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um domínio colonial sede da monarquia, com efeitos determinantes para o desdobramento
da crise nos dois continentes e nas duas porções da América de colonização ibérica. 3
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às interpretações de Fernando Novais e Maria Odila Silva Dias, fundadores, por sua vez,
de linhagens que animaram a produção historiográfica das décadas seguintes6. Menciono o
debate para recuperar o que parece ser a sua principal linha de força: a polarização que ele
propiciou na interpretação da vinda da corte como, de um lado, momento essencial de
ruptura e, de outro, condição de reiterações e permanências. De fato, para Fernando
Novais, a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808 (e do estabelecimento da
liberdade comercial que teve origem neste momento, com a abertura dos portos) significou
um momento de ruptura crucial com a dimensão econômica da subordinação colonial e um
passo inelutável para a independência política. Esta, conduzida pelos grandes proprietários
territoriais escravistas caracterizou-se como uma revolução, por levar esta classe ao poder,
não obstante o caráter conservador que esta mesma revolução incorporava, ao manter e
aprofundar a escravidão. Em direção diversa, Maria Odila Silva Dias interpretou a
transmigração da Corte Portuguesa sob o signo da continuidade e da permanência de um
mesmo bloco de interesses políticos e econômicos. A presença dos grandes homens de
negócio que controlavam o comércio colonial, as finanças e o tráfico negreiro teria criado
condições especiais para o enraizamento de importantes redes de negócios, estabelecendo
um amálgama de interesses onde se misturavam capitais adventícios e nativos da América,
amálgama que teria imprimido ao processo de independência do Brasil, tinturas nítida e
duradouramente conservadoras.
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A oportunidade que esse Seminário nos oferece, é assim, preciosa, pois
possibilita tematizar o estado nacional brasileiro como problema historiográfico, o que
supõe, antes de tudo, a ultrapassagem de algumas concepções simplistas e anacronísticas.
Refiro-me, por exemplo, à idéia recorrente de que, ao consolidar um centro político e
propiciar a liberdade comercial, a vinda da corte corresponderia à própria fundação do
estado-nação brasileiro. esmaecendo ou mesmo anulando o processo político da
independência, com todo o seu complexo conteúdo de conflitos.
Dizer isso equivale, antes de tudo, a dizer que o Estado, sendo obra humana, é
dotado de história, mas também importa em admitir aquilo que o hífen articulador do
conceito aquele outro, também de longa e complexa história - a nação, oculta, em sua
aparente simplificação: múltiplas práticas e significações, horizontes de possibilidades e
impossibilidades, realizações, insucessos e guerras, que se desenvolveram a partir de
meados do século XVIII e recobriram os séculos XIX e XX7.
4
imaginário próprios. A nação no sentido antigo remete ao passado, à história – real ou
mítica – de um grupo humano que se sente uno e diferente dos outros. A segunda, a nação
moderna, refere-se a uma comunidade nova, fundada na associação livre dos habitantes de
um país; esta nação é já essencialmente soberana, e para seus forjadores se identifica
necessariamente com a liberdade. Enquanto que a primeira olha para o passado, a segunda
olha para o futuro: uma é a constatação de um fato histórico ; a outra, um projeto” 8
8
Guerra, François-Xavier. Modernidad e Independencias, Mexico: Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 319
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excludente, onde a diferença torna-se tão ou mais capaz de promover identidade quanto a
semelhança. Esse deslizamento, diz o autor, permite distinguir entre dois significados
políticos da palavra nação, um “ interno” e outro “externo”, balizados também pela
Revolução Francesa. No primeiro sentido,
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informações sobre as transformações políticas que demarcavam a crise sistêmica, auditores
“avant la lettre”, das viabilidades das novas unidades políticas, da sua capacidade de gestar
sistemas políticos estáveis, de pagar suas crescentes dívidas externas, de serem dignos
rebentos da semente européia. Do mundo natural à experiência do tempo e à constituição
de um novo regime de historicidade, passa-se do “tempo dos paralelos” ao “tempo das
comparações” 11.
p.239.
11
François Hartog, Régimes d’historicité – présentisme et expériene du temps, Paris, Seuil,
2003.
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consolidando informações obtidas no nível local e regional, deveriam fluir para o poder
central, vazados nos novos pesos e medidas recém estabelecidos. Ecoando o espírito da
época Volney fazia publicar em 1797 o seu Questions de statistique à l’usage dês
voyageurs, onde indicava como aproveitar-se de um deslocamento para desenhar quadros
que permitiam ter uma visão analítica das especificidades de uma região. A possibilidade
de manejar tabelas e construir sistemas simples de comparação incorporava-se à bagagem
dos viajantes e inseria uma nova legitimidade a seus relatos. No plano do Estado, apesar da
grande hostilidade inicial as estatísticas tinham vindo para ficar. Os resultados começaram
a surgir em 1803, com a publicaçäo da Statistique générale et particulière de la France et
de sés colonies, avec um nouvelle description topographique, physique, agricole, politique,
industrielle et commerciale de cet état.em seis volumes, onde Membros do Institut e
acadêmicos de todo o país haviam tido ativa participação12
12
Ver Pierre Rosanvallon. L’Ètat en France de 1789 à nos jours, Paris, Seuil, 1992, cap. 3
8
posição relativa De todos os modos, avaliando o estado portugues no momento da
revolucao do Porto Adrien Balbi considerava que os segredos internos da governanca
portuguesa estavam sendo, apenas em 1820, trazidos ‘a luz. ‘
13
Adrien Balbi, op. cit. pp. 502-503
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(complementar ou mesmo exclusiva) ao homem de letras. O relato de viagem ganha, com
isso múltiplos destinos, tornando-se relatório oficial, memória publicada em livro, artigo
em jornais e revistas especializadas. O campo formado por este novo universo letrado faz
convergir destinos de viajantes ilustrados, jornalistas e políticos, figuras chave no exercício
comparativo em que se porfiam antigas e novas nações.
“A história fiscal de um povo é (...) uma parte essencial de sua história geral. O
sangramento econômico gerado pelas necessidades do Estado e o uso que dele se faz
produz uma enorme influência enorme sobre o destino das nações. Em alguns períodos
históricos, a imediata influência formativa das necessidades fiscais e da política fiscal do
Estado no desenvolvimento da economia ( e, a partir daí, em todas as formas da vida e
todos os aspectos da cultura) explica praticamente todas as principais características dos
eventos. Na maior parte dos períodos, ela explica a maior parte delas e há muito poucos
períodos em que ela nada explica”.15
E, mais adiante,
14
Cf. Tlly, Charles, The Formation.... e, mais recentemente, Win Blockmans and Jean-Philippe Genet, The Origins of
the Modern State in Europe, 13rh-18 th centuries, Oxford University Press, 1998, em especial Richard Booney (ed.)
The Rise of the Fiscal State in Europe (c.1200-1815) e Economic Systems and State Finance.
15
Joseph Shumpeter, “The crisis of the tax state”, pp. 6-7
10
“Mais importante do que tudo é a visão propiciada pelos eventos da história fiscal sobre
as leis da sociedade e sua transformação e sobre as forças motoras do destino das nações,
bem como sobre a maneira pela qual as condições concretas (e, em particular as formas
organizacionais) crescem e se transformam. As finanças públicas são um dos melhores
pontos de partida para a investigação da sociedade, especialmente (embora não
exclusivamente) de sua vida política. A fecundidade mais plena dessa abordagem é vista
particularmente naqueles pontos de viragem, (...) ou épocas de mudança, durante os quais
as formas existentes começam a morrer e a mudar para alguma coisa nova, o que sempre
envolve uma crise dos antigos métodos fiscais”.16
No caso Europeu, pensava ele, o processo descrevia uma trajetória que partia, na
Idade Média, da situação em que o príncipe, como os outros senhores feudais, vivia de seus
próprios recursos, para aquela, configuradora do Estado Moderno em que este ganhava a
capacidade de lançar impostos sobre o conjunto do território e de seus súditos. Essa
passagem é crucial, pois envolveu a transformação da suserania na soberania, a construção
da territorialidade do Estado e, sobretudo, a constituição de uma esfera “pública” por
oposição à esfera “privada”.
Os organismos representativos e sua função de controle sobre os orçamentos e as
finanças públicas são filhos desse processo que nem sempre foi pacífico, mas que, longe de
reduzir a eficiência do Estado, aumentou sua capilaridade e poder.
16
Joseph Shumpeter, Joseph Shumpeter, “The crisis of the tax state”, in International Economic
Papers, n.4, N.Y., MacMillan, 1954, p.7. Para uma síntese do estado atual da discussão ver
Win Blockmans and Jean-Philippe Genet, The Origins of the Modern State in Europe,
13rh-18th centuries, Oxford University Press, 1998, especialmente os volumes The Rise of
the Fiscal State in Europe (c.1200-1815) e Economic Systems and State Finance, ambos
coordenados pelo historiador inglês Richard Bonney.
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conseguiram transformar a administração do “domínio” de maneira a fazê-la suportar as
necessidades crescentes da expansão e diversificação das funções estatais. A exploração
dessa ferramenta metodológica para pensar a especificidade do domínio colonial, e o modo
como, a transformação do legado colonial, na construção do Estado nacional, depois da
Independência, incorpora (ou não) o controle sobre o que era até então esfera da Coroa. O
controle sobre as terras públicas, a relação com a Igreja, a legitimidade de impor impostos
e taxas herdadas do período colonial, é uma dimensão dessa discussão. Outra, não menos
importante, é a “cultura” fiscal consolidada no processo de colonização, produtora de
valores e representações sobre a esfera do poder travejada de peculiaridades que a pesquisa
empírica cuidadosa deve desvendar.
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social, de desvelar o que é subterrâneo, soterrado, escondido nos recônditos mais íntimos
da sociedade. Fazendo essas enquetes, o Estado reconhece implicitamente que a sociedade
permanece estrangeira para ele, e que ele se coloca diante dela como um viajante em um
país desconhecido. No século XVIIII, foram os relatos de viagens externas que apaixonam
a opinião e mobilizam os melhores observadores. Depois de ter visitado o Egito e a Syria
que Volney publica a primeira enquete verdadeiramente cientifica, levada a efeito a partir
de um questionário sistemático. A tradição da viagem prossegue, assim, mas ela muda de
objeto, são as viagens interiores que se sente necessidade de efetuar. Como se houvesse
alguma coisa de estrangeira no seio mesmo do país que se governa, O medo das classes
perigosas, o temor de uma nova irrupção dos bárbaros das profundezas do social,se
conjugam para fazer da enquete social um dos pivôs to novo tipo de governabilidade que
em processo de elaboração.”19(grifo nosso)
Reversivamente, a pressão pela transparência e pela publicidade, opera também
a partir dos corpos representativos (e progressivamente, da imprensa e de outras instancias
fruto do alargamento da esfera pública) para com o segredo dos gabinetes. A confecção e
controle dos orçamentos é seu campo estratégico, estendendo-se, em decorrência sobre os
financiamentos da força armada e sobre os próprios recrutamentos. Metamorfose capital
que se opera no conteúdo como na forma impondo que nos debrucemos sobre a
transformação operada na escrita dos homens de Estado, expressa nas profundas diferenças
entre a escrita de memórias ao rei e a escrita de Relatórios que serão (ou não) aprovados
por corpos legislativos, que também aprovarão impostos, mapas de recrutamento e
orçamentos.
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Levando em conta essa periodização, e atendo-me aos propósitos limitados que
aqui se colocam, gostaria de apresentar o que considero ser algumas sendas a serem
trilhadas para um programa de pesquisa focado na História do Estado.
Por outro lado, um programa de pesquisa sobre a história do estado impõe levar
em conta as dinâmicas frequentemente erráticas de uma crise que trazia para o proscênio
da vida pública, a convergência problemática da esfera do estado e da esfera da nação.
Falo principalmente da emergência de sistemas representativos e da propagação de uma
esfera pública distinta do espaço privado dos indivíduos e do território protegido dos
gabinetes e dos conselhos do rei. Ou seja, é preciso explorar os modos como se processou
entre nós a pressão para a publicização do poder e seu corolário (a penetração da opacidade
do social pelo olhar do Estado).
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do Império durante o momento mais agudo da crise do Antigo Regime e a viabilização de
uma solução monárquica não sejam pontos de referência relevantes para compreender a
emergência desse estado e sua configuração peculiar.
Focalizando outro ponto que aqui nos interessa por ser essencial para a
percepção das receitas públicas, devemos explorar os esforços, sucessos e fracassoa da
Coroa Portuguesa em proceder um sistema proprio de contagens e medicoes sobre os
negocios do reino, valeria ressalta alguns aspectos principais :
20
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua
Majestade na América” (1797 ou 1798). Usamos aqui a versão publicada em Andrée
Mansuy Diniz Silva (dir.), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos Políticos, Econômicos e
Financeiros (1783-1811), Lisboa, Ed. Banco de Portugal, 1993, pp. 47-66.
15
dizimeiros) uma das mais importantes fontes de enriquecimento privado a partir da
adminsitracao colonial.
16
República, e após a separação entre a Igreja e o Estado.
Por último, cabe aqui enfatizar aquilo que parece ser a mais importante
especificidade do processo de construçao do Estado Nacional no Brasil : a reiteraçao da
escravidao como desideratum unificador das elites que conduziram o processo de
Independência e a opacidade que esta decisão impunha sobre a relaçao entre o Estado e a
sociedade. Importante em si mesma, como forma específica de privatismo que resiste ao
olhar e ao controle do Estado, a relação escravista veio a ganhar uma dimensão bem mais
complexa depois de 1831, quando o tráfico se tornou, pela fé do tratado com a Inglaterra,
ilegal. Que a prática dessa ilegalidade tenha se mantido ao longo do período que foi
também o período crucial para o engendramento e configuração das instituições fiscais do
Estado, talvez seja o enquadramento necessário para nuançar, repensar e melhor
compreender aquelas instituições em sua eficácia e na função social e política, às vezes
pouco evidente, de sua inoperância.
De qualquer modo, é pouco provável que seja uma coincidência de datas o fato
de que, interrompida em 1831, a verdadeira « era censitária » brasileira só venha realmente
a re começar em 1872, quando a estratégia da emancipação gradual estava já estabelecida.
Retomando a periodizaçao que este evento nos propõe (os 200 anos) vale
ressaltar que para a América Portuguesa, a chegada do rei e da sua corte, seguida de
17
sucessivas visitas de viajantes estrangeiros que sobre ela deixaram seus relatos, faz parte de
um complexo processo de construçao de imaginários e de olhares entrecruzados, afirmando
algo em direçao oposta aquela com a qual abrimos este texto, quando ressaltamos o caráter
insólito da vinda da corte, para para chamar a atençao algo que ele partilha com os grandes
movimentos de seu tempo, inserindo-a nesses grandes deslocamentos humanos tangidos
pela revoluçao, pelas guerras revolucionárias, e depois, pelos ódios encarniçados que
acompanharam a derrota napoleonica e o esforço de restauraçao da antiga ordem, vale
dizer, uma sucessão de diásporas, em grande abrangencia geográfica e em curto espaço de
pouco mais de uma geraçao.
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exemplo disso é que a abertura comercial visava sobretudo uma associação com o interesse
britânico, enquanto que a abertura às missões científicas estrangeiras visava um conjunto
mais amplo (e específico) de nações européias : a França da Restauração Monárquica e os
países da Santa Aliança (Áustria, Russia e Prússia). A escolha sugere o esforço de fazer,
através das missões científicas, um contrapeso estratégico à onipresente influência inglesa.
As principais missões culturais que visitaram o Brasil naquele período foram a
Missão Artística Francesa de 1816 (que trouxe ao Brasil o pintor Nicolau Taunay e sua
família, o pintor Jean Baptiste Debret e o arquiteto Grandjean de Montigny, entre outros), a
expedição etnográfica do Príncipe da Baviera Maximilian von Wied-Newied (1815-1817),
a expedição do botânico francês Auguste de Saint Hilaire (1816-1822), e a comitiva
científica austro-bávara que acompanhou a princesa Leopoldina ao Brésil por ocasião de
seu casamento com o Príncipe D. Pedro em 1817, da qual fizeram parte os naturalistas
Johann Natterer, Emmanuel Pohl, Carl Friedrich Von Martius e Jean Baptiste Spix) e a
expedição gigantesca (e parcialmente malogada) da qual foi encarregado o Baron Von
Langsdorff, sob os auspícios do czar da Russia em 1821.
A Coroa manteve um controle considerável sobre os convites às missões científicas
estrangeiras e as permissões a elas concedidas entre 1816 e 1822. Os viajantes eram
convidados oficiais - dotados de passaportes e salvo-condutos - e dispunham de todas as
condições materiais necessárias para empreender seu trabalho, quando se estabelecesse uma
convergência de interesses entre a Coroa e os viajantes. Entretanto, deve-se observar que as
fronteiras mais sensíveis da América Portuguesa foram mantidas interditas, por exemplo,
diante da solicitação de Auguste de Saint Hilaire, que vinha na comitiva oficial do Conde
de Loxemburgo, primeiro representante francês no Reino Unido depois da Restauração
Monárquica. Ele não pode percorrer nem a Província do Mato Grosso (apesar de sua
solicitação) nem a Região Amazônica, sabendo-se que o estabelecimento de um acordo de
fronteiras entre a Guiana Francesa e o Reino Unido era um dos objetivos principais da
missão diplomática do Conde de Luxemburgo.
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mesmos, dados relevantes sobre essas diferentes dimensões. Evidentemente essas não são
fontes inocentes (como nenhuma fonte o é). Mas possibilitam, por um lado, a
recomposiçao desse léxico transnacional, da viabilidade do Estado e da Nação que nos
permite compreender melhor o alance e os limites das tansformações em curso. Por outro,
lidos do ponto de vista de sua recepção pelos agentes públicos e privados do Brasil do
século XIX, possibilitam o estudo das interlocuções e das intertextualidades em temas tão
cruciais como a propriedade territorial, a escravidão, a imigração, a corrupção dos agentes
públicos, a disposição da população frente a lei e a ordem.
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