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Ensinar o que não se sabe...

"Meu querido Roland Barthes passou por experiência semelhante à minha.


Também queria ser igual à cigarra. A sua aula inaugural como professor da
cadeira de semiologia literária do Collège de France é um texto herético e
escandaloso que só pode ser compreendido como palavras de um homem a
quem a velhice havia concedido lucidez e coragem para dizer aquilo que via sob
a luz do crepúsculo.
No final de sua aula, Barthes fala sobre sua vida, faz a sua confissão de velhice e
diz sobre as metamorfoses que a luz crepuscular operara sobre a sua vida. Não
há pessimismo no que ele diz. É como se fosse uma ressurreição - ficar jovem de
novo.
“Portanto, se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-
me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de
meu próprio corpo, passado. Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-
me mais jovem do que sou. Com cinquenta e um anos, Michelet começava sua
vita nuova: nova obra, novo amor. Mais idoso do que ele… eu também entro
numa vita nuova… Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda força
viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem
em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.
Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar
trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos.”
“Há uma idade em que se ensina o que se sabe”: esse é o início. Assim é: os
professores começam por ensinar saberes. Ensinam primeiro os saberes sabidos,
as coisas que, no transcorrer do tempo, foram aprendidas pelas gerações mais
velhas, e que agora são transmitidas às gerações mais novas, como se fossem
ferramentas em uma caixa. O ensino dos saberes é a transmissão de uma
herança, caixa de ferramentas. O professor, ao ensinar, está dizendo: “Eu estou
lhe dando aquilo que sei”. Os saberes são transmitidos para que as novas
gerações não tenham de estar começando sempre de novo, da estaca zero. Os
velhos ensinam saberes para que os jovens possam começar a navegar a partir
do porto aonde eles chegaram. O que, para os velhos, foi porto de chegada, será
para os jovens porto de partida: para que possam ir além deles mesmos.
“Mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe.” Mas como é
possível ensinar saberes que não sei? O navegador voltou de suas viagens
trazendo nas mãos os mapas que desenhara nos mares onde navegara. Mapas são
metáforas do mundo dos saberes. São úteis. Neles encontramos as rotas a serem
seguidas, caso se deseje. Chegam os alunos. Desejam aprender os mares do
mundo. O professor mostra-lhes os seus mapas e fala sobre aquilo que sabe. Os
alunos aprendem. Mas, de repente, um aluno inquieto aponta para um vazio
indefinido, sem contornos, no mapa.
“- Qual é o nome daquele mar?” -, ele pergunta. O professor responde:
“- O nome daquele mar eu não sei.
Nunca fui lá. Não o naveguei. Não o conheço. Por isso, nada tenho a dizer. É
mar desconhecido, por navegar. Mas, com o que sei sobre os outros mares, vou
ensinar-lhe a aventurar-se por mares desconhecidos: essa é a aventura suprema.
Para isso nascemos…”
“Ensinar o que não se sabe”: “A isso se chama pesquisar”, diz Barthes
tranquilamente. Ensinar a pesquisar: essa é uma das grandes alegrias do
professor, somente comparável à do pai que vê o filho partindo sozinho como
pássaro jovem que, pela primeira vez, se lança sobre o vazio com suas próprias
asas. O professor vê o discípulo partindo para o desconhecido, para voltar com
os mapas que ele mesmo irá fazer, de um mar onde ninguém mais esteve. É isso
que deve ser uma pesquisa e uma tese: uma aventura por um mar que ninguém
mais conhece.
Barthes diz, então, algo surpreendente: chegara a sua hora suprema, a hora do
esquecimento. Chegara o tempo de desaprender os saberes que havia aprendido.
Posso imaginar o espanto que essa declaração deve ter provocado no erudito
público académico presente na sua aula. Esquecer, desaprender: são o oposto
daquilo que a educação tem proposto até agora. Educar é ensinar, somar saberes
sobre fatos, acrescentar competências lógicas. Esquecer significa perder, abrir
mão, deixar ir. E, na lógica banal da razão do cotidiano, esquecimento é sempre
empobrecimento. Barthes aponta na direção oposta. Teria ficado senil? Quem
responde é o poeta T. S. Eliot, num curtíssimo-cortante aforismo: “Num país de
fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo”.
(foto: 2005, no Funchal, a convite do SPM, ao lado do Prof. Nélio)
Rubem Alves, Livro Sem Fim, Porto: ASA, 2005 (a obra de RB citada está
traduzida em Português com o título Lição, edição Edições 70)

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