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Título do artigo: Reflexões para uma história do estado brasileiro sob a ótica da

fiscalidade. Profa. Wilma Peres Costa


Departamento de Política e História Econômica
Instituto de Economia
Unicamp

“Sobre tudo aquilo que somos capazes de refletir sobre


a origem do conhecimento, é óbvio que nós podemos apenas
adquiri-lo por meio da comparação. Aquilo que é
absolutamente incomparável é também inteiramente
incompreensível”. (Buffon)1
“É precisamente esta comparação que completa o
conhecimento de um Estado qualquer. Sem ela, os detalhes
estatísticos mais exatos (...) serão apenas fatos isolados (...)
na ausência de meios para aplicá-los convenientemente a fim
de determinar com exatidão a posição que ele ocupa na série
dos grandes corpos políticos e dos Estados com os quais eles
se relacionam”. 2 (Adrien Balbi)

Como sempre acontece nas efemérides, o bicentenário da transmigração da


corte portuguesa para o Brasil tem suscitado inúmeros debates e revisões sobre o
significado daquele acontecimento histórico. A super exposição de um tema produz às
vezes uma falsa sensação de familiaridade, sensação esta que é necessário conjurar
reafirmando o caráter insólito daquele acontecimento. De fato, não há nada de comum ou
corriqueiro no movimento de uma família real que emigra, acompanhada de sua corte, de
seus papéis de Estado, de sua biblioteca, vale dizer dos signos e instrumentos do poder e do
governo, transferindo-os para o outro lado do oceano. Não foi a menos importante
decorrência desse fato, essa inversão ímpar na história da moderna colonização, que tornou
1
Buffon, in Oeuvres Completes, 1842 III).
2
Adrien Balbi, Essai Statistique sur le Royaumme de Portugal et d’Algarve comparé aux
autres états de l’Europe et suivi d’un coup d’oeil sur l’État actuel des sciences, des lettres
et des beaux-arts parmi les portugais des deux hémisphéres.Paris, Rey et Gravier,
Libraires, 1822, vol. 2, p. 232.

1
um domínio colonial sede da monarquia, com efeitos determinantes para o desdobramento
da crise nos dois continentes e nas duas porções da América de colonização ibérica. 3

Enfatizar o caráter insólito da transmigração da corte é também salutar para


nos ajudar a repensar este processo em seu próprio tempo e em seus desdobramentos, por
mais que saibamos que o alvitre da mudança da corte tenha sido pensado em outros
momentos e conjunturas4. No início do século XIX, quando a territorialidade era já há
muitos séculos um apanágio dos estados monárquicos, desterritorializar a coroa e a corte e,
com a elas, a sede do poder, implicava em repercussões enormes no plano do Império
Português e em todo o contexto europeu e americano. Assim, se é verdade que a fundação
de um Império nos trópicos reverberava também utopias há muito inscritas no imaginário
luso da época moderna, retemperadas com as tinturas da Ilustração, o movimento concreto
que se fez em 1808 era algo de novo e inusitado, um movimento que rompia com a ordem,
que respondia a desafios coevos e abria perspectivas imprevistas para os atores políticos
das duas partes do Império, o Reino e o ultramar americano, unidos e separados pelo rei
ausente.

Na historiografia brasileira, a vinda da corte em 1808 é tema fundamental,


revisitado nas últimas décadas sob novas e diversas dimensões, revisitando um debate que
cristalizou sobre o tema duas visões distintas, a partir de desdobramentos das matrizes
historiográficas estabelecidas por Caio Prado Jr e Sergio Buarque de Hollanda5. Refiro-me
3
A perspectiva do enlace entre a crise do Antigo Regime e a do Antigo Sistema Colonial
teve um tratamento aprofundado em Jacque Godechot, que celebrizou o termo “revolução
atlântica” para sublinhar este enlace. Ver GODECHOT, Jacques, As Revoluções: 1770-
1799. Trad. Port. São Paulo: Pioneira,1976, Europa e América no tempo de Napoleão,
(1800/1815). São Paulo, Ed. Pioneira, 1984. Para um tratamento dos ritmos distintos entre
as duas porções da América Ibérica ver István Jancsó, “A construção dos estados nacionais
na América Latina - apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: José Roberto
do Amaral Lapa; Tamás Szmrecsányi. (Org.). História econômica da Independência e do
Império. 1 ed. São paulo: HUCITEC, 1996, v. 1, p. 3-26. Para uma visão do enlace entre os
dois processos, a partir do Brasil, ver João Paulo Garrido Pimenta, O Brasil e a América
espanhola (1808-1822), Tese de Doutorado FFLCH, USP, 2004.
4
Ver, sobre isso, Maria de Lourdes Vianna Lyra, A utopia do poderoso império - Portugal
e Brasil: bastidores da política: 1798-1822 , RJ, Ed. Sette Letras, 1994.
5
Em Caio Prado Jr., a interpretação que enfatiza a independência o Brasil como revolução
encontra-se principalmente em Evolução Política do Brasil, S. Paulo, Ed. Revista dos
Tribunais, 1933. Para a visão de Sérgio Buarque de Hollanda, ver, principalmente, “A
Herança Colonial – sua desagregação”, In: História geral da civilização brasileira. São

2
às interpretações de Fernando Novais e Maria Odila Silva Dias, fundadores, por sua vez,
de linhagens que animaram a produção historiográfica das décadas seguintes6. Menciono o
debate para recuperar o que parece ser a sua principal linha de força: a polarização que ele
propiciou na interpretação da vinda da corte como, de um lado, momento essencial de
ruptura e, de outro, condição de reiterações e permanências. De fato, para Fernando
Novais, a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808 (e do estabelecimento da
liberdade comercial que teve origem neste momento, com a abertura dos portos) significou
um momento de ruptura crucial com a dimensão econômica da subordinação colonial e um
passo inelutável para a independência política. Esta, conduzida pelos grandes proprietários
territoriais escravistas caracterizou-se como uma revolução, por levar esta classe ao poder,
não obstante o caráter conservador que esta mesma revolução incorporava, ao manter e
aprofundar a escravidão. Em direção diversa, Maria Odila Silva Dias interpretou a
transmigração da Corte Portuguesa sob o signo da continuidade e da permanência de um
mesmo bloco de interesses políticos e econômicos. A presença dos grandes homens de
negócio que controlavam o comércio colonial, as finanças e o tráfico negreiro teria criado
condições especiais para o enraizamento de importantes redes de negócios, estabelecendo
um amálgama de interesses onde se misturavam capitais adventícios e nativos da América,
amálgama que teria imprimido ao processo de independência do Brasil, tinturas nítida e
duradouramente conservadoras.

Precisamente por terem tocado nas linhas de força fundamentais da matéria


histórica é que essas interpretações continuam a fecundar o debate atual. Mudança e
conservação, construção e herança, continuidade e ruptura formam, como sabemos, a carne
e o sangue do ofício do historiador - lutamos sempre contra os mesmos moinhos,
condenados a perguntar sobre o passado no presente e desafiados a buscar compreender o
passado com as categorias filtradas pelo tempo.

Paulo, Difel, 1960, tomo II, “O Brasil monárquico”, pp. 9-39.


6
Ver Carlos Guilherme Mota e Fernando Novais, A independência política do Brasil, SP,
Ed. Moderna, 1986 e “Dimensões da Independência”, in Carlos Guilherme Mota (org.)
1822- Dimensões, S.P., Ed. Perspectiva, 1972, pp. 16-19. Para a posição de Maria Odila
da Silva Dias, o trabalho seminal, hoje clássico, é “A interiorização da metrópole (1808-
1853)”, no mesmo volume, pp. 160-186. Para um tratamento historiográfico, ver Wilma
Peres Costa, “A Independência na historiografia brasileira”, in István Jancsó, A
Independência do Brasil – história e historiografia, SP., Fapesp/Hucitec, 2005, pp.

3
A oportunidade que esse Seminário nos oferece, é assim, preciosa, pois
possibilita tematizar o estado nacional brasileiro como problema historiográfico, o que
supõe, antes de tudo, a ultrapassagem de algumas concepções simplistas e anacronísticas.
Refiro-me, por exemplo, à idéia recorrente de que, ao consolidar um centro político e
propiciar a liberdade comercial, a vinda da corte corresponderia à própria fundação do
estado-nação brasileiro. esmaecendo ou mesmo anulando o processo político da
independência, com todo o seu complexo conteúdo de conflitos.

Dizer isso equivale, antes de tudo, a dizer que o Estado, sendo obra humana, é
dotado de história, mas também importa em admitir aquilo que o hífen articulador do
conceito aquele outro, também de longa e complexa história - a nação, oculta, em sua
aparente simplificação: múltiplas práticas e significações, horizontes de possibilidades e
impossibilidades, realizações, insucessos e guerras, que se desenvolveram a partir de
meados do século XVIII e recobriram os séculos XIX e XX7.

No período que nos interessa mais de perto, aquele que testemunhou a


independências da maior parte das colônias européias na América, (c1760-c1830), a esfera
da nação e as práticas políticas a ele relacionadas passavam por uma sucessão de profundas
metamorfoses. Como estas repercutiram simultânea e reversivamente nos dois mundos,
vale apontar algumas de suas dimensões principais.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar aquela transformação fundamental, balizada


pela Revolução Francesa e pelos efeitos que ela provocou nas relações entre os entes
políticos, demarcou a diferença entre uma concepção “antiga” e uma concepção
“moderna” de nação, como sintetizou paradigmaticamente François Xavier Guerra:

“A primeira (concepção) referia-se às comunidades políticas do Antigo


Regime, diversas e heterogêneas, resultado de uma longa existência em comum de um
grupo humano e da elaboração por parte das elites e do Estado de uma história e de um
7
Pontos nodais desse debate são Ernest Gellner, Nações e nacionalismo. Lisboa,
Gradiva, 1983; Eric J. Hobsbawm, Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito,
realidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990; Adrian Hastings, The Construction of
Nationhood. Ethnicity, Religion and Nationalism. Cambridge, Cambridge University
Press, 1997; Anthony D. Smith, Myths and Memories of the Nation. New Yord, Oxford,
1999 e Benedict Anderson, Nação e consciência nacional, São Paulo, Ática, 1989.

4
imaginário próprios. A nação no sentido antigo remete ao passado, à história – real ou
mítica – de um grupo humano que se sente uno e diferente dos outros. A segunda, a nação
moderna, refere-se a uma comunidade nova, fundada na associação livre dos habitantes de
um país; esta nação é já essencialmente soberana, e para seus forjadores se identifica
necessariamente com a liberdade. Enquanto que a primeira olha para o passado, a segunda
olha para o futuro: uma é a constatação de um fato histórico ; a outra, um projeto” 8

Seria enganoso, olhando para o desenvolvimento da “questão nacional” no


século XIX, interpretar essa distinção entre a “nação-fato histórico” e a “nação-projeto”
como se ela descrevesse um jogo de soma zero, a forma “nova” substituindo e superando a
forma “antiga”. Ao contrário, na montante reacionária que marcou o século e nas
sucessivas derrotas sofridas (1848; 1871) pelas forças que propugnavam uma visão mais
includente da política, a “nação” entendida como comunidade fundada nas identidades
étnicas, religiosas e culturais (reais ou míticas) ganhou novo alento, crescendo em apelo ao
longo do século. Na verdade, essas concepções rivais irão conviver durante todo o século
XIX, combinando-se em possibilidades multiplas nos antigos e novos Estados Nações .

No que se refere à uma dimensão intrínseca a idéia de nação, a sua soberania


frente as outras nações, o Congresso de Viena (1815) trouxe uma outra inovação
fundamental: a idéia de uma hierarquia de nações, pois nascia ali, na legitimidade atribuída
às entidades políticas hegemônicas para decidirem sobre o destino do Império Napoleônico,
o conceito de potência. Utilizado primeiro no plano das relações intra-européias, a idéia
ganharia novos contornos no trato das novas realidades políticas que emergiam a partir do
processo de implosão do sistema colonial ibérico e da pretensão das novas unidades
políticas, a pertencerem ao concerto das nações. Esse fenômeno, é bom lembrar, transcorre
em plena montante conservadora da política européia, na qual a França, busca recuperar
seu espaço no concerto europeu em acerba rivalidade com a Inglaterra .

Falando a partir da França, pátria de origem da idéia nacional contemporânea,


Ivan Todorov aponta para uma segunda metamorfose na idéia de Nação: a nação, pensada
do ponto de vista identitário transita de seu sentido inclusivo para adquirir uma dimensão

8
Guerra, François-Xavier. Modernidad e Independencias, Mexico: Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 319

5
excludente, onde a diferença torna-se tão ou mais capaz de promover identidade quanto a
semelhança. Esse deslizamento, diz o autor, permite distinguir entre dois significados
políticos da palavra nação, um “ interno” e outro “externo”, balizados também pela
Revolução Francesa. No primeiro sentido,

“(...) nação é um espaço de legitimação e se opõe, enquanto fonte de poder, ao


direito real ou divino; empreendem-se ações em nome da nação, no lugar de se referir a
Deus ou ao rei; grita-se ‘Viva a nação’ no lugar de dizer ‘Viva o rei’. Este espaço é, desse
modo, percebido, como espaço da igualdade (...) recorre-se à ‘nação’ para combater os
privilégios sociais ou os particularismos regionais. O segundo sentido, o sentido ‘ externo’
da palavra ‘nação’, é completamente diferente : uma nação se opõe a uma outra nação, e
não mais ao rei, à aristocracia ou às regiões; os franceses são uma nação, os ingleses são
outra. 9

A partir de 1815, quando se iniciou a “Era dos Congressos” (1815-1822), a


idéia nacional no sentido trazido pela Revolução Francesa entraria em aberto confronto
com a política reacionária da Santa Aliança, indicando que o contexto mundial pós 1815,
não era certamente um território de igualdades, mas de acerbas e conflituosas hierarquias.
Garantir o estatuto de estado-naçao, ou adquiri-lo (como era o caso das lutas de
independência que grassavam na América), deixava de ser um processo interno aos
Impérios. Ele era um processo balizado por um sistema de “potências”, que coordenava e
comandava o reconhecimento internacional das nações. A complexidade desse contexto
informava transformações societárias de grande monta, que transformavam
transversalmente a vida dos homens, modificando-lhes a percepção de si, do tempo, da
memória e do agir coletivo.

Corolário dessas metamorfoses desenvolve-se a busca generalizada de


contagens e classificações, que migrava do campo das ciências naturais para o mundo
social e para as unidades políticas. Este movimento era impulsionado pelas viagens de
cientistas e letrados (esses “vencidos da revolução”, na feliz expressão de Reinhard
Koselleck) 10, produtores de instrumentos de observação e classificação, propagadores das
9
Tzvetan Todorov. Nous et les autres, La réflexion française sur la diversité humaine. Paris : Seuil, 1989,
p. 241.
10
Ver Reinhardt Koselleck, L’Experience de l’Histoire, Paris, Gallimard Le Seuil, 1997,

6
informações sobre as transformações políticas que demarcavam a crise sistêmica, auditores
“avant la lettre”, das viabilidades das novas unidades políticas, da sua capacidade de gestar
sistemas políticos estáveis, de pagar suas crescentes dívidas externas, de serem dignos
rebentos da semente européia. Do mundo natural à experiência do tempo e à constituição
de um novo regime de historicidade, passa-se do “tempo dos paralelos” ao “tempo das
comparações” 11.

As citações que encabeçam este texto procuram chamar a atenção para a


importância das classificações, hierarquias comparações para o espírito científico que
caracterizou o iluminismo europeu e se desenvolveu ao longo do século XIX nas ciências
puras e aplicadas. Um dos marcos desse fenômeno encontra-se nas obras Philosophia
Botânica (1751) Species Plantarum (1753) em que Lineu consolidaria os princípios
estabelecidas em seu Sistema da Natureza, publicado em 1735, estabelecendo um marco
fundamental para o impulso classificatório que se apoderou, a partir daí, dos diferentes
ramos da ciência européia. Essas obras ampliavam as possibilidades de um sistema
classificatório que, tendo sido criado a partir da botânica, poderia agora estender-se aos
reinos vegetal, animal e mineral, possibilitando nomear e distinguir qualquer manifestação
desses domínios da natureza, em qualquer parte do planeta. No plano das coisas humanas e
das organizações políticas, o mapeamento do globo, o estabelecimento de sistemas
uniformes de pesos e medidas e, acima de tudo, o desenvolvimento das ferramentas
estatísticas iria expressar de forma contundente esta febre classificatória, que viria se por ao
serviço das grandes transformações na vida das sociedades e na organização dos estados
trazida pela era das revoluções. O progresso da estatística e sua utilização como
instrumento de governo expressa esse afã de pesar, medir e conhecer que animava o
movimento de capilaridade do Estado sobre a dinâmica da vida social tão característico dos
momentos mais fervidos da Revolução Francesa. Em 1792 o governo revolucionário da
França encomenda uma vasta enquête sobre o país, composta de 123 rubricas que deveriam
recobrir todas as esferas da vida econômica e social. Dados sobre população, mortalidade,
natalidade, salubridade, produção agrícola e manufaturas, sobre o estado da infraestrutura,

p.239.
11
François Hartog, Régimes d’historicité – présentisme et expériene du temps, Paris, Seuil,
2003.

7
consolidando informações obtidas no nível local e regional, deveriam fluir para o poder
central, vazados nos novos pesos e medidas recém estabelecidos. Ecoando o espírito da
época Volney fazia publicar em 1797 o seu Questions de statistique à l’usage dês
voyageurs, onde indicava como aproveitar-se de um deslocamento para desenhar quadros
que permitiam ter uma visão analítica das especificidades de uma região. A possibilidade
de manejar tabelas e construir sistemas simples de comparação incorporava-se à bagagem
dos viajantes e inseria uma nova legitimidade a seus relatos. No plano do Estado, apesar da
grande hostilidade inicial as estatísticas tinham vindo para ficar. Os resultados começaram
a surgir em 1803, com a publicaçäo da Statistique générale et particulière de la France et
de sés colonies, avec um nouvelle description topographique, physique, agricole, politique,
industrielle et commerciale de cet état.em seis volumes, onde Membros do Institut e
acadêmicos de todo o país haviam tido ativa participação12

A reorganização européia a partir do Congresso de Viena seria ávida desses


sistemas de informação comparados e comparáveis, capazes de localizar e hierarquizar as
nações, como aquele grande Atlas de dados estatísticos mundiais, do qual fez parte Adrien
Balbi, ele mesmo autor do primeiro extenso quadro de informações sobre Portugal posto à
disposição do público europeu. O trabalho de Balbi, publicado em 1822 e refletindo com
intensa simpatia a obra modernizadora das Cortes, buscava recuperar Portugal da posição
de marginalidade que este vinha ocupando no contexto europeu, fundado, segundo o autor,
na ignorância dos europeus sobre a língua portuguesa e nos longos anos de obscurantismo
que haviam mantido o sistema político português preso aos fundamentos arcaicos que
faziam da ocultação dos dados e do segredo uma ferramenta de manutenção do poder.

Os novos tempos, tempos de governo representativo, faziam exigência de que


os governos passassem a compreender que a publicidade (e não mais o segredo) eram agora
ferramentas fundamentais da ordem pública. Os governantes deveriam dar conta de seus
atos aos organismos representativos e ä opinião pública. As nações passavam a se comparar
e a medir mutuamente seus recursos. A ocultação não garantia mais a segurança antes
punha em risco a legitimidade e a soberania.

No contexto intra-europeu, comparar era assim indispensável para determinar a

12
Ver Pierre Rosanvallon. L’Ètat en France de 1789 à nos jours, Paris, Seuil, 1992, cap. 3

8
posição relativa De todos os modos, avaliando o estado portugues no momento da
revolucao do Porto Adrien Balbi considerava que os segredos internos da governanca
portuguesa estavam sendo, apenas em 1820, trazidos ‘a luz. ‘

«  Tudo aquilo que se relaciona com as finanças de Portugal sempre esteve


envolvido no maior dos mistérios.O segredo que era considerado por muitos governos do
século passado como o palladium de seus recursos e de suas forças era guardado tão
escrupulosamente em Portugal que ninguém poderia conhecer o montante de rendas desse
reúno, onde a divulgação dos documntos relativos a esse objeto era considerado como
crime de estado e punido como tal. O grande Pombal ele mesmo não esteve isento desses
preconceitos, e, quando ele sistematizava o caos das finanças, concentrando todos os seus
ramos em um só tesouro, ele as repartiu em quatro contadorias (seções).Apenas quatro
pessoas no reino podiam conhecer o balanço geral: o rei, o Marques de Pombal o escrivão
(o contralador geral) e o tesoureiro mor. Esse sistema de segredo, que serve apenas para
encobrir as fraudes, para introduzir, multiplicar e perpetuar os abusos, para inspirar a
desconfiança do público e a subtrair todo crédito do governo, esse sistema de segredo foi
em grande parte a fonte do desperdício e da desordem que se introduziram nas finanças d
do reino, que se encontram no maior estado de deterioração..” 13
Enquanto essa pressão ocorria no Reino, a abertura do até então fechado
sistema colonial ibérico às viagens de naturalistas (e em breve de comerciantes) oferecia
um novo campo para o exercício das comparações e classificações, bafejado pelas
possibilidades crescentes da autonomia política dessas regiões. Dos sistemas do mundo
natural, às raças e às instituições, as viagens fariam da Américas um campo privilegiado do
exercício classirficatório e comparativo, nesse processo de transição do segredo para a
publicidade característica da crise do Antigo Regime. O papel destacado de jornalistas e
viajantes a ver não apenas com as transformações internas dos Estados (a formação de uma
esfera de opinião pública e a instalação de formas de governo representativo, envolvendo
prestações de contas dos governantes aos representantes da nação), mas também, com o
estabelecimento de um sistema internacional de Estado com voláteis relações internas de
poder. Aqui também viajantes letrados foram fundamentais, como vetores de um
verdadeiro sistema de auditorias pelas quais o Velho Mundo julga as transformações que
ocorrem no Novo Mundo e suas possibilidades de legitimação. Portadores e artífices dos
novos modos de ver são também os jornalistas, publicistas e tribunos, personagens típicas
deste novo tempo. Panfletos e jornais nascem e ampliam sua esfera de circulação, junto
com o crescimento de um público de leitores pagantes, capazes de propiciar uma carreira

13
Adrien Balbi, op. cit. pp. 502-503

9
(complementar ou mesmo exclusiva) ao homem de letras. O relato de viagem ganha, com
isso múltiplos destinos, tornando-se relatório oficial, memória publicada em livro, artigo
em jornais e revistas especializadas. O campo formado por este novo universo letrado faz
convergir destinos de viajantes ilustrados, jornalistas e políticos, figuras chave no exercício
comparativo em que se porfiam antigas e novas nações.

Todas essas dimensões são essenciais para pensar o escopo necessariamente


“conectado” da uma História do Estado digna desse nome, pois, em sua convergência com
o conceito de nação, este passaria por processos de extrema complexidade, que
transformariam intimamente sua natureza e que ganhariam contornos específicos em cada
configuração histórica particular.

Nesse momento, como em muitos outros, é fundamental revisitar a contribuição


seminal oferecida por Joseph Schumpeter, para a História do Estado, desta feita,
estabelecendo uma fronteira viva e fecunda entre a História, a Economia e a Sociologia.
Parte daí uma perspectiva que estabelecendo bases estimulantes para explorar as sinergias
entre as pulsões extrativas do Estado, as resistências e conflitos no plano societário e a
construção tanto das instituições coercitivas como daquelas que virão a se consolidar nas
democracias representativas modernas. Isso porque, a partir dele, o Estado pode ser visto
como resultante de um permanente processo de construção14.

“A história fiscal de um povo é (...) uma parte essencial de sua história geral. O
sangramento econômico gerado pelas necessidades do Estado e o uso que dele se faz
produz uma enorme influência enorme sobre o destino das nações. Em alguns períodos
históricos, a imediata influência formativa das necessidades fiscais e da política fiscal do
Estado no desenvolvimento da economia ( e, a partir daí, em todas as formas da vida e
todos os aspectos da cultura) explica praticamente todas as principais características dos
eventos. Na maior parte dos períodos, ela explica a maior parte delas e há muito poucos
períodos em que ela nada explica”.15

E, mais adiante,

14
Cf. Tlly, Charles, The Formation.... e, mais recentemente, Win Blockmans and Jean-Philippe Genet, The Origins of
the Modern State in Europe, 13rh-18 th centuries, Oxford University Press, 1998, em especial Richard Booney (ed.)
The Rise of the Fiscal State in Europe (c.1200-1815) e Economic Systems and State Finance.
15
Joseph Shumpeter, “The crisis of the tax state”, pp. 6-7

10
“Mais importante do que tudo é a visão propiciada pelos eventos da história fiscal sobre
as leis da sociedade e sua transformação e sobre as forças motoras do destino das nações,
bem como sobre a maneira pela qual as condições concretas (e, em particular as formas
organizacionais) crescem e se transformam. As finanças públicas são um dos melhores
pontos de partida para a investigação da sociedade, especialmente (embora não
exclusivamente) de sua vida política. A fecundidade mais plena dessa abordagem é vista
particularmente naqueles pontos de viragem, (...) ou épocas de mudança, durante os quais
as formas existentes começam a morrer e a mudar para alguma coisa nova, o que sempre
envolve uma crise dos antigos métodos fiscais”.16

No caso Europeu, pensava ele, o processo descrevia uma trajetória que partia, na
Idade Média, da situação em que o príncipe, como os outros senhores feudais, vivia de seus
próprios recursos, para aquela, configuradora do Estado Moderno em que este ganhava a
capacidade de lançar impostos sobre o conjunto do território e de seus súditos. Essa
passagem é crucial, pois envolveu a transformação da suserania na soberania, a construção
da territorialidade do Estado e, sobretudo, a constituição de uma esfera “pública” por
oposição à esfera “privada”.
Os organismos representativos e sua função de controle sobre os orçamentos e as
finanças públicas são filhos desse processo que nem sempre foi pacífico, mas que, longe de
reduzir a eficiência do Estado, aumentou sua capilaridade e poder.

A utilidade heurística da polaridade assim estabelecida entre dois “tipos” de


Estado não é a de descrever qualquer Estado histórico particular, mas a de chamar a
atenção para um processo da maior relevância – as finanças do Estado, a dinâmica que elas
são capazes de produzir sobre a Economia e a Sociedade, dependeram, em grande parte, da
forma pela qual os múltiplos Estados que emergiram, na Europa, a partir da crise do
feudalismo, lidaram com as necessidades financeiras envolvidas na definição do território,
da centralização política, e na consolidação da soberania.

Uma das diferenças mais importantes é a forma como aquelas Monarquias


empregaram o “domínio” real para financiar seus desígnios e em que medida eles

16
Joseph Shumpeter, Joseph Shumpeter, “The crisis of the tax state”, in International Economic
Papers, n.4, N.Y., MacMillan, 1954, p.7. Para uma síntese do estado atual da discussão ver
Win Blockmans and Jean-Philippe Genet, The Origins of the Modern State in Europe,
13rh-18th centuries, Oxford University Press, 1998, especialmente os volumes The Rise of
the Fiscal State in Europe (c.1200-1815) e Economic Systems and State Finance, ambos
coordenados pelo historiador inglês Richard Bonney.

11
conseguiram transformar a administração do “domínio” de maneira a fazê-la suportar as
necessidades crescentes da expansão e diversificação das funções estatais. A exploração
dessa ferramenta metodológica para pensar a especificidade do domínio colonial, e o modo
como, a transformação do legado colonial, na construção do Estado nacional, depois da
Independência, incorpora (ou não) o controle sobre o que era até então esfera da Coroa. O
controle sobre as terras públicas, a relação com a Igreja, a legitimidade de impor impostos
e taxas herdadas do período colonial, é uma dimensão dessa discussão. Outra, não menos
importante, é a “cultura” fiscal consolidada no processo de colonização, produtora de
valores e representações sobre a esfera do poder travejada de peculiaridades que a pesquisa
empírica cuidadosa deve desvendar.

A tarefa impõe, em primeiro lugar, como nos sugeriu de forma fecunda o


historiador Pierre Rosanvallon, a desnaturalizaçao do Estado , a ultrapassagem da noção de
que “seu desenvolvimento (do Estado) seja apenas a mera reprodução, em escala cada vez
maior, de uma figura que fora formada na origem17.

Em decorrência, supõe tratar como “coisa não sabida”, a construção dos


mecanismos que conectam de um lado, as pulsões extrativas do estado, e as resistências e
conflitos que elas geram. Vale dizer, podemos ganhar muito no conhecimento das relações
que se estabelecem entre o Estado e as distintas esferas do social - de corpos organizados,
de classes, de regiões, de esferas privadas, quando nos perguntamos sobre os mecanismos
de extração, e sobre os modos de sua operação. Vale dizer também que, quando nos
perguntamos sobre taxas e impostos, devemos incorporar nesse estudo contratadores e
coletores, devemos pergunrarmo-nos sobre a origem e a história dos registros e sobre a
elaboração dos censos, tanto em suas realizações como em seus fracassos 18. Em outras
palavras, colocarmos vomo objeto historiográfico, esse movimento do Estado para o
desvendamento da vida social (da qual ele é, ao mesmo tempo, o “instituidor”).

Definido, de forma lapidar essa tarefa, afirma Rosanvallon que a enquete


social em suas diversas formas, é,de inicio,

“um meio de produzir a visibilidade, de dissipar para o Estado a opacidade do


17
Pierre Rosanvallon, op. cit., pp.9-10
18
Estimulante realização nesse sentido é Nelson Senra, História das Estatísticas
Brasileiras (1822-1889), vol. I As Estatísticas Desejadas, RJ, IBGE, 2006

12
social, de desvelar o que é subterrâneo, soterrado, escondido nos recônditos mais íntimos
da sociedade. Fazendo essas enquetes, o Estado reconhece implicitamente que a sociedade
permanece estrangeira para ele, e que ele se coloca diante dela como um viajante em um
país desconhecido. No século XVIIII, foram os relatos de viagens externas que apaixonam
a opinião e mobilizam os melhores observadores. Depois de ter visitado o Egito e a Syria
que Volney publica a primeira enquete verdadeiramente cientifica, levada a efeito a partir
de um questionário sistemático. A tradição da viagem prossegue, assim, mas ela muda de
objeto, são as viagens interiores que se sente necessidade de efetuar. Como se houvesse
alguma coisa de estrangeira no seio mesmo do país que se governa, O medo das classes
perigosas, o temor de uma nova irrupção dos bárbaros das profundezas do social,se
conjugam para fazer da enquete social um dos pivôs to novo tipo de governabilidade que
em processo de elaboração.”19(grifo nosso)
Reversivamente, a pressão pela transparência e pela publicidade, opera também
a partir dos corpos representativos (e progressivamente, da imprensa e de outras instancias
fruto do alargamento da esfera pública) para com o segredo dos gabinetes. A confecção e
controle dos orçamentos é seu campo estratégico, estendendo-se, em decorrência sobre os
financiamentos da força armada e sobre os próprios recrutamentos. Metamorfose capital
que se opera no conteúdo como na forma impondo que nos debrucemos sobre a
transformação operada na escrita dos homens de Estado, expressa nas profundas diferenças
entre a escrita de memórias ao rei e a escrita de Relatórios que serão (ou não) aprovados
por corpos legislativos, que também aprovarão impostos, mapas de recrutamento e
orçamentos.

Algumas trilhas de pesquisa

A construção do Estado Nacional, como é sabido, se processou de modo


particular no mundo luso brasileiro e se desdobrou na reinvenção da monarquia nos
trópicos, constitucional e representativa, desenhando as bases do estado nacional entre 1824
e 1826, quando aqui se instalou a primeira legislatura. Ela teve sua primeira grande crise
poucos anos depois – em uma revolução que tinha um dos seus vetores no plano da
governança e outro nos motins de “povo e tropa” que exigiam a abdicação de D. Pedro I.
Essa periodização recorta um outro momento que, atravessando a década regencial e
atingindo seu ápice em 1850,construiu as instituições fiscais mais importantes do Estado
Imperial e definiu as competências e relações entre as centro político e províncias.
19
Idem, p.44

13
Levando em conta essa periodização, e atendo-me aos propósitos limitados que
aqui se colocam, gostaria de apresentar o que considero ser algumas sendas a serem
trilhadas para um programa de pesquisa focado na História do Estado.

Em primeiro lugar, penso que se impõe, a partir da referida “desnaturalizacao”


(e como corolário dela), pensar as periodizações, rendendo-nos ao amalgama inevitável de
continuidades e rupturas que caracterizam a matéria histórica, para o que, é preciso que
pensemos continuidades e rupturas como “problemas” de investigação e não como “dados”.

Em segundo lugar, considero essencial atender para as sinergias e conflitos que


opõem “partes” a distintas possibilidades de unidade política includente – Império,
províncias de um Império/nação constitucional, províncias de um império brasileiro,
confederações, repúblicas imaginadas. Ou seja, perceber como se colocam essas peças que
poderiam ter se constituído em distintos mosaicos, mas que tomaram a forma particular e
hitórica que conhecemos, cujos mecanismos operativos devemos buscar elucidar.

Por outro lado, um programa de pesquisa sobre a história do estado impõe levar
em conta as dinâmicas frequentemente erráticas de uma crise que trazia para o proscênio
da vida pública, a convergência problemática da esfera do estado e da esfera da nação.
Falo principalmente da emergência de sistemas representativos e da propagação de uma
esfera pública distinta do espaço privado dos indivíduos e do território protegido dos
gabinetes e dos conselhos do rei. Ou seja, é preciso explorar os modos como se processou
entre nós a pressão para a publicização do poder e seu corolário (a penetração da opacidade
do social pelo olhar do Estado).

Deve-se ainda ter em conta que as instituições e práticas políticas engendradas


no passado colonial, legado de lenta desagregação, como mostrou o mestre Sérgio Buarque
de Holanda, foram o terreno de uma construção estatal original, marcada por um amálgama
de construção, herança, e reinvenção, Dizer isso equivale a dizer que o Estado que aqui se
construiu no século XIX não pode ser “deduzido” das instituições criadas no passado
colonial, nem é tampouco um transplante do aparelho estatal metropolitano, que pudesse
ser trazido na bagagem da corte, ou uma resultante passiva de um processo de
independência negociado sob a égide da monarquia. O que não significa ignorar que as
sinergias com instituições longamente consolidadas, a experiência de sediar a governança

14
do Império durante o momento mais agudo da crise do Antigo Regime e a viabilização de
uma solução monárquica não sejam pontos de referência relevantes para compreender a
emergência desse estado e sua configuração peculiar.

Focalizando outro ponto que aqui nos interessa por ser essencial para a
percepção das receitas públicas, devemos explorar os esforços, sucessos e fracassoa da
Coroa Portuguesa em proceder um sistema proprio de contagens e medicoes sobre os
negocios do reino, valeria ressalta alguns aspectos principais :

O mais importante deles refere-se ao modo como todo o processo de


colonizacao (e a fiscalidade que a ele correspondia, como um dos seus pilares mais
importantes), importava em uma associacao peculiar entre a Coroa, a Igreja Catolica e as
classes mercantis, dando uma conformacao peculiar ao que se poderia considerar o
^dominio regio, na verdade, uma forma de condominio partilhada entre essas tres esferas.

Isso parecia a D. Rodrigo um dos grandes impecilhos a racionalizacao da


administracao dos dominios, nas judiciosas memorias que escreveu no final do seculo
XVIII. Os contratos privados para arrecadacao dos impostos eram o principal entrave a um
sistema eficaz de arrecdacao e era visto mesmo como portador de um perigoso potencial de
conflitos.

“(A coleta da renda colonial é) improdutiva e morosa, não só porque


recaindo desigualmente sobre as primeiras fontes da riqueza nacional impede que a
mesma se aumente e prospere, e fica muito diminuta, mas porque é depois arrecadada por
contratadores que deixam ficar na sua mão a maior parte da renda que cobram e que sai
mais pesada ao Povo pelas muitas vexações que lhe fazem sofrer sem serem mais exatos
nos pagamentos a fazenda real, como prova o que desgraçadamente se experimentou em
Minas Gerais”.20

O dizimo, principal rubrica fiscal da colônia, durante a maior parte do período


colonial expressava bem esse condomínio, transferindo para a Coroa uma renda de origem
eclesiástica, e fazendo de sua coleta (através de contratadores privados – o celebres

20
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua
Majestade na América” (1797 ou 1798). Usamos aqui a versão publicada em Andrée
Mansuy Diniz Silva (dir.), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos Políticos, Econômicos e
Financeiros (1783-1811), Lisboa, Ed. Banco de Portugal, 1993, pp. 47-66.

15
dizimeiros) uma das mais importantes fontes de enriquecimento privado a partir da
adminsitracao colonial.

De outra parte, e impossivel exagerar o poder da Igreja, tanto como detentora


de fortuna fundiãria de enorme valor, como tambem na qualidade de monopolizadora de
m dos mais estrategicos meios de controle da populacao : os registros sobre nascimentos e
obitos, casamentos, e sobre parte consideravel da linha que separava a liberdade da
escravidao, por uma miriade de possibilidades de alforrias prometidas aos individuos ou
aos seus descendentes. A ausencia do registro civil durante todo o antigo regime,
avancando pelo primeiro seculo da vida do brasil independente ‘e dos temas mais
fundamentais para a compreensao da especificidade das relacoes entre o estado e a
sociedade na america portuguesa (e posteriormente no Brasil independente).Essa relação
podia se conduzir através de uma convergência de interesses e por mutua colaboração. Tal
parece ser o caso do mais notável esforço de contagem levado a efeito a partir da segunda
metade do século XVIII, as listas nominativas. Especialmente eficazes na província de S.
Paulo, e originadas pelo interesse em racionalizar o recrutamento para as guerras do sul. As
listas nominativas foram produzidas entre 1765 (restauração da capitania) e perduraram até
183021. Párocos e militares eram agentes recenseadores, respondendo, em parte, pela
continuidade do trabalho de contagem. Por outro lado, quando os interesses eram
conflitantes, a relação podia se traduzir na mais densa opacidade e em surda resistência.
Sabe-se, por exemplo, em outros esforços de contagem populacional, dos casos de párocos
que aconselhavam os fieis a não responder as enquetes promovidas pelo governo civil, pois
temia-se as contagens populacionais que pudessem conduzir ao desmembramento de
paróquias e freguesias.

De qualquer modo, não é dado de pouca monta para a consideração dos


historiadores, que a Igreja tenha mantido o controle sobre os registros dos fatos mais
fundamentais da vida da população, durante todo o período imperial, tendo falhado de
forma exemplar a tentativa de instituir o Censo e o Registro civil em meados do século
XIX. A desistência dos poderes públicos naquele momento, em razão da revolta conhecida
como Guerra dos Marimbondos, fez com que o tema só viesse a ser retomado após a
21
Ver Maria Luiza Marcílio, Crescimento Demográfico e evolução agrária paulista 1700-
1836, SP. Hucitec/Edusp, 200, pp. 29-43

16
República, e após a separação entre a Igreja e o Estado.

Por último, cabe aqui enfatizar aquilo que parece ser a mais importante
especificidade do processo de construçao do Estado Nacional no Brasil : a reiteraçao da
escravidao como desideratum unificador das elites que conduziram o processo de
Independência e a opacidade que esta decisão impunha sobre a relaçao entre o Estado e a
sociedade. Importante em si mesma, como forma específica de privatismo que resiste ao
olhar e ao controle do Estado, a relação escravista veio a ganhar uma dimensão bem mais
complexa depois de 1831, quando o tráfico se tornou, pela fé do tratado com a Inglaterra,
ilegal. Que a prática dessa ilegalidade tenha se mantido ao longo do período que foi
também o período crucial para o engendramento e configuração das instituições fiscais do
Estado, talvez seja o enquadramento necessário para nuançar, repensar e melhor
compreender aquelas instituições em sua eficácia e na função social e política, às vezes
pouco evidente, de sua inoperância.

De qualquer modo, é pouco provável que seja uma coincidência de datas o fato
de que, interrompida em 1831, a verdadeira « era censitária » brasileira só venha realmente
a re começar em 1872, quando a estratégia da emancipação gradual estava já estabelecida.

Dessa forma, poderemos empreender a construção do Estado enquanto um


processo com dinâmica própria e com dimensões “universais” (a formação do centro
político, a construção do território e da soberania sobre ele, a monopolização da violência e
a constituição de finanças públicas) que não se reduzem aos interesses políticos que se
organizava em torno do aparelho administrativo patrimonial do Brasil Colônia, do Brasil
Reino e do Primeiro Reinado e que fizeram da continuidade a expressão de seus interesses
econômicos e políticos.

Podemos, ao mesmo tempo perceber que essa opacidade, longe de desanimar os


pesquisadores, deve ser encarada como um estimulante campo de pesquisa, em si mesmo.
O estudo das coisas que não aconteceram, pode ser assim o primeiro passo para o
desvendamento da alma do estado brasileiro, onde os dados são lacunares e as fontes
incompletas.

Retomando a periodizaçao que este evento nos propõe (os 200 anos) vale
ressaltar que para a América Portuguesa, a chegada do rei e da sua corte, seguida de

17
sucessivas visitas de viajantes estrangeiros que sobre ela deixaram seus relatos, faz parte de
um complexo processo de construçao de imaginários e de olhares entrecruzados, afirmando
algo em direçao oposta aquela com a qual abrimos este texto, quando ressaltamos o caráter
insólito da vinda da corte, para para chamar a atençao algo que ele partilha com os grandes
movimentos de seu tempo, inserindo-a nesses grandes deslocamentos humanos tangidos
pela revoluçao, pelas guerras revolucionárias, e depois, pelos ódios encarniçados que
acompanharam a derrota napoleonica e o esforço de restauraçao da antiga ordem, vale
dizer, uma sucessão de diásporas, em grande abrangencia geográfica e em curto espaço de
pouco mais de uma geraçao.

Pensar a vinda da corte do ponto de vista da viagem, do depaysement, em toda


a sua potencialidade de renovaçao de perspectivas e de produçao de identidades/alteridades
aparece, assim, como possibilidade sedutora capaz de ajudar a ultrapassar a oposição falsa
entre continuidade e ruptura nessa quadra histórica, por que elas nos lembra que a açao
humana nessas situações turbulentas é sempre entretecidade das experiências do passado e
de expectativas de futuro que são, sempre, parcialmente informadas pelo passado, mas que
seu resultado tende a trazer a marca da ineficácia o que conduz à busca, por vezes errática,
de caminhos novos. Isso significa, que não se deve, portanto, procurar uma lógica linear e
antecipatória em palavras e decisões que trazem, em razão da própria crise (é isso que as
caracteriza) um caráter polissêmico e volátil.

A partir de 1808, e mais intensamente a partir de 1816, quando se estabeleceu a


condição de Reino Unido, a América Portuguesa foi aberta ao interesses das missões
científicas estrangeiras, por iniciativa oficial de D. João VI. O fato foi tardio, se comparado
com a América Espanhola, como atesta a negativa da Coroa Portuguesa à presença de
Humboldt e de Bompland em seu território durante a célebre viagem a América (1804-
1808) dos dois cientistas europeus. A abertura feita por D. João VI aos estudiosos
estrangeiros tem sido analisada como um processo associado ao da abertura comercial da
América Portuguesa às nações amigas, realizada já em 1808. A associação é, sem dúvida,
pertinente, mas, para melhor compreender as pulsões que orientaram esse vasto processo de
desenclausuramento, é relevante que à dimensão econômica se acrescente a dimensão
geopolítica, o que nos leva a perceber orientações operando em direções divergentes. Um

18
exemplo disso é que a abertura comercial visava sobretudo uma associação com o interesse
britânico, enquanto que a abertura às missões científicas estrangeiras visava um conjunto
mais amplo (e específico) de nações européias : a França da Restauração Monárquica e os
países da Santa Aliança (Áustria, Russia e Prússia). A escolha sugere o esforço de fazer,
através das missões científicas, um contrapeso estratégico à onipresente influência inglesa.
As principais missões culturais que visitaram o Brasil naquele período foram a
Missão Artística Francesa de 1816 (que trouxe ao Brasil o pintor Nicolau Taunay e sua
família, o pintor Jean Baptiste Debret e o arquiteto Grandjean de Montigny, entre outros), a
expedição etnográfica do Príncipe da Baviera Maximilian von Wied-Newied (1815-1817),
a expedição do botânico francês Auguste de Saint Hilaire (1816-1822), e a comitiva
científica austro-bávara que acompanhou a princesa Leopoldina ao Brésil por ocasião de
seu casamento com o Príncipe D. Pedro em 1817, da qual fizeram parte os naturalistas
Johann Natterer, Emmanuel Pohl, Carl Friedrich Von Martius e Jean Baptiste Spix) e a
expedição gigantesca (e parcialmente malogada) da qual foi encarregado o Baron Von
Langsdorff, sob os auspícios do czar da Russia em 1821.
A Coroa manteve um controle considerável sobre os convites às missões científicas
estrangeiras e as permissões a elas concedidas entre 1816 e 1822. Os viajantes eram
convidados oficiais - dotados de passaportes e salvo-condutos - e dispunham de todas as
condições materiais necessárias para empreender seu trabalho, quando se estabelecesse uma
convergência de interesses entre a Coroa e os viajantes. Entretanto, deve-se observar que as
fronteiras mais sensíveis da América Portuguesa foram mantidas interditas, por exemplo,
diante da solicitação de Auguste de Saint Hilaire, que vinha na comitiva oficial do Conde
de Loxemburgo, primeiro representante francês no Reino Unido depois da Restauração
Monárquica. Ele não pode percorrer nem a Província do Mato Grosso (apesar de sua
solicitação) nem a Região Amazônica, sabendo-se que o estabelecimento de um acordo de
fronteiras entre a Guiana Francesa e o Reino Unido era um dos objetivos principais da
missão diplomática do Conde de Luxemburgo.

Por outro lado, viajantes e seus relatos produziram um notável desbravamento


do território, dos costumes das populaçoes, de sua relação com as instituiçoes do Estado,
como as coletas de impostos e o recrutamento, das formas de apropriação de terra, da
necessidade dos cadastros,das matrículas e dos censos, quando não, produzindo eles

19
mesmos, dados relevantes sobre essas diferentes dimensões. Evidentemente essas não são
fontes inocentes (como nenhuma fonte o é). Mas possibilitam, por um lado, a
recomposiçao desse léxico transnacional, da viabilidade do Estado e da Nação que nos
permite compreender melhor o alance e os limites das tansformações em curso. Por outro,
lidos do ponto de vista de sua recepção pelos agentes públicos e privados do Brasil do
século XIX, possibilitam o estudo das interlocuções e das intertextualidades em temas tão
cruciais como a propriedade territorial, a escravidão, a imigração, a corrupção dos agentes
públicos, a disposição da população frente a lei e a ordem.

Reler os viajantes, fazendo do estranhamento do seu olhar um ferramenta de


análise e não uma desqualificação dessa fonte para o trabalhos dos historiadores, pode
também nos ajudar a perceber que o olhar estrangeiro, sua ânsia de comparações e
classificações, é próprio dessa travessia, onde o Estado Nação aparecia como forma de
superação da grande crise sistêmica que deu lugar ao mundo contemporâneo.

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