depois de todas as provações e tentações, há um

tempo para viver em paz, em harmonia com a natureza, incluindo a

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natureza que temos em nós próprios. Tarde a vida nos ensina como vivê-

la. Não há como prolongá-la como se lutássemos contra o Criador para

prolongar o tempo da sua obra. Não há que adiar a morte, quando ela

vier, que venha de frente, para que eu possa vê-la, que venha como um

touro, para que possa agarrá-la pelos cornos. Depois dessa luta terei paz,

uma paz que senti algures na vida, na infância, na juventude, também na

idade adulta, intermitentemente e que por falta de qualquer coisa me foi

negada, contudo não atribuo culpas aos meus por isso, apenas a busco

como quem deseja uma mulher sabendo que irá ter filhos dela,

respeitosamente, com intensidade. Dirão alguns leitores que a minha

escrita não é deste tempo, eu diria que não é de tempo algum não sendo

todavia eterna. Ela celebra o desejo em todas as épocas, dos livros que li,

das paisagens que não contemplei, pois que estou numa quarto frio como

Júlio Verne escrevendo até altas horas. Dirão outros leitores, que a ciência

diria melhor do que eu digo. Será verdade. Não me neguem contudo a

inspiração para escrever, a alegria interior de contemplar as palavras, os

pensamentos, "au-delá" de tantos cansaços e frustrações da vida

quotidiana. Dirão alguns leitores que não estava Jerónimo fadado para a

ciência, mas para um género especial de literatura, a confessional, que

sempre me apaixonou verdadeiramente. Porque escrever é como pegar

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fogo numa lareira, juntar as achas, ver o lume desenvolver-se, expandir-

se em pensamentos que não são nossos, apenas nos são emprestados. Por

uma razão ou por outra o passado está sempre na nossa mente. Mas

quando vivemos atormentados com o passado não conseguimos viver o

presente e essa é a maior dificuldade que encontro nos meus dias. Um

passado amarfanhado, talvez não tivesse estofo para ser feliz ou tivesse

medo como alguém que conheço, no entanto nunca deixei de procurar

uma forma de felicidade segura, que garantisse ao fim dos anos na terra

um bom pensamento em relação a Deus e aos homens. No entanto, a

felicidade escapou-me quando estava a agarrá-la, precisamente nesse

momento ela escapou-me e continuei a correr atrás dela, como de uma

donzela desejada se tratasse, mas mesmo que a vislumbrasse de novo ao

longe, ela fugia por entre as árvores e eu acordava cansado. Se me fosse

dada uma segunda vida teria de ter em conta o ambiente em que viveria a

infância, adolescência, juventude e idade adulta. Decerto que as condições

que tive, as oportunidades para ser feliz, não se repetiriam mas não

concebo que não me seja dada uma segunda oportunidade, neste ou

noutro planeta. Talvez a forma de ter uma segunda vida seja gerar um

novo ser, transmitir algo que é em parte meu para um novo ser, que

continue alguma obra que tenha começado. Mas talvez acredite que a

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consciência com que vivemos este tempo terreno pode de alguma maneira

ser repetida num cenário distinto, de modo que tenhamos uma lembrança

aprazível do que passámos nesta vida. Mesmo assim, há um lugar para a

esperança no meio da loucura e da frustração e o futuro abre-se como

uma donzela para conceber um novo ser.

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2.

O amor pode nascer de novo e a idade mais adulta pode ser vivida com

alguma paz e saúde. O desafio não é nunca ter errado. Cheio de homens

destes está o mundo. O desafio, o maior, é voltar a amar de novo, num

mundo em que amar é um perigo. Certamente que se tivesse uma segunda

vida não me preocuparia tanto, procurava fazer mais do que

simplesmente pensar e falar. Com as conclusões que esta vida me dá,

certamente que deixaria de entender que todos os homens e todas as

mulheres são bem intencionados. A grande vitória sobrevém quando

sobrevivemos aos acontecimentos catastróficos da vida e temos uma

história para conta. Ter uma história para contar é um lugar comum, é

algo pedagógico. Antes de mais a infância procurava não dar ouvidos a

toda a gente. Mesmo em adulto experimento que precisava de ser guiado.

Decerto que não entraria num seminário, pois isso combinado com a

pornografia tornou a vida de Jerónimo estéril e vegetativa. Procurava

desde cedo trabalhar, fazer planos sim, mas cumpri-los a longo prazo,

pois nada há de mais triste de que um homem sem ideais e nada há de

mais triste ainda do que um homem que não concretizou os seus ideais.

Certamente que me daria mais com os outros, mas nunca mais acreditava

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que todos os homens são bons. Quem assim vive está enganado. Os

homens são malévolos e as mulheres seguem-lhes as pisadas em nome da

emancipação. Decerto que não ouviria tanto as boas vozes que andam

para aí, dizendo que tudo é possível, que tudo pode ser visível, legível,

entendível. Quando vários homens se juntam para falar sobre algum

assunto estão já defendendo os seus próprios interesses, a sua confraria.

Como é possível viver num ambiente destes? Um ambiente onde a suspeita

nos sobe ao cérebro e nos paralisa e entendemos tarde que não vamos

chegar ao lugar com que sonhámos, se é que sonhámos. Um ambiente

onde qualquer um está disposto a levantar a voz para nos calar em nome

de muitas coisas que deixámos de acreditar. Essas coisas são a Igreja, a

Universidade, o Amor. Coisas que foram em dado momento da nossa vida

ideais por que valia a pena lutar e vemos a meio da vida que se trata de

afecções da idade, que o mundo não se transforma só pelo desejo de uma

pessoa. Devia de ter acreditado em certas coisas que ouvia, contudo. Devia

ter experimentado técnicas de marketing para manipular as pessoas,

nomeadamente as mulheres. Quando lhes confessamos a verdade acerca

de nós próprios deixam de nos amar. Temos de inventar mil e um

artifícios para lhes agradar e todas procuram o sucesso fácil e o dinheiro.

Porque não tornar-se desde já um homem com dinheiro e sucesso?

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Porque o principal não é ter mulheres, mas de algum modo uma

realização íntima, um sentimento de justiça para connosco e os nossos

queridos. Se alguma coisa nos serve o passado é para aprendermos com os

erros. Quem sabe se não iremos por esse mundo fora, já vamos com a

mente, procurando liberdade, porque a realização não está numa aldeia

onde nos toleram e onde dizem mal pelas nossas costas,

independentemente do que tenhamos ou não feito. Tudo está bem quando

contribuímos para uma ideia de bem comum, mas quando nos

aventuramos sozinhos a tentar compreender as coisas, somos ignorados. E

as mulheres da terra só querem casar com alguém bem visto, não desejam

experiências sexuais verdadeiramente arrebatadores, apenas desejam ser

boas meninas e ser bem vistas. Esperei longo tempo para pensar desta

maneira. Neste país pequeno, querem ser vistas socialmente com alguém

com boa fama, com bom conceito social, o senhor professor, o senhor

empresário, o senhor doutor. Arre, onde há gente no mundo! Estou farto

destes provincianismos. Mas o culpado desta perspectiva sou eu próprio,

que me refugio nas palavras escritas, que procurei mulheres não pelo que

elas eram realmente para mim, mas em função do que eram para os

outros, positiva ou negativamente. Se eu soubesse o que vai dentro do seu

coração, decerto que agiria de outro modo. Mas para isso existe a

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linguagem e é bom enquanto podemos comunicar. E vejo-me obrigado a

esconder o meu passado para que alguma mulher me queira socialmente.

Tive tudo na mão e deixar fugir, agora resta-me o consolo de não ter de

agir erradamente e aproveitar os anos que ainda tenho da melhor

maneira. O passado é sobretudo uma grande lição, pelo que esta é uma

obre sobre passado mas também sobre futuro, sobre as lições que

aprendemos na vida, trivialmente. Num canto bucólico sonhamos em

conhecer o mundo e estamos a meio da vida com tempo para fazer tudo,

contudo a saúde nem tudo permite. Jerónimo tinha apetência especial por

fazer sofrer os outros. Na época em que andara no seminário, levou os

seus arrebatados desejos por misticismo até ao franciscanismo e deu-se

mal. Encontrou a tristeza, a desilusão e a desolação. Contudo, Deus deu-

lhe mais uma oportunidade de viver. Jerónimo desperdiçou muitas

oportunidades mas aos 35 anos desejava, apesar da condição económica e

familiar não ser favorável, desejava ter um filho, sonhava ainda com um

futuro onde agisse mais e pensasse menos. Contudo esta problemática era

complicada para a sua mente. Vivia ainda num país católico. Ele mudara

interiormente bastante desde que deixara o convento como postulante

franciscano. Tinha ainda muita coisa a fazer na vida, sentia-o, uma delas

seria publicar. Escrevia a sua história que duplicava no computador e

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arranjava motivo para ser compreendido, numa sociedade apressada, em

busca de respostas imediatas, Jerónimo procurava respostas últimas.

Quem sabe depois a sua morte lhe fizessem a justiça de ler os seus escritos

e compreendessem que não fora tarde demais. Os seus filhos eram os seus

livros. Aquele ano de 2006 tinha sido especialmente longo. Fora o Natal,

talvez o sofrimento mental quase fizesse parar o tempo. Contudo,

aprendia ainda como uma criança adulta, a viver dia após dia, é certo que

sem grande companhia feminina, mas com o andar do tempo talvez

arranjasse algum trabalho que lhe desse algum proveito da vida em velho.

Seu pai parecia impávido e Jerónimo escrevera Os Indiferentes. No dia 5

de Fevereiro de 2006 descobriu que Sommerset Maugham escrevera

também um livro com o mesmo título. Os seus pensamentos não andariam

longe dos de um poeta, filósofo, escritor. Havia que os apanhava no ar

como ondas de rádio, à medida que envelhecia crescia por dentro.

Contudo, tinha um grande desejo de ser maior, de cumprir o que não

houvera cumprido em jovem. Deixara muitas coisas a meio, entre as quais

os seus estudos. Não iria insistir demais no estudo. Preferia arranjar

finalmente um emprego e ler os seus livros, quem sabe alguma literatura

pura ou científica, alguma filosofia. Talvez o fio condutor dos seus

pensamentos, da sua vida, fossem ténues demais, mas chegaria decerto à

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conclusão de que a vida é uma luta constante por justiça e que não vale a

pensa pensar o passado, viver imerso nele, como se pudéssemos voltar

atrás no tempo. De facto, não podemos voltar atrás no tempo senão pela

nossa memória das coisas. Contudo, o que nos marca é uma herança

pessoal de incompletude se damos importância às coisas negativas que

assim se tornaram. A escrita, bem como a ciência é uma obra de arte que

se transmite às gerações vindouras e o que importa é a forma e o

conteúdo, sendo que a ciência pode ser um exercício estilístico, ambas as

formas de expressão deixam uma ponta para que alguém lhes pegue, não

podemos pensar em exaurir tudo no tempo de que dispomos, supondo que

este tempo é uma oportunidade para merecermos mais tempo e todas as

vidas certamente o devem merecer, pois do acto de nascer uma vida nasce

também um sem número de possibilidades de escolha, de pertinência, de

audácia. Esquecido o passado, é bom que nos ocupemos de tarefas bem

mais proveitosas, que têm a ver com a forma como ocupamos e

ocuparemos o nosso tempo. Longe de mim querer superar o que perto de

mim pensaram, não alimento nenhuma forma de vingança intelectual,

que só corrói por dentro como todas as formas de vingança ou mal.

Contudo, um sentido de justiça me move, que não se limita a pensar a

morte do ser como justiça suprema. Nessa altura os homens e as mulheres

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que conheci ainda menos se lembrarão. Ora há que distinguir uma

perspectiva de observação de uma perspectiva introspectiva e de uma

outra de participação. Estas três formas de conceber o mundo estão

exaustivamente descritas. No nosso país começa a dar-se alguma

importância as estas três formas de ver o mundo, de conceber o mundo.

Nem me move nenhuma espécie de espírito de contradição em relação ao

meu pai ou a quem quer que seja. Algum caminho devo prosseguir, tive

como todos as minhas oportunidades, êxitos sociais provavelmente foram

poucos. No entanto, numa sociedade onde é mais fácil ser-se esquecido do

que lembrado ou o contrário, não me admira que um esforço individual

que não se alimenta do calculismo mas da emoção não seja reconhecido. É

fácil fazer-se ciência ou arte, escrever mesmo, é só deixar o tempo passar,

que o reconhecimento vem com a idade. Não basta persistir nem bater a

todas as portas, há que se maquiavélico mesmo em relação às mulheres.

Este espírito de sacanice existe arreigado no mais profundo de nós e

quando não fazemos o mal às claras fazemo-lo às escondidas para

espantar os fantasmas da inferioridade que nos acompanha desde

pequenos. Contudo, essa inferioridade sempre foi aparente. Pecámos por

ter visto as coisas somente pela nossa cabeça. E é aqui que entra a ciência.

Não basta ter-se subjectividade e escrever um romance ou uma tese, é

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preciso algo mais, talvez o que nunca tivemos, amor. Alguém me

perguntava se algum dia amei, eu disse que sim, primeiro uma forma de

amor puramente mística que me levou à religião, depois um amor

altruísta que me levou à universidade, e é ainda o amor que me mantém

de pé, pois se não amasse este mundo, com todas as suas incongruências

que não me suponho a explorar, é o amor a qualquer coisa que ainda não

vivi, uma saudade de algo que ainda não se alcançou, é por isso que

persisto, ainda que sozinho, ainda que tivesse sido mais fácil ter entrado

nas palavras dos outros, pedir conselhos, tudo isso todavia o fiz e continuo

pensando no passado, é doentio. Viver é uma espécie de doença assim, um

combate constante entre o bem e o mal na nossa consciência, para

chegarmos a um ponto onde tenhamos paz de espírito, ainda que feitas

todas as injustiças. Talvez defenda a tese que se deve provar o bem pelo

mal. E seja maquiavélico. Este excesso de Eu não me larga desde que tenho

consciência da existência dos outros e talvez seja isso que tenha de

superar.

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3.

A pouco e pouco, noite mal dormida após noite pessimamente dormida,

vou tomando consciência de que, apesar da falência económica, os outros

são mais importantes do que o Eu. Contudo, cabe-nos cultivar o Eu para

que transmitamos energia positiva aos outros. Mas de que vale a pena

transmitir energia positiva se o mundo está viciado desde o início? Claro,

claro que vale a pena, quanto mais não seja pelo reflexo que essa energia

tem sobre nós. A segunda vida é já aqui e se sonhámos continuar a

estudar, trabalhar e ter filhos e mulher e se ainda não o conseguimos, não

há razão para desistir, mas simplesmente a tarefa é fazer as coisas de

outro modo, ser produtivo, aproveitar a vida tal qual ela se nos oferece. As

coisas do sexo são das mais entusiasmantes que há e não são inconciliáveis

com a intelectualidade. Antes, porém, aguçam o espírito, em razões e

esperas para encontros que toda a gente mais tarde ou mais cedo faz.

Porque então fugir do sexo como se de uma coisa demoníaca se tratasse. É

algo de bom, que deus contempla e aprova, desde que feito com paixão. Se

puder haver amor, melhor ainda. Mas já passou o tempo em que Jerónimo

só pensava em fornicar quem quer que fosse. É altura de escolher uma

parceira certa e levar a sua por diante, por assim dizer. Sexo, religião,

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política, dinheiro, é o que caracteriza a nossa sociedade actual. O pior é

quando a estas coisas se junta a violência e a agressão, então é que

podemos dizer que a irracionalidade se instala. Há que ter em conta que

não podemos exigir nem pedir a uma mulher que faça sexo connosco pelo

simples jogo egoísta de nos satisfazermos. O que dá satisfação é dar

satisfação, é a satisfação mútua. Por isso, porque Jerónimo não quer sofrer,

arrisca o amor, mesmo que depois venha uma desilusão. Quem sabe pode

encontrar o amor eterno na terra. Há quem duvide disso, mas ele ainda

não desistiu de tentar. Longe do pensamento de Jerónimo afastar-se da

religião. Aliás, a religião precisa de uns abanões de quando em vez para

testarmos a nossa fé em Deus. Somos nós que somos abalados, antes de

mais. O problema é que a consciência em relação ao Outro surge do erro,

mas a religião está certa em insistir no Outro como objecto de atenção. O

que era mais problemático para Jerónimo seria como tornar-se um ser

economicamente viável, esta expressão ficara-lhe de um filme que vira,

Um Dia de Raiva, com Michael Douglas como protagonista. Outro filme

com este actor lhe ficara na retira e este fora O Jogo. Há toda uma

atmosfera psicológica que se resume a tentar saber o que os outros

pensam e fazem em relação a nós enquanto actores sociais. O que o

excitara um dia, preocupava-o no outro dia e isto era questão de ver se

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seria realmente doentia esta obsessão pelo desejo. Lembrar nomes,

enquanto é tempo, as pessoas que passaram pela sua vida e que lhe

tocaram no Ego. No fim deste livro segue uma lista de nomes que servem

de referência à vida do seu autor. Seja como for, o autor não terminara

com o desejo. Apenas estava adormecido. Com frequência dava consigo a

pensar no que fez e no que poderia ter feito, mas não havia volta a dar,

agora tinha de seguir em frente, mesmo que lhe virassem a cara, mesmo

que o insultasse, pois já não o podiam ferir mais, estava convencido que

podia após 35 anos de vida fazer alguma coisa por si e pelos seus. O

desejo não estava morto, se supusermos que Jerónimo se queria ver livre

do desejo. A ética filosófica era uma coisa que simplesmente o preocupava

e lhe dava dor de cabeça. Que mais ética podiam exigir a quem conteve o

desejo até perto dos 24 anos? Isto é crime, por acaso? Por se conter

durante a juventude em nome dos outros, do que os outros diziam, do que

os outros pensavam e faziam ou deixavam de fazer, o desejo irrompeu

desordenadamente durante cerca de 15 anos, mas tudo isso é passado, é

pena que a memória não seja feita só de boas coisas, mas mantém o

interesse em aprender e isso é que é fundamental. A aventura da sua vida

estava agora colocada em novos âmbitos, chegara a uma nova etapa da

sua vida e ainda tinha consciência de Si. Isto dos boatos pode arruinar a

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vida e a reputação de uma pessoa, que se vê obrigada a um exercício de

compreensão após 15 anos de sofrimento. Isto pode levantar questões

sobre se se não tentou o suicídio, com tanto sofrimento. Ou pode levantar

questões que têm a ver com as sociedades de todas as épocas, em termos

de afirmação pessoal e social do indivíduo e se é preciso afirmação para

amar. Não quero confundir amor com sexo. Não quero confundir amor

com paixão. Pode levantar ainda uma questão de como socialmente se

permite o sofrimento e questões delicadas como a masturbação masculina.

Na descoberta da nossa sexualidade não podemos evitar infligir prazer ao

nosso corpo, mas quando se torna uma doença há que reconhecer que há

um problema. E se há um problema há que haver solução, não se andará

toda a vida pelo mesmo caminho solipsista e errante.

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4.

Nestas confissões há que reconhecer um objectivo pedagógico quem

sabe terapêutico mas sobretudo social. E há que reconhecer que a

competição gera fracassos, que necessidade havia de um jovem se

entregar a tais práticas quando à sua volta tudo era descoberta, só faltava

descobrir o corpo do Outro e logo talvez a sua alma? Não acreditamos que

não possa haver verdadeiro conhecimento sem sexualidade? Pelo menos

uma forma de conhecimento. A linguagem é uma dádiva que felizmente

permite com o tempo conhecermos outras pessoas. Com tais tarefas se

perde a capacidade de amar, tornamo-nos duros e que concluir de um

inquérito que diz que 20% das mulheres portuguesas fingem orgasmo? É

uma questão interessante. Antes de mais saberão os homens assim tão

pouco sobre as mulheres? E como relacionar isto com a dizem, recente e

cada vez maior afirmação das mulheres na sociedade? Mas estamos a

pensar isto e de certa maneira os americanos e norte-europeus já viveram

estas realidades, estamos nós portugueses a passar por isto sem que tal

signifique desenvolvimento económico. Isto deve ser suficiente para

podermos reflectir e comunicar uns com os outros. Jerónimo sempre fugiu

a conflitos, porém a gestão de conflitos não era o seu forte. Que evita

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problemas embate contra eles. Esquece-se de que há competição feroz do

outro lado, no nosso próprio terreno, mesmo debaixo dos nossos narizes.

Devia ter sido mais avisado e ter lutado contra os concorrentes. A ideia

peregrina de que um dia se fará justiça porque temos valor não

corresponde à realidade. Porém, Jerónimo nunca foi um desmancha

prazeres. Talvez tenha sido, talvez tenha sido isso e muito mais. A ideia do

social é também uma ideia peregrina, que adia as expectativas para o

amanhã. Nesta vida tudo é possível, para quê pedir uma segunda vida?

Um dia Jerónimo foi a Lisboa, entregar um manuscrito para revisão. Ia

pagar para publicar quando muito vivem da imaginação, ele ia pagar

para publicar. Como sempre pagou para ter todas as coisas. Este é o

aspecto económico da coisa. O pior foi a boca que ouvia antes do encontro

com a revisora do texto, “és muito espertinho”, foi como uma lança vinda

do fundo dos tempos que lhe trespassou os rins. Porra, ele ia pagar para

lhe reverem o texto, depois teria de pagar para publicar e ainda assim lhe

dificultavam o caminho. É porque a literatura dá mulheres e há uma

estratégia de teia de aranha preparada, não há amor, não há

espontaneidade. Seja como for, Jerónimo tinha sido culpado logo aos 18

anos. Uma jovem da sua turma atraia-o mais fora relutante em

aproximar-se dela. De tanto pensar fez asneira. Será que há mais gente

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assim por aí? Tudo tão fácil e ele tinha logo de escolher o caminho mais

difícil, mais complicado! Seja como for, Jerónimo não pedia que o

defendessem, defender-se-ia ele próprio. Seja como for, tinham-no de

ponta, ele estava na mira de alguém. A isto chama-se selva. Todavia,

Jerónimo não podia continuar a censurar-se, em auto-comiseração

constante. As forças faltavam, a saúde psíquica estava precária. Não

dormia bem, com sonhos que projectavam a sua consciência para longe,

para o passado, para o futuro que era incerto. A tempo parecia-lhe eterno.

Ouvia uma canção de Moby no rádio do automóvel e a sua irmã conduzia

grávida tendo ao lado a sua mãe. Vinha de um mês passado em Coimbra,

cujo resultado fora mais um medicamento. Estava em ruptura. Via os

outros carros passarem por ele como a vida, a sua vida nas mãos dos

outros, passando por ele e ele não podia fazer nada. Não podia abrir a

porta do carro e jogar-se na estrada. Não podia voltar ao passado e

remediar o que não fora certo. Contudo, o futuro estava aí, todos os dias,

como a chuva que cai sem parar, como a neve. Decerto que descrever todo

o estado psicológico desta personagem não lhe garante uma segunda vida,

se é este o propósito desta obra defender o direito a uma segunda vida. Se

Jerónimo não tivesse desejo decerto que o ajudariam. Teria de negar todas

as suas aventuras futuramente? Não, não estava disposto a reprimir a sua

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pulsão sexual. Teria de fazer as coisas de outra maneira. Tinha de

considerar todas as hipóteses em nome da sua saúde, não desistira de

lutar, sabendo que era sensível à situação dos outros, contudo teria de ver

a sua situação. Não estava disposto a ceder mais perante a liberdade dos

outros. Tinha de conquistar a sua liberdade, o seu espaço. O espaço em

que vivia aquele tempo parecia morto, contudo Jerónimo não negava que

havia vida à sua volta. Na cidade mais próxima, as pessoas andavam

curvadas, anunciando todos os declínios de civilização do ocidente. Porém,

no oriente, as turbas manifestavam-se, revelando um ódio à defesa da

liberdade de expressão por parte da Europa. Alguns portugueses diziam-

se solidário com a liberdade de expressão, o Ministro dos Negócios

estrangeiros dizia que se tinha de respeitar a religião dos outros. Quem

tinha razão? Maomé? Deus? O silêncio fazia-se sentir doloroso e

Jerónimo estranhava-se falando de religião num mundo secular. Era

muito fora de época a sua preocupação. Jerónimo ganhara coragem para

regressar a Lisboa. Fora naquele dia de Novembro de 2002 pela manhã, de

comboio, de Riachos até à estação do Oriente, no comboio regional.

Escusado será dizer que tal comboio parava em todas as estações e

apeadeiros do caminho de ferro. Repetia a mesma viagem anos depois de a

ter iniciado em 1989, como estudante na capital portuguesa. As pessoas

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eram poucas de início. Algumas viriam de Coimbra, muito poucas. Outras

de estações mais próximas de Pombal. Depois da estação do

Entroncamento, as pessoas começavam a aumentar em número, até que já

em Vila Franca de Xira seria difícil encontrar lugar sentado. Sabia que lhe

bastava sair da terra para encontrar-se com alguém, acidentalmente, e

isso alimentava a sua sede de viver: o prazer dos encontros a que estava

entregue desde que saíra da sua aldeia para estudar. Lisboa aparecera-lhe

a seus olhos como uma capital de cultura, onde se abriu para o mundo

depois do fechamento que conhecera um ano que vivera em Braga. Não

foi bem um fechamento, foi uma reclusão, onde conheceu de perto Deus e

os homens. Contudo, a sua experiência não era dramática quando

comparada com a de outros. Mas a ideia que tinha de Lisboa era de uma

cidade feita de interiores, onde os espaços fechados se cultivavam com

primor e desmesura. Podia muito bem, nas ruas, estar ainda no século XIX

e não se aperceber que os tempos haviam mudado. Lisboa tornara-se

numa cidade perigosa, cheia de máfias, onde o mais pequeno percalço era

imperdoável, uma cidade de pecado que se tornou para Jerónimo. Não

podia deixar de ter alguma amargura em relação ao seu passado. A

questão é como saber lidar com ele. Em Lisboa conhecera alguns amores,

conhecera os seus amigos que se fizeram e desfizeram como uma nuvem

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de pó. Estava agora na aldeia de Riachos, com pouco dinheiro, vontade de

trabalhar, mas com poucas solicitações. Queixavam-se de não ter sabido

construir uma carreira, sabendo bem que a sorte dos homens não se faz de

um momento para o outro, é preciso construi-la. Tentara fazer isso, mas

por mistérios da vida, que não são insondáveis aos olhos dos outros, que

facilmente vêm a origem da nossa desgraça mas estão mais atentos a si

próprios, caíra numa situação difícil, num buraco de todo o tamanho.

Nessa manhã de Novembro encontrou Lisboa fria. Tomou o metro da

Alameda para Arroios e na praça do Chile tomou autocarro para sua casa.

A sua casa, outrora cheia de prateleiras de livros e queridinha como a

imaginara e de facto a tornara, estava agora vazia. Dois quartos estavam

ocupados. A assistente social visitara-o para se inteirar da sua situação. Só

lhe faltava um trabalho onde se realizasse. Não queria ter a ver com o

audiovisual, com a televisão, pois achava que se vivia naquela altura uma

exploração das emoções das pessoas em nome do jornalismo, por puro

divertimento e perversidade, por pura falta de imaginação para lidar com

a realidade. Descansou, pois, no sofá que seus tios do Feijó lhe tinham

vendido, o pai fora para Lisboa com a camioneta cheia de coisas de

Riachos para encher o apartamento de Lisboa e deu no que deu. No

entanto, nem tudo estava perdido. O apartamento estava no mesmo lugar.

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Talvez algumas pessoas, como Dona Idália, cujos filhos haviam nascido no

lugar onde hoje tem casa, vivessem ainda no bairro. Talvez a sua filha

soubesse da sua situação instável e insegura e ainda pensasse nele. Talvez

a reencontrasse um desses dias na rua de casa ou no autocarro para o

trabalho. As boas memórias que ainda possuía da capital do país havia de

as avivar. Havia de conseguir viver de novo em Lisboa, viver a cidade, com

os seus problemas e alegrias. Ou, mesmo que não fosse assim, havia de

viajar constantemente entre a sua aldeia e Lisboa. O que estaria fazendo,

onde estaria Caroline, a jovem francesa que deixara à porta de casa dois

anos antes? Perdera o seu rasto e tinha remorsos quanto a isso. Mulheres

percorriam o seu corpo e perdiam-se na sua alma até não haver mais

vista. Selina, uma jovem dos seus 41 anos procurava ainda realizar o seu

sonho de casar e ter filhos. Jerónimo tinha um sonho parecido. Propusera-

lhe fazerem um filho, pois que casar com aquela mulher feia não queria.

Ela, no entanto, recusara. Tudo bem, que mas queria ela? Um pai da

mesma terra, o que ela precisamente procurava, uma relação séria. De

certeza que não iria encontrar ninguém que a quisesse, apesar de ter boas

condições para ter um filho. Talvez encontrasse um velho tolo e antiquado

que quisesse juntar a sua fortuna à dele, dinheiro e vontade de deixar

dinheiro aos sobrinhos, pois que aos 41 anos ter um filho não é coisa fácil.

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No entanto, Jerónimo tinha mais em que pensar. Havia decerto mulheres

interessantes por aí, bastava procurar, estar atento, deixar o tempo passar.

Não fizera nada de errado na sua vida, não havia nada de errado com ele,

podia estar descansado. Apenas estava um pouco stressado por não ter

emprego, coisa que acontece com muito boa gente. Mas os seus

detractores não se ficariam a rir. Sabia que tinha qualidades e antes de

mais a capacidade de amar de que não abdicava.

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5.

Quanto aos seus segredos em relação ao futuro, tinha-os com certeza,

mas guardava-os consigo nos seus pensamentos. Seja como for, todos se

esqueciam de cultivar o ideal franciscano. Esqueciam-se que numa época

em que a Igreja estava podre e moribunda, Francisco de Assis e Tomás de

Aquino fizeram a verdadeira reforma. A reforma protestante foi um

movimento étnico de povos que se queriam autonomizar não só

espiritualmente mas também e sobretudo no domínio da economia. Todos

olhavam para os movimentos zen e taoistas naquela sociedade

contemporânea e esqueciam-me que bem dentro da religião católica, no

século XIII, havia havido uma revolução espiritual sem precedentes, no

entanto pouco disseminada, pouco cultivada: o franciscanismo. Mas

olhando um pouco para o passado, em termos de vida social, Jerónimo

cometera um erro ao fugir da vida aos 15 anos ingressando no seminário,

depois perdera a força em práticas sexuais. A sua vida resumia-se a isso.

Que fazer aos trinta anos quando tinha já pouca força? Uma nova

viragem se exigia, desta vez definitiva. Tinha de encontrar uma solução

para a sua vida de inactividade. Mas não adiantava de nada olhar para o

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passado. Podia desde cedo ter tomado uma posição de força, uma atitude

de força. Bastava estar atento, fazer o seu próprio dinheiro, ganhar a sua

vida. Ainda ia a tempo. Talvez se deixasse de olhar para ele próprio

conseguisse alguma coisa. Talvez se contemporizasse por uma vez

conseguisse alguma coisa. Vá-se lá entender as mulheres. Se cultivamos

uma imagem de gigolo todas nos querem, se cultivamos uma imagem

discreta simplesmente não entendem a mensagem. Todas se rendem por

bons princípios ou pelo poder que aqueles que as assediam têm ou

exercem, sejam de que raça forem. Todas se curvam ao reconhecimento

social que determinada pessoa têm. Por isso Jerónimo procurava o

verdadeiro amor ainda, aquele que não se chama amor, pois que a palavra

está demasiado abusada nos dias que correm, não é amor a relação por

interesse. De modo algum invejava Jerónimo esses tipos, pois que a

sensação do amor verdadeiro é insubstituível. Jerónimo, desempregado há

dez anos, sem receber nenhum rendimento, permitia-se ainda acreditar

no verdadeiro amor. Até quando iria ele resistir? Iria continuar a lutar,

essa era a única saída. Verdadeiro, desprotegido, nunca conivente, talvez

se desse bem um destes dias.

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Pode contactar o autor através do email:

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No Twitter: #VitorMota9

Obrigado por ler este livro.

Não o deixe sozinho.

Paz e Bem

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