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A POLÍTICA DE DESONERAÇÃO DA FOLHA DE PAGAMENTOS E SEUS

IMPACTOS NAS CONTAS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: A PRIMAZIA DA


EFICIÊNCIA ECONÔMICA SOBRE A ADEQUADA PROTEÇÃO
PREVIDENCIÁRIA DA PESSOA HUMANA NO FUTURO

Roberta Simões Nascimento1

Sumário: Introdução; 1. Considerações sobre o financiamento da


Seguridade Social e as desonerações; 2. As propostas do governo
desoneração da folha de pagamentos e os riscos para a Previdência
Social; 3. Crítica à política pública; 4. Os direitos fundamentais dos
segurados e a vedação ao retrocesso social como aspectos a serem
observados na política tributária; Considerações finais; Referências.

RESUMO:
A consideração dos direitos dos segurados do Regime Geral de Previdência Social é
providência que se impõe quando da elaboração da política tributária voltada para o
financiamento da Seguridade Social. As exigências econômicas e as metas político-
fiscais do governo, que embasam a desoneração da folha de pagamentos, implicam
reformas previdenciárias restritivas de direitos no futuro, em manifesto retrocesso
social. Nesse sentido, por resguardar direitos fundamentais, as contas da Previdência
Social não podem ser objeto de renúncia fiscal, a menos que as perdas arrecadatórias
sejam devidamente compensadas, sob pena de esvaziamento da previsão do art. 167,
inciso XI, da CF/88. A desconsideração desses aspectos na elaboração da política
tributária não se coaduna com o desígnio aspirado pelo texto constitucional.

Palavras-chaves: Desoneração da folha de pagamentos. Política tributária. Previdência


Social. Direitos fundamentais dos segurados do RGPS.

1
Advogada do Senado Federal. Coordenadora-Geral de Direito Previdenciário da Consultoria Jurídica
junto ao Ministério da Previdência Social. Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.
Pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-
graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho. Bacharela em Direito pela Faculdade de
Direito do Recife – UFPE.

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“Toda pessoa tem direito à previdência social, de modo a ficar
protegida contra as conseqüências do desemprego, da velhice e da
incapacidade que, provenientes de qualquer causa alheia à sua vontade,
a impossibilitem física ou mentalmente de obter meios de subsistência.”
(Artigo XVI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, Bogotá, abril de 1948).

INTRODUÇÃO
Este trabalho visa a abordar a importância da desoneração sobre a folha
de pagamentos e, ao mesmo tempo, as repercussões dessa medida para a garantia dos
direitos dos segurados do Regime Geral de Previdência Social. Para isso, faz-se
necessário uma breve digressão acerca do sistema de financiamento da Seguridade
Social previsto da Constituição da República de 1988, juntamente com as desonerações
setoriais atualmente em vigor, a fim de evidenciar a tendência hodierna do alargamento
de seu uso e da crescente feição política e retórica que essa medida vem assumindo.
Em um segundo momento, analisando as propostas do governo sobre a
desoneração sobre a folha de pagamentos, demonstra-se o perigo da medida para os
direitos dos segurados do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, a partir da
consideração das vantagens e dos aspectos negativos da medida. Destaca-se que essa
ferramenta – a desoneração sobre a folha de pagamentos –, em especial, pode ser
determinante para a garantia dos direitos fundamentais dos segurados do RGPS, e afetar
o consumo e a renda de dezenas de milhões de cidadãos brasileiros nas próximas
gerações.
Por último, propõe-se uma nova forma de analisar o papel das
contribuições sociais na política tributária e no financiamento da Previdência Social, à
luz dos direitos fundamentais dos segurados do RGPS, para que sirva de norte a uma
futura reforma tributária que trate do assunto.

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1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL E
AS DESONERAÇÕES
“A seguridade social será financiada por toda a sociedade”, esse é o
comando-maior e lógica do sistema de custeio da Seguridade Social concebido no art.
195 da Constituição da República de 1988. Prossegue o dispositivo constitucional
estabelecendo que o financiamento será de forma direta e indireta, nos termos da lei,
também mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
O mesmo artigo, na redação que lhe foi dada pela EC nº 20/98, arrola,
ainda, as seguintes contribuições sociais: 1) do empregador, da empresa e da entidade a
ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais
rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe
preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o
lucro; 2) do trabalhador e dos demais segurados da previdência social; 3) sobre a receita
de concursos de prognósticos; e 4) do importador de bens ou serviços do exterior, ou de
quem a lei a ele equiparar, esta última forma de financiamento criada pela EC nº
42/2003.
Nesse trabalho, de forma especial, interessa a contribuição social descrita
no art. 195, inciso I, alínea a, da CF/88, também chamada contribuição patronal. A
descrição de sua hipótese de incidência foi a que mais variou ao longo do tempo. Nada
obstante, tendo em vista os propósitos desejados, a evolução legislativa em torno do
tema ficará para momento mais oportuno.
Chama-se a atenção para que a EC nº 42/2003 acrescentou o § 13 ao art.
195 da CF/88, de acordo com o qual a lei definirá os setores de atividade econômica
para os quais a contribuição incidente na forma do inciso I, a, será gradualmente
substituída, total ou parcialmente, pela contribuição incidente sobre a receita ou o
faturamento. É dizer, restou autorizada a possibilidade de substituição ou redução da
contribuição incidente sobre a folha de pagamentos em prol da contribuição social
incidente sobre a receita ou o faturamento, a COFINS. A autorização em questão é
norma muito importante e será melhor detalhada no tópico seguinte.
À época dos debates em torno dessa norma programática, justificou-se a
regra com a finalidade de (i) conferir maior competitividade à indústria nacional,
especialmente aos setores da construção civil, software, têxtil e calçados; (ii) reduzir o
custo da mão-de-obra; (iii) estimular o aumento do emprego formal no país.

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Com razão, nos termos da Lei nº 8.212/91, art. 22, inciso I, a
contribuição a cargo da empresa é de 20% sobre o total das remunerações pagas,
devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e
trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho,
qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de
utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços
efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de
serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de
trabalho ou sentença normativa. Realmente, a alíquota de 20% é elevada e esse não é o
único custo que a mão-de-obra formalizada implica.
As chamadas “desonerações” – assim entendidas como a redução das
alíquotas das contribuições sociais – têm sido largamente utilizadas como forma de
fomentar ou incentivar determinados setores da economia. A despeito de a intenção ser
legítima, preocupa o fato de esse tipo de política tornar ainda mais complexo o sistema
tributário brasileiro, na medida em que é mais uma lei a se somar ao já elevado número
de normas em matéria tributária, alíquotas, bases de cálculo e exceções.
Além disso, as desonerações revelam outro equívoco em termos de
escolhas de política tributária. É sabido que, especialmente após a Constituição da
República de 1988, ao longo da década de 90, a União cuidou de instituir e aumentar as
alíquotas das contribuições sociais com objetivo de compensar as perdas ocasionadas
pelo aumento das alíquotas dos repasses constitucionais aos demais entes federados
(especialmente o Fundo de Participação dos Estados e Fundo de Participação dos
Municípios). Por não terem o produto de sua arrecadação repartido, as contribuições
sociais apresentavam vantagem sobre o exercício da competência residual a que se
refere o art. 154, inciso I, da CF/88, já que 20% do produto da arrecadação do imposto
instituído com esse fundamento pertencem aos Estados, de acordo com o art. 157, inciso
II, da CF/88.
Agora, passado algum tempo de excessiva tributação, inclusive por
intermédio de contribuições com fatos geradores idênticos aos de alguns impostos e
cumulativos, a União tem sido obrigada a voltar atrás em sua decisão, desonerando
vários setores com vistas à resgatar a competitividade do país.
Mais uma vez, o que se observa é a ausência de uma política industrial,
tão necessária para ao Estado, e que vem sendo substituída, de forma paliativa, por
políticas tributárias pontuais, de que as desonerações são exemplo.

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Ocorre que as contribuições sociais tem uma importante destinação, a
Seguridade Social, conjunto integrado de ações destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme o mandamento
constitucional do art. 194.
Nesse sentido, é alarmante a constatação de que as desonerações
implicam em retirar dinheiro que vai para a Seguridade Social, especialmente a parte
que é destinada ao pagamento dos benefícios do RGPS. Esse dado revela o uso indevido
da política tributária do país, a qual tem sido completa e equivocadamente separada da
política de Previdência Social, aqui concebida como direito fundamental dos segurados
que contribuem.
Nos moldes em que vem ocorrendo, o país está “cobrindo um santo para
descobrir outro”, pois, no futuro, certamente eclodirá o problema da Previdência Social,
que se verá sem condições de honrar os pagamentos dos benefícios segundo as regras
atuais para a concessão, em razão da falta de equilíbrio financeiro e atuarial, o qual é
princípio da Previdência Social inscrito no art. 201 da CF/88. Assim, inevitavelmente,
será necessária uma reforma previdenciária restritiva de direitos, para que as contas
possam “fechar”.

2. AS PROPOSTAS DO GOVERNO SOBRE A DESONERAÇÃO DA FOLHA DE


PAGAMENTOS E OS RISCOS PARA A PREVIDÊNCIA SOCIAL
Passados mais de sete anos sem que tenha sido implementada a
autorização constitucional inserida no art. 195, § 13, da CF/88, pela EC nº 42/2003, o
tema da “desoneração da folha de pagamentos” voltou à pauta de discussões no âmbito
da proposta de reforma tributária do atual governo. Em um primeiro momento,
conforme amplamente noticiado pela imprensa, a intenção do governo era reduzir a
alíquota atual de 20% para 14%, progressivamente, no prazo de três anos, diminuindo-
se dois pontos percentuais ao ano.
Mais uma vez, repete-se o propósito de estimular a indústria, formalizar
vínculos e criar mais postos de emprego com a denominada “desoneração”. O fato é que
se trata de uma grande mudança no sistema tributário brasileiro e que merece algumas
considerações sobre as suas implicações e o que está por trás da medida.
Inicialmente, registre-se que estudos já realizados no âmbito do
Ministério da Fazenda, conforme vem se dizendo, indicam que cada ponto percentual
reduzido da contribuição constante do art. 195, inciso I, alínea a, da CF/88, significa um

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impacto de R$ 4 bilhões (que deixam de ser arrecadados) nas contas da Previdência
Social, por ano.
Por oportuno, lembre-se que, das contribuições devidas pelo empregador,
apenas a incidente sobre a folha de pagamentos a que se refere o art. 195, inciso I, alínea
a, tem destinação vinculada nos termos do art. 167, inciso XI, da CF/88. É dizer, é
vedado à União a utilização dos recursos provenientes da contribuição social sobre a
folha de pagamentos para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios
do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da CF/88.
Ainda que se obtenha uma compensação da medida pelo aumento na
arrecadação da contribuição constante do art. 195, inciso I, alínea b, da CF/88; e mesmo
se considerando que a contribuição da alínea b também é social e destinada ao
financiamento da Seguridade Social, o fato é que sua destinação não é específica para o
pagamento de benefícios do RGPS. Ou seja, o produto da arrecadação igualmente pode
ser destinado à saúde ou à assistência social, que, junto com a previdência, formam o
tripé da Seguridade Social.
Com efeito, no último dia 02 de agosto, a intitulada política industrial
brasileira no período 2011-2014 foi lançada por intermédio do programa “Plano Brasil
Maior”, instituído pela Medida Provisória nº 540/2011.
Das medidas anunciadas, interessa comentar a redução para zero da
alíquota de 20% das contribuições sociais dos setores de confecção (têxtil), calçados,
móveis e software. Tais setores foram escolhidos, segundo o governo, por serem dos
que empregam mão-de-obra no país, e os que estão mais sujeitos à variação cambial,
também sendo os que mais sofrem pela entrada de produtos importados, em razão do
câmbio favorável. A intenção anunciada é conter o “perigo de desindustrialização” do
país ocasionado pela valorização do real ante o dólar.
Como se vê, a desoneração foi feita em caráter experimental, de forma
temporária e alcançando apenas quatro setores, revelando o fato de que a medida é
extremamente controvertida. De acordo com o governo, o “Plano Brasil Maior”, nessa
parte, implicará um impacto máximo de R$ 1,3 bilhão para os cofres públicos ao ano.
Em contrapartida, para compensar a desoneração da folha de pagamentos
implementada, aumentou-se a contribuição sobre o faturamento desses quatro setores
indicados, a qual passará a ter alíquota a partir de 1,5%, conforme o setor. Na mesma
MP nº 540/2011 está previsto que a diferença de arrecadação (o déficit da Previdência
Social) será garantido pelo Tesouro Nacional. Eis a dicção do art. 9º, inciso IV, da MP

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nº 540/2011: “Art. 9º (...)IV - a União compensará o Fundo do Regime Geral de
Previdência Social, de que trata o art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio
de 2000, no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente
da desoneração, de forma a não afetar a apuração do resultado financeiro do Regime
Geral de Previdência Social”.
Com efeito, vislumbra-se interessante o anúncio, na Medida Provisória,
de que o impacto do “Plano Brasil Maior” será acompanhado por uma comissão
formada pelo governo, setor produtivo e representantes da sociedade civil. Nos termos
do art. 10 da MP nº 540/2011, “Art. 10. Ato do Poder Executivo instituirá comissão
tripartite com a finalidade de acompanhar e avaliar a implementação das medidas de
que tratam os arts. 7º a 9º, formada por representantes dos trabalhadores e
empresários dos setores econômicos ali indicados, bem como do Poder Executivo
federal.”. A comissão também poderá propor novidades e ajustes ao plano.
Trata-se de importante sinal quanto à seriedade da política, pois se
reconheceu que o plano está em formação. De fato, a desoneração em questão deve ser
bem estudada, pois a contribuição social incidente sobre folha de pagamentos,
indiscutivelmente, apresenta algumas vantagens, especialmente em termos
arrecadatórios e de administração, em relação à contribuição social incidente sobre a
receita ou o faturamento e àquela sobre o lucro. Senão, vejam-se algumas.
Primeiramente, a contribuição social do art. 195, inciso I, alínea a, da
CF/88, tem volume de arrecadação relativamente constante: o número de empregados
oscila pouco; ao passo que as demais contribuições sociais, tendo em vista sua
incidência sobre resultados da atividade econômica, estão mais suscetíveis à flutuação
do mercado. De fato, é desnecessário lembrar que, em tempos de crise, a receita, o
faturamento e o lucro são sempre diretamente atingidos e tendem a ser menores. O
lucro, especialmente, pode até chegar a zero e tais desempenhos inevitavelmente
refletiriam na arrecadação tributária.
Ocorre que, além de indesejadas, tais oscilações são incompatíveis com a
estabilidade requerida pelos cálculos financeiros e atuariais da Previdência Social, cujas
prestações e pagamentos precisam ser cuidadosamente estimados, assim como as
receitas respectivas.
Em segundo lugar, observe-se que a base de incidência da contribuição
social sobre a folha de pagamentos é mais facilmente fiscalizável, na medida em que
não há como sonegar o número de trabalhadores ou de pessoas que prestam serviço,

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ainda que sem vínculo empregatício, a determinada sociedade ou entidade a ela
equiparada. Mesmo na hipótese em que há informalidade, uma fiscalização in loco pode
detectá-la, cobrar as contribuições respectivas e aplicar a multa, sem maiores
complicações.
Diferentemente, a receita, o faturamento e o lucro de uma sociedade
podem ser mascarados por balancetes fraudulentos e contas bancárias paralelas,
ilustrativamente, o que torna mais dificultoso o trabalho da Administração Tributária no
controle da arrecadação dessas contribuições sociais a que se referem o art. 195, inciso
I, alíneas b e c, da CF/88.
Comentando as propostas de desoneração da folha de pagamentos, a lição
da doutrina vai no sentido de que:

A contribuição previdenciária patronal sobre a folha de pagamento existe desde a


gênese da previdência social, no modelo bismarkiano, sendo sua substituição algo
temerário. A incidência por esta base possibilita a quantificação atuarial dos recursos
necessários à manutenção dos ingressos do trabalhador quando de seu afastamento,
temporário ou definitivo, do mercado de trabalho. A substituição de bases de incidência
poderá quebrar este liame necessário e, pior, possibilitar o desvio de recursos da
previdência para outros segmentos, em violação ao texto constitucional (art. 167, XI, da
CRFB/88).
Na atualidade nacional, é fato sabido a utilização dos recursos da COFINS para outras
funções distintas da manutenção da seguridade social. Aceitar a substituição da
contribuição sobre a folha pela COFINS na esperança que os recursos previdenciários
sejam direcionados ao RGPS é inaceitável. Tal mudança, ainda que parcial, somente
será admissível se acompanhada de mecanismos eficazes de acompanhamento da
receita, de modo a dar efetividade ao mandamento constitucional de vinculação da
receita em prol do RGPS. (IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito
Previdenciário. 16. ed. Niterói: Impetus, 2011, pp. 116-117.)

Com efeito, o fato de a desoneração vir “garantida” pela União, que se


responsabiliza a cobrir a perda arrecadatória decorrente, não é suficiente para a
preservação dos direitos dos segurados. Sim, porque dia após dia se ouvem as
reclamações governamentais no sentido de que falta dinheiro para as mais diversas
despesas públicas. Como não ter receio de que “a Previdência vai quebrar”, como se
diz.

3. CRÍTICA À

4. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS SEGURADOS E A VEDAÇÃO AO


RETROCESSO SOCIAL COMO ASPECTOS A SEREM OBSERVADOS NA
POLÍTICA TRIBUTÁRIA

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Como cediço, os constantes déficits nas contas da Previdência Social tem
sido a maior preocupação e desafio na elaboração das políticas, especialmente as de
longo prazo. A redução dos direitos dos segurados nas diversas reformas previdenciárias
que se sucedem por vezes tem sido justificadas sob argumentos como as necessidades
de desenvolvimento econômico do país e de equilíbrio financeiro e atuarial das contas
públicas.
Essa lógica é perversa e coloca em risco a noção de que a Previdência
Social é direito fundamental, pois é a partir dela que se garante a dignidade de os
segurados que, por razões diversas, definitivas ou temporárias, imprevistas ou não, estão
incapacitados para o trabalho, sendo certo que a dignidade é valor fundamental da
República, nos termos do art. 1º, inciso III, da CF/88.
De fato, não há como conceber um Estado democrático de direito sem, ao
menos, ações mínimas de Previdência Social. Sim, porque não existe sociedade livre e
justa sem que seja viabilizado o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos,
especialmente diante dos chamados “riscos sociais”.
A Previdência Social é uma das técnicas protetivas mais avançadas, forte
na compulsoriedade, na solidariedade e na contributividade. É mais abrangente que um
seguro facultativo, de viés contratual. A Previdência Social tem natureza jurídica
estatutária ou institucional.
É bem verdade que a quase totalidade dos recursos que compõem o
Fundo do Regime Geral de Previdência Social é de origem orçamentária e que o
orçamento público detém inegável feição política, correspondendo às opções
ideológicas da coletividade, ainda que por intermédio da representação pelos agentes
políticos. Contudo, não se deve esquecer que o orçamento público é o mais importante
instrumento de implementação de direitos fundamentais.
Notadamente, como todos os demais direitos, os direitos junto à
Previdência Social têm custos, e é necessário pensar em formas adequadas de alocação
dos recursos públicos, os quais, sabidamente, são escassos. Como as prestações da
Previdência Social dependem das possibilidades orçamentárias, o fato é que as
desonerações de hoje certamente inviabilizarão o pagamento dos benefícios do RGPS
no amanhã.
Nesse sentido, assim comenta a doutrina:

O sistema previdenciário deve ser autosustentável, isto é, deve financiar-se a partir das
contribuições de seus beneficiários, diretos ou indiretos, evitando-se uma dependência

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indevida de recursos estatais, o que naturalmente poderia comprometer o sistema
protetivo.
Infelizmente, não é essa a realidade do sistema brasileiro, o qual foi irresponsável na
administração das reservas do passado e, com freqüência, concedia benefícios sem
previsão de custeio específico. Embora, frequentemente esquecida, a contributividade é
mais uma característica básica do sistema previdenciário brasileiro. Esta característica é
elementar (...) (IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 16. ed.
Niterói: Impetus, 2011, p. 29.)

Com efeito, a LC nº 101/01, art. 68 estabelece que o Fundo do Regime


Geral de Previdência Social será constituído por: I - bens móveis e imóveis, valores e
rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização
deste; II - bens e direitos que, a qualquer título, lhe sejam adjudicados ou que lhe vierem
a ser vinculados por força de lei; III - receita das contribuições sociais para a seguridade
social, previstas na alínea a do inciso I e no inciso II do art. 195 da Constituição; IV -
produto da liquidação de bens e ativos de pessoa física ou jurídica em débito com a
Previdência Social; V - resultado da aplicação financeira de seus ativos; VI - recursos
provenientes do orçamento da União.
Prevê a LC nº 101/01, ainda, em seu art. 14, que a concessão ou
ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de
receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e
de medidas de compensação proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de
cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Nesse sentido, considerando o caráter de direito fundamental da
Previdência Social, e a estrita vinculação referida no art. 167, inciso XI, da CF/88, é
inconcebível que as desonerações continuem sendo implementadas sem o cumprimento
dos requisitos previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, pois isso representa flagrante
retrocesso social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A despeito dos transtornos causados pelas escolhas equivocadas no
âmbito da política tributária brasileira recente, que hoje oneram demasiadamente o setor
produtivo (especialmente a mão-de-obra), e nada obstante se reconhecer a necessidade
de que providências sejam tomadas para corrigir o problema, tem-se que a simples
desoneração da contribuição social incidente sobre a folha de pagamentos,
desacompanhada de uma ampla reformulação no sistema de financiamento da
Seguridade Social, não parece ser uma boa escolha.

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Nos termos que a desoneração vem sendo proposta pelo governo, no
âmbito de uma intitulada “política industrial”, trata-se de medida paliativa que, na
prática, “cobre um santo para descobrir outro”, pois engendra um problema maior, para
o futuro, qual seja, a falta de recursos para o pagamento dos benefícios do RGPS, em
verdadeira burla ao disposto no art. 167, inciso XI, da CF/88.
A consideração dos direitos dos segurados do RGPS, conforme o
raciocínio aqui desenvolvido, é providência que se impõe quando da elaboração da
política tributária voltada para a fixação das contribuições sociais, especialmente a
patronal. Da mesma forma que é importante garantir a competitividade do país, a partir
da redução dos tributos incidentes, faz-se imperiosa a garantia de que, pela nova política
tributária, existirão recursos suficientes para a cobertura dos benefícios previdenciários
do RGPS (equilíbrio financeiro e atuarial), sem a necessidade de reformas
previdenciárias restritivas de direitos que impliquem retrocesso social. A
desconsideração desses aspectos na elaboração da política tributária não se coaduna
com o desígnio aspirado pelo texto constitucional.

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