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Comissão
do processo de
revitalização
e reestruturação
da Ordem
Documento 3
Roma
Outubro de 2011
2
A revitalização e a reestruturação
em santo Agostinho
Documento 3
3
Conteúdo:
1. Introdução
2. Reestruturação ou conversão
2.1 Conversão como reestruturação
2.2. Reestruturação, dispersão e os meios atuais
2.3. A finalidade da reestruturação: a revitalização
2.4 Fontes da revitalização
2.4.1. Sagrada Escritura
2.4.2. Oração
2.4.3 La Eucaristia
3. Alguns princípios da reestruturação e revitalização
extraídos da vida de santo Agostinho
3.1. Reestruturando um mosteiro
3.2 A reestruturação dos donatistas
3.2 A caridade pastoral e um grave erro
4. Conclusão
5. Para a reflexão e o diálogo comunitário
4
Reestruturação e revitalização
em santo Agostinho1
1. Introdução
O homem é um peregrino que se dirige para a cidade de Deus entre as
perseguições deste mundo e as consolações de Deus2. É este um ícone frequente nos
escritos de santo Agostinho e um conceito fundamental de seu pensamento
antropológico. Todo homem como peregrino3 deve viver em um constante processo de
conversão, quer dizer, de reestruturação interior, para poder receber a vida de Deus, a
graça que lhe revitaliza.
Santo Agostinho era bem consciente de que o ser humano corre o perigo de
esquecer-se de Deus e de voltar-se para as coisas deste mundo 4. Por isso, o peregrino da
Cidade de Deus deve viver um processo de conversão, de reestruturação interior, que
lhe permita viver orientado sempre para Deus, e em quem vai plenificando a vida.
A conversão ou reestruturação para santo Agostinho nasce fundamentalmente do
amor. É o amor que distingue de modo preciso os moradores da cidade de Deus dos
habitantes da Babilônia deste mundo. O mesmo santo Agostinho o expressa com clareza
em um de seus textos mais clássicos:
Dois amores edificaram, pois, duas cidades, a saber: o amor a si mesmo, levado
ao desprezo a Deus, a cidade terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si mesmo,
a celestial5.
E para saber a que cidade se pertence, é preciso considerar que é que se ama,
pois o amor é motor de reestruturação e revitalização, e o que faz pertencer à cidade de
Deus:
1
A Comissão do processo de revitalização e reestruturação da Ordem dos Agostinianos
Recoletos encarregou a Fr. Enrique A. Eguiarte Bendímez a redação deste documento e o
propõe a todos os religiosos da Ordem para sua reflexão pessoal e comunitária.
2
“(…) inter persecutiones mundi et consolationes Dei peregrinando procurrit Ecclesiae”. ciu.
18, 51, 2.
3
en. Ps. 125, 3.
4
en. Ps. 64, 2.
5
ciu. 14, 28: fecerunt itaque ciuitates duas amores duo, terrenam scilicet amor sui usque ad
contemptum dei, caelestem uero amor dei usque ad contemptum sui.
5
2. Reestruturação ou Conversão
O Papa Bento XVI nos apresentou santo Agostinho como “um dos maiores
convertidos da história da Igreja”7, já que ele não só viveu muitos momentos de
conversão (três, assinala o Papa), mas toda sua vida foi uma contínua conversão,
ajustando sempre seus passos para poder responder com maior fidelidade ao que Deus
lhe pedia. Além disso, o Papa observou que a conversão de Santo Agostinho não foi
apenas uma8. O amor de Deus o inunda de tal maneira que toda sua vida se converte em
uma viva manifestação do amor derramado por Deus em seu coração.
Embora seja certo que a expressão ordo amoris em santo Agostinho se refere às
virtudes11, dentro da obra agostiniana em outras ocasiões esta expressão tem a
conotação de conversão, de reestruturação do coração e dos afetos para que o homem
tenha como centro o amor de Deus12.
Um segundo elemento que o constitui é a necessidade que o homem tem de
reestruturar-se em seu interior, pois a ordem rota pelo pecado o leva à dispersão. Por
isto mesmo santo Agostinho continuamente convida e exorta a regressar ao próprio
interior, ao próprio coração13, para dessa volta ao interior, poder dar um novo sentido à
vida e descobrir a verdadeira felicidade. A ruptura da ordem é para o ser humano um
caminho de infelicidade, pois ao voltar-se às criaturas e esquecer-se de Deus, o homem
é incapaz de descobrir onde está a verdadeira felicidade:
(O homem) dotado de uma excelência tal que, mesmo sendo mutável, sua
felicidade está em unir-se ao bem imutável, ou seja, ao sumo ser: Deus; e não satisfaz
sua indigência senão sendo feliz, e nada a pode satisfazer mais que Deus14.
Santo Agostinho teve a experiência de saber que buscava a Deus não por própria
iniciativa, mas porque ele havia sido encontrado antes por Deus, havia sido tocado por
seu mistério, que o fez arder de amor e por isso ele, enamorado, o buscava, sabendo que
a desordem em que havia vivido não o havia conduzido à felicidade, e que só na
reestruturação de sua vida em torno a Deus, encontrava a plenitude:
Havias tu flechado nosso coração com teu amor e levávamos tuas palavras
cravadas em nossas entranhas; e os exemplos de teus servos (…) abrasavam e
consumiam nossa grave indolência, para que não voltássemos atrás e nos abrasavam
fortemente para que o vento da contradição (…) não nos apagasse, mas nos inflamasse
mais ardentemente16
Mas, acima de tudo, esta busca e este poder entrar no próprio interior e no
próprio coração é graça de Deus. Santo Agostinho era plenamente consciente disto e nos
11
ciu. 15, 22.
12
ciu. 11, 16.
13
Io. eu. tr. 18. 10-11.
14
ciu. 12, 1, 3.
15
vera rel. 39, 72.
16
conf. 9, 2, 3.
7
estimula a orar para que nos seja concedida esta graça. É, pois, uma graça de Deus o
poder sair da dispersão em que todo homem vive mergulhado, como um efeito do
pecado original, para poder passar da “região da dessemelhança” 17 à região da luz, à
semelhança com Deus. Por isso quem se põe em situação de realizar uma reestruturação
interior deve pôr-se em um âmbito de oração, pedindo e suplicando a Deus com santo
Agostinho:
Depois do dilúvio, a ímpia soberba dos homens (…) mereceu a divisão pela
diversificação das línguas (…), a humilde piedade dos fieis trouxe à unidade da Igreja
a diversidade das línguas, de modo que a caridade reúne o que a discórdia havia
dispersado, e os membros dispersos do gênero humano, qual se fora um só corpo, são
restituídos e unidos a Cristo, única cabeça, e se fundem na unidade do corpo santo
graças ao fogo do amor19.
17
conf. 7, 10, 16.
18
conf. 7, 10, 16.
19
s. 271.
8
Sou plenamente consciente, Senhor, de que te amo. Feriste meu coração com tua
palavra e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as partes me
dizem que te ame; e não cessam de dizer o mesmo a todos, de modo que não tenham
desculpas22
20
conf. 10, 26, 37.
21
Cf. en. Ps. 26, 2, 8; Cf. E. Eguiarte, “A Descida de Cristo em algumas Enarrationes in
Psalmos”, en AVGVSTINVS 54 (2009), 295-314.
22
conf. 10, 6, 8.
23
en. Ps. 59, 8.
9
Quem se converte e reestrutura sua vida não vive um processo de morte, mas
pelo contrário, um processo de vida. Abandona-se o que, falsamente, se acreditava que
era a vida e se descobre a vida verdadeira em Cristo.
24
E também muito possivelmente porque a Bíblia continha uma série de coisas que ele nesse
momento era incapaz de entender, como as diferentes genealogias de Jesus Cristo, a duvidosa
moralidade de alguns patriarcas, etc. Trata-se de elementos que os maniqueus de alguma
maneira lhe haviam manifestado para justificar, seguindo uma corrente de inspiração
marcionita, a supressão em bloco de todo o Antigo Testamento. A isto precisamente faz
referência santo Agostinho no sermão 51, ao explicar ao povo as genealogias de Cristo e
como ele ficou consternado por sua leitura quando era jovem. Todo isso seguramente para
animar a seus ouvintes a não ficar na primeira impressão ou na letra da Bíblia, mas saber
descobrir o espírito que pulsa nela e que lhe dá vida: “(…) estas coisas que, agora eu firme na
fé, vos proponho e explico, foram as que me desconcertaram” (s. 51, 6. Cf. P. de Luis), “Não
me pareceu digna de ser comparada com a dignidade de Túlio (conf. 3, 5, 9)”, em Jornadas
Agostinianas. XVI Centenário da conversão de santo Agostinho (Madri, 22-24 abril de 1987),
Valadoli, 1998, 51-52.
25
Posidio, Vita Augustini, 31.
26
Cf. conf. 5, 24 y 6, 3-4.
10
ao acaso no Horto de Milão, tal e como ele mesmo nos narra nas Confissões27, mas
também pelo texto de Jo 1, 1428.
A segunda conversão de santo Agostinho, conforme indicação do Papa Bento
XVI, é à vida pastoral. Esteve motivada e iluminada pelo texto de 2Cor 5, 1529 e
ocorreu no ano 391 após sua ordenação sacerdotal. Finalmente a conversão de santo
Agostinho às realidades da graça, a terceira conversão que apontada por Bento XVI, lhe
foi inspirada pelos textos de 1Cor 4, 7 e Mt 6, 12, como o Santo o expressa claramente
nas Retractationes30.
Deste modo as mudanças e a inquirição minudente de temas que vão se
sucedendo no pensamento e na teologia agostiniana não são senão reflexões e profundo
mergulho na mesma palavra de Deus, uma palavra que era lida e, ao mesmo tempo,
meditada e vivenciada, como alimento cotidiano da alma.
Por isso, em primeiro lugar, santo Agostinho nos recorda que as Sagradas
Escrituras são as cartas que nosso Deus e Pai, que está na Pátria, nos envia para que não
esqueçamos a meta de nosso caminho:
Dali (da Pátria) nosso Pai nos enviou umas cartas. Deus nos proporcionou as
santas Escrituras; com tais cartas renasceu em nós o desejo de retornar, porque
amando nosso exílio, olhávamos de frente nosso inimigo e dávamos as costas à
Pátria31.
Por outro lado, santo Agostinho não deixa de chamar seus ouvintes à leitura das
Sagradas Escrituras, e a adquirir algum volume das mesmas para facilitar sua leitura
atenta e frequente:
27
Cf. Conf. 8, 29.
28
“Só na fé da Igreja encontrou depois a segunda verdade fundamental: o Verbo, o Logos fez-
se carne. (...) À humildade da encarnação de Deus deve corresponder (...) a humildade da
nossa fé, que depõe a soberba pedante e se inclina para pertencer à comunidade do corpo de
Cristo”. Bento XVI, Homilia 22-IV-2007.
29
Idem.
30
“Enquanto isso, compreendi que só um é verdadeiramente perfeito e que as palavras do
Sermão da montanha só se realizaram em um só: Jesus Cristo. Toda a Igreja, ao contrário,
todos nós, incluídos os Apóstolos, devemos orar cada dia: “Perdoai as nossas ofensas como
nós perdoamos aos que nos ofendem”. retr. 1, 19, 1-3.
31
en. Ps. 64, 2.
32
s. Dolbeau 5, 14: “Nossos códices são levados à venda pública: a luz não se ruboriza.
Compra-os, lê-os, crê (…) Fazem passar de mão em mão um códice venal, mas a pessoa a
quem o códice fala não é venal (…) Compra-o para ti e lê o códice”. Cf. s. Dolbeau 26, 20,
531.
11
“Tua oração é um diálogo com Deus. Quando lês as Escrituras, Deus te fala.
Quando oras, tu falas a Deus”34.
“Teu melhor servidor é aquele que não tem sua atenção em ouvir de teus lábios
o que quer, mas em querer, sobretudo, aquilo que ouviu de tua boca”37.
O mesmo santo Agostinho é um vivo exemplo disto, pois não deixou nunca de
buscar a Deus e o cumprimento de sua vontade, nem sequer nos últimos momentos de
sua vida. Assim o manifesta no final da obra De Trinitate, pedindo a Deus força para
continuar buscando-o, para seguir encontrando-o, para seguir convertendo-se a Ele, para
continuar, enfim, reestruturando sua vida:
33
conf. 8, 29.
34
en. Ps. 85, 7.
35
Cf. conf. 7, 16.
36
en. Ps. 37, 14.
37
conf. 10, 37.
12
pois, ao bater. Faz que me lembre de ti, que te compreenda e te ame! Acrescenta em
mim estes dons até minha completa restauração”38.
2.4.2. Oração
Uma segunda ferramenta que ajuda santo Agostinho em seu processo de
reestruturação interior, de conversão e de revitalização é a oração. Santo Agostinho ora
para não esquecer que sua vida, com tudo o que se refere a ela, está nas mãos de Deus.
Ao mesmo tempo ora para recordar que tudo o que é e o que tem provém de Deus: ele
não é senão um mendigo 39, que se põe diante Deus com toda sua pobreza:
38
trin. 15, 51.
39
Cf. en. Ps. 29, 2, 1; s. 56, 9; s. 61, 4.
40
s. 61, 4-6.
41
Cf. s. 350 A, 1.
42
trin. 8, 8, 12.
43
Cf. s. 350, 2.
44
b. uid 21, 26
45
s. 90, 10.
13
oração possibilita que o homem torne seus os sentimentos de Cristo, e contribui para
que Cristo vá se formando nele.
Para santo Agostinho, a oração é antes de tudo um diálogo entre o homem e
Deus, entre Deus e o homem46. Por isso é muito importante aprender a escutar: só com a
escuta atenta, e a partir dela, é possível conhecer e responder prontamente às
solicitações de Deus. Neste sentido santo Agostinho nos convidaria hoje como ontem, a
criar um espaço de silêncio em nosso interior, a voltar ao nosso coração 47, a não ir para
fora, mas a entrar em nosso interior 48 para encontrar-nos com a Verdade, essa Verdade
com maiúscula que é Cristo. E encontrando-nos com a Verdade, com o Mestre
interior49, escutá-lo, e pedir-lhe a graça que nos ajude a cumprir o que Ele nos disser em
nosso interior. Isto é essencial para santo Agostinho.
Por outro lado, santo Agostinho é bem consciente, sobretudo frente a raiz da polêmica
pelagiana, de que o ser humano não se reestrutura nem se revitaliza a si mesmo; é a
graça de Deus que o capacita e o modela segundo os planos de Deus. A Graça não anula
a liberdade, mas torna possível, já que requer a colaboração livre de cada um. Por isso, a
frase que poderíamos denominar “jaculatória agostiniana”, já que se repete umas dez
vezes de maneira direta e indireta dentro de toda a obra agostiniana, e que bem poderia
ser o leitmotiv do processo de reestruturação e revitalização, é a oração que santo
Agostinho faz nas Confissões: “Concede-me o que ordenas e ordena-me o que
queres.”50
A oração tem para o santo Bispo de Hipona uma dimensão comunitária muito
importante. A oração deve reestruturar e revitalizar o coração abrindo-o de uma maneira
nova à dimensão comunitária, rompendo os “ismos” tão próprios da condição humana, e
que tem se acentuado de maneira particular em nosso tempo: os egoísmos, os
protagonismos e os individualismos. Isto é singularmente importante em uma sociedade
ultraindividualista e egoísta como a nossa. A reestruturação do coração deve superar
estes escolhos. O que contemplamos, o que recebemos de Deus na oração, não é para
nós mesmos, é para que o partilhemos com nossos irmãos. E se, verdadeiramente, a
experiência de Deus está reestruturando e revitalizando nosso interior, não nos podemos
reservar o fogo da experiência de Deus somente para nós. O fogo de Deus nos deve
levar a arrastar a todos para o amor de Deus. Se verdadeiramente amamos a Deus,
teremos a preocupação de partilhar essa experiência de Deus com todos. Se não amamos
a Deus, não arrastaremos ninguém, mas, ao contrario, nos deixaremos levar pelas
diversas correntes do mundo contemporâneo. Santo Agostinho, por sua parte,
experimentou a força do amor de tal forma que nos diz: “Se amais a Deus, inflamai no
amor de Deus a todos os que vos estão unidos, e todos que moram em vossa casa”51.
Além disto, é preciso considerar que se a oração é um elemento, uma verdadeira
fonte no processo de reestruturação e revitalização, devem ocorrer em nós vários
46
Cf. en. Ps. 85, 7.
47
Cf. Io. eu. tr. 18, 10.
48
Cf. uera rel. 72.
49
Cf. s. 102, 1.
50
conf. 10, 40.
51
en. Ps. 33, 2, 6.
14
efeitos. Santo Agostinho nos diz que a oração enche de luz o coração de cada pessoa de
fé, o incendeia em Cristo. Sabe que o homem não é luz em si mesmo, é só lâmpada e só
pode iluminar porque recebeu a luz de Deus52: “Reconhece que tu não és luz para ti
(…) Dá pois, e clama o que está escrito: Tu, Senhor, acenderás minha lâmpada”53.
Com esta luz podemos perceber com mais clareza o que Deus quer neste
momento da história, nesta época de mudanças, ou mudanças de época, de cada um de
nós e da Ordem em conjunto.
Em segundo lugar, através da oração, Deus nos faz arder em seu amor. Só a
partir do amor e por amor é possível afrontar os desafios do mundo contemporâneo,
pois a Ordem não é uma multinacional, nem uma companhia comercial. Dá testemunho
de Cristo vivo e ressuscitado e comunica seu amor. Ao arder em amor a Deus, a oração
nos capacita e nos faz mais disponíveis para tudo quanto Deus quer nos pedir. A
iniciativa e o protagonismo sempre pertence a Deus. É Ele quem nos dá suas moções,
nos incendeia no fogo de seu amor, nos ilumina e nos eleva para que experimentemos e
testemunhemos seu amor:
“Para que tu ames a Deus é necessário que Deus more em ti, que seu amor te
venha d’Ele e retorne de ti para Ele; ou seja, que recebas sua moção, ponha em ti seu
fogo, te ilumine e te erga ao seu amor”54
52
Cf. s. 234, 3.
53
s. 67, 8.
54
s. 128, 4.
55
Cf. en. Ps. 148, 5.
56
Cf. ep. Io. tr. 4, 6.
57
Cf. ciu. 14, 28.
58
ciu. 22, 30, 5.
15
2.4.3. A Eucaristia
Outro elemento que serve a santo Agostinho de ferramenta para reestruturar e
revitalizar seu interior, e que o ajuda em sua trajetória rumo a cidade de Deus, são os
sacramentos, particularmente o sacramento da Eucaristia. Por meio dela, o religioso
agostiniano recoleto, como santo Agostinho, se reconhece viandante e peregrino da
Jerusalém celeste, e necessitado de viático, de alimento para o caminho, que não é outro
senão o mesmo pão de Deus.
Embora seja certo que santo Agostinho desenvolve uma rica teologia sobre o
sacramento da Eucaristia, há um tema que ele não esquece ao falar deste sacramento,
particularmente em suas homilias dirigidas aos infantes, isto é, aos que acabavam de
receber o batismo na noite de Páscoa. Este tema não pode ser outro senão o da
comunhão. Quem participa da Eucaristia deve viver em comunhão perfeita com Cristo
Cabeça, a quem recebe substancialmente no sacramento. Não obstante, a ideia de
comunhão em santo Agostinho não termina aqui. Para ele esta primeira comunhão é tão
importante como a que se deve estabelecer entre todos e cada um dos membros do
Corpo de Cristo. Receber a Eucaristia é um compromisso a ser Corpo de Cristo e a
edificar este Corpo de Cristo, sabendo, como diz santo Agostinho, que somos o que
recebemos:
“Vós sois o que recebeis pela graça com a qual haveis sido redimidos”59.
“Senhor, nada sem ti, tudo contigo. Ele pode muito; e nós, sem ele, nada
podemos”61.
59
s. 229ª: Quod accipistis vos estis, gratia qua redempti estis.
60
Cf. s. 227.
61
en. Ps. 30, 2, 1, 4.
16
ou separados, os que buscam à margem de Cristo seus próprios interesses. Todos devem
buscar os interesses de Cristo e unir-se como membros de um mesmo corpo:
“Posto que o que se realiza é um, sede também vós um, amando-vos, guardando
uma só fé, uma só esperança e um amor indivisível”62.
“Não receie a união dos membros, não seja um membro canceroso que mereça
ser cortado, nem membro deslocado de quem se venha a ter vergonha; seja belo, esteja
adaptado, esteja são, esteja unido ao corpo, viva de Deus e para Deus; trabalhe agora
na terra para que depois reine no céu”63.
“Tal é o modelo que nos deu nosso Senhor Jesus Cristo; assim é como quis unir-
nos a sua pessoa e consagrou sobre sua mesa o mistério simbólico da paz e união que
devem reinar entre nós. Quem recebe o mistério de unidade e não tem o vínculo da paz,
não recebe um mistério que lhe seja proveitoso, porém muito mais um sacramento que o
condena”64.
Assim, pois, aqueles membros da comunidade que não se esforçam por criar a
paz, e através da paz, a concórdia e a comunhão entre os membros do corpo de Cristo,
não podem receber o corpo de Cristo. Necessitam empreender um processo, longo ou
curto, de reestruturação interior, que inclua, em primeiro lugar, uma reconciliação com
todos aqueles que são corpo de Cristo, começando pela reconciliação com a própria
pessoa e prosseguindo com a reconciliação com os irmãos, passo indispensável para
poder participar no sacramento do Corpo do Senhor.
Faz falta converter-se em construtores da paz e da concórdia entre as
comunidades, para que possa existir a comunhão fraterna. Não se trataria, portanto, de
ficar no primeiro passo, o da reconciliação, é preciso, para fazer parte do corpo de
Cristo, edificar e construir algo: meu próprio ser, a paz da comunidade, a concórdia
mútua e fraterna, através de meus atos, minhas palavras, minha oração, ou seja, através
de minha ação, ou paixão, positiva a favor dos demais que conformam a comunidade.
62
Ibid.
63
Io. ev. tr. 26, 13-14.
64
s. 272.
17
“Ama e faze o que quiseres. Se te calas, cala-te movido pelo amor; se gritas,
grita por amor; se corriges, corrige com amor; se perdoas, perdoa por amor. No fundo
do coração está a raiz do amor; dessa raiz não pode sair senão o bem!”66.
Por isso, quem quiser viver, deve aproximar-se da fonte da vida que é a
Eucaristia; mas, como dizíamos antes, deve estar disposto a cumprir as três condições
estabelecidas por santo Agostinho. Só assim, verdadeiramente, a reestruturação levará a
uma revitalização:
No processo de reestruturação e de revitalização, como religiosos agostinianos
recoletos deveríamos perguntar-nos como estamos vivendo o sacramento da Eucaristia.
Se este se tornou somente uma rotina e nos convertemos em simples funcionários da
mesma, ou se continua sendo o centro de nossa espiritualidade e da vida própria e
65
Io. eu. tr. 26, 13.
66
ep. Io. tr. 7, 8.
18
comunitária, de tal forma que se chega a sentir uma imperiosa necessidade espiritual de
receber a Eucaristia como fonte essencial de comunhão, de revitalização.
67
Cf. retr. 2, 21, 1; op. mon. 1, 1.
68
De fato santo Agostinho aborda a heresia Mesaliana em seu livro De haeresibus no número
57.
69
Mt 14, 14; Mt 15, 32; Mt 18, 27; Mc 6, 34; Mc 8, 2; Lc 7, 13; Lc 10, 33, etc.
19
uma manifestação da autenticidade de sua própria identidade. Assim lhes diz santo
Agostinho:
“Se são servos de Deus, terão compaixão de mim”. Expressão que indica
principalmente, entre outras, três coisas. Em primeiro lugar, a verdadeira identidade
destes monges. Se estas pessoas não reestruturam seu estilo de vida é falta de
compaixão, é precisamente porque não são servos de Deus, mas uns hipócritas trajando
hábitos de monge. Em segundo lugar, o motivo para reestruturar a própria vida dentro
da comunidade eclesial é a compaixão, quer dizer o amor compassivo, que ante uma
determinada situação ou necessidade, busca fazer algo pelos demais para ajudá-los no
caminho de Deus71. E em terceiro lugar, o motivo fundamental da obediência
agostiniana. Já na Regra santo Agostinho havia falado disto. Os súditos devem obedecer
não como servos sob a lei, mas como filhos sob a graça, e, sobretudo, por amor e
compaixão (miseremini) de quem tem responsabilidade sobre toda a comunidade 72. Por
isso santo Agostinho os exorta a que o obedeçam e reestruturem a vida, para o próprio
bem deles e de toda a comunidade eclesial.
Este exemplo do mosteiro de Cartago que recebe a repreensão agostiniana deve
levar-nos a pensar se neste labor de reestruturação esquecemos seu motor, que é a
compaixão e o amor, e no momento de reestruturar olvidamos o bem da Igreja e suas
necessidades, e optamos por situações cômodas e pessoais, onde possivelmente fica
manifesto, como aponta santo Agostinho, que ao faltar-nos a compaixão não podemos
chamar-nos verdadeiramente servos de Deus. Por isso é necessário revitalizar nossa vida
desde o interior para poder fazê-lo também no exterior.
A obra De opere monachorum nos chamaria, em primeiro lugar, a recordar a
frase evangélica: “Pelos suas obras os conhecereis.” (Mt 7, 20). As obras dos servos de
Deus são as obras que nascem do amor e a compaixão dentro da Igreja, ante as quais
não se pode antepor os próprios interesses, como o recorda santo Agostinho a outros
monges na carta 4873.
Por outra parte em De opere monachorum aparece uma preocupação pela mesma
vida comunitária, tanto dentro do mosteiro como dentro da mesma comunidade eclesial.
Ao faltar o trabalho manual, chega a faltar o sentido de cooperação e colaboração nos
elementos materiais da comunidade. Todo isso pode fazer que se vá perdendo o sentido
de comunidade, e que surja com grande veemência o individualismo, e com ele, os
partidarismos e as divisões. Esta é a reflexão que santo Agostinho faz em suas
70
op. mon. 41.
71
Cf. en. Ps. 51, 4.
72
Cf. reg. 3 3, 7.
73
Cf. ep. 48, 2.
20
79
Cf. ep. 139, 2; ep. 108.
80
Cf. Vita Augustini, 14.
81
«non possum nolle quod uultis, sed possum uelle quod uolo»: s. Caes. eccl. 1.
82
Cf. c. Gaud. 1, 14, 15.
22
nós podemos saber, não quis entrar no processo de reestruturação da Igreja do norte da
África.
Destes casos, podemos concluir que um dos obstáculos no momento de
empreender uma reestruturação e revitalização é a pouca generosidade e o medo de
perder prebendas, poder, privilégios e afetos humanos, em que pessoas, como o
donatista Emérito, se aferram ao que querem, crendo que “podem querer o que querem”,
em lugar de pensar que podem “não querer o que querem para querer o que a Ordem
quer deles”. Em outras palavras, aqueles que se assemelham a Emérito poderiam depor
sua própria teimosia, alimentada possivelmente por estruturas humanas de muitos anos
às quais se aferraram e das quais fizeram depender sua vida, esquecendo que a única
realidade da qual deve depender a vida de um crente e, sobretudo, de um religioso, é
somente Deus.
A reestruturação da vida e do coração exige, em muitos casos, cortar amarras a
afetos humanos e relações afetivas de dependência, para ser verdadeiramente livres e
poder revitalizar nossa vida aferrando-nos a quem é verdadeiramente a Vida: Cristo, o
Senhor, e somente a Ele.
Um segundo e grave problema era apresentado pelo donatismo no momento de
empreender o trabalho de reestruturação eclesial agostiniana: os donatistas se
apresentavam como Igreja nacional da África, em contraposição à Igreja Católica, que
eles acusavam de aliar-se às forças do Império romano. É preciso dizer que esta
acusação, como muitas outras do donatismo, não tinha fundamento. Quem, de fato,
havia apelado continuamente ao Império contra os católicos foram precisamente os
donatistas, como santo Agostinho o afirmará na Conferência de Cartago de 411.
Os donatistas seguiram tendo muita força depois de 411, particularmente nas
regiões onde não se falava latim, mas o púnico, e onde a causa donatista se mesclava
com questões que tinham certos matizes de reivindicação nacional e social. Assim que,
quando santo Agostinho visita o Fundum Spanianum tem que suportar os insultos de um
presbítero radical donatista que o acusava de ser um traidor, isto é, de trair a causa
nacionalista e de servir ao Império83.
Santo Agostinho, em verdade, não se sentia envergonhado de ser africano 84, no
sentido que este termo tinha em sua época, ou seja, cidadão do Império romano nascido
nas províncias africanas, mas não fazia disto um elemento essencial. Seu sentimento era
universal, e o termo ecclesia catholica, Igreja universal aparecerá frequentemente em
suas obras. E se há um homem verdadeiramente aberto à universalidade da Igreja é
Agostinho. Seu epistolário, enriquecido pelas 29 novas cartas de Divjak, são um
mostruário de universalidade e de serviço a toda a Igreja no amplo âmbito de sua época.
Por outro lado é preciso dizer que para santo Agostinho as diferenças culturais dentro de
83
Cf. ep. 35, 4: “Contudo, ao passar eu por Spanianum, me saiu ao encontro um presbítero
donatista dessa cidade, de dentro da propriedade de uma mulher católica e honrada, gritando
atrás de nós com voz impudente que eu era traidor e perseguidor (…)”.
84
“Cita a Mensurio, Ceciliano, Macário, Taurino, Romano e afirma que estes fizeram contra a
Igreja de Deus, o que eu não podia ignorar, posto que sou africano e de idade já avançada”. c.
litt. Pet. 3, 25, 29. Cf. ep. 17, 2.
23
uma comunidade devem enriquecer aos que a constituem, sabendo que os elementos
culturais são elementos secundários e acidentais, e que o mais importante é a unidade,
fruto da caridade.
Outra das lições que nos pode dar a reestruturação agostiniana frente ao
donatismo é o perigo que pode representar o nacionalismo. E ao falar do nacionalismo
nos referimos àqueles casos em que se antepõem os valores acidentais da nação, da
língua ou da própria idiossincrasia, aos valores do Reino dos céus, à caridade; com a
grave consequência da ruptura da unidade. É preciso reestruturar nosso interior
renunciando ao ídolo do nacionalismo e viver como santo Agostinho, com um
sentimento eclesial de verdadeira catolicidade.
Algumas de nossas comunidades hoje dentro da Ordem já são plurinacionais e é
bem possível que este fenômeno se configure cada vez mais no futuro. Por isso, é
preciso aprender de santo Agostinho o exemplo da catolicidade, e saber que há
elementos essenciais que nos unem dentro da comunidade e da Ordem, que são o amor
de Cristo e o carisma agostiniano recoleto, e que cada um dos membros da comunidade
está chamado a enriquecer seus irmãos com os dons e os elementos próprios que Deus
lhe outorga. As características particulares de cada um dos irmãos não devem criar
divisão dentro da comunidade; ao contrário, devem enriquecê-la.
Santo Agostinho em uma passagem das Enarrationes in Psalmos fará uma sátira
dos donatistas, como aqueles que, precisamente por seu nacionalismo, acreditavam ser
os únicos e os melhores. Por isso se assemelham, dirá o Santo, às rãs que estão em um
poço e creem que são as únicas e as melhores de todo o mundo, sem dar-se conta da
pobreza em que vivem. A Sagrada Escritura, prossegue, chama a edificar a Igreja de
Deus por todo o orbe:
e cujos habitantes eram de língua púnica. Santo Agostinho queria evitar que os fieis
desta região, cuja cidade principal era Fusala, retornassem ao donatismo, e para atender
melhor à suas necessidades pastorais decidiu separá-la da diocese de Hipona e colocar
ali um bispo. Certamente esta medida agostiniana pode surpreender-nos se a avaliarmos
com as categorias eclesiais atuais. Contudo, levemos em conta que, no século V e na
época de santo Agostinho, isto era normal. Assim, pois, uma vez tomada a decisão,
santo Agostinho buscou um presbítero que dominasse o púnico e que pudesse
encarregar-se da diocese de Fusala. Uma vez tudo preparado, santo Agostinho, como
era costume em sua época, fez vir, para a consagração episcopal, o bispo Primado da
Numídia, a quem deviam acompanhar outros dois bispos. Quando tudo já estava
preparado para a cerimônia, quem havia sido escolhido, não sabemos por que razão, se
recusou a receber o episcopado86. Ante tal situação, santo Agostinho, pressionado pelas
circunstancias e para evitar que o ancião Primado da Numídia regressasse a sua diocese
sem consagrar a ninguém e o problema de Fusala ficasse sem solução, decidiu que um
jovem leitor do seu mosteiro, falante nativo do púnico e que já havia sido candidato ao
presbiterado, mesmo com apenas vinte anos recém-completados 87, fosse consagrado
bispo de Fusala.
Todos os presentes, baseados no testemunho de santo Agostinho, concordaram
com a consagração episcopal apesar da pouca idade do candidato. Mas as coisas não
saíram como planejara santo Agostinho, pois o jovem, cujo nome era Antonino, uma
vez consagrado bispo e ao ver que todos o respeitavam, começou a comportar-se de
maneira imoral e rapace, rodeando-se de pessoas tão indignas como ele. O mau
comportamento de Antonio e as queixas contínuas dos habitantes da região causaram a
santo Agostinho muitos problemas e sofrimentos 88. A história de Antonino de Fusala é
longa; ficamos com o fato de que santo Agostinho, ante este grave erro, escreveu ao
Papa Celestino I reconhecendo seu desacerto e imprudência e manifesta como pensa
solucionar o equívoco, assim como sua disposição, inclusive, de se demitir do
episcopado por causa do mal que sobreveio ao povo de Deus devido a sua precipitada
decisão89.
Certamente santo Agostinho nunca se demitiu de bispo de Hipona e como tal
morreu. Não obstante, este caso de Antonino de Fusala nos pode iluminar na
reestruturação e revitalização com dois elementos importantes. Em primeiro lugar, santo
Agostinho decide reestruturar sua diocese, movido pelo desejo de oferecer um melhor
atendimento pastoral a seus fiéis, sobretudo por sentir-se incapacitado para levar a cabo
ele mesmo esse trabalho, já que não falava púnico e os moradores de Fusala eram
majoritariamente falantes dessa língua.
86
Cf. ep. 209, 3. A carta 20 diz que o presbítero escolhido “nos abandonou”. Seja qual for a
interpretação que se possa dar a esta frase, a questão é que chegada a hora da ordenação
episcopal não havia candidato para ela.
87
Cf. ep. 20, 4.
88
Cf. ep. 20*, 6-7.
89
Cf. ep. 209, 10.
25
4. Conclusão
A oração com a que santo Agostinho costuma concluir seus sermões nos serve
agora para concluir estas reflexões e pô-las, com nossas vidas e projetos nas mãos de
Deus:
Voltados para o Senhor Deus Pai onipotente, com coração puro e, na medida de
nossa pequenez, damos as mais sinceras graças, suplicando com toda nossa alma sua
singular mansidão, que em sua bondade se digne escutar nossas preces, com seu poder
afaste de todos nossos atos e pensamentos o inimigo, aumente nossa fé, governe nossa
mente, nos conceda pensamentos espirituais e nos conduza à sua bem-aventurança, por
Jesus Cristo seu Filho. Amém90.
– Que podemos fazer para ser mais coerentes como religiosos agostinianos
recoletos? Como podemos assumir o processo de conversão e reestruturação interior
que necessitamos?
90
s. 183, 15.
26
– Como temos que organizar nossas comunidades e províncias para que nosso
testemunho de vida fraterna seja mais significativo?