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{} voz da literatura

revista

novembro 2020

mabusabi
uma experiência estética

um ensaio de
Michele Eduarda Brasil de Sá

n.
4
coleção
ensaio
mabusabi uma experiência estética

{}
Q uando eu tinha aulas de japonês no primeiro tempo na
faculdade – pontualmente às sete e meia da manhã –
minha turma foi alocada em uma sala que ficava no últi-
mo bloco. Não havia cortinas na sala e, se fosse um prenúncio de
dia quente, o sol da manhãzinha entrava com força pela janela. A
posição das carteiras de onde olhávamos para o quadro fazia com
que não nos importássemos muito com o sol que invadia o espa-
ço, mas a professora (nossa sensei) ficava em uma situação muito
complicada, pois a luz do sol atingia em cheio o seu rosto. Foi
numa dessas aulas de calor prenunciado que ouvi pela primeira
vez a palavra mabushii e, confesso, nunca mais me esqueci dela.
Mabushii, mabushii – ela dizia, com ar de reclamação, mas
aproveitando para nos ensinar uma nova palavra, perguntando a
forma negativa, a forma de passado, a forma negativa de passa-
do... Eu achava curioso existir uma palavra para isso em japonês,
uma palavra que qualificasse algo cujo brilho incomodava, fazia
fechar os olhos, doía na vista. Como traduzi-la? “Cegante”? “Bri-

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lhante”? “Ofuscante”? Nada parecia dar conta do que realmente
significa mabushii – como ocorre com muita frequência em re-
lação à tradução de outras palavras japonesas para o português.
A reminiscência vem de longe imediatamente enquanto
leio sobre o conceito de mabusabi. Na verdade, eu estava pesqui-
sando sobre wabisabi, que é algo mais conhecido, mais recorren-
te para nós que estudamos a cultura japonesa, porque é antigo
e amplamente pesquisado. Em linhas bem gerais, wabisabi é a
junção de dois conceitos estéticos japoneses associados à sim-
plicidade da vida (expressada sobretudo na arte). Wabi refere-se
ao entendimento de que a beleza está nas coisas mais simples,
numa perspectiva desapegada do material; sabi refere-se também
à simplicidade, acrescida de um sentimento de solidão, de resig-
nação ante tudo que acontece. Os dois conceitos encontram-se
tão entrelaçados que às vezes é difícil – pelo menos para mim
– compreender onde um começa e o outro termina, ou o que os
intersecciona.
O filósofo e poeta contemporâneo japonês Motoaki Shi-
nohara criou o termo mabusabi, como ele mesmo relata, a partir
das palavras mabushisa e sabishisa, uma mistura de ofuscamento
e solidão, uma visão pós-moderna do wabisabi. Ele teve esta ideia
durante o tempo em que esteve distante da família, trabalhando
em Tóquio. Michael Marra (2010, p. 199), professor da Universi-
dade da Califórnia em Los Angeles e um estudioso da estética ja-
ponesa, conta que, segundo o próprio Shinohara escreve em um
de seus livros, a inspiração e o nome teriam vindo dos sonhos
que ele teve durante este período de afastamento de casa. Nestes
sonhos ele recebia a visita do monge Kûkai, religioso budista do
século VII. Em um destes sonhos, Shinohara alega ter sentido
o monge como uma cachoeira de luz na palma de sua mão. O

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monge Kûkai foi uma figura central na época Heian, chamado


por muitos de “pai da cultura japonesa clássica” (frédéric,
2008, p. 711). A experiência de Shinohara ao observar o brilho
da imagem da cachoeira levou-o a pensar na expressão “solidão
ofuscante” (mabusabi) como “uma espécie de sabi que se apli-
casse ao homem pós-moderno, exposto diariamente a objetos
transparentes e translúcidos” (marra, 2010, p. 219). Ele escre-
veu então seus poemas “Quarenta e oito cachoeiras de mabusa-
bi”, sendo a cachoeira uma metáfora para a condição humana,
representando a sua queda. Não se limita, porém, a isso: a queda
em si também se esvanece “e dá lugar a uma experiência estética
em um ambiente outrora desolado” (marra, 2010, p. 223).
Um exemplo de experimento desta natureza, executado
pelo próprio Shinohara em 2004, é contado também por Mar-
ra (2010, p. 224). Ele alugou um vagão de trem velho (uma re-
presentação do que é o sabi, patenteado no desgaste do vagão,
deixando-o valioso e significativo) e nele realizou um encontro
de leitura de poesia com alguns jovens. Na verdade, foi uma exi-
bição dos seus poemas que dialogavam com os do Hyakunin
Isshû, antologia poética compilada por Fujiwara no Teika, obra
bastante representativa da cultura clássica japonesa. Os seus po-
emas foram dispostos em cartões (como geralmente são os da
obra clássica a que fazem referência, e bastante populares) e pen-
durados dentro do vagão, próximos às janelas, imitando a queda
de uma cachoeira. O velho vagão, que parecia “morto”, “caído”,
ganhou vida nova com a intervenção poética que foi nele acolhi-
da. O texto antigo, por sua vez, ganhou um texto interlocutor e
novos leitores, ou antes novas leituras.
Volto à sala de aula de outrora e ao sol invadindo nosso lu-
gar de estudo. Mabushii, mabushii – não consigo ver ainda, os

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olhos me doem e não posso abri-los, a não ser devagar e sem
voltá-lo diretamente à luz que vem de longe. É assim que bus-
co a cachoeira de Shinohara, caindo, perdendo-me na distância
cultural e linguística, até que um dia a queda também acabe e eu
possa experimentar realmente o que seja a “solidão ofuscante” do
mabusabi.

Referências
frédéric, Louis. O Japão - dicionário e civilização. São Paulo: Globo Livros,
2008.
marra, Michael. Essays on Japan: between aesthetics and literature. Brill, 2010.
shinohara, M. Mabusabi-yuki (“Rumo ao mabusabi”). Artigo em japonês.
Disponível em: <https://sites.google.com/site/mabusabi/mabusa-biyuki> Acessa-
do em: 03.out.2020.

Michele Eduarda Brasil de Sá é professora da


Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), atualmente em exercício provisório na Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Foi professora adjunta
da área de japonês do Departamento de Línguas Estrangeiras
e Tradução da Universidade de Brasília-UnB (2013-2018).
É membro permanente do Programa de Pós-graduação em
Estudos de Linguagens (PPGEL-UFMS) e atua também na
pós-graduação lato sensu, coordenando a especialização em
Linguística Aplicada e Ensino de Línguas (UFMS/UAB).

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editor
rafael voigt leandro

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