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Dominicanos em Solor e Timor. Bispo, A.A. (Ed.) - BRASIL-EUROPA 168 (2017:4)
Dominicanos em Solor e Timor. Bispo, A.A. (Ed.) - BRASIL-EUROPA 168 (2017:4)
Revista
BRASIL-EUROPA 168
Correspondência Euro-Brasileira©
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N° 168/11 (2017:4)
As ordens religiosas que tão intensamente atuaram nas mais diferentes regiões do mundo
alcançadas, administradas ou influenciadas pelos portugueses desde os séculos dos
Descobrimentos desencadearam ou marcaram processos culturais.
Dentro de uma mesma sociedade cristã, as várias ordens estabeleceram diferenças numa
unidade, esferas culturais próprias, seja franciscana, dominicana, jesuíta ou outras.
Nesse sentido, termos como „religião“ ou „cristandade“ foram também utilizadosna literatura mais
antiga para a designação das ordens nas suas características particulares, para o qual utilizam-
se hoje antes termos como espiritualidade ou carisma. Encontram-se, assim, expressões como
„religião franciscana“ ou „religião dominicana“.
Poder-se-ia falar, assim, no estudo de processos culturais nas diferentes regiões do mundo
desencadeados pela ação de ordens missionárias de „cristandades“ com características
diferenciadas.
Arrefecida por diferentes razões no decorrer da história, a ação de ordens que mais atuaram em
processos cristianizadores, permaneceu em muitos casos viva a marca de suas ações em
concepções e expressões religiosas e festivas transmitidas pela tradição. Analisar as
permanências e transformações ocorridas, assim como traços deixados sob o aspecto
demopsicológico e de mentalidades constitui importante tarefa que se impõe a estudos de
processos culturais em contextos mundiais.
Apesar das diferenças de contextos nas quais agiram, a atuação de ordens em diferentes partes
do mundo, marcada pelos princípios comuns derivados de suas origens e características
distintivas, levou a desenvolvimentos similares em regiões entre si distantes geograficamente e
mesmo sem vínculos históricos mais estreitos. Franciscanos, Dominicanos, Jesuítas ou outros
atuaram como tais nos vários continentes e sob muitos aspectos criaram esferas de vida, de
compreensão do mundo e da existência, assim como expressões afins nos mais diferentes
contextos.
Torna-se possível e necessário, assim, considerar esse fator de unidade para além de
delimitações de contextos e de espaço geográfico. Este foi um dos complexos temáticos que
marcou de início a realização da série de simpósios „Música Sacra e Cultura Brasileira“, aberta,
em 1981, com o simpósio internacional dedicado significativamente ao complexo temático
„unidade e diversidade“.
Essa relevância da Companhia de Jesus, sempre lembrada nas ruínas históricas que restam em
Malaca, permitem o estabelecimento de pontes com o Brasil, país nos quais os Jesuítas
desempenharam reconhecidamente um papel determinante sob muitos aspectos na sua
formação cultural.
No caso das ilhas de Sonda - e assim de Solor e Timor-Leste -, torna-se necessário considerar
em primeiro lugar o papel desempenhado pelos Dominicanos.
Não se pode esquecer que a marca da „religião“ dominicana, ou seja, de uma cultura própria da
ordem determinada pela época de sua fundação e seus objetivos, suas características de culto,
vida religiosa, tradições e orientações doutrinárias também fêz-se vigente no Brasil por caminhos
indiretos, sobretudo através de expressões de culto, concepções e formas de comportamento de
portugueses e de grupos populacionais africanos que tinham sido influenciados por esses
religiosos em missões internas ou externas de Portugal.
Esse interesse justificou-se por diferentes razões. Em instituto fundado por iniciativa de
organização pontifícia, mantido tanto por instituição científica de relêvo alemã - a Academia de
Ciências da Mogúncia - como por instâncias eclesiásticas, entre elas a Conferência dos Bispos
da Alemanha, surgia como uma exigência focalizar com especial cuidado crítico a tradição de
pensamento e a história das ações das ordens, e, entre elas, a dos Pregadores.
Os estudos da Ordem dos Pregadores traziam à luz a problemática das relações entre o saber, a
contemplação, a pregação, uma atitude de preocupação doutrinária dele decorrente, o
pensamento inquisitório e a militância contra heresias.
A atenção à história dominicana na Europa e fora dela foi também uma decorrência do contexto
institucional no qual esses trabalhos euro-brasileiros foram desenvolvidos na década de 1970.
Com sede em Colonia, encontrava-se em cidade que foi uma das mais antigas fundações da
ordem no espaço alemão e na qual Albertus Magnus (1205-1280) dirigiu o Studium generale dos
Dominicanos. Até hoje a Universidade de Colonia reporta-se a esse grande nome do
Aristotelismo medieval, levantando-se o seu edifício principal em praça que traz o seu nome e o
seu monumento.
Nas proximidades de Colonia encontrava-se também um dos principais centros de estudos dos
próprios Dominicanos, o „Instituto de Ciências da Sociedade“ do convento de Walberberg (Institut
für Gesellschaftswissenschaften Walberberg). Através do periódico Die Neue Ordnung e em
encontros com estudiosos a êle vinculados, os estudos e os debates que se processavam dentro
da própria intelectualidade dominicana foram acompanhados e interagiram nas reflexões voltaas
a processos culturais.
Essa preocupação teórica levou à programação de uma sessão específica levada a efeito na
Igreja de São Domingos em São Paulo no âmbito do Simpósio Internacional „Música Sacra e
Cultura Brasileira“, em 1981. (Veja)
Timor foi uma das regiões do globo que mais foram determinadas pelos dominicanos, que ali
atuaram quase que como em exclusividade e mesmo em dominância. Considerar essa atuação
com mais cuidado surgia como pressuposto para estudos de fundamentos de um país que se
confrontava com graves problemas políticos relacionados com questões religiosas, eclesiásticas
e de identidade cultural cristã.
Logo tomou-se consciência, porém, que o estudo do papel desempenhado pelos Dominicanos na
formação cultural de Timor não podia delimitar-se a essa ilha, devendo abrangir não só a de Solor
como também um contexto muito mais amplo e que compreendeu várias fundações na Índia,
Malaca, Cambodja, Sião e outras regiões asiáticas e africanas.
Uma das principais fontes históricas para esse estudo é uma pormenorizada relação dos feitos
dominicanos escrita por ordem oficial de 1679 e na qual procurou-se fixar os princípios das
„cristandades“ nas quais os Pregadores atuaram e que já em parte tinham acabado.
A existência desse valioso documento explica-se pela necessidade do registro da história da ação
da Ordem dos Pregadores em época na qual já pertencia ao passado o período de sucessos da
presença portuguesa no Sudeste Asiático: cidades e fortalezas tinham sido tomadas por
potências estrangeiras, conventos e igrejas tinham sido destruídos e, com as casas da ordem,
muita documentação tinha sido perdida.
Diferentemente também dos Jesuítas, os Dominicanos não cultivavam com tanta intensidade a
prática da correspondência, o que explicava a falta de fontes e a necessidade de registro de
acontecimentos a partir de notícias esparsas e da memória. Como o próprio autor da relação
salienta, os Dominicanos tinham sido sempre mais „cuidadosos em obrar do que diligentes em
escrever“.
Tratando da fundação das cristandades de Solor e Timor (pág. 424 ss.), o autor, após considerar
a casa de Malaca, menciona dela terem vindo os fundadores da missão de Solor com a vinda de
quatro religiosos de S. Domingos em 1561, início de uma ação que se irradiou a numerosas ilhas,
pertencentes então à esfera de Malaca.
Naquele ano partira de Goa para Malaca D. Fr. Jorge de Santa Luzia como primeiro bispo,
levando em sua companhia dois dominicanos: o Pe. Fr. Antonio da Cruz e Fr. Aleixo, leigo, que
trouxera do convento de Aveiro. A êles ajuntaram-se dois outros acerdotes. Sob a direcão de Fr.
Antonio da Cruz, quatro religiosos embarcaram para Solor seguindo ordem do vigário geral da
congregação, Fr. Antonio Pegado.
Alcançaram grandes sucessos, logo batizando o régulo de Solor. A seu exemplo batizaram-se na
ilha e na ilha de Ende grande número de pessoas. O mesmo ocorreu em Timor, onde já havia
traços do Cristianismo, que tinha sido levado pelo Fr. Antonio Taveiro, o primeiro dominicano que
nela entrara ao redor de 1556 e que ali batizara mais de 5000 pessoas.
Com as notícias encorajadoras vindas de Solor e Timor, outros dominicanos se animaram a dar
continuidade à cristianização. Muitos régulos locais foram batizados, entre eles o principe de um
reino de Timor, que foi levado a Malaca por Fr. Belchior da Luz para ser batizado com grande
solenidade pelo bispo D. Fr. João Gayo Ribeiro na presença do capitão e da nobreza de Malaca.
Voltando a Timor, foi bem recebido pelo seu pai e o padre passou a ser altamente prestigiado, o
que levou a grande número de conversões até o ano de 1577. „...todos muito obediente e
sogeitos aos religiozos de São Domingos, como ainda oje são, porque nunca conhecerão outros
mestres nem pays espirituaes mais que a elles, nem os quizerão admitir, por haverem
experimentado, que dos nossos religiozos tinhão não so o ensino mas tambem hum escudo para
sua defesa contra seus inimigos. (...)“ (op.cit. 426)
No caso do arquipélago malaio, o principal desses centros foi - até a sua queda - Malaca. Um dos
principais problemas resultantes dessa estrategia foi o de que os batismos ou „conversões“ em
massa, induzidos por imitação ou situações de poder, não significavam necessariamente uma
transformação fundamental sob o aspecto cultural de concepções, visões da vida e expressões.
Se implantava uma nova identificação - a do ser cristão - não correspondia mais profundamente a
convicções, decisões e a um abandono de concepções, práticas e tradições.
O grande número de batismos em Solo e Timor ressoou nos grandes centros dos portugueses no
Oriente, despertando expectativas promissoras de Cristianização. Foi o bispo de Malaca D. João
Gaio Ribeiro que mais se empenhou na vinda de missionários para Solor e Timor. Ao redor de
1585, escreveu a autoridades portuguesas informando a respeito da grande comunidade que os
dominicanos haviam feito em Timor, Solor e Ende, pedindo o envio de mais religiosos.
Sendo as cartas lidas no convento e S. Domingos de Lisboa, cinco religiosos embarcaram para
Malaca, entre eles o padre mestre Fr. Thomas de Brito, que então lia teologia no convento, o Fr.
Francisco de Matos, lente de Artes e os padres Fr. Luis de Brito, Fr. Francisco da Cunha e Fr.
Gaspar Teixeira, letrados e pregadores de renome. Embarcados sob a direção de Fr. Thomas, em
janeiro de 1586, foram confrontados com naus inglesas de piratas, chegando após seis meses
em Moçambique e dali para Malaca, entrando em Solor. Já nesse empreendimento registra-se o
cuidado português em enviar para as ilhas religiosos de alta formação intelectual e teológica, ou
seja, o de promover uma cristianização bem fundamentada segundo critérios e concepções da
época.
A repercussão desses sucessos comunicado pelas cartas do bispo de Malaca pode ser avaliada
através da disposição que despertou entre os Dominicanos portugueses em transferir-se para
Timor e outras ilhas. As cartas foram lidas também em outros conventos, e do Colégio de
Coimbra se oferecerão 19 religiosos, vindos com Fr. Hyeronimo de S. Thomas em duas naves.
Com eles veio Fr. João da Piedade, que no Colegio de S. Thomas de Goa leu durante anos.
Entre outros, distinguiu-se o Fr. Domingos da Visitação, que, ao chegar, também dedicou-se ao
ensino, lendo Artes e Teologia.
Esssa fase da história cultural das ilhas do Sudeste Asiático determinada pela repercussão do
grande número de batismos alcançado pelos Dominicanos foi marcada por uma tragédia naval
que levou à morte de vários religiosos de renome em Portugal pela sua capacidade intelectual e
teológica.Trata-se do naufrágio do galeão S. Lucas, em 1590, onde viajavam para o Oriente dez
Dominicanos que iam sob a direção do Vigário Geral da Congregação, Fr. Antonio de Lacerda.
Todos eram homens de erudição e pregadores, dois eles lentes de artes no convento de S.
Domingos de Lisbos e no convento a Batalha.
„Com tão grandes socorros e ajudas, como teve a christandade de Solor, e outros que depois
mandou o provincial e os prelados da congregação continuarão, por via de Malaca, forão tantos
os religiozos que entrarão em Solor, que athe os annos de 1606, se contavão sessenta e quatro e
estavão aquellas ilhas tão povoadas de igrejas que herão dezoito as que estavão fundadas nas
ilhas e Solor e do Ende, em que havia muitos milhares de christõas, das quais a principal e como
cabeça das mais he a da invocação de Nossa Senhora da Piedade em Larantuca, onde havia um
seminario onde os meninos aprendiam a ler, escrever e conbtar. e rezide hum vigario com seu
companheiro, que he o prelado mayor destas christandades e quasi sempre comissario do Santo
Officio, (...)“ (op.cit. 429).
O cronista afirma não haver povoações nas ilhas de Solor, Sica e Ende em que não houvesse
igreja, e em Timor. Em reinos como Lifau, Amanubão, Mena, Luca, Batamião e Cupão, já todos
os regulos eram cristãos e, à sua imitação, muitos vassalos tinham sido batizados, tendo-se
levantado em suas terras igrejas onde os padres diziam missas.
Se muitos sacerdotes tinham que cuidar de várias igrejas, isso não era resultado do descuido as
autoridades, mas das muitas mortes causadas pelas „ruins agoas que há em Timor, por respeito
dos mineraes de emxofre, ferro, e outros metaes, por onde pação e tambem por muitas raizes
venenozas, de que he esta ilha abundante, e os que escapão em vida ficão sempre tão achacaos
e doents que parecem defuntos (...)“ (op.cit. 430)
A falta de meios financeiros foi sempre o principal empecilho para o envio de mais dominicanos. A
congregação encontrava-se sobrecarregada com a construção do convento de S. Domingos de
Goa. Além do mais, a viagem era muito longa, não podendo ser feita diretamente, sendo
necessário ir primeiramente a Macua ou ao Sião e dali para Solor, gastando-se para isso no
mínimo 9 meses.
Os sucessos por estes alcançados no batismo de régulos, suas famílias e vassalos, e assim na
formação de configurações de estado identificadas como cristãs não ressoaram apenas entre os
portugueses, mas também naquelas dos muçulmanos que combatiam a expansão ocidental na
região.
Como mencionado pelo cronista, os muçulmanos que viviam nas ilhas e também os de Java e de
Tolo procuraram impedir tal crescimento, o que deu origem a embates e mortes. Para a luta
contra os muçulmanos, o Fr. Antonio da Cruz levantou já no início uma fortaleza de pedra e cal
na ilha de Solor, uma fortificação que foi sustentada durante muito tempo pelos próprios
dominicanos, que nomeavam o capitão e pagavam os soldados até que esta passou em 1586 a
ser sustentada pelo Vice-Rei.
Essas ilhas inscreveram-se tanto na história dessa situação de guerra que marcou a região como
naquela da expansão dos holandeses como concorrentes comerciais dos portugueses. A
consideração dos Dominicanos como principais agentes europeus nas ilhas permite que se
entenda situações e desenvolvimentos à primeira vista de difícil compreensão. Pela sua própria
história e pelas suas características e orientações, marcadas pela defesa da doutrina e pelo
combate a heresias, os Dominicanos confrontaram-se com dois inimigos, um não-cristão, outro
cristão, ou seja o Islão e o Protestantismo dos holandeses. Os portugueses católicos foram assim
o inimigo comum de muçulmanos e cristãos reformados, e uma aproximação ou mesmo aliança
que não pode ser explicada apenas por questões de interesses comerciais, mas também no
sentido de que o „inimigo do meu inimigo é meu amigo“.
O poder temporal dos Dominicanos e a natureza quase estatal da sua presença explica-se em
parte que, sem ter governador residente, Timor ficou sob o poder dos religiosos, vigorando um
sistema de cunho teocrático. Na mesma época em que os Jesuítas criaram missões na América
do Sul que seriam criticadas posteriormente pela sua natureza de estados fechados e rigidez na
organização interna, os dominicanos erigiram na ilha também uma configuração de governança
social autoritariamente estruturada, mas com características totalmente diversas daquelas da
Companhia de Jesus no Paraguai.
A relação dos feitos dos religiosos Dominicanos do século XVII salienta o papel decisivo por êles
desempenhado na defesa da ilha contra os holandeses. Tudo indica que se deve a esse espírito
combativo e não temente de uso de armas o fato de ter-se mantido a presença portuguesa na
região em época na qual Malaca e outras regiões passavam ao domínio holandês.
Essa militância e aptidão soldática dos religiosos davam continuidade nessas distantes regiões
da tradição medieval de combate aos hereges dos Dominicanos. Se os estudos da Contra-
Reforma nas suas dimensões globais deram atenção até hoje sobretudo aos Jesuítas, a
consideração de Timor dirige o olhar a um outro aspecto do movimento de combate católico aos
protestantes: o da mão armada sob a direção dos Dominicanos.
Esse sucesso teria sido devido a uma milagrosa intercessão de S. Domingos. Através de
confissões de inimigos traidores sobreviventes, os Dominicanos constataram que, enquanto
durou o embate, os combatentes viram um frade vestido com o hábito de S. Domingos com uma
cana de Bengala na mão, com a qual os saudava, fustigava e ordenava que debandassem. Essa
visão criou pavor pavor e confusão nas hostes inimigas.
O cronista estabelece aqui explicitamente uma relação direta entre o combate aos hereges na
Idade Média e aquele contra os protestantes unidos aos muçulmanos em Timor. A guerra contra
os cátaros ou albigenses em Albi, no sul da França, convocada pelo Papa Inocêncio III em 1208,
e cujo último combate deu-se em 1244, com numerosas mortes, é transportada para as ilhas de
Sonda.
„Bem podia ser este nosso santo patriarcha que esta occazião quis socorrer a seus filhos
christãos contra os hereges, como em vida fizera contra os de Alby. (op.cit. 442)
Segundo a crónica, com esses sucessos dos católicos, os holandeses ainda mais se
empenharam a partir de Batavia em destruir os cristãos de Timor, então sob o govêrno de Fr.
Manuel da Concepção.
Também nessa fase da luta, porém, teriam acontecido vários fatos que pareciam milagrosos.
Uma delas dizia respeito a uma aparente ressurreição por intervenção divina: caindo um capitão
atingido por uma bala de mosquete, e estando como morto, quando o régulo levantou os olhos
para o céu, o capitão levantou-se, sem feridas.
Entre outros prodígios salientou-se aquele do aparecimento de uma pessoa que carregava o
mosquete para um religioso que disparava, embora não houvesse nenhum outro Dominicano nas
redondezas: teria sido S. Domingos?
O seu assassínio foi devido ao fato de ter-se indignado e combatido o que considerava
superstições indignas de gente que se considerava católica por ocasião da morte de um régulo.
O combate desse letrado levou a reação popular, tendo sido mortos e jogados num poço êle e
seus companheiros. (op.cit. 456)
Esse fato traz mais uma vez à consciência que os líderes locais e suas famílias, batizados no
início de processos cristianizadores com o sentido de tornarem-se modêlos para os seus povos,
embora neles criando uma identidade de cristãos, não suprimira os elos tradicionais com religiões
nativas.
A luta dos Dominicanos para com a sensualidade que viam reinar nas ilhas de Sonda pode ser
exemplificada na história do Pe. Rafael da Veiga OP. Atuando como missionário na ilha de Savo,
sentiu-se êle próprio tão propenso a ser influenciado pela sensualidade que ali predominava que
preferiu dela fugir para não cair no mesmo estado moral que criticava e, assim, perder a sua
alma. Ganhou, assim, a fama de santidade nos anais da ordem. (op.cit. 448)
Uma nova situação impôs-se no início do século XIX, sendo esta condicionada por
desenvolvimentos globais nos quais o Brasil se inseriu. Embora o papel dos Dominicanos e de
outras ordens religiosas à época da transferência da Côrte portuguesa ao Rio de Janeiro exija
ainda estudos mais aprofundados, os desenvolvimentos que então se seguiram repercutiram no
Oriente. Um dos aspectos que merecem ser considerados é o das relações entre o govêrno
português e os Dominicanos nas missões a serviço dos interesses do Padroado Português do
Oriente.
Uma notícia em jornal de Macau, no início de 1823, na qual se publicam extratos do Diário do
Govêrno de Lisboa, documenta uma dissidência relativamente ao Arcebispo de Goa e o apreço
governamental aos Dominicanos. Dom João VI (1767-1826) tinha tomado conhecimento de
„excessos jurisdicionais“ do Arcebispo de Goa na medida que procurara intervenir através de
sacerdotes seculares nas atividades de ordens em diferentes regiões, entre elas dos
Dominicanos em Solor e Timor. O rei salienta, neste contexto, o significado do trabalho desses
religiosos, que teriam criado instituições, levantado igrejas, conventos, hospícios e atuado sem
despesas para o Estado,
„Sendo presente a Sua Magestade os excessos de Jurisdicção, com que o Reverendo Arcebispo
de Goa Primáz do Oriente, se tem intromettido nas missoens dos Religiozos Dominicanos nas
Ilhas de Solor e Timor Bispado e Malaca; e na dos Religiozos Agostinhos em Bengalla, Bispado
de Miliapor, nomeando para ellas Sacerdotes Seculares contra as Reaes Determinaçoens, que
Ordenaõ a conservação dos mesmos Regulares nas suas respectivas Missões, que crearaõ pelo
seu zêlo, e conservaõ pelas suas fadigas, e aceitaçaõ dos Povos, aonde fundaraõ Conventos, ou
Hospicios para irem accudir às necesidades espirituaes da Christandade, sem despeza do
Estado, e sómente pelas religiozas oblaçoens dos Fieis, mostrando com estes procedimentos
huma reprehensivel ambiçaõ de dominar todos os Bispados do Oriente sobre os auqes, além de
conhecer das cauzas por Appellaçaõ só tem direito de nomear Vigario Capitural (...) porque a sua
he limitada a demarcaçoens do seu Bispado, o que faz duvidosa aquella que confere a
Sacerdotes que vaõ Missionar a Dioceses alheias, chegando ao extranho procedimento de naõ
querer Ordenar os Religiozos (...) Espera Sua Magestade, que o Reverendo Arcebispo Primàz
Ordene quanto antes os Regulares, que so lhes apresentarem habilitados pelos seus respectivos
Prelados; e quando recuze cumprir estas Reaes Determinações (o que se naõ espera) Sua
Magestade mandará proceder as temporalidades contra o mesmo Reverendo Arcebispo Primáz
do Oriente. Palacio de Queluz em 16 de Abril de 1822. Jozé da Silva Carvalho“. (A Abelha a
China XIX, 23 e Janeiro de 1823)
A relevância dos Dominicanos na sustentação da ordem política pode ser avaliada de um outro
artigo publicado no mesmo órgão de Macau e na qual se transcreve um extrato de ordem régia
ao Prior Provincial da Ordem dos Pregadores publicada no „Pregoeiro Luzitano“. Nela, ordenava-
se que os mais competentes religiosos pregassem sujeição ao govêrno estabelecido,
demonstrando que as reformas que então se faziam não vinham de encontro à religião.
„A Regencia do Reino, em Nome d‘El-Rey o Senhor D. João VI, ordena, que V.P. Reverenissima
faça prégar nos Conventos, ou Mosteiros da sua jurisdicçã pelos mais habeis, e acreditados
Pregadores, determinando-lhes, que nos seus Sermoens recommendem aos seus ouvintes huma
reciproca uniaò, e a sua sujeiçaò ao Governo estabelecido; provando-lhes, que as reformas, e
melhoramentos, de que estaò occupados os ligitimos Representantes da Naçaò, de maneira
alguma offendem a Religiaò Catholica Apostolica Romana, que todos professamos, e juramos
manter e deffender; o que participo a V.P., Reverendissima de Ordem da mesma Regencia, para
que assim o faça executar. Deos Guarde a V.P. Reverendissima. Palacio a Regencia em 26 de
Fevereiro de 1821. Joaquim Pero Gomes de Oliveira.“ (A Abelha a China XXVIL, 20 de março de
1823)
Também na superação da quase que configuração quase de estado das missões há paralelos
entre os acontecimentos no Brasil e em Timor, assim como em outras regiões sob a
administração portuguesa.
Não se pode esquecer que também no Brasil procurou-se reestruturar as missões indígenas e
instaurar um processo de gradual supressão do poder de ordens com a proibição de aquisição de
novas entradas. Não se pode também esquecer que este foi a época de Dom Pedro IV de
Portugal, o Dom Pedro I° do Brasil (1798-1834).
Assim como no Brasil, a expulsão de religiosos deixou um vácuo que foi particularmente grave
em regiões que tinham até então estado sob o domínio quase que exclusivo das missões. No
caso de Timor, a ilha ficou quase que abandonada.
Os elos com Goa deram lugar àqueles com a diocese de Macau, à qual Timor passou a pertencer
a partir de 1874. Vê-se, aqui, o início de uma fase moderna da história missionária com a
implantação de amplas medidas de re-catolização da ilha. Essa re-cristianização, porém,
procedeu sob o signo de uma nova época da história eclesiástica, marcada sobretudo por
tendências restaurativas, do historicismo do século XIX e da cultura de ordens missionárias com
outras tradições, outros pêsos no culto de santos e outras expressões. (Veja)
É de se supor que o longo período em que Timor esteve sem atuação sistemática de missionários
a população cristã, marcada por formação obtida no passado, deixada a si só, desenvolvesse
práticas e expressões de culto heterodoxas e que passaram a ser corrigidas segundo as normas
e concepções dos religiosos.
Assim como os Dominicanos viram na sua luta contra os muçulmanos e protestantes holandeses
um paralelo contra o combate dos albigenses na Idade Média, também a prática do rosário podia
ser assim explicada, uma vez que, segundo a tradição, teria sido o rosário dado por Maria a S.
Domingos no contexto daqueles empenhos medievais.
A veneração de Nossa Senhora do Rosário de Fátima foi promovida em Timor - como em outras
partes do mundo - sobretudo na década de trinta do século XX. Nesse fomento destacou-se o Pe.
Ezequiel Pascoal Enes em Manatuto, seguindo-se Soibada. Aqui, em 1936, o Pe. Jaime Garcia
Goulart fundou um seminário no qual deveriam formar-se sacerdotes nativos e que passou a ser
designado como Seminário de Nossa Senhora de Fátima. No ano seguinte, consagrou-se a igreja
de mesma invocação em Suro; em 1939, a capela de Fátima de Fatubessi e a capela de Watolari,
seguindo-se, em 1940, a de Fatumaca.
É o estudo desses processos que explicam o grande número de timorenses que visitam o
Santuário de Fátima, entre êles, em 2008, o Presidente José Rampos Horta. Esse estudo torna
compreensível, também, que Timor-Leste tenha Nossa Senhora de Fátima como padroeira.
Academia Brasil-Europa
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Espaço de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
reconhecido de utilidade pública na República Federal da Alemanha