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Astral e

Arcano

Índice
Mapa.....................................................................................................................................................3
1 – Fuga................................................................................................................................................4
2 – Família............................................................................................................................................8
3 – Solidão..........................................................................................................................................12
4 – A Noite da Dama da Floresta........................................................................................................17
5 – A Noite da Dama da Floresta II....................................................................................................21
6 – Tempo perdido..............................................................................................................................25
7 – Pacto.............................................................................................................................................29
8 – Sacrifício.......................................................................................................................................35
9 – Ancestrais.....................................................................................................................................40
10 – Kin..............................................................................................................................................44
11 – E agora?......................................................................................................................................48
12 – Entendendo.................................................................................................................................52
13 – Novos laços................................................................................................................................56
14 – Conversando com os mortos......................................................................................................60
15 – Encontros....................................................................................................................................65
16 – União..........................................................................................................................................69
17 – Como sempre foi........................................................................................................................74
18 – Decisões......................................................................................................................................78
19 – Acerto de contas.........................................................................................................................83
20 – Partindo.......................................................................................................................................86
21 – Viagem........................................................................................................................................90
22 – Confiança....................................................................................................................................94
23 – Últimos acertos...........................................................................................................................98
24 – Irmãos.......................................................................................................................................102
25 – Base..........................................................................................................................................106
26 – Treinamento..............................................................................................................................111
27 – No limite...................................................................................................................................114
28 – Atiradora de elite......................................................................................................................117
29 – Seguindo em frente...................................................................................................................120
30 – A cidade submersa....................................................................................................................124
31 – Gelo..........................................................................................................................................128
32 – Abrigo.......................................................................................................................................132
33 – Invasão......................................................................................................................................137
34 – Sem tempo................................................................................................................................140
35 – Morte........................................................................................................................................144
36 – O Guepardo..............................................................................................................................148
37 – O resgate...................................................................................................................................152
38 – De volta à vida..........................................................................................................................156
39 – Nos braços de Mantus..............................................................................................................160
40 – Submundo.................................................................................................................................164
41 – O enterro...................................................................................................................................167
42 – Seguindo o conselho da Velha..................................................................................................171
Mapa

1 – Fuga

Martim a olhou mais uma vez pelo retrovisor enquanto dirigia, os olhos verdes e
tristonhos pareciam refletir o manto verde que a enorme floresta formava,
umedecido pelo costumeiro nevoeiro. Não sabia se era Kattla no banco de trás ou
aquele lugar que fazia lhe percorrer um calafrio na espinha.
Era claro que a moça não queria conversar, assim deixava claro o fone de ouvidos
que usava com uma musica tão agressiva e com alguns toques das musicas
tradicionais e eruditas da terra da qual viera, sussurrando como se fosse um
objeto precioso que ela carregava, sim, tão alto que ele podia ouvir a musica,
ainda que num volume baixíssimo.
Sentia alívio por saber que a Velha Sábia, também em silêncio, sentada ao seu
lado, no banco de passageiro, estava com eles, porque Kattla e seu silêncio o
assustava. Como o assustou o corvo que bateu contra o carro, fazendo-o quase
perder o controle e espalhando o líquido vermelho e viscoso no vidro, freando
abrupto antes de bater numa árvore.
A moça deixou o carro, ainda que estivesse um pouco machucada por não usar
cinto de segurança e ter seu corpo arremessado adiante, fazendo-a bater contra o
banco dianteiro.
Correu até o que acertara o carro e pegou o pássaro negro espatifado do chão,
sujando assim suas mãos. Parou por um momento olhando a floresta que
suspirava névoa adiante e acreditou ter visto um vulto negro de uma silhueta
feminina.
Ela avançou alguns passos na direção daquilo que parecia se mover entre as
árvores e assim que Kattla se pôs a caminhar, o vulto parou como se a esperasse.
A moça parou também, viu que o que quer que fosse aquela mulher naquela
floresta, não era daquele mundo.
Ela se agachou para colocar o corpo desfalecido do pássaro no acostamento, bem
à borda da floresta, quando ouviu a voz de Martim que parou abrupto atrás dela,
perguntando:
— Você está bem?
Kattla ergueu o olhar para a floresta, na busca da mulher, mas já não havia mais
nada além das árvores que farfalhavam e dos pássaros que cantavam, agora que
seus fones estavam pendurados em seu pescoço.
— Estou.
— Parece que ao menos alguém veio te receber em Norga. - Disse a velha,
parando ao lado dos dois.
Kattla deixou os olhos cair sobre o corpo esguio da velha, escondida por manto e
capuz negros, que mal dava para ver seu rosto, exceto pelo cabelo branco e liso
que escorria pelo seu peito e as mãos enrugadas e desprotegidas à mostra.
— Matando um corvo? Parece-me bastante promissor. - Disse Kattla, irônica.
— Acho que se sentirá melhor quando chegar à casa de sua prima Adara,
estamos próximos. - Disse a velha.
— Ela e Adara são primas? - Perguntou Martim, confuso. — Mesmo em Uglain, de
onde venho, todos sabem que não é possível que haja qualquer parentesco entre
Norga e Uada há séculos.
Kattla nada disse, apenas deitou o olhar sobre as mãos sujas de sangue,
deixando a floresta então crescer verde e viva diante de seus olhos uma última
vez, antes de caminhar para o carro, sem dizer qualquer palavra. Ele olhou para
a velha, que disse:
— Por isso que te escolhi, pela sua neutralidade. Nessa altura da nossa viagem de
Uada até aqui, já deve saber que Kattla não terá uma boa estadia. É sua função
tornar isso um pouco mais leve para ela.
— Como pode colocar um cara simples como eu entre Ljots e Viktis?
— Você se colocou nessa posição, não eu. - Disse a velha, seguindo para o carro.
— Por que Kattla está aqui, Velha? - Ele perguntou, correndo atrás da idosa.
— Tudo ao seu tempo. - Disse a senhora.
Seguiram viagem, realmente não estavam muito longe da casa de Adara. Um
pequeno vilarejo que crescia com a floresta a circundá-lo, era contudo mais
urbano, algumas ruas eram asfaltadas, com alguns poucos comércios, um velho
hotel, bar e café com o painel de led que não acendia em algumas letras e
algumas casas normalmente em madeira.
As casas eram tão harmônicas que pareciam fazer parte da paisagem. Em geral
com dois andares e telhado triangular, pintadas em cores quentes como o ocre e
o vermelho, mas algumas também eram brancas. Não usavam cercados para
assinalar seus quintais.
Kattla tinha que concordar que era tão ou mais bonito ver aquele lugar
pessoalmente do que nas poucas fotos que sua mãe tinha dele. Tão diferente de
sua Uada, com seus monumentos em mármore, suas casas e prédios numa
mistura de pedra e madeira.
Pensou em seu irmão Bjorn, na guerra que estava para chegar em sua terra,
agora que a maioria dos Ljots estavam mortos, esperava que eles conseguissem
resistir ao Império de Fopros, que seu irmão, excelente soldado que era, saísse
vivo da guerra eminente.
Estava ali para fazer a parte que lhe cabia, ainda que soubesse que todos a
odiariam e entre todas as suas obrigações, sabia que manter-se viva até o
momento certo era de extrema importância.
Como poderia se manter viva ali não sabia ainda. Era como um galo cercado por
lobos famintos. Contudo, tinha que confiar na Velha e em seu irmão. Tinha que
confiar na sua própria capacidade. Nascera e crescera em Uada, a guerra e a
sobrevivência era a primeira coisa que seu povo aprendia quando ainda crianças.
Com o que se preocupava?
Martim parou diante da casa de Adara, Kattla saltou do carro, percebendo que a
casa da prima ficava à margem entre o vilarejo e a floresta, separando-se do
manto verde apenas por um pequeno morro e a rodovia que seguia numa curva
que se perdia no verde nevoento.
Ao que Martim abriu o porta-malas, avançou para pegar suas coisas, o moço de
cabelos escuros e curtos e olhos castanhos a ajudou com as mais pesadas,
dizendo:
— Se vocês tivessem se juntado antes, o Império não teria chance e nem Norga
estaria sob o domínio de Fopros agora.
— Uada ainda resiste aliada à Traesia. - Disse a moça, sem olhá-lo. — E não
estamos nos unindo.
— Sabe que Uada vai cair e terá que engolir seu orgulho.
— Sei? - Perguntou, irônica.
— Você é uma dos poucos Ljots vivos. Deveria saber que orgulho e arrogância
não te levarão a lugar algum agora.
Ela o olhou, sentindo o vento frio do crepúsculo tocar seu rosto e tornou a se
concentrar nas malas que retirava do carro.
— O que exatamente é um Ljot? - Ele insistiu.
Ela o olhou novamente e após tirar a última mala do carro, voltou-se para a
Velha, que caminhava em direção à casa, apoiada num longo cajado retorcido,
com alguns pequenos ossos de animais pendurados nele.
— Tem coisas que é melhor não saber, Martim.
— São como os Viktis, não são?
— Não somos Viktis. - Disse, ajeitando as malas em suas mãos.
— Não vai me dizer nada, não é mesmo?
— Sabe que estou vergonhosamente fugindo. Já não é suficiente?
— Eu não te conheço, Kattla, nem tenho talentos especiais ou mutações
genéticas, ou seja lá o que vocês fizeram e fazem, mas tenho intuição e pode até
parecer, mas não sou tão idiota para pensar que você está fugindo, como acredito
que ninguém aqui em Norga acredita nessa história.
— Nunca houve um traidor em Uada até termos nosso primeiro há três anos. As
coisas mudam para todo mundo, Martim.
— Como você é a primeira filha, depois de muitos séculos, de uma Norgian com
um Uadani.
— Meu irmão é o primeiro. Ele é mais velho. Estranhas coincidências, não acha?
- Ela sorriu para ele e continuou caminhando, deixando claro que tinha
terminado o assunto.
2 – Família

A porta branca se abriu ao lado da janela sextavada que dava certo charme a
casa de madeira avermelhada. Os olhos tão parecidos se encararam. Adara era
parecida com a mãe de Kattla, ao menos das lembranças que tinha dela quando
ainda era criança.
Os olhos que puxara de sua mãe era tudo que Kattla tinha em comum com sua
prima, com o cabelo loiro a emoldurar o corpo esguio e bonito em grandes
caracóis, em contraste com o cabelo liso e preto da prima, tão comum em Uada,
num tamanho médio e corte moderno.
Lançou o olhar sobre o homem que surgiu abrupto de um dos cômodos da casa,
como se ele também esperasse por ela. Agarrou-lhe a atenção de modo estranho,
com os olhos azuis a se apertarem num sorriso espontâneo dando vida a
covinhas.
Ela deixou os olhos passearem pelo corpo alto e esguio, que se ornamentava com
um cabelo bastante comprido e liso, a tocar-lhe a cintura, tão loiro quanto de
Adara. Não sabia dizer quem era, nem lhe agradara o sorriso, embora fosse um
homem muito bonito e atraente.
Adara puxou o braço da prima, assim que ela largou as malas ao chão, enojando-
se com as mãos sujas de sangue do corvo da estrada, colocando uma pulseira
com pedras arredondadas, grandes e esverdeadas, no pulso esquerdo da moça. O
que fez o loiro, ao seu lado, sorrir novamente.
— Chamamos essas pedras de Serpentine, combinam com cobras como você. São
verdes assim durante o dia, mas brilham a noite num verde fluorescente. Assim
todo mundo saberá quem e o que você é. Por mais que queira não conseguirá
tirar, até que um de nós o faça.
— Já estava ciente desse tipo de recepção. - Disse Kattla. — Agrada ver o quanto
é parecida com a minha mãe.
— Quer mesmo falar sobre isso? - Perguntou Adara, incomodada. — Minha tia
morreu por causa de vocês.
— Minha mãe nunca precisou usar pulseira ou qualquer outro tipo de algema em
Uada.
— Só estamos fazendo isso porque a Velha nos pediu. E, minha casa, minhas
regras.
— Como se eu tivesse escolhido ficar aqui.
— Essa terra vai te devorar se não concordar com sua estadia aqui. - Disse o
loiro.
— Varg! - Exclamou Adara, como se ele estivesse falando o que não devia.
— Você sabe disso! Você sentiu na estrada quando deixou o corvo no
acostamento, não foi? É por isso que estamos livres do Império aqui. Eu não me
preocupo, esse lugar devora tudo o que não é pra ser, devora aqueles que saem
da linha. E já sabe porque você está aqui.
— Deveria entender isso como uma ameaça? - Perguntou Kattla, depositando o
olhar sobre a prima.
— Como um aviso. - Disse Varg.
Ele a fez se virar enquanto passava por ela deixando a casa. Era mais sensual do
que ela gostaria. Contudo, sabia também que não estava ali para observar a
beleza do povo de Norga, já há muito falada e conhecida. Tinha que se concentrar
em ficar viva.
Adara mostrou-lhe onde era seu quarto, deixando-a em seguida, com Martim a
ajudá-la com as malas e a organizar as coisas. A Velha parecia a esperar na sala,
sentada no sofá confortável, disse ao ver Adara invadindo o ambiente:
— Não precisa ser tão dura com ela.
— Não acho que precisamos ter esse tipo de conversa novamente. Estou
confiando em você, como todos os Viktis fazem e apenas por isso aceitei essa
situação insana. Você disse que ela não está aqui para vingar a morte da mãe.
Sou tudo o que restou da minha família.
— Ela, você e Bjorn foram tudo o que restaram da sua família.
— Preciso ver Leif. - Disse quase num suspiro.
— Vai levá-la com você? - Perguntou a velha.
Como se estivessem prontos para aquela pergunta, lobos uivaram ao lado de fora
da casa, fazendo Adara sorrir e dizer:
— Hoje não é necessário.
Deixou a velha sozinha para conferir o que a prima fazia no quarto, deixando-a
em seguida sem dizer qualquer palavra. Passando pela sala, observou que apenas
as roupas da velha estavam largadas no sofá e sabia dessa forma que ela partira.
Martim sabia o que fazer.
Deixou a casa entrando num carro velho no qual dirigiu alguns quilômetros até
chegar num galpão um pouco afastado do vilarejo. Ela abriu uma das enormes
portas duplas e entrou no lugar, que logo se apresentou como um tipo de bar,
com pouquíssimas mesas, usavam-no normalmente como assembleia quando
necessário.
Leif estava atrás do balcão ao fundo, esse que era construído por tijolinhos
vermelhos e com um tampão de madeira escura, com a jaqueta escura a
combinar com o longo cabelo, o que era estranho para um Norgian, normalmente
loiros. Varg que estava sentado ao lado de Leif sorriu para Adara antes de levar o
copo de bebida à boca, dizendo:
— Sua prima é mais bonita do que eu esperava.
— Achou que ela fosse um monstro? - Perguntou Adara, debochada.
— Não, mas ao menos agora entendo porque sua tia nos deixou para ficar com
eles. O que não entendo é como você não sabe nada sobre isso.
— Poucos falam sobre isso, ela partiu simplesmente, sem dizer uma palavra,
enquanto ainda a procuravam, achando que alguém a tivesse sequestrado e que
estivesse em algum lugar em Norga, as coisas começaram a ficar estranhas aqui.
Depois ela começou a mandar cartas para minha vó.
— E seu pai matou a própria irmã e nunca explicou porque fez isso, exceto por
ela ter se casado com um Uadani. - Disse Leif. — Sabemos dessa história, Adara
e procuramos confiar em você, já que você não estava lá, mas com nós, escondida
naquela caverna. Entretanto, tem certeza de que seu pai não te disse nada
quando ele retornou?
— Não. Disse apenas que brigou com a irmã e perdeu a cabeça.
— Sua prima deve saber. - Disse Leif, jogando o longo cabelo castanho para trás.
— A Velha Sábia ou Aquela Que Sabe devem saber, mas não acho que estão a fim
de contar o que aconteceu e contra aquelas duas não podemos fazer nada.
— Ela não te disse nada? Não disse do que sua prima é capaz ou porque resolveu
ajudar para ela se esconder aqui? - Perguntou Varg.
— Já disse que não. - Respondeu Adara, nervosa. — Mas, eu vou descobrir.
— Ela é uma Ljot, o que já motivo suficiente para nos deixar alarmados. - Disse
alguém sentado numa das mesas próximas ao balcão.
Os três se viraram e viram Adish, com sua costumeira face desfigurada, com o
olho de vidro que tanto se orgulhava, sem um dos braços, segurando uma caneca
grande de cerveja, num terno marrom antiquado. Ele continuou:
— Um Ljot fez isso comigo, estava entre os melhores Viktis da minha época e
ainda assim, ele quase me matou e saiu ileso. Saber do que um Ljot é capaz, é o
primeiro passo a ser tomado em qualquer situação. Ela pode ser sua prima,
Adara, mas vocês não se conhecem. E contando que seu pai matou a mãe dela,
eu não ficaria com as minhas guardas baixas.
— Isso não faz muito sentido, a Velha Sábia não a traria aqui para me matar, ela
é nossa guardiã. - Disse Adara, nervosa.
— Só estou dizendo que Ljots são perigosos, estou preocupado com você
dormindo sozinha com uma em sua casa. - Disse Adish.
— Viktis também são perigosos. - Interveio Varg.
— Mas, Norga caiu muitos anos antes de Uada, que ainda está em pé lutando.
Embora, saibamos que depois da morte de tantos Ljots, talvez sucumba como nós
sucumbimos.
— Precisa saber o real motivo que trouxe sua prima aqui, Adara. Assim quem
sabe você volte a tomar o cargo na assembleia que é seu de direito. - Disse Leif.
— Eu vou descobrir. - Disse, pegando a chave do carro que deixou sobre o balcão
e deixando o lugar.
Os três a acompanharam com o olhar enquanto se retirava do local. E assim que
Adara não estava mais entre eles, Adish disse:
— Vocês têm certeza de que ela está falando a verdade?
— Por tudo o que a família dela passou depois do ocorrido e do quanto Aquela
Que Sabe procurou poupá-la de todas as punições que caíram sobre a família
dela, estou certo de que está fora de cogitação pensar que ela sabe mesmo de
algo. - Disse Leif.
— Partindo do pressuposto de que vocês dois têm um caso, não sei se posso
confiar em sua palavra como gostaria.
— Sinta-se livre para descobrir por si mesmo, Adish, se isso te fizer bem. - Disse
Leif.
— Não gosto de Ljots. - Sussurrou Adish.

3 – Solidão

Já estava em Norga há três semanas. Como um tipo de ritual, todos os dias


deixava a casa de sua prima Adara para se aproximar da floresta. Sempre parava
três passos antes de adentrar a mata e ficava ali parada por horas observando,
ouvindo o farfalhar das copas das árvores.
Às vezes fechava os olhos para ouvir o barulho dos animais que ali viviam, ou
como se esperasse algum tipo de sussurro que viesse da natureza ou de algo
muito além dela. Não ousava sentar-se ali e sequer dar alguns passos para
dentro da floresta.
Contudo, sentia-se calma, sentia-se como se fosse o único momento em que
pudesse fazer alguma coisa como Kattla e não apenas por Uada. Não estava
sendo tão fácil quanto gostaria. Conhecer sua prima tão parecida com sua mãe
não a deixou tranquila.
Ter perdido tantos amigos na caça aos Ljots também não fora algo que ainda
tivesse superado, sem pensar em Bjorn que estava em Uada pronto para lutar e
que ela sequer sabia se veria o amado irmão outra vez. Ela sabia ser Uada, ela
mesma era toda a Uada, mas nunca se sentiu tão sozinha.
Em partes era Adara, parecia demais com a sua mãe, tão Vikti quanto ela, pela
única diferença de que sua mãe a amava, enquanto a prima claramente a
preferiria morta ou bem longe dali. E Kattla queria lutar ao lado de seu irmão.
Não sabia dizer se aquilo era tristeza.
Deixou os pensamentos de lado, ao que julgou ter visto a sombra de um
humanoide dando um salto e escondendo-se na copa altíssima de uma árvore,
que a fez dar alguns passos para trás enquanto examinava. Seres sobrenaturais
da floresta ou Viktis?
Achou melhor se afastar um pouco mais, atravessando a rodovia e sentando-se
numa alta pedra que tinha do outro lado do morro que dava para casa de sua
prima.
Fazia parte do acordo não deixar que ninguém soubesse absolutamente nada
sobre ela, sobre seus poderes, sobre o que estava fazendo ali e não poderia
colocar todo o plano que tinha em risco. Fora treinada a vida inteira para
situações como aquela, só precisava respirar fundo.
— Estava procurando por você. - Disse Adara, tão logo viu a prima chegar em
casa.
— Estou aqui há três semanas e faço a mesma coisa todos os dias, não tinha
nenhum motivo para me procurar em qualquer outro lugar que não à beira da
floresta.
— O que fica fazendo lá?
— Esperando a permissão da floresta para que eu possa entrar.
— Faz parte do seu poder esperar por permissão?
— Faz parte de meu senso de respeito e cuidado.
— Varg não estava falando sério sobre a floresta te devorar. - Disse Adara,
colocando água num copo.
— Qualquer floresta é capaz de devorar qualquer um e qualquer coisa. Mosquitos
que te picam e transmitem doenças, animais selvagens que te atacam, plantas
venenosas que você pode ingerir ou se cortar. Enfim, a natureza é assim.
— Mas, pelo pouco que sei de vocês, são treinados desde os sete anos de idade
para lidar muito bem com coisas assim. Por que precisaria da permissão da
floresta?
— Porque acredito nisso.
— Você se sentiria à vontade de contar o que aconteceu com a sua mãe em Uada?
— Não. Prefiro que fique com a versão que te contaram. Não estou aqui para isso.
— Acha que em algum momento podemos ser amigas?
— Acho que essa é uma pergunta que você deveria fazer para si mesma.
— Ah, por favor, Kattla, facilite as coisas. Estamos morando juntas há três
semanas e você quase nem conversa comigo. O que acha de sairmos para
bebermos um pouco?
— Acho que estou precisando.
Ambas sentiam-se estranhas na presença uma da outra, depois de se arrumarem
e se dirigirem para o galpão. Adara dirigia, enquanto Kattla olhava a paisagem ao
redor, as luzes da cidade que se acendiam e apagavam dentro do veículo na
medida em que o carro se movimentava.
Todas as regras passavam em sua cabeça e se por algum motivo sua prima lhe
desse alguma bebida batizada com alguma coisa que a apagasse ou matasse, não
poderia fazer nada com o seu poder para ajudar a si mesma, ao menos não
naquele momento.
O que a fazia pensar que a ideia de beber poderia ser uma cura para seu tédio de
um jeito ou de outro. Que fosse ao menos de uma forma agradável. As notícias
que ouvia nas rádios sobre a guerra em Uada não a deixava muito contente,
ainda não tinha caído, mas as coisas não estavam boas.
Ao entrarem no galpão, Kattla colocou as mãos nos bolsos da jaqueta, enquanto
olhava todos e cada um ao mesmo tempo. Era visível que todos sabiam quem ela
era, pois que se cutucavam para mostrarem quem era a Ljot que vivia entre eles.
Pensava na possibilidade de alguém atacá-la ali.
Entretanto a musica era boa, de bandas de metal agressivas de Norga, apenas a
arte não tinha fronteiras e nem preconceitos, estava ali para qualquer um que
quisesse a apreciar. É claro que em Uada alguns diriam que ouvir aquelas
musicas era o mesmo que apoiá-los.
Ela não pensava assim, nunca conseguiu pensar assim, acreditava que uma
experiência interior era a manifestação de um nível mais profundo de si mesmo.
O pensamento também era um conceito ou expressão do seu próprio eu. Uma
peça musical era uma expressão sua, fosse ela composta ou apenas admirada.
Uma pintura ou escultura era um conceito de você mesmo se você a cria ou
apenas a admira. Precisava pensar que tudo aquilo que ela gostava, assistia, lia,
ouvia, era parte dela mesma. Algo dentro dela que havia decidido que aquilo era
também parte de seu mundo, independente de quem tivesse expressado.
Sentiu-se feliz ao saber que seu celular ainda que não tivesse sinal, funcionava e
tocava milhares de musicas como aquelas, feitas por bandas de Uada. Não
conseguia esconder com o corpo a balançar no ritmo de que gostava daquilo e
todos a olhavam.
— Você gosta disso? - Perguntou a prima, enquanto sentavam numa mesa.
— Bastante. Gosto do tom de protesto da arte de Norga.
— Não devemos ouvir musicas de Uada.
— São boas musicas e protestamos tanto quanto vocês. A arte não deveria ter
fronteira, nem ser vista como um perigo para os outros povos. Entendo que arte e
filosofia podem mudar completamente a mente e as ideias de alguém e que há
muita gente interessada que isso não aconteça. Contudo, ela mostra que nenhum
ser humano é intrinsecamente bom ou mau.
— Por isso que aceitaram a minha tia? Mesmo ela sendo uma Vikti?
— Não sei dizer como foram os primeiros anos de minha mãe em Uada, eu nem
era nascida. Só sei que ela era uma de nós. Teve Bjorn e depois de quatro anos
me teve. Acho que ela se acostumou com o nosso jeito.
— Que jeito? - Perguntou Varg, sentando-se à mesa com as duas.
— Kattla conhece e gosta dessas musicas que estão tocando. Disse que em Uada
eles aceitam qualquer tipo de arte.
— Parece que sei menos de Uada do que gostaria. - Disse Varg.
— Senti a mesma coisa. - Concordou Adara.
— São sedutores. - A voz fez com que Kattla se virasse e visse Adish.
Ele esticou a mão para um cumprimento, mas ela não o tocou. Adish sentou-se à
mesa, inclinando-se para ela e disse:
— Conheci um Ljot que também não tocava as pessoas. E enfim, olha o que ele
fez comigo.
— Garanto que não fui eu, pois tenho apenas 27 anos, enquanto ao que parece o
senhor já deve estar beirando os 60.
— O que não quer dizer muita coisa, pois que qualquer Ljot poderia pagar no
lugar dele. - A voz de Adish soou ameaçadora.
— Muitos Ljos já morreram, já devia se sentir vingado de certa forma.
— Não fui eu quem os matou.
— Nem eu quem te machucou.
— Estou de olho em você, garota. - Disse Adish, levantando e retirando-se.
— Não acho que ele ainda é forte o suficiente para fazer qualquer coisa contra
você. - Disse Varg.
— O que sabe sobre mim para estar certo disso? - Perguntou Kattla, depositando
um olhar inquisitivo sobre os graciosos olhos azuis.
— Não sei nada sobre você. Mas, sem um braço e um olho, movido pelo ódio. Não
sei se conseguiria de fato fazer qualquer coisa.
— Ódio é uma força poderosa, não deveria subestimá-la.
— Se confiar em mim o suficiente para ser seu guarda-costas…
— Não preciso disso. - Ela levou a caneca de cerveja à boca.
— Não precisa ser tão difícil. - Ele insistiu.
— Não estou sendo difícil, Adara disse que não posso andar pela cidade, que não
posso sair sem ela e várias outras regras que estou respeitando. Só não invada
meu espaço, tudo bem?
— Você pode sair com o Varg, se quiser. - Disse Adara. — Estamos todos de
acordo em fazer o que a Velha nos pediu. Vou falar com Leif e já volto.
— Você deve estar se sentindo sozinha. - Disse Varg, enquanto olhava Adara se
afastar.
— Eu sei que estou sozinha, Varg, mas não significa que esteja sofrendo. Em
quem você acha que eu deveria confiar aqui? Você? Adara? Martim? O maneta?
Nas sombras que dançam na floresta? Ou nos lobos que cercam a casa da minha
prima todas as noites?
— E o que faz aqui?
— Estou me escondendo.
— Do que?
— Isso não importa.
— Sabe que pode não sair viva de seu esconderijo.
— Para morrer basta estar vivo. Não é a morte que temo.
— Diga, o que você é capaz de fazer? Isso tornaria tudo tão mais fácil.
— Não te interessa. Quanto menos soubermos um do outro, melhor.
— Quer mais uma bebida? - Ele perguntou, percebendo que o copo dela estava
vazio.
— Com veneno ou tranquilizante?
— O que você prefere? - Ele perguntou, sorrindo.
— Algo que me deixe viva.
Ele piscou para ela e foi até o balcão. Ela sorriu timidamente, ele era agradável.
4 – A Noite da Dama da Floresta

Fitas de cetim coloridas estavam amarradas nos arbustos e galhos mais baixos. A
lua cheia iluminava toda a floresta com sua luz pálida. A musica tocava alegre
para o ritual. Três homens que se voluntariaram para ser o sacrifício daquela
noite, já estavam amarrados em árvores, longe uns dos outros.
No centro do triângulo que os três homens formavam havia uma enorme boneca
feita de galhos e palhas. Era tão perfeita que de longe até parecia uma mulher
real participando da celebração. Algumas pessoas dançavam ao redor da enorme
boneca. A representação da Dama da Floresta.
Galões de cerveja e vinho estavam acumulados perto de uma enorme pedra,
próximo de onde a alta fogueira queimava e uma mesa improvisada com troncos
de árvores caídos na floresta estava repleta com vários pratos de comida. Todos
vestiam robes e capuzes.
Leif se aproximou de Adara e segurando com delicadeza sua cintura a tirou para
uma dança. Um grupo de músicos animados enchiam a floresta com musica
alegre, como um presente e uma oferenda aquela que os cuidava e protegia.
Enquanto os dois dançavam, ele disse:
— Tem certeza que deixar sua prima sozinha no vilarejo é uma boa ideia?
— Ela não está sozinha. - Ela tocou o rosto dele com carinho e perguntou: — Nós
vamos fazer alguma coisa com relação a resistência? Vamos tentar tornar Norga
independente novamente?
— Já conversamos sobre isso. Tem coisas que ainda não podem ser ditas.
— Leif, sou eu! - Disse nervosa. — Treinamos juntos, já salvamos a vida um do
outro várias vezes. Transamos! Como pode não confiar em mim? Como pode não
me dizer coisas tão importantes?
Ele ficou em silêncio.
— É por causa dela, não é? Não acredita em mim porque Kattla está em minha
casa.
— Kattla está em sua casa por consenso de nós todos. E eu já te disse que se
descobrir o que ela é capaz de fazer, você tomará de volta seu lugar.
Ela se soltou dele e se afastou um pouco do grupo sentando sobre o solo úmido
da floresta. Estava tão nervosa que nem percebeu quando sua amiga Nytt, com
seu longo cabelo castanho quase dourado se aproximou, sentando-se ao seu lado.
Nytt perguntou:
— Está tudo bem, Adara?
— Você sempre sabe quando não estou bem. É incrível!
— Somos amigas desde crianças. É um pouco óbvio que eu perceba quando você
não está bem.
— Eu gosto muito de Leif, não apenas como nosso líder, mas por tudo o que sei
que ele é. Contudo ele não torna as coisas fáceis. Nem fui eu quem decidiu que
Kattla ficaria em minha casa, mas sim a Velha Sábia. E não entendo que eu
tenha que passar a vida pagando pelo que meu pai fez. E se Leif fosse o único
superior que eu tivesse estava bom.
— Ninguém está livre de vários superiores quando somos claramente separados
por clãs. Você alguma vez procurou saber o que de fato aconteceu com a sua tia?
Como o clã dela reagiu ao que aconteceu?
— Não.
— Acha que sua prima pode saber de alguma coisa?
— Ela é uma Ljot.
— Ainda assim filha da sua tia, uma Norgian. Se ficar parada esperando as coisas
caírem do céu, ou que alguém venha te dar algum tipo de informação, não se
moverá da estaca zero.
— E com quem eu deveria falar, se Leif não diz nada?
— A Velha Sábia. Aquela Que Sabe. Seu animal de poder. Não sei. É uma Vikti,
não deveria estar tão perdida.
— Minha vida está uma bagunça, Nytt, desde que tivemos que fugir pra cá. Nem
mesmo Leif parece ser a mesma pessoa. Eu não sei o que essa guerra fez com a
gente, não sei se sou eu que estou enlouquecendo.
— Estamos todos sofrendo com a guerra e o avanço do império. Não há nada de
errado com você, ou com Leif, ou com qualquer um de nós.
Nytt parou de falar apenas para observar Varg que passava por elas com o peito
desnudo e glabro e galhos que imitavam chifres enfeitando a cabeleira loira.
Adara virou-se para ver o que havia chamado a atenção da amiga e disse:
— Ainda gosta dele, não é?
— Sei que é óbvio o que sinto por Varg. Mas, já era, até isso a guerra levou de
mim.
— Do que está falando? Ele está aqui, vivo.
— Mas, por minha causa o melhor amigo dele morreu. Eu poderia ter o ajudado,
mas ao invés disso, fugi com medo em meio ao bombardeio.
— Parece que todos nós fizemos algo destrutivo ou eticamente errado.
— Antes de sermos Viktis, somos humanos. Humanos estranhos, mas humanos e
assim passíveis de erro e de escolhas estúpidas. Acha que sua prima sabe de
alguma coisa e por isso está aqui? Já pensou nisso?
— A informação que tenho é que ela está aqui se escondendo tanto quanto nós. -
Respondeu Adara.
— Por que apenas ela?
— Não faço ideia.
— Bem talvez se descobrir isso as coisas melhorem para você.
— Você fala como minuciar a vida daquela que meu pai matou a mãe fosse algo
fácil. Eu gostaria, mas não sou um monstro. E se ela esteve lá quando meu pai o
fez? Como ela viveu sem a mãe depois disso tudo? Eu sei que sou uma filha da
puta, Nytt, mas vejo meus olhos nos olhos da minha prima.
— Não é culpa nossa que o povo de Uada se tornou viciado em magia e se afastou
da gente.
— Sabemos que eles contam uma história diferente da nossa e que faz tanto
tempo que não temos ideia de quem começou o quê.
— Hoje celebramos a Dama da Floresta e à ela oferecemos sacrifícios por nos
manter vivos e nos preparando para o momento que está por vir. Comemoramos
em honra daquela que sustenta toda a vida, a Senhora Selvagem que ama os
animais e deles cuida. Celebramos a vida, esse dia de poder. Ave Dama Floresta!
Com essa declaração de Leif, todos se uniram próximos à mesa e encheram
chifres de bebidas tomando todos sincronizadamente e após comerem cogumelos
que uma mulher passou oferecendo numa bandeja, não demorou muito até que a
celebração se tornasse ainda mais animada.
Leif ateou fogo na boneca que representava a Dama da Floresta e serviu vinho e
cogumelos para os três homens que se ofereceram como sacrifício. Era cuidadoso
para não deixá-los molhados com a bebida e fez um afago na cabeça de cada um
deles, que não expressavam nenhum tipo de arrependimento ou medo.
Adara se deitou no chão úmido tentando ver algo além de névoa sobre a clareira
onde estavam. Sempre fazia aquilo quando se sentia confusa ou sozinha. Tantas
coisas passavam pela sua cabeça. Não que fosse a única num momento de guerra
como aquele que estivesse triste e confusa.
Talvez fosse toda aquela pressão sobre ela para descobrir do que a prima era
capaz, o que ela podia fazer como uma Ljot, se era apenas uma Ljot ou uma
guerreira Uadani também. Questionava se o pai dela já não tivera causado dor
suficiente na prima.
Contudo, também culpava a tia e a odiava com todas as suas forças por se deixar
levar por uma paixonite qualquer e depois fugir para Uada envergonhando toda a
família. Se ela tinha que pagar pelos erros de seu pai, Kattla também teria que
pagar pelos erros de sua mãe. Levantou abrupta quando viu Martim se
aproximando, o questionou:
— O que você está fazendo aqui? Eu não disse que era para ficar de olho na
minha prima.
— Ela estranhamente me pediu um calmante porque não estava conseguindo
dormir e depois de uma hora acabou dormindo. Fiquei lá por mais um tempo
apenas para me certificar, mas ela estava até roncando. Então quis vir aqui para
participar da festa também.
— Por que ela precisaria de um calmante para dormir?
— Eu não sei, Adara, talvez seja alguma data especial que a deixa triste. Como eu
vou saber? Sua prima não fala nada pessoal dela nem pra mim e nem pra
ninguém. Mas, de uma coisa eu sei. Você precisa relaxar um pouco.
— É verdade. Venha, vamos beber um vinho e dançar um pouco.
5 – A Noite da Dama da Floresta II

Kattla respirou fundo quando percebeu que tinha enganado Martim, queria muito
ficar sozinha naquela noite. Enquanto os Viktis comemoravam sabia-se lá o quê,
era um dia de poder e celebração em Uada também e queria muito ficar sozinha
para que pudesse solenizar.
Vasculhava a casa da prima para ver se tinha algum tipo de bebida e ficou feliz
quando encontrou uma vela e a acendeu, deixando ao lado de dentro da janela
sextavada, como um sinal para os espíritos que aquela casa deveria ser protegida
e cuidada por eles.
Continuou vasculhando até que encontrou uma única garrafa de vinho, sabia o
quanto bebia e por isso não era suficiente, mas era melhor que nada. Colocou
algumas coisas dentro de uma bolsa de tecido impermeável, que caía-lhe sobre o
quadril e seu aparelho celular que só usava para ouvir musica.
Numa sacola maior de lona colocou algumas lenhas para acender uma fogueira e
deixou a casa tentando procurar um lugar calmo onde pudesse ficar e que não
fosse na floresta, na qual sabia ainda não ter permissão para entrar. As ruas
eram iluminadas por postes públicos que pareciam candeeiros.
Não sabia exatamente para onde ir, então seguiu sua intuição e encontrou algo
que não tinha visto anteriormente. Clareou o lugar com a lanterna e percebeu
que era um pequeno descampado que dava, como todos os lugares ali, para a
floresta, entretanto longe o bastante.
Começou a organizar a lenha para acender sua fogueira num lugar que julgou
deixá-la a salvo da floresta. Quando deixou tudo pronto e acendeu a fogueira,
ficou por um longo tempo apenas observando as chamas bruxuleantes que
pareciam fazer a escuridão ficar ainda mais intensa.
Julgou ouvir o balir de um bode. Levantou-se para ver onde o animal estava,
direcionando sua lanterna para todas as direções. Após um tempo direcionando a
luz, resolveu baixar a lanterna e deixar apenas a fogueira, foi então que o ouviu
novamente.
Guiada pela audição foi andando devagar para onde o animal poderia estar.
Julgou que o animal parecia querer ser encontrado, já que na medida que
andava, mas ele balia. Não demorou muito até que o encontrou à margem da
floresta, um belo bode branco. Ela se agachou, dizendo:
— Não precisa ter medo.
Levou então a mão sobre a cabeça do animal para um afago, mas saltou para
trás, se desequilibrando e caindo, enquanto dizia estupefata consigo mesma:
— Você é um Vikti!
O bode abruptamente se transformou num homem, alto, com os cabelos
dourados e ondulados, o queixo levemente quadrado que dava todo um charme
para o rosto apessoado, com os olhos tão azuis que eram quase transparentes.
Ele estava totalmente nu, o que fez com que Kattla iluminasse cada parte de ser
corpo.
— Desculpa pela nudez. Posso ficar híbrido se quiser, não é a coisa mais bonita
do mundo, meio homem e meio bode, mas talvez se sinta mais à vontade.
— Estava me vigiando?
— Sim. Mas, por motivos pessoais.
— Que motivos pessoais seriam esses? - Perguntou Kattla, levantando-se.
— Porque nunca vi nada mais bonito e mais curioso em toda minha vida.
— Você fala como eu não soubesse que a maioria das pessoas daqui estão
querendo saber por qual razão estou nesse lugar e o que eu posso fazer. Por mais
bonito que você seja, Sr. Bode, o que tenho que fazer é muito maior e mais
importante do que eu.
— Olyn, meu nome é Olyn. E não estou contra você e nem querendo arrancar
nenhum de seus segredos. Numa dessas mitologias muito antigas, um deus se
apaixonou por uma ninfa, mas ela não queria nada com ele. Ele a perseguiu por
todos os lugares, fez tudo o que podia para conquistá-la, mas nada adiantou.
Então, ele a transformou em eco e portanto, ela só pode repetir o que os outros
dizem.
— E o que isso tem a ver?
— Não acredito em amor a primeira vista, mas seja o que for, desde que chegou
eu tenho te observado. Obsessão?
— Provável.
— Permite-me ficar sentado com você na sua fogueira?
— Tudo bem.
Os dois caminharam em silêncio até a fogueira. Ele sentou-se ao lado dela, o que
a fez o observar mais de perto, a cabeleira loira que contrastava com os chifres,
tornava Olyn parecido com um deus que ela conhecia bem. Sem pedir permissão
ela passou suavemente os dedos sobre o chifre dele, o que o fez a olhar,
esboçando um sorriso:
— Ljots não se transformam, não é?
— Não. Temos sempre essa aparência de humano.
— Sou mortal, mas não estou certo de que sou humano.
— Se engravidar alguém é possível que nasça um bode? - Ela perguntou
enquanto abria o único vinho que tinha.
— Quer tentar?
— Não sei se seria uma boa mãe para bodes.
— Você pode confiar nele, Kattla. - Ela conhecia bem aquela voz, era de seu
espírito protetor.
— Por que vocês vieram para esse lugar? - Ela perguntou, entregando a garrafa
de vinho para ele.
— Nós somos a resistência, Kattla.
— Penso no meu irmão todos os dias. Eu sei que ele não está morto, sinto isso
dentro de mim, mas ele é tudo o que tenho, sabe? Foi tudo o que me sobrou. Eu
nem devia pensar assim, sou de Uada, o que significa que eu sou toda Uada e
tudo devo fazer pelo meu país, pelo bem do meu povo. Mas, aqui, no meio do
nada, só consigo me importar com ele.
— Meu pai gostava de contar histórias de heróis. Mas, a que mais gosto foi de um
dos nossos líderes, quando Fopros nos conquistou e disse que ele devia se
converter à religião do Deus Único deles, o Jesus Hologrófico, então nosso líder
perguntou, quando morrer vou ir para o mesmo lugar que os meus
antepassados? E responderam, seus antepassados não foram salvos e estão no
inferno, mas você vai viver no paraíso.
— E o que ele fez? - Ela perguntou, interessada.
— Ele disse que preferiria passar a eternidade no inferno com seus ancestrais do
que no céu com seus inimigos.
Ela gargalhou, perguntando:
— E o que fizeram?
— Mataram-no. O que acha que o Império faz?
Ela chacoalhou a garrafa de vinho quase vazia, fazendo Olyn olhar para ela,
perguntando:
— Quer beber mais?
— Gostaria, mas foi a única garrafa que encontrei na casa da minha prima.
— Seria muito assustador se eu te convidasse para ir em casa?
— Sim, mas posso correr o risco.
Os dois deixaram o lugar e caminharam alguns quarteirões enquanto
conversavam sobre coisas banais e variadas. Independente da atração mútua,
ambos estavam cientes do que eram e o que tudo aquilo poderia vir a significar
para todo o povo do vilarejo.
A casa dele não era muito distante da casa de Adara, mas próxima demais da
floresta, o que fez com que Kattla olhasse pelas janelas várias vezes. Sentiu o
calor do corpo de Olyn que se aproximou dela, dessa vez vestido e segurando um
cálice com vinho.
— Gosta de musica?
— Sim. Estudei por um tempo em Uada.
— Vocês estudam coisas assim em Uada? - Perguntou claramente surpreso.
Ela sorriu.
— As crianças que são separadas para se tornarem Ljots são entregues para
sacrifícios aos seis anos, é brutal, eu sei. E aquelas destinadas a ser guerreiras, a
maioria homens, são entregues ao estado ao sete anos de idade. Depois disso
temos os treinos diários combinados com os estudos na adolescência. Assim se
quisermos seguir com a vida normal como outros cidadãos, podemos fazer
faculdade.
— Não acha que é cruel demais?
— Foi o que nos manteve em pé até agora.
— Não faz sentido, Kattla, crianças morrerem assim.
— Isso têm séculos de tradição, não fui que criei. Fui um sacrifício e não me
arrependo.
— Por que não se arrepende? O que pode fazer de tão especial?
Ela aproximou o rosto dele e beijou suavemente seus lábios. Olyn não pensou
duas vezes e a trouxe para perto de seu corpo, deslizando o olhar entre seus
lábios e os olhos esmeraldas, apossando-se de sua boca, num toque macio,
quente e úmido. Sentiu os braços da moça enroscar-se em seu pescoço.
— Preciso voltar. - Ela disse, assim que se soltou dele.
— Fiz algo de errado?
— Não. - Ela o beijou novamente. — Minha prima não sabe que saí.
— Vamos nos ver de novo?
— Sim.
Ela pegou a bolsa que tinha deixado sobre o sofá ao lado da janela e não viu que
deixara o celular.
6 – Tempo perdido

Não que Kattla estivesse contente de estar naquele bar novamente no velho
galpão, mas sua prima, que muito agitada naquele dia, não quis lhe dar outra
escolha senão sair para beber. Sentou-se sozinha à mesa, enquanto seguia o
maneta com o olhar.
Adara estava no balcão, tomando um coquetel, enquanto conversava com uma
pessoa que Kattla nunca viu antes. Contudo era um velho amigo de Adara,
cresceram juntos e finalmente ele tinha encontrado o vilarejo. Enquanto ele
tomava sua cerveja, disse:
— Soube que tem uma Ljot aqui. Os Viktis estão guardando segredo pelos
anciões, mas num momento ou outro isso pode vir à tona. Acha que a floresta a
protegeria?
— Não sei, Luí.
— Desde que chegou ela não entra na floresta, embora fique horas olhando para
ela. Eu tenho a olhado de perto, terá que ser muito boa para fazer qualquer coisa
contra nós. - Disse Varg se aproximando ao lado de Leif.
— Achei que ficaria na capital, Luí. - Disse Leif.
— Pediram para que eu ficasse aqui alguns poucos dias. Onde está nossa Ljot?
Varg fez um sinal com a cabeça para a mesa onde Kattla estava.
— Vamos fazer companhia para ela então. - Disse Luí pegando o copo e seguindo
para a mesa junto dos outros.
Kattla os olhou enquanto se organizavam em sua mesa e por mais que se
esforçasse não conseguiu não rolar os olhos. Fitou Luí por um tempo, todos
sempre loiros e parecidos, contudo seu cabelo era curto e aquilo fez pensar se
tinha algum tipo de significado. Ele esticou a mão num cumprimento, mas ela
não retribuiu. Desconcertado, disse:
— Luí.
— A essa altura já deve saber meu nome.
— Não gosta de ser tocada, não gosta de tocar os outros, quase não conversa, não
temos a menor noção do que é capaz. - Disse Leif.
— Por que? Ela mata ao tocar? - Questionou Luí, zombeteiro.
— Tenho medo de pegar lepra. - Respondeu Kattla, irônica.
— Por que a Velha está te escondendo aqui? - Perguntou Luí.
— Pergunta pra ela. - Kattla virou-se para Adara e perguntou: — Posso ir
embora?
— Ainda não. - Respondeu Varg. — Não estamos te tratando mal, você tem casa
para morar, não te jogamos para dentro da floresta. Acho que isso tem sido
bastante gentil da nossa parte. Só queremos que fale um pouco de você e acabe
com todo esse mistério.
— Eu gostaria, Varg. Mas, eu não posso. Nem adianta eu dizer que não estou
aqui para fazer qualquer coisa contra vocês, tampouco vingar a minha mãe, mas
isso não é suficiente, não acreditariam em mim. E não será tão cedo que o farão.
Meu país está em guerra, meu irmão está lutando, tudo o que eu queria era ficar
em paz com todos os pensamentos horríveis que estão passando em minha
cabeça. Mas, é óbvio que não sou gente para nenhum de vocês.
— Talvez nossa situação não seja tão diferente. - Disse Adara.
— Está defendendo sua prima agora? - Perguntou Leif.
— Nós passamos por isso. É o que quero dizer. E ao contrário de Uada, não
tivemos uma chacina de Vikti como houve de Ljot.
— Por um bom motivo. Ljots são extremamente perigosos. É preciso contar
milhares de vezes que éramos um povo só, mas os Ljots tornaram-se viciados em
magia? - Perguntou Leif.
— E o que você quer fazer, Leif? Matar-me ou forçar-me a falar sob tortura? -
Perguntou Kattla.
— Ainda estou pensando sobre isso.
— Ótimo, enquanto você pensa, posso ir embora?
Ele balançou a cabeça afirmativamente. Varg a seguiu com o olhar, ainda a
achava muito bonita, embora soubesse que ela seria bem difícil de lidar como
vinha demonstrando desde que chegou. Leif se levantou e tomando a mão de
Adara caminhou para o porão do galpão.
Lá havia uma cama, uma pequena mesa ao lado da cama com algumas garrafas
de bebidas e um aparelho de som, que ele ligou tão logo entraram no lugar, num
volume agradável onde os dois pudessem conversar sem ser atrapalhados pela
musica.
Enquanto a servia uma bebida, ele perguntou:
— O que você quis dizer com “nossa situação não seja diferente”?
— Estivemos na guerra, Leif, vimos as coisas horríveis que nosso povo passou,
mesmo você quase não escapou com vida.
— A guerra veio para Norga e Uada ao mesmo tempo. No entanto, Uada ainda
persiste independente.
— Sabemos que os Ljots foram a causa que manteve Uada em pé, mas eles já não
são muito, depois que Fopros tomou a ação de matá-los todos, por causa do Ljot
que os traiu, não acho que Uada se manterá em pé agora. E minha intuição me
diz que é por isso que minha prima está aqui, como nós estamos aqui. Para nos
refugiarmos, para termos a esperança de agirmos no momento certo.
— Está gostando da sua prima? Sua ingenuidade é irritante às vezes. Eu vi o que
Ljots são capazes de fazer. Vi a fúria cega de muitos deles. Não são híbridos, mas
também não são humanos, não vivem como humanos, são monstros, Adara.
— Ela é filha de uma Norgian. - Disse quase num sussurro.
— Ela não é uma de nós, Adara, coloque isso em sua cabeça. Você só está
piorando as coisas. - Ele se levantou e andou de um lado para o outro. — Venho
tentando te ajudar, tentando recuperar a reputação da sua família, o respeito do
seu clã. E agora isso? Promete que não fará mais desse tipo de comentário?
— Prometo. - Disse, incerta.
Retirou o copo de bebida da mão dela e com mãos delicadas a empurrou pelos
ombros fazendo-a deitar na cama. Adara sentia as mãos de Leif que percorriam
por todo o seu corpo a despindo, mas sua cabeça parecia estar em qualquer
lugar, menos ali sob o corpo dele.
Sequer notou quando ele a desnudou por completo beijando sua boca de quando
em quando. Despertou com seu próprio suspiro quando sentiu a língua dele entre
suas pernas. Onde estava aquela que amava Leif com toda a sua alma? Precisava
avivar seu corpo para ele não notar sua apatia.
O empurrou sobre a cama e o despiu, os lábios também percorriam o corpo rijo e
apessoado de Leif, olhou para ele por um momento, continuava lindo como da
primeira vez que o viu, mas já não era mais o mesmo homem. Será que a guerra
teria endurecido a todos?
Encaixou-se nos quadris deles, movimentando para cima e para baixo, enquanto
que o torso curvado, fazia um esforço para alcançar os lábios carnudos dele.
Havia algum sentimento ali como antes ou era apenas sexo?
Ele a jogou para o lado ficando por cima dela. Leif não evitava encarar seus olhos,
como sempre fizera, beijava-lhe os seios roliços, para novamente retornar para a
boca e continuar olhando os olhos esmeraldas de Adara. E por algum motivo que
nem ele pode entender, viu o rosto de Kattla.
Eram os olhos, estava certo, as duas tinham os olhos idênticos, esmeralda como
o verde-escuro da floresta que os protegia lá fora. Será que podia mesmo confiar
em Adara como sempre confiou? Será que a convivência com a prima não estava
a fazendo mudar de ideia?
Não queria pensar naquilo, não enquanto transavam. Esvaziou a cabeça, mas os
pensamentos insistiam. Ela poderia se sentir culpada pelo que o pai fez. E o clã
da mãe de Kattla nunca se pronunciou, o que sempre achou estranho. Ele
precisava fazer algo mais além de sexo.
7 – Pacto

Kattla estava inquieta, não conseguia dormir. Olhou para o criado-mudo e o


relógio informava ser duas horas da manhã. Havia magia no ar, levantou e
desceu a escada de madeira, indo para a cozinha para tomar um copo d’água,
não sem antes perceber que a prima dormia tranquila no quarto dela.
Assustou-se quando, enquanto bebia água, uma coruja bateu o bico no vidro da
janela. Ela olhou um pouco mais de perto e percebeu que o animal carregava um
bilhete no bico. Abriu a janela cuidadosa para não fazer barulho e pegou o papel,
viu que algo estava escrito e leu:
“Quero te ver, se quiser me ver também, dei um jeito para ninguém ver que você
está vindo pra cá. Com carinho, Olyn”.
Kattla sorriu confusa, talvez aquela magia que sentia fosse dele, mas como
ninguém a veria. Sempre havia lobos do lado de fora da casa de Adara, que ela
não sabia dizer se eram apenas animais ou Viktis. Não queria usar a própria
magia, confiaria na magia dele e caso algo desse errado, usaria a dela.
Era um risco. Isso a deixou agitada andando de um lado para o outro.
Irresponsável – era o que repetia mentalmente para si mesma. Contudo se sentia
tão sozinha e se sentira tão bem na companhia de Olyn, que não demorou muito
até que se trocasse e deixasse a casa.
A névoa estava tão densa que não dava para enxergar um palmo adiante, ela não
queria acender nenhuma lanterna ou algo do tipo para não chamar atenção. Foi
então que subitamente foi tomada no colo e seguiram para a casa de Olyn numa
velocidade anormal.
Ele estava em sua forma híbrida e antes que dissesse qualquer coisa, subiu até o
quarto e vestiu uma roupa, descendo em seguida. Não a deixou falar, as bocas se
encaixaram numa luta débil e assim que afastou o rosto da face delicada da
moça, ele disse:
— Não parece que teve um dia bom.
— Não tive.
Ele acariciou o rosto dela:
— Quer me contar o que aconteceu?
— Esse pessoal fica com toda essa pressão para que eu diga qual é o meu poder,
o que estou fazendo aqui, ficam me vigiando, acusando-me. Eu não estou aqui
porque eu quero, Olyn, queria estar em Uada lutando ao lado do meu irmão. E
não vou ficar aqui por muito tempo também. Entende?
— Eu queria te ajudar, mas preciso ser sincero de que se souberem que está
comigo, vão fazer com que eu te force a me dizer coisas que você não quer
compartilhar. Como eu disse, eu não te amo, mas não desejo isso para nós dois.
— Não sou uma ameaça para você?
— Eu não conheço bem quais as filosofias e éticas de Uada, talvez você me
matasse antes de ir embora. Mas, algo dentro de mim diz que nada disso vai
acontecer.
— Sabe que minha mãe era Norgian e meu pai Uadani, certo? Ser amado por um
de nós é o mesmo que ser um de nós. Não importa de onde você veio. Contudo,
terá que aprender a viver pelo estado, por Uada. Minha mãe fez isso.
Kattla olhou para o lado como se rebuscasse as memórias.
— Ela viveu que nem uma Uadani e éramos orgulhosos disso. Mas, ela sempre
nos contava e ensinava várias coisas de Norga e nos dizia que era provável que
não gostassem de nós como merecíamos, mas que nos considerássemos também
Norgian em honra dela.
— Isso quer dizer que você lutaria conosco? - Perguntou surpreso.
— Sim, pela minha mãe. - Os olhos dela marejaram. — Embora acho que tenho
um novo motivo.
— Que novo motivo?
— Você. - Ela tocou o rosto dele e com os lábios próximos, disse: — Só não me
traia.
Ele a deixou sozinha na sala, para retornar em seguida com um punhal. Ela o
encarou inquisitiva, sabia o que aquilo significava e o quanto poderia ser
perigoso. Não precisava ser gênio para entender o que Olyn estava propondo. O
que encheu a cabeça de perguntas.
Com delicadeza tomou o punhal da mão dele, colocando-o sobre uma mesa de
canto na sala. Retornou, afagando os cabelos loiros e compridos, deixando as
mãos deslizar sobre o rosto que tanto a encantara, dizendo:
— Talvez seja cedo para fazermos isso. Sei que posso confiar em você. Sabemos o
que acontece com pactos de sangue entre Ljots e Viktis.
— Então, você realmente está aqui para nos fazer mal?
— Não, eu não estou.
Ele se afastou e tomou o punhal novamente, entregando-o para ela em seguida,
que disse entristecida:
— Você precisa confiar em mim?
— Sou eu que gosto de você. Eu que te observo desde que chegou. Eu que deixei
que você me encontrasse no descampado.
— A partir da próxima lua cheia vamos sentir um ao outro se fizermos isso.
Encontrar um ao outro. Não tem nada a ver sobre confiança, só acho prematuro
esse tipo de vínculo.
Em silêncio Olyn observava a face dela, estava absorta, até mesmo assustada
com aquele pedido. Ele podia sentir o cheiro de seu assombro. Passando a lâmina
brilhante sobre a mão esquerda, disse sem o olhar:
— Queria me apaixonar por você antes de algo assim.
— Você não precisa ser minha esposa para isso, basta ser minha amiga. Não
estou propondo um casamento.
— Já que vamos fazer isso, então vamos fazer direito. Será aqui? Em algum
quarto? Temos bebidas? 13 cortes?
Olyn sorriu e a guiou para seu quarto. Era um lugar simples, com poucos
móveis, porém aconchegante. Ele acendeu várias velas pelo quarto formando um
círculo e colocou um incenso para fumegar. Distraído com isso, nem percebeu
quando Kattla se despiu e encantou-se com o corpo nu da moça, que disse:
— Tem outro punhal além desse? Será necessário.
— Tenho.
Ele deixou o quarto, enquanto ela pegava outras velas que estavam apagadas em
cima da cômoda e lá mesmo começou acender. A luminosidade bruxuleante e a
fumaça perfumada que crescia no quarto a deixou num estado relaxado, sua
mente não mais questionava tanto o que estava fazendo.
Olyn retornou com outro punhal que entregou a ela e um cálice que colocou
sobre a cômoda enquanto se despia diante dela. Ela o acariciou por um tempo,
deslizando as mãos no peito glabro e beijando em seguida, e, ao sinal dele se
afastou. Ele ergueu o punhal acima da cabeça e com os olhos fixos na lâmina,
disse:
— Oh Grande Espirito que a tudo permeia, que reside em todas as coisas, nos
objetos, em cada pessoa e em todos os lugares. Atente-se à minha voz quando
falo contigo. Eu te invoco dos mais distantes lugares, de onde estiver, para estar
presente nessa cerimônia.
Olhou para Kattla com carinho e se voltou para o norte, continuando:
— Oh Norte, que dá asas às águas do ar e faz rolar a tempestade de neve diante
de Ti. Tu, que cobres a Terra com um brilhante tapete de cristal, onde a profunda
tranquilidade de cada som é maravilhosa. Fortaleça-nos para permanecermos
como parte da nevasca.
Deu alguns passos para o leste e lá declarou:
— Oh Leste, Terra do sol nascente. Que segura em sua mão direita os anos de
nossas vidas e em sua mão esquerda as oportunidades de cada dia. Sustenta-nos
para que não esqueçamos nossas oportunidades.
O mesmo fizera, mas dessa vez voltando-se para o sul:
— Oh Sul, cujo quente hálito de compaixão derrete o gelo que circunda nossos
corações, cuja fragrância fala de distantes dias de primaveras e verões, dissolve
nossos medos, transmuta nossas aversões, acenda nosso amor em chamas de
verdade e existentes realidades. Ensina-nos que aquele que é forte é também
gentil; que o sábio tempera justiça com piedade e o verdadeiro guerreiro combina
coragem com compaixão.
“O verdadeiro guerreiro combina coragem com compaixão” - repetiu Kattla em sua
mente como se aquilo a fizesse se lembrar de algo, mas não sabia o que. E
finalmente, voltado ao oeste, ele finalizou:
— Oh Oeste, Terra do sol poente, casa dos ancestrais, por favor ensina-nos que o
fim é melhor que o começo e que o pôr do sol não glorifica nada em vão.
Ele bebeu um pouco da taça de vinho e ofereceu para ela beber também. Ela
podia sentir a magia intensa no quarto de Olyn naquele momento e até
entristeceu ao que lembrou que era sua vez de invocar aquele que era tudo para
ela. Tomou o punhal da cômoda, cortou a mão e esperou algumas gotas de seu
sangue cair ao chão, quando a pequena poça lhe pareceu suficiente, disse:
— Ó Deus de coração brutal, habitante do lar subterrâneo, lúgubre e lucífugo. Oh
Rei oculto, que detém as chaves de toda a terra, que todo o ano dá a riqueza dos
frutos à estirpe mortal. Oh Deus longínquo, infatigável e sem ventos. Nasceste
para ser juiz de atos claros e ocultos, onipotente divinizado, o mais sagrado, de
esplêndidas honras, que se agrada na condução de insignes mistérios,
consagrados e reverendos, apelo que tu venha grato e propício aos mistérios. E
assista esse pacto.
Metade das velas se apagara quando ela finalizara, ainda que não houvesse
sequer uma corrente de ar. Kattla riu. Olyn a pegou no colo e colocou sobre a
cama, ambos seguravam um punhal. Sentiu o toque carinhoso dele afagando seu
cabelo, sabia que era algo um tanto doloroso, o corte não podia ser muito raso,
pois o sangue tinha que jorrar, mas também não poderia ser muito profundo.
— Sabe que sou um híbrido e meu sangramento não durará muito tempo, então é
importante que beba de meu sangue tão logo me corte.
Ela balançou a cabeça e o beijou, gostava de sentir os lábios quentes de Olyn
massageando os dela. Enquanto o beijava, desferiu o primeiro corte, dizendo:
— Eu Kattla bebo de teu sangue e te torno meu irmão. - Rapidamente levou a
boca ao corte, mas mal terminou de beber e Olyn fez a mesma coisa com ela, o
que a fez apertar os lábios com a dor do corte.
— Eu Kattla apresento teu sangue aos meus antepassados e eles te tomam como
filho. - Disse após outra estocada no corpo de Olyn, que repetiu o mesmo
procedimento.
— Eu Kattla prometo que jamais te abandonarei em seus momentos de
necessidades.
E assim continuaram falando cada um dos juramentos como se seguia:
— Eu Kattla o honro como um filho de Uada; Eu Kattla combino um pouco de
minha magia com a sua; Eu Kattla te acharei onde quer que esteja; Eu Kattla
jamais te trairei e isso juro diante de todos os nossos ancestrais e deuses; Eu
Kattla proclamo ao universo que você também é minha família agora; Eu Kattla
proclamo aos meus deuses a importância que tem para mim; Juro fazer tudo ao
meu alcance para te proteger, acolher e nutrir; Juro que darei as costas ao que
me for mais importante se você estiver em necessidade; As cicatrizes jamais me
permitirão esquecer desse elo mágico; Que os deuses transformem em pó aquele
de nós que falhar com esse juramento, seja manipulando, enganando, mentindo e
traindo.
Olyn estava em silêncio deitado ao lado dela sobre a cama, ambos estavam
encharcados de sangue, especialmente ela. Era o ritual de pacto mais poderoso
que poderiam ter feito e ela se sentia particularmente inquieta, virou-se deitando
a cabeça sobre o peito dele, que passou a afagar o cabelo dela em silêncio.
Queria saber o que se passava na cabeça dele, mas assim como ela mesma estava
experimentando aquela energia estranha que era dele, ele também devia
experimentar algo ainda pior, pois que o deus dela não era muito fácil de lidar.
Ela fez com que ele voltasse o rosto para ela e o beijou.
Olyn pareceu gostar disso, rapidamente se virou e abriu as pernas delas,
encaixando-se em seguida. O prazer encheu seu corpo, expulsando um pouco
sua preocupação com as feridas de Kattla. Era reconfortante ouvir ela gemendo
baixinho sob seu corpo.
— Não está com dor? - Ele sussurrou preocupado.
— Dor e prazer é uma combinação maravilhosa. - Respondeu no ouvido dele.
— Sabemos que esse pacto só será ativado na próxima lua cheia.
Ela o empurrou para o lado, fazendo-o deitar sobre a cama e encaixou-se nele,
deslizando seus lábios sobre seu peito, que já não tinha nenhuma marca dos
cortes que fizera, enquanto ela ainda sangrava.
Sentiam-se tão bem na presença um do outro e fizeram sexo naquela noite por
tantas vezes que nem perceberam que a aurora despontava no céu. Ao notar
Kattla se levantou apressada e passou a vestir sua roupa.
— Você ainda está sangrando em alguns cortes. - Disse Olyn a observando.
— Cuido disso quando chegar na casa da minha prima, não quero que as pessoas
saibam que estou com você. Não quero que saibam o que fizemos essa noite.
— Eu senti sua magia e sei que não tenho que me preocupar, assim como
também sei que você não vai usá-la até que não tenha saída.
— Olyn, eu vou ficar bem. - Ela se aproximou dele, já vestida e beijou-lhe a boca
deixando a casa.
A névoa estava tão intensa quanto na noite anterior, o que fez Kattla pensar que
aquela floresta realmente gostava de ficar produzindo cegueira com aquele
nevoeiro todo. Contudo não ouviu, sequer sentiu a presença de algo ou alguém,
mas algo acertou com tanta força em sua cabeça que a apagou.
8 – Sacrifício

As mãos pequenas agarraram-se ao rosto barbado de seu pai, como se Kattla


precisasse senti-lo por mais um momento. A mãe tentava controlar o choro, não
estava acostumada com algo como aquilo. Deixar sua menininha seguir adiante
com aquela loucura.
Kattla abraçou a mãe e como se pudesse sentir a tristeza e medo que pulsava dela,
apertou-a ainda mais em seu pequeno abraço. Seu pai explicara que a mãe não
conseguia entender completamente a alegria e solenidade daquele momento.
Então, fazendo a loira se abaixar, a pequena disse em seu ouvido:
— O oráculo me disse que vou me sair bem se eu prestar atenção aos meus
ouvidos. Todos os meus ouvidos. Saberei escolher o deus certo e sairei viva do
sacrifício.
O sacerdote todo coberto por um longo manto negro, aproximou-se da pequena ao
lado dos pais, dizendo:
— Qual o deus de sua escolha?
— Preciso de um tempo para responder isso. - Respondeu, Kattla. — Preciso ouvir
quem me chama.
O sacerdote balançou a cabeça afirmativamente e caminhou fazendo a mesma
pergunta para as outras crianças, algumas respondiam prontamente, outras
esperavam alguns segundos para responder, mas nenhuma pediu para responder
depois como Kattla.
Uada tinha muitos deuses, uma cultura totalmente politeísta e muitas pessoas
tinham suas predileções, reis tinham seu próprio deus, como o povo no geral
sempre clamava por um deus mais compassivo ou de acordo com a sua
necessidade.
Antes de serem levadas para o sacrifício essas crianças passavam um ano
estudando a natureza dos deuses com os sacerdotes, por isso era muito comum
que algumas delas já soubessem qual escolheriam, contudo Kattla confiava muito
no oráculo e ainda pequena, manteve-se em pé, num estado meditativo, esperando
ouvir alguma coisa.
Sim, ela ouvira a voz que vinha de algum lugar, não exatamente captada pelos
seus ouvidos humanos, ela tinha um nome e sorriu. Nada era escondido deles,
sabiam que poderiam morrer se não entendessem que a palavra sacrifício queria
dizer sacro ofício, ou simplesmente trabalhar com a energia daquele deus e provar
que era capaz disso.
— E então? - Perguntou o sacerdote gordo, parando diante dela novamente.
— Mantus. Serei o sacrifício para Mantus.
As pernas da mãe bambearam ao ouvir aquilo, poucos saiam vivos das mãos de
Mantus, o pai segurou a mãe para que não caísse ao chão, mas ambos não
conseguiram conter as lágrimas e sabiam que não podiam interferir. Seus bebê
estava descendo para o submundo.

A claridade machucou seus olhos tão logo os abriu. A dor em sua cabeça era tão
intensa que acabou vomitando, o que a fez perceber que estava presa por duas
algemas grossas e correntes que se ligavam num elo grande na parede rochosa
atrás dela. As correntes eram grandes o suficiente para levar as mãos à boca e se
deitar no chão, mas só isso.
As paredes rochosas, de onde poderia ver, eram tão altas que pareciam
impossíveis de escalar sem equipamento. Num esforço ficou puxando as
correntes para ver se conseguia as desprender do elo, mas nenhum de seus
esforços – que foram muitos – fez com que o elo sequer se movesse.
— Estranho que trouxeram um novo sacrifício. - Disse a voz de um homem que
de onde estava não conseguia ver.
— Quem é você? E onde está?
O homem tentou fazer um movimento, contudo tudo o que ele conseguiu
mostrar-lhe foi uma das mãos algemadas e o barulho das correntes, pois que
estava amarrado num outro tipo de túnel a esquerda da rampa onde ela estava.
Não demorou muito para Kattla entender que estavam num tipo de labirinto
natural e com todas aquelas árvores altas criando um teto verde, sabia estar na
floresta.
— Sou Oliver. E você?
— Kattla.
— A Ljot? Por que trariam uma Ljot aqui para sacrifício?
— Não sei. - Ela respondeu, apoiando as costas na parede úmida e fria. — Minha
cabeça e machucados doem.
— Eles nos alimentam uma vez por dia. Nos dão uma garrafa d’água e algumas
frutas.
— Há quanto tempo está aqui?
— Não muito. Desde a noite da Dama da Floresta. Sou um sacrifício voluntário.
Havia mais dois comigo. Um eu não sei onde está e o outro foi devorado pela
criatura que sai da caverna.
— Eu não sou um sacrifício voluntário, como deve perceber.
— Você é uma Ljot, é possível que queiram saber o que pode fazer.
— Estou em grande desvantagem, porque essa floresta não me deu permissão
para estar aqui.
— Acredita nisso?
— Faz parte do que sou. - Fez uma pausa, enquanto olhava ao redor. — Estou
com muito frio.
— Dizem que alguns que se oferecem para sacrifício não morrem, mas tornam-se
híbridos.
— Espera que isso aconteça com você? - Disse Kattla, deitando de modo que não
ficasse na passagem da água, já que estava numa rampa e a chuva fina a
incomodava.
— Sim. Acho que nós todos queremos ser especiais de alguma forma, ter algum
tipo de poder, ter a capacidade de fazer algo para mudar as coisas, para mudar
aquilo que não está no seu devido lugar. Nós humanos somos impotentes diante
de muitas coisas.
— Não sei muito sobre humanos. Não sou uma grande fã deles. - Ela disse com
os olhos fechados, sem perceber que a água da chuva levava seu sangue rampa
abaixo. — A única coisa que sei é que quando nos unimos por um propósito,
nossa impotência torna-se cada vez mais fraca. Mas, se um, basta um, duvidar
desse propósito, então temos um problema.
— Você está sangrando muito! - Oliver disse ao ver a água vermelha numa
pequena poça que se formava ao seu lado.
Kattla não respondeu, tinha apagado novamente.

A entrada da caverna era estreita, além de Kattla, mais cinco crianças


acompanhavam o sacerdote que as levara lá. Para cada uma dera uma tocha e se
certificou que todas entraram na caverna. Não era um caminho fácil, havia vários
túneis, pontes com perigosos buracos pelo caminho.
Assustadas as crianças começaram a caminhar juntas e logo o vozerio começou,
uma dizia “você ouviu isso?”, outra “é melhor seguirmos para direita”, ainda outra
“eu quero sair daqui”. E então o pânico tomou conta quando uma das crianças caiu
num buraco.
As outras se curvaram em torno do buraco e começaram a gritar pelo nome da
criança. Nenhuma resposta, nenhum choro. Todo aquele alvoroço incomodava
Kattla, que sabia que precisava do silêncio para ouvir a voz do deus para que lhe
guiasse.
Sorrateira se levantou enquanto os outros ainda olhavam para o buraco, gritavam
e choravam, mas logo algo segurou seu pulso. Virou-se e reconheceu a menina, era
Ava. A menina se aproximou do ouvido de Kattla e disse:
— Deixe-me ir com você. O oráculo disse que eu devia ficar com você.
— Só se me prometer que ficará em total silêncio.
— Eu prometo.
Caminharam até perder os outros de vista. Como se ambas pudessem ouvir a
mesma coisa, conforme caminhavam iam deixando uma peça de roupa pelo
caminho. Revoadas de morcegos pareciam esperadas por elas e até mesmo
dormiram perto de uma piscina natural onde saciaram a sede.
Naquela altura depois de tanto tempo vagando pela caverna, guiadas apenas pelo
que ouviam, nuas, sem tocha que iluminasse o lugar, já também não ouviam os
outros e não precisavam pensar muito para saber o que aconteceu com eles.
Deram numa câmara natural que não era iluminada, havia algum tipo de pó no ar,
mas eram jovens demais para entender que aquilo poderia alterar o estado de
consciência. Contudo, ambas encontraram a enorme estátua de Mantus e lá
sentaram por dias, esperando pelo Deus.

— E ele me deu tudo. - Disse Kattla, acordando novamente confusa na floresta.


Ava não tinha morrido, estava certa disso. Sua amada amiga, sua companheira
de longos anos, mas onde estaria?
— Acordou? - Perguntou Oliver.
— Sim, só não sei em que mundo.
— Está dormindo sem parar, deve ser por causa da febre. Tem comida aí para
você, por favor coma.
— Por que está tão preocupado comigo?
— Estou sozinho aqui há dias e sinto falta de ter alguém para conversar, para
passar o tempo e para driblar minha ansiedade. E quem te deu tudo?
— Não é da sua conta.
— Morrerei em breve.
— Ou virar um híbrido, o que é um saco para matar.
— Você mata todos os híbridos que encontra?
— Não. - Ela riu. — Minha mãe era uma e eu transei com um também. Só não
acho que seja justo o que estão fazendo comigo agora.
— Tente comer um pouco, Kattla.
— Vai demorar muito para a lua cheia?
— Pelo que percebi estamos saindo da minguante e indo para nova. Por que não
usa seu poder?
— Porque eu sei que esses pássaros e animais ao redor contarão para quem quer
que seja que queira saber do que sou capaz. E se ele está pegando tão pesado, é
um sinal para aguentar firme.
— Como sabe disso?
— Quando toco nesse solo ou nessa parede rochosa, eu posso ver que há vários
Viktis nessa floresta, apenas esperando. Vamos ver quem espera e suporta mais.
— A diferença é que você está toda machucada e com febre na maior parte do
tempo, o que é sinal de infecção e embora não sinta nada do que você sente,
estou certo de que todos eles estão em ótimas condições.
Oliver não ouviu mais nada dela, nem o som do pacote de comida, devia ter
dormido novamente, o que ele sabia se tratar de uma febre muito alta já que não
conseguia ficar acordada. Não entendia porque se preocupava com ela, não sabia
nem se sairia vivo daquele lugar.
9 – Ancestrais

— Sabe me dizer há quantos dias estou aqui, Oliver? - Perguntou Kattla,


enquanto fazia um esforço para tirar a calça jeans, para aproveitar o sol que a
banhava.
— Acho que uns nove dias. Não estou certo.
Ela olhou para as feridas que Olyn fizera nela e todas estavam terrivelmente
infeccionadas. Ergueu a regata que vestia e as do abdômen não pareciam em
nada melhores. Disse:
— Sou um pudim pútrido.
— Você pode morrer se não fizer alguma coisa. Quase não se alimenta, dorme
quase que o tempo todo e não há nenhuma planta por aqui que poderia te ajudar
com isso.
— Ficaria contente se tivesse uma vela.
Kattla começou a procurar por algo como uma pedra, até que achou uma do
tamanho da sua mão. Começou a bater no elo ensandecidamente, contudo nada
o demovia ou quebrava. Gritou de raiva. Olhou para os cortes horríveis em suas
pernas e começou a polir a ponta da pedra na parede rochosa.
— O que você está fazendo? - Perguntou Oliver.
— Vou pedir socorro.
— Por que não usa sua magia e sai logo daqui?
— Porque eu sou uma Uadani.
— E o que isso tem a ver?
— Que sou livre e que ninguém pode me forçar a fazer nada que eu não queira.
— Morreria por isso?
— É o único motivo que se vale a pena morrer. Sem se curvar, sem se trair, sem
trair seu propósito. - E olhando para a pedra, disse: — Acho que está bom.
— Mas o que tem a ver você usar magia com tudo o que disse?
— Tenho certeza de que é por isso que estou presa aqui.
Enfiou a ponta afiada da pedra na ferida maior em sua coxa e não hesitou em
gemer de dor. Estava inflamado e purulento. O sangue não jorrou logo na
primeira tentativa e ela fez isso vezes sem conta, cada vez pressionando com mais
força, até que o sangue jorrou como queria.
Passou a mão sobre a ferida e se virou um pouco de lado, para deixar o sangue
escorrer pelo chão, enquanto pressionava o local do ferimento na tentativa de
fazer o sangue escorrer ainda mais. Os gritos saíam conforme a dor e era tudo o
que sentia. Disse:
— Agora essa terra conhece meu sangue, eu sou Kattla Sethra, filha de uma das
filhas dessa terra, Milla Kari. E não posso acreditar que meus ancestrais me
negam ou negam minha mãe. Preciso de ajuda. Eu não profanei essa terra, nem
essa floresta, nenhum mal fiz aqui. Por favor, meus ancestrais, me ajudem.
Um vento forte soprou fazendo as altas copas das árvores uivarem. Ainda
sentindo dor, Kattla se jogou para trás deitando-se e apertando com uma das
mãos a ferida que tinha feito sangrar novamente, dessa vez na tentativa de
estancar o sangramento.
— Acha que seus ancestrais vão te ajudar?
— Se não me ajudarem é porque eu realmente não mereço e devo morrer.
— Você está bem?
— Não e acho que vou dormir novamente.
Antes de se deitar olhou adiante. Ao final da rampa onde estava tinha uma fresta
que parecia dar numa caverna e diante dela estava uma mulher, de aparência
fantasmagórica. Vestia um vestido marrom que parecia imitar os troncos das
árvores, os cabelos caíam sobre os ombros tão brancos como se ela tivesse
milhares de anos.
A cabeça era enfeitada por folhas e galhos como uma coroa e os olhos eram dois
buracos negros, como se todo o infinito estivesse ali contido. Kattla levou as mãos
aos olhos para limpá-los, sabia que estava apagando e aquilo, sem dúvida, devia
ser um delírio. A mulher então falou:
— Sou Danê, rainha da floresta, dos seres selvagens e livres.
— Você está vendo essa moça que diz ser Danê, Oliver? - Perguntou Kattla
confusa.
— Você está vendo Danê? - Perguntou eufórico.
— Sei que chamou pelos seus ancestrais, mas te observei todos esses dias.
— E me deixou presa também? Como todos os outros que me vigiam nessa
floresta?
— O crepúsculo vem e com ele sua libertação.
— Kattla diga para ela que eu quero servi-la. - Disse Oliver, e se Kattla o pudesse
ver, sabia que estava com os olhos marejados. Mas, já era tarde. A moça já tinha
apagado.
***
— Eu sei que ela não foi embora, Varg, por mais que Leif e todos os outros fiquem
repetindo isso.
— Sabe que tem vários Viktis na forma de animais na floresta procurando por
ela, mas olha o tamanho dessa floresta, por mais rápidos que sejamos não é tão
fácil encontrar alguém perdido quanto parece.
— Nem sei como a Velha ainda não apareceu por aqui…
Adara parou de falar ao ver uma estranha e densa nuvem descendo pela floresta
e vindo retilínea em sua direção. Havia sussurros no ar e ambos se sentiram
arrepiados. Como se soubesse exatamente o que fazer, Varg se transformou num
lobo branco e correu floresta adentro, deixando Adara sozinha.
Devia segui-lo? Devia também tomar sua forma de loba e ir atrás dele? O que ele
ouvira além daqueles sons terríveis que a floresta fazia? Nunca tinha ouvido nada
como aquilo antes e embora lhe fosse muito difícil admitir, sentiu medo. A noite
caía lentamente e a nuvem estranha continuava em seu percurso.
“Uma vela” - intuiu abrupta. Correu para dentro de casa e ao encontrar as velas
acendeu em todas as janelas. Sentou-se, cruzando as mãos sobre as pernas e
deixou o olhar cair sobre elas. Queria saber o que fazer ou no mínimo entender
melhor o que estava acontecendo.
Assustou-se assim que todas as janelas da casa começaram a tremer
freneticamente, fazendo um barulho insuportável que a fez correr para fora da
casa, assustada. A nuvem já estava diante da porta dela e para sua surpresa,
nela formavam rostos.
— Você não tem ninguém, Adara. - A voz vinha da nuvem.
Ela tentou olhar cada rosto e foi aos poucos percebendo rostos que lhe eram
conhecidos, de parentes que morreram na guerra, mas caiu aos prantos quando
viu o rosto da avó, logo que por toda a vida passou a maior parte do tempo com
ela, loba como ela.
— O que está acontecendo? - Perguntou Adara, que olhava para as mãos que
tremiam.
— Você se lembra quando minha Milla enviou uma carta com a foto dos meus
netos de Uada? Enquanto lia a carta dela, borrava a tinta com minhas lágrimas.
O pequeno Bjorn tão parecido com nós, mas Kattla, ah… Escura demais para
uma Norgian, com seu cabelo preto e os olhos da mãe. Adara, vocês três foram
tudo o que sobrou de nossa família. Não deixe sua prima morrer, não cometa o
erro de seu pai. Essa desgraça nos amaldiçoou e precisamos purificar-nos do que
houve.
— E como faço isso, vovó? - Adara não conseguia parar de chorar.
— Pare de ouvir seus desejos superficiais e comece a ouvir o propósito de sua
alma. Honre a lembrança de Milla, como uma forma de se desculpar pelo que o
seu pai fez.
A nuvem se desfez tão abrupta que Adara mal pode falar qualquer coisa que lhe
saltou na ponta da língua, caindo sobre os joelhos. Todos os seus ancestrais
estavam lá, conhecidos e desconhecidos, todos em prol da prima desaparecida.
Será que ela fizera algum tipo de magia onde estava escondida para fazê-la
mudar de ideia?
Não, se lembrava da vó chorando sobre a carta, assim como se lembrava estar
sentada com as pernas cruzadas próxima da lareira olhando a foto dos primos, o
que a tinha enchido de alegria naquele dia, odiava ser filha única, mas sabia que
em Uada tinha dois primos, que imaginou naquele dia poder brincar um dia.
— Varg!
Adara se levantou prontamente, se transformando numa loba grande e cinza,
adentrando a floresta em seguida. Sua prima devia estar lá, depois pensaria no
que fazer com relação a tudo aquilo.
10 – Kin

— Kattla! Kattla! - Chamava Oliver. — Você está acordada?


— Mais ou menos. - Respondeu com voz fraca.
— Tenho certeza de que tem alguém vindo aqui. Posso ouvir pelo farfalhar das
folhas próximas. Por favor não dorme.
— Por que se preocupa tanto comigo, Oliver? - Disse enquanto se sentava,
apoiando as costas na parede.
Ela ficou olhando para a parte de cima da rampa, respirando fundo e esperando
pelo que fosse que estava para aparecer naquele lugar. Deixou a mão deslizar
sobre o solo para tentar encontrar na escuridão a pedra que afiara, talvez não
tivesse força suficiente para uma luta corpo a corpo, mas deixaria sua marca.
Um lobo branco surgiu no topo da rampa, os pelos eram tão sedosos e limpos que
o animal parecia ter vindo de outro mundo. Num esforço ela esticou a mão
tentando alcançá-lo e ele mostrou os dentes para ela. Queria muito tocá-lo, sentir
seus pelos macios.
Ele continuava rosnando e, por intuição, Kattla lançou a pedra que segurava
para longe, mostrando-lhe ambas as mãos vazias e novamente esforçando-se
para se esticar e tocá-lo. Assim ele começou a descer a rampa lentamente,
farejando e observando tudo.
— Kattla, o que está acontecendo? - Perguntou Oliver.
Fez um som baixo para que ele ficasse em silêncio, enquanto esperava o lobo se
aproximar lentamente dela. Quando ele chegou próximo o bastante, mostrou-lhe
os dentes rosnando, entretanto ela se sentia segura o suficiente para tocar a bela
cabeça alva, mas assim que o fez, se afastou, dizendo:
— Você é um Vikti!
Ele se transformou, mostrando que era o Varg e disse:
— Vim te tirar daqui. Mas, precisa cooperar, precisarei me transformar num
lobisomem para quebrar essas correntes e te levar para casa.
— Por que eu confiaria em você?
— Porque sou tudo o que você tem agora e porque Danê me ordenou que a tirasse
daqui e a colocasse em segurança.
— Confie nele, Kattla. Vá se cuidar. - Disse Oliver.
— Venha com a gente! - Ela pediu, enquanto Varg já em forma de lobisomem
quebrava o elo e as correntes.
— Talvez eu me torne como ele, Kattla, quem sabe eu tenha essa chance.
— Viktis não se tornam Viktis por meio de sacrifício. - Ela disse. — Está fazendo
a coisa certa, mas com o povo errado, funcionaria melhor em Uada. Contudo, se
Danê for misericordiosa com você, não se esqueça de mim.
— Não vou me esquecer, Kattla.
Já no colo de Varg, ela pediu para que ele a levasse até onde Oliver estava, seu
deus era um lucífugo e assim ela também podia ver no escuro. Olhou o rosto
magro de Oliver e o tocou com carinho, dizendo:
— Você foi um bom companheiro.
Rapidamente Varg começou a correr dali, levando Kattla veloz para a casa da
prima. A casa estava aberta, o que o fez estranhar, deixou Kattla que estava
imunda sentada no vaso sanitário e saiu para pegar suas roupas que ainda
estavam jogadas diante da porta de entrada da casa.
Quando retornou para o banheiro, já com sua linda forma de homem, olhou bem
para Kattla sob a luz. Sua aparência era horrível e sem pensar muito, colocou a
banheira para encher, fazendo-a conferir se a temperatura da água estava boa
para ela.
Foi aos poucos a despindo, ela vestia apenas uma calcinha, uma jaqueta que não
tinha mais utilidade e uma regata. Enquanto tirava a manga do braço esquerdo
da jaqueta, quase caiu para trás quando viu a marca de dois troncos enrolados e
destorcidos, com uma pequena copa que se misturava algumas veias do pulso,
como se os dois troncos fossem uma única árvore e algumas raízes.
Era como uma tatuagem, mas ele sabia que não se tratava de uma tatuagem,
apenas os verdadeiros filhos de Danê tinham uma marca como aquela, que
mudava de cor às vezes e nunca tinha encontrado nenhum outro além dele
mesmo, até aquele momento. O que estava acontecendo?
— Está com vergonha que estou te despindo? - Ele perguntou, educado.
— É só um corpo.
Ele a pegou no colo e colocou dentro da banheira agora cheia de água. Sequer
perguntou se ela queria e começou a dar banho nela. O sabonete nas feridas ou o
shampoo na cabeça machucada a incomodaram um pouco, mas as mãos que a
ensaboavam, proporcionando assim uma massagem, faziam-na relaxar.
— O que aconteceu para Danê te dar essa marca e tornar-te filha dela? - Ele
perguntou, enquanto jogava água no cabelo dela.
— Eu a vi quando chamei pelos meus antepassados. Ela falou comigo. Mas não
senti nada na minha pele, nem tinha como, as algemas que vocês usaram deviam
ter uns oito centímetros, você mesmo viu, todo meu pulso estava coberto.
— O que ela te disse?
— Disse que me viu chamando pelos meus ancestrais e que ela estava me
observando desde que cheguei. E que minha libertação viria com o crepúsculo.
Ele mostrou para ela que tinha a mesma marca, no mesmo pulso esquerdo,
dizendo:
— Nós somos um kin, Kattla.
— O que é um kin?
— Como se fôssemos irmãos. Eu ouvi Danê me chamando, com urgência, para
salvar você, minha irmã, meu kin, minha família. Eu sei que as coisas aqui em
Norga podem ser complicadas, mas é como se fosse mais importante do que meu
próprio clã.
— Não sei se estou feliz com isso. Quem me prendeu naquele lugar?
— Não fui o único, mas estive envolvido. Com quem você fez um pacto?
— Não te interessa.
— Você não está entendendo, sou punido por fazer qualquer coisa contra você e
os seus, tem de me contar com quem fez o pacto.
— Varg, só porque agora temos arvorezinhas em nossos pulsos acha que vou sair
contando tudo para você? Vocês me prenderam, olha minha situação! Eu preciso
de um médico.
— Fique aqui relaxando. Vou ligar para a médica do vilarejo e encontrar uma
roupa para você.
Kattla estava fraca e por isso precisou da ajuda de Varg para deixar o banheiro e
se trocar. Consciente de que a médica logo chegaria, percebeu que seria melhor
colocar uma roupa mais curta para que a médica pudesse ver todas as feridas,
colocando-a na cama e a cobrindo com cobertores quentinhos.
A deixou no quarto sem querer acreditar no que estava acontecendo. Deixou a
casa por um momento para uivar e assim chamar Adara. Preferia não pensar,
preferia não pensar em como as coisas ficariam com Leif, ou com Luí. Certamente
os deuses decidiram jogar dados com a vida dele.
Infelizmente a médica chegara antes de Adara e ele a acompanhou até o quarto
onde Kattla estava. Com a feição que a médica fez, era óbvio que ela tinha
percebido que se tratava de uma Uadani, ainda assim achou melhor perguntar:
— Ela é híbrida?
— Acredito que não. Mas, não sei te dizer com precisão.
— Está desnutrida e desidratada. E as feridas estão feias. Terei que fazer alguns
desbridamentos nas feridas.
— O que é isso?
— Remoção de tecido morto com bisturi.
— Vai apagá-la ou algo assim?
— Vou anestesiar o local. O melhor seria levá-la ao hospital.
— Sem hospital, doutora. Faça tudo que tiver que fazer aqui, te pagamos bem
para isso.
— Ela precisa tirar um raio-x da cabeça.
— Eu a levo depois, apenas faça o que tem que fazer.
— Onde a encontrou? - Perguntou Adara, entrando abrupta no quarto.
— A médica está cuidando dela. Podemos conversar noutro lugar?
11 – E agora?

Adara o seguiu até a sala, onde ele se serviu de uma bebida e se jogou sobre o
sofá macio, como que se precisasse relaxar. Há muito não via aquelas rugas de
preocupação que marcavam a testa de Varg, nem o tamborilar de dedos sobre a
coxa. Estava absorto, como se vagando noutro mundo. Sem paciência, ela
perguntou:
— Vai me dizer alguma coisa? Kattla sumiu há dias e então, subitamente, você
aparece com ela em casa. Sabia onde ela estava, não sabia?
— Sim. Sabia. Eu mesmo levava comida e água para ela todos os dias.
— Você é meu líder, Varg, somos um clã.
— Como eu poderia saber como você reagiria a isso? Precisávamos fazê-la usar o
poder dela para termos certeza com quem estávamos lidando. Dez ou onze dias
na floresta e nada. Estava disposta a morrer a nos deixar saber do que era capaz.
— E por que decidiu ir resgatá-la? Viu nossos ancestrais também?
— Minha única ancestral com Kattla é Danê. A Dama da Floresta me deu a
ordem de tirá-la de lá.
— Do que está falando?
— Quando a médica a deixar, olhe para o pulso esquerdo dela e verá a mesma
marca que tenho no meu. Danê a fez, a marcou, para mostrar a quem ela
pertence.
— Não pode ser. Ela não pode ser uma Ljot e uma Vikti.
— Não estou dizendo que é uma Vikti, apenas que Danê a protege. Não sei muito,
sei tão pouco quanto você, mas sabe que estamos enrascados, porque terei que
explicar para Leif, Luí e Adish porque eu a libertei.
— Se nossas relações já não estavam boas antes de Kattla chegar, provável que
agora tudo ficará muito pior.
— Ela é minha Kin, Adara.
Foi então que Adara contou sobre seus ancestrais que apareceram numa névoa e
falaram com ela. Pensar na avó e na sensação de estar sozinha desde que se
mudaram para aquele vilarejo e o distanciamento de Leif era algo que realmente a
fez pensar. Kattla era sua família, como era Kin de Varg.
— Ela fez um pacto com alguém. - Ele disse.
— Quem?
— Não faço a menor ideia. Não posso imaginar um Vikti que se aproximaria de
uma Ljot sem desconfiança.
— Seremos punidos, Varg.
— Punidos? Nós estamos ferrados.
— E se fugíssemos?
— Para onde, Adara? Para qualquer lugar onde o império de Fopros pode nos
caçar. Vamos ter que contar para Leif e esperar que ele entenda tudo o que
aconteceu. Danê, os seus ancestrais…
— E deixá-lo acusar o clã dos lobos de traição?
— Precisamos pensar e resolver isso logo. Ele baterá na porta a qualquer
momento pedindo por explicação.
— Damos as que temos. Não estamos mentindo, Varg. Você faria o que?
Atenderia a ordem da sua deusa ou do nosso líder?
— O que eu fiz.
— Ela ainda está acordada, está com soro e espero que vocês troquem sempre
que acabar, deixei alguns em cima do criado-mudo, assim como deixei alguns
remédios com as especificações num papel para vocês medicá-la. Se ainda
quiserem conversar com ela é bom que vão logo, apliquei uma injeção que dá
sono. - Disse a médica, adentrando a sala.
— Ela vai ficar bem? - Perguntou Adara.
— Sim, minha única preocupação é a pancada na cabeça, por isso peço que
assim que possível leve-a ao hospital.
— Obrigada. - Disse Adara, tirando dinheiro de sua bolsa e pagando a médica.
Tão logo a doutora deixou a casa os dois subiram para o quarto. Kattla estava em
silêncio, tentando encontrar ao menos uma estrela em meio ao nevoeiro. Pensava
em Olyn, na lua cheia que estava próxima e em tudo o que aconteceu nos últimos
dias. Pensava em Ava, treinaram juntas por tantos anos.
Gostaria de tirar Oliver daquele lugar, sorriu ao pensar nisso, ele tinha a mente
de um Uadani no corpo de um Norgian. Sentiu o colchão afundando assim que
sua prima sentou-se ao lado dela, o que a fez mover a cabeça para olhá-la e
perguntar prontamente:
— Você também sabia disso como Varg?
— Eles não me contaram porque acharam que eu estava te encobrindo. Todos os
nossos antepassados vieram até mim para interceder por você.
— Eu pedi a eles. Não exatamente para virem aqui, mas para me ajudarem a sair
daquela situação. Era a única magia que qualquer de nós podemos fazer, simples
até mesmo para um Uadani ou Norgian comum.
— Então, sabia que fizeram isso com você para forçá-la a usar sua magia? -
Perguntou Varg.
— Não sou idiota.
— Temos um problema, Kattla. Não era para você ser solta, mas Varg, eu e
consequentemente o clã dos lobos seremos acusados de traição por te libertar e
tratar de seus ferimentos. Não sabemos quais podem ser as consequências disso.
— É algum novo tipo de jogo? Vocês me libertam, tratam meus ferimentos e
esperam que eu faça algo para protegê-los, mostrando meu poder? Assim todos
ficam felizes e saem ilesos. É esse o plano?
— Já te expliquei que agora você é minha Kin! - Disse Varg.
— Não adianta, Varg. Só há um jeito. - Disse Adara.
— Qual?
— Evocar a Velha Sábia.
— Temos tempo para isso? - Ele perguntou, preocupado.
— Kattla vai dormir e ainda temos a madrugada toda adiante. Insistimos até que
ela apareça. É a única que minha prima ouvirá agora.
— Não exatamente a única. - Disse Kattla, voltando a olhar a janela. — Mas, acho
que Mantus está tão bravo quanto eu para dizer qualquer coisa.
— Você ouviria aquele com quem fez o pacto? - Perguntou Varg.
— Ouviria.
— Quem é ele?
— Não percebeu ainda que não confio em vocês?
— Não adianta, Varg, quanto mais tentarmos fazê-la falar qualquer coisa, ela não
nos dirá nada, precisamos da Velha Sábia para nos ajudar e explicar as coisas
que Kattla não sabe.
— Vocês estão precisando da minha ajuda, ou estou drogada demais com o
remédio da médica?
— Precisamos que entenda algumas coisas, que não somos seus inimigos, que
somos uma família, por mais esquisito que isso possa parecer para nós todos.
Você é de Uada, sabe qual é o valor da família e da união e o quanto isso faz toda
a diferença quando vem a tormenta.
— Ao menos aquela algema verde ridícula foi tirada de mim quando me amarram
naquele lugar. - Kattla disse num tom de deboche, olhando para o braço livre da
pulseira que a prima colocara.
— Vamos evocar a Velha Sábia, Varg, estamos perdendo tempo aqui. - Disse
Adara.
12 – Entendendo

Kattla acordou no meio da noite, desceu as escadas nas pontas dos pés e viu
Adara e Varg, cada um dormindo num sofá enquanto as velas ainda queimavam.
Subiu para o quarto novamente para vestir uma roupa mais quente e em seguida
abriu a janela de seu quarto.
Usando de sua magia fez alguns postes perto da casa e do caminho que seguiria
se apagarem e como poderia ver no escuro, ficou por um tempo olhando pela
janela para ver se alguém ou animal se aproximaria para ver o que estava
acontecendo.
Percebendo o caminho livre, correu com a pouca força que tinha em seu corpo
para a casa de Olyn. Não queria simplesmente bater à porta para não chamar a
atenção e por isso escalou a coluna de sua porta e caminhou pelo beiral, até
alcançar a janela do quarto onde ele dormia.
Bateu na janela com delicadeza, mas aparentemente Olyn tinha o sono pesado,
ela tentou forçar a entrada, sempre olhando para trás com medo de que alguém a
visse e quando se voltou para bater na janela novamente, ele a encarava, a
assustando e quase a fazendo-a cair, se não tivesse a pego em tempo.
Quando pulou para dentro do quarto de Olyn fez todas as luzes se acenderem
novamente e mal conseguiu dizer qualquer coisa, pois que ele a envolveu num
abraço apertado, invadindo-lhe a boca com língua afável. Sentir o cheiro dele era
tão bom, que desejou que o momento fosse eterno. Contudo, ele perguntou:
— O que aconteceu? Eu fiquei tão preocupado. Te procurei por toda parte.
— Eles me prenderam, acertaram minha cabeça quando eu deixei a sua casa e
depois disso acordei no meio da floresta. Desde então as coisas ficaram loucas.
— Como assim?
Ela contou todos os detalhes de tudo o que acontecera com ela durante aqueles
dias e como Adara e Varg estavam se comportando de modo estranho desde
então. Apenas omitiu seus sonhos com Ava e sua entrega de sacrifício a Mantus.
Delicado, Olyn puxou o pulso dela e olhou o desenho.
— Parece uma tatuagem. - Ele disse. — Só há um jeito de saber se é real.
— Como?
— Pense em algo que a deixa com muita raiva.
Ela deixou vir as imagens da guerra e da fuga dos Ljots que morriam aos montes.
Sem qualquer explicação a tatuagem do pulso foi ficando negra, tão negra que
parecia até mesmo perder a forma de árvore que tinha, como se estivesse
apodrecendo.
Olyn então a deitou na cama, a beijando enquanto massageava sensualmente seu
corpo. Ela queria entender o que ele estava fazendo, mas ele fez um sinal para ela
se entregar e confiar nele. Quando finalmente ela se sentiu excitada, ele tomou o
pulso e mostrou para ela que a tatuagem agora tinha uma coloração púrpura.
— Ela muda de cor. O que significa que Varg é sim seu kin. É o único de nós que
a tem e essa ligação é igual à nossa ou igual à sua com seu irmão em Uada. Se
não protegerem um ao outro, Danê devorará vocês. E sua prima não sabia.
— Como sabe disso?
— Meu clã era muito pequeno e todos morrerem, exceto por mim. Quiseram que
eu me mantivesse entre os líderes de clãs na assembleia, mas estava angustiado
demais para querer fazer parte dessas coisas todas. Disse que queria ficar fora de
tudo por um momento, subir nos lugares altos, observar a natureza e nada mais.
Assim, depressivo, eles acharam que eu não ligaria para coisa alguma. Deviam
pensar que sofri muito e não tinha porque me fazer sentir pior.
— E?
— E embora estivesse no bar bebendo, pensando em você e onde poderia estar.
Eles não disseram onde você estava, mas disseram que Adara não poderia saber
de nada e que nem você poderia ser retirada de onde estava até que usasse seu
poder. - Ele tocou o rosto dela com gentileza e perguntou: — Você morreria?
Morreria pelo seu orgulho?
— Na verdade meu plano era resistir até a lua cheia porque tinha certeza de que
você me encontraria, depressivo ou não. - O beijou e ainda com os lábios colados
aos dele, perguntou: — Quando eu for embora, você vem comigo?
— Já está pensando em deixar esse lugar?
— Em breve. Preciso voltar agora, está quase amanhecendo e não vou ter a noite
para me esconder.
— Posso te deixar lá.
— Melhor que não sejamos vistos por enquanto, Olyn.
Ela segurou o rosto dele com ambas as mãos e fitou os olhos que tanto amava em
sua semitransparência cerúlea, observando cada pequeno risquinho negro nas
íris que a encantavam e fechando lentamente os olhos apossou-se da boca dele,
sentindo-se acolhida quando ele a apertou forte contra o corpo.
Ela se soltou para novamente sair da casa, dessa vez pela porta da frente, mas
ele segurou a mão dela fazendo-a parar e tirando uma corrente de ouro com um
pedaço de osso como um pingente, ele colocou no pescoço dela. Ela segurou o
pingente e beijou suavemente a boca dele deixando a casa, não sem antes apagar
todas as luzes de seu caminho.
Correu o máximo que podia, a aurora já estava querendo despontar no céu, mas
Danê também parecia querer escondê-la, pois que o nevoeiro era tão intenso, que
mesmo para ela estava difícil de enxergar no escuro. Esqueceu que tinha deixado
a casa pela janela e entrou pela porta de entrada, fazendo Adara e Varg saltarem
do sofá.
— Onde você estava? - Perguntou Adara, preocupada.
— Buscando respostas.
— Com seu pacto? - Perguntou Varg, debochado.
— Sim, com ele. Até porque vocês são dois incompetentes que não conseguiram
evocar a Velha.
— Nós conseguimos. - Disse Adara. — Mas, ela disse para a gente se virar já que
fizemos tudo o que estava fora do que ela propôs.
— Não temos muito tempo agora. Varg terá que se virar com roupas, ou ser
rápido o suficiente para buscar na casa dele. Preciso que vocês me levem para
um lugar na floresta que poucos vão. Uma caverna de preferência, se não houver,
uma cabana, buraco, qualquer coisa onde possamos nos abrigar por um tempo.
— Você acredita em nós agora?
— Acredito no meu Pacto. - Um dos dois terá que ficar híbrido e me levar porque
não tenho a velocidade de vocês.
— Mas, por que isso?
— Não era a porra da minha magia que vocês queriam conhecer. Eu estou a
usando agora mesmo.
Kattla os deixou e foi para o quarto onde numa mochila colocou algumas roupas,
capa de chuva, lanterna, os remédios que lhe foram prescritos. Colocou dois
cobertores, a foto de seu irmão e pensou em Olyn por um tempo. Sabia que na
lua cheia ele a encontraria, estava certa disso.
Quando todos estavam prontos encontraram-se na sala, Varg estava na forma
híbrida, o que era estranho ver um lobisomem carregando uma mochila nas
costas e tomou Kattla no colo. Adara não estava diferente, não seria possível
carregar a mochila enorme que ela carregava apenas na forma de lobo.
— Por que estamos fazendo isso? - Perguntou Adara que acompanhava Varg no
mesmo ritmo.
— Quando chegarmos num lugar seguro, eu explico.
— Por quanto tempo ficaremos? - Adara insistiu.
— O suficiente. Não estou aqui à toa, prima.
Por algum motivo que Adara não pode compreender, talvez pela sua forma
animal, ouvir Kattla a chamar de prima, soou que havia carinho e que embora
não tivesse ideia do que ela estava fazendo, sabia fazer por ela e por Varg. Mas, o
que estava fazendo? Por que estava fazendo?
13 – Novos laços

Adara e Varg corriam velozmente floresta acima. Quase não se comunicaram,


mas pareciam ambos saber exatamente para onde estavam indo. Às vezes Kattla
se agarrava no pescoço peludo de Varg, apenas para olhar para trás e ver o
vilarejo ficando lá no fundo do vale.
Quando alcançaram o que pareceu o topo, começaram a descer novamente, mas
dessa vez fazendo um pequeno desvio ao sudoeste. Varg ia tão veloz que Kattla
precisava proteger o rosto de galhos. Após saltarem algumas pedras altas,
pararam diante da entrada da caverna.
Kattla a olhou por um momento, com o musgo a colorir de verde a pedra
amarronzada no arco ogival que era a entrada. Virou-se para trás e viu que
abaixo, num outro vale ainda mais profundo que o primeiro, outro vilarejo crescia
em torno da floresta. Sendo carregada por Varg, não tinha noção de quantos
quilômetros percorreram.
Varg e Adara já tinham adentrado a caverna e vasculhavam suas mochilas em
busca de uma roupa para vestir, já que estavam em sua forma humana
novamente. Enquanto se trocavam, observavam Kattla caminhando, deixando as
mãos deslizarem pela parede rochosa, seus olhos tinham se tornado totalmente
negros, o que os outros dois perceberam quando ela se virou e disse:
— Varg, encontre madeira para a fogueira.
— Irei com você. - Disse Adara.
Os dois a deixaram e saíram a procura de madeiras e galhos secos. O que não era
uma tarefa fácil naquela floresta úmida. Enquanto recolhiam o que encontravam,
Varg disse:
— Não achou ela estranha depois que entrou na caverna? Os olhos pareceram
escurecer, tateando a parede como se fosse cega… Sei lá.
— Está com medo? - Perguntou Adara, debochada.
— Com quem ela fez o pacto?
— Varg, acho que devemos dar uma chance para ela mostrar o que quer nos
mostrar. Não adianta ficar pensando em quem ela fez o pacto, nem se está ou não
nos enganando. Se continuarmos com essa desconfiança, não sairemos do lugar.
— Tem razão. Devíamos nos preocupar em caçar agora?
— Uma coisa por vez. Viu como é aquela caverna? Tudo indica que deve fazer
muito frio lá dentro a noite.
— Nem sempre as cavernas são frias.
— Nessa floresta fria? Duvido que ela seja bem quentinha à noite.
Quando os dois retornaram com as madeiras não puderam acreditar em seus
próprios olhos. Sabiam que a caverna estava ali, intuíam isso, contudo não havia
nenhum sinal de que havia uma caverna. Percebendo-os confusos, Kattla saiu da
caverna e os guiou para dentro, carregando um sorriso satisfeita.
— Como fez isso? - Perguntou Varg, perplexo, deixando as madeiras caírem ao
chão já dentro da caverna.
— Magia.
— Você consegue esconder qualquer lugar assim? - Perguntou Adara.
— Meu deus é rei no submundo. Então, não, não posso fazer isso em qualquer
lugar, mas funciona bem com cavernas, grutas, minas, túneis subterrâneos e etc.
Cuidado, essa caverna tem grandes desníveis e múltiplas galerias, não me
surpreenderia de encontrar um labirinto aqui. Contudo, um pouco mais ao fundo
tem água potável.
— Você explorou todo esse lugar? - Perguntou Adara, incrédula.
— Não queriam conhecer meu poder? Estou começando a mostrar.
— E qual é o plano? Ficarmos escondidos aqui? - Perguntou Varg, irritado. — Eu
deixei todo o meu clã para trás.
— Eu não funciono assim, Kin. Nem vou sair daqui e deixar que vocês vão até
Leif e peçam desculpas pelo que aconteceu e permitir que ele os puna a bel
prazer. Ele não vai simplesmente parar para torturar seu clã agora, pode fazer
algumas perguntas, mas é bem provável que reúna o maior número de Viktis
para nos encontrar.
— Sim, ele faria isso. - Disse Adara, abismada. — Mas, como você pode saber
disso? Quase nem conversou com ele.
— Sou uma necromante e posso manipular um pouco de energia vital, sem ferir e
assim saber um pouco com quem estou lidando. Mas, só faço isso com aqueles
que de alguma forma me faz sentir ameaçada.
— E o que vamos fazer? - Perguntou Adara.
— Eu não sei vocês, mas eu preciso desse tempo para saber o que fazer e como
contornar essa situação. Ainda era muito cedo para eu deixar esse lugar, mas
vocês estragaram tudo. Não sei ainda para onde ir. Sei que teremos que resgatar
o clã de vocês, que nessa altura pode já ter negado Varg como líder. Preciso
entender minha ligação com Varg. Saber o que Adara quer de fato. Se vocês
quiserem sair correndo e entregarem-se a Leif ou quem quer que seja, a escolha é
de vocês. Eu preciso entender o que está acontecendo.
— Isso não faz o menor sentido, ficarmos aqui escondidos tentando entender as
coisas.
— Eu só preciso de um carro e vocês dois que se dane. - Disse Kattla.
— Por que você está aqui? - Perguntou Varg.
— Sobraram pouquíssimos Ljots vivos. Há mais de um século Mantus não tinha
dado necromantes para Uada, provável que seja pelas crianças estúpidas que o
escolheram. Mas, agora temos duas, eu e mais uma. Há mais dois outros Ljots
muito importantes além de nós, fazemos parte da resistência e sobre as táticas do
exército eu não posso dizer porque é segredo de estado. Outros poucos Ljots com
poderes diferentes, mas não menos importantes também estão escondidos. E com
a nossa história era óbvio que não procurariam Ljots em Norga.
— E por que a Velha está te ajudando nisso? - Perguntou Varg.
— Porque o Rei Louco está tão irritado por lutar contra Uada por tanto tempo,
que a intenção dele agora é fazê-la sumir do mapa. E se Uada sumir do mapa a
chance de todos vocês se unirem para uma resistência é pequena. E não sabemos
quais os tipos de escravidão, piores do que ele já aplica na terra de vocês e em
outras conquistadas, ele pode aplicar depois que parar de se preocupar com Uada
e Traesia.
Adara e Varg entreolharam-se.
— Sei que pode parecer rude falar dessa forma, como se vocês não fossem
capazes disso. Acredito que todos são capazes, mas somos treinados para a
guerra desde o seis anos de idade. E eu não esperava que nada disso que
aconteceu aqui até então fosse acontecer. E também não estava inclinada a pedir
qualquer tipo de ajuda a vocês.
— Está tudo bem. Não tem ideia das coisas que falamos sobre vocês. - Disse
Adara, rindo.
— Talvez vocês não entendam isso. - Disse Kattla. — Mas, tudo isso é ridículo. Vi
minha mãe tantas vezes chorando, sentindo saudade da família dela, de Norga,
dos rituais dela. Quando perguntei porque não podíamos vir aqui visitar vovó,
que ela fazia questão de ler as cartas para mim. Ela me explicou.
— O que ela disse? - Perguntou Adara, interessada.
— Que ninguém nem sabe quando exatamente aconteceu. Norga tinha os Viktis e
Uada os Ljots e ambos conviviam bem, eram nações aliadas até, mas por algum
motivo dois líderes insistiram que nós usávamos magia perigosa e isso causou
grande comoção e ninguém sabe dizer quem começou o quê e houve uma guerra
que nos separou por séculos. E que hoje em dia tudo o que sabemos é que nos
odiamos e desconfiamos uns dos outros sem nem saber porquê.
— E o povo de Uada, diz o quê? - Perguntou Varg.
— Que vocês começaram.
— O mesmo que dizemos deles. - Disse Adara.
— Em quem você acredita? - Perguntou Varg se aproximando de Kattla e
tomando o pulso esquerdo dela para olhar a estranha tatuagem.
— Na minha mãe. O amor dos meus pais era verdadeiro e minha mãe sofreu
muito para se acostumar com a nossa cultura. Havia coisas que ela amava e
outras que odiava. E gostem vocês ou não, eu sou metade Norgian.
— Você é minha irmã. - Disse Varg, apertando a mão dela.
— Incesto é permitido? - Perguntou sorrindo, fazendo-o sorrir em retribuição.
— E minha prima. - Disse Adara.
— O que de fato essa marca significa, além de sermos irmãos?
— Temos controle sobre alguns animais selvagens que podem nos contar o que
veem. Fazer as plantas crescerem também é algo que dá para fazer. Mas, acima
de tudo, podemos entrar em contato com Danê e conversar com ela quando
precisarmos de conselhos, ou mesmo de prosperidade. Em seu aspecto obscuro,
ela é uma devoradora de almas.
— Você nasceu com essa marca? - Ela perguntou.
— Sim. O que me tornou um dos líderes mais importantes da assembleia dos
clãs.
— Um líder tão importante que estava terrivelmente preocupado com Leif?
— Leif é tão ou mais importante quanto Varg. - Disse Adara. — Sempre fora
gentil, mas a guerra nos transformou a todos.
— Talvez em algum momento deveremos voltar para o vilarejo e encará-lo, mas
não sei de vocês, eu preciso de sabedoria para isso. Estranho que eu tenha vida
no pulso esquerdo, quando só trago morte.
— Podemos esperar seu tempo. - Disse Varg.
14 – Conversando com os mortos.

Enquanto preparavam um ensopado com o animal que tinham caçados à noite,


como Kattla havia sugerido, para que sua magia pudesse os ocultar, Varg e Adara
a olhavam vez ou outra, sentada num parte escura da caverna em posição de
meditação.
Ela dissera a ambos que poderiam conversar à vontade, pois não a incomodava,
mas que não poderiam tocá-la. E assim faziam, cochichando sobre qual tempero
jogariam dentro do ensopado, falando sobre banalidades, confessando que
sentiam falta do vilarejo e do pessoal.
— Sabe, Varg, quando eu os ouço conversar, às vezes me sinto até um pouco
mal. Arrancaram de meu ombro com uma faca a marca do deus dançarino e eu
sinto que não sou especial como você, ou como ela.
— O fato de arrancarem a marca do seu deus, que dava todo seu poder e status
não quer dizer que ele te abandonou.
— Como pode saber disso?
— Olhe para tudo o que está acontecendo? Sua prima nem nasceu aqui e é
minha kin. Seus ancestrais vieram para ajudá-la.
— É claro! Foi a mãe dela que foi morta pelo meu pai e não o contrário.
— Talvez você possa erigir um túmulo em honra à sua tia e em seguida chamar
pelo seu deus, tentar conversar com ele. Talvez sua prima esteja aqui para
perdoar seu pai ou você ou o resto da família. Adara, você está com a faca e o
queijo na mão.
— Isso não faz o menor sentido, Varg.
— Já pensou que tudo o que ela poderia querer era trazer os filhos para a mãe
dela conhecer e ver as crianças brincando juntas? Ela sequer podia pisar em
Norga e você sabe porque, você sempre me disse que sua avó lia as cartas dela e
chorava. Seu pai a matou, porque alegre e cheia de saudades, foi ao encontro
dele. Nós somos amigos desde crianças, Adara, não tem como você negar essas
coisas para mim.
— Não quero continuar odiando meu pai.
— Contudo ele tirou seu status, você foi punida porque ele não matou um
Uadani, mas uma Norgian. Arrancaram com uma faca cega a marca de seu deus
que você tinha no ombro e você não pode fazer parte da assembleia de líderes.
Alguma coisa você precisa conquistar de volta. Ela é uma necromante, talvez
possa trazer a mãe para falar com você.
— Nem sei se estou pronta pra isso. E como faríamos uma festa para o deus
dançarino?
— Olyn poderia ajudar.
— Olyn está depressivo, querendo morrer, não está do lado de ninguém, não está
preocupado com ninguém.
— Ele é seu Kin.
— Faz anos que Olyn não fala comigo, Varg. Ele não é tão carinhoso com a Kin
dele, como você está sendo com a minha prima.
— Ele passou por muita coisa, Adara, coisas que nem podemos imaginar. Mas,
como ele não está aqui, o que acha de conversar com a sua prima quando ela
terminar seja o que for que estiver fazendo?
— Você fala como se estivesse certo de estar ao lado da minha prima!
— Eu não tenho mais escolha, nem o clã, nem você e nem mais nada é mais
importante para mim do que ela. Danê quis assim, não fui eu quem escolheu
isso.
— E Olyn nem dá a mínima para mim. - Reclamou a moça.
— A comida já está pronta? - Perguntou Kattla, sentando-se ao lado deles.
— Quase. - Respondeu Varg.
— O que você quer fazer, Adara? - Perguntou Kattla.
— Como assim o que eu quero fazer?
— Pelo que entendi você precisa recuperar sua força e magia, pela maldição ou
qualquer coisa que jogaram em você pelo seu pai matar minha mãe.
— Você ouviu tudo? - Adara perguntou, sem graça.
— O suficiente para saber que vou ter que trazer minha mãe para conversar com
você, saber o que ela espera que você faça. O resto, acredito que Varg talvez
esteja certo. Erigir um túmulo para ela aqui acho que a agradaria. Ela sempre
sentiu falta de Norga.
— E eu colocaria o quê no túmulo?
Kattla levantou-se e após vasculhar a bolsa, retornou com um colar relicário e
entregou para a prima que logo percebeu que havia a foto da mãe e do pai de
Kattla. Adara perguntou, incrédula:
— Você tem certeza? Isso deve ter um valor emocional enorme para você.
— Era da minha mãe, então acredito que seja uma parte dela que você pode
enterrar e erigir seu túmulo.
— Você faria isso comigo? - Perguntou Adara, emocionada.
— Claro, é minha mãe.
— Então, qual é o plano? - Perguntou Varg.
— Acho que essa floresta é mágica e sagrada o suficiente para erigir o túmulo da
minha tia, com a vista voltada para a minha casa, já que sei que ela amava ficar
nessa vila.
— Posso te ocultar à noite.
— E depois eu preciso encontrar Olyn, preciso falar com ele, para que ele invoque
o deus dançarino.
— Olyn estará aqui na lua cheia. - Disse Kattla.
— Como você sabe disso também? - Perguntou Varg, desconfiado.
— Ele é meu pacto.
— Como assim? Como vocês se encontraram e decidiram isso? - Perguntou
Adara.
— Minha esperança de incesto se foi. - Disse Varg, escondendo o riso.
— Olyn pode estar depressivo como vocês disseram, mas na realidade ele só está
cansado de tantas intrigas, brigas sem sentido, guerrinhas por poder. Ele perdeu
muito, é verdade, e, isso o esgotou.
— Vocês transaram? - Perguntou Adara, curiosa.
— Banhados em sangue. - Kattla riu.
— Então você usou sua magia sem sabermos? - Perguntou Varg.
— Na verdade só tirei proveito da inocência de Martim.
— Está tudo bem para você, depois que Adara recuperar suas forças enfrentar os
outros que estão nos caçando? - Perguntou Varg.
— Não vejo a hora.
Depois que se alimentaram, conversaram banalidades por algum tempo até que
Varg decidiu dormir. Não demorou muito para Adara cair no sono também, mas
Kattla ficou sentada no canto onde estava antes do jantar, em silêncio e posição
de meditação, rolava dessa vez uma pedra negra e brilhante na mão direita.
Quando percebeu que Varg dormia profundamente, se aproximou da prima e fez
sinal para que ela fizesse silêncio. Adara levantou um pouco confusa e seguiu a
prima alguns poucos passos, quando essa parou e cochichou em seu ouvido:
— Vou te levar um pouco mais fundo na caverna, numa de suas galerias. Pode
haver morcego, mas não grite e nem se assuste. Apenas segure minha mão
esquerda e carregue a tocha se quiser. Eu te guio.
— O que vamos fazer?
— Falar com a minha mãe.
Adara não teve muita dificuldade para acompanhar a prima numa descida
íngreme e estreita, onde ambas tiveram que se agarrarem algumas vezes na
parede rochosa. A tocha não iluminava muito, mas quando Adara iluminava o
lado oposto da parede, sentia um calafrio na espinha ao notar a altura em que
estavam, ou que ao menos pareciam estar.
— Por que não usa tocha?
— Enxergo no escuro, o que qualquer um pode fazer se aprender a usar o ouvido,
mas não é exatamente esse meu caso, Mantus me deu tudo.
— Isso é uma vantagem e tanto!
— Eu sei. - Kattla parou abrupta, fazendo Adara bater contra ela e virando-se
para a direita, entraram na galeria.
A vista de Kattla os cristais que pendiam do teto baixo da galeria eram lindos e
prateados com um leve tom azulado, mas logo tomaram para si o tom
avermelhado do fogo da tocha de Adara. A loba não disse nenhuma palavra
diante da beleza do lugar e sentiu-se alegre ao ouvir um córrego em qualquer
lugar abaixo delas.
Embora ouvisse que a prima sussurrava, esfregando algo entre as mãos, não
conseguia entender uma palavra sequer. Era um encantamento, ou um chamado,
não sabia dizer. Esperava que a prima se levantasse e falasse com ela usando a
voz da mãe, como alguns cultos de Norga faziam.
Contudo, para seu espanto, uma mulher erigiu do chão ao lado da prima e
avançou devagar para frente dela plasmada, o que a fez tremer tanto que quase
deixou sua tocha cair. Ela quase tinha corpo como qualquer outro humano,
exceto que havia ondas que vibravam e mostravam claramente que ela não era
daquele mundo.
— Tia Milla? - Perguntou, tremendo. — Sou eu, Adara.
— Minha filha não está muito forte para me sustentar nesse plano por muito
tempo. O que você quer?
— Quero que me perdoe pelo que meu pai te fez. Vou erigir um túmulo em sua
homenagem no vilarejo. Eu preciso muito que você me perdoe para que eu me
livre da maldição que meu pai acabou colocando sobre mim.
— Não sou eu que devo te perdoar, Adara, mas sim Kattla e Bjorn, que ficaram
sem a mãe e sofreram tanto quanto você. Se erguer meu túmulo e receber o
perdão de Kattla e Bjorn, eu te considero livre de qualquer maldição.
— Mas, Bjorn está na guerra, ele pode morrer a qualquer momento.
— Então é bom que ande depressa.
A imagem se desvaneceu e em seguida ouviu o corpo de Kattla batendo contra o
chão. Aproximou-se da prima e percebeu que estava desacordada. Provável que
era pelo corpo que ainda estava fraco e os remédios que ainda tomava desde que
fora capturada.
Não sabia se estava contente ou triste, enquanto se sentava ao lado da prima
após encaixar a tocha numas pedras ao lado. Apoiou a cabeça de Kattla no colo e
sentiu uma profunda vontade de chorar. O quanto Bjorn era bom ao ponto dela o
alcançar em Uada vivo?
E como assim estava pensando em Bjorn? Nem sabia se Kattla a perdoaria, ainda
mais depois do que fizeram com ela no vilarejo. Sim, as coisas estavam mudando
entre elas, a prima havia a ajudado com a tia pelo menos, estava certa, Bjorn era,
sem dúvida, sua maior preocupação.
15 – Encontros

A tarde se esvaia enquanto Adara cavava uma cova mais ou menos rasa com
suas mãos. Varg e Kattla estavam de guarda em caso de alguém aparecer de
surpresa e pegá-los despreparados. Entretanto, era bonito de ver como Adara
fazia todas as velhas e antigas orações para os mortos de Norga.
— Não sente vontade de chorar? - Cochichou Varg no ouvido de Kattla.
— Chorei tanto que acho que minhas lágrimas secaram. Vários anos de guerra
endurecem as pessoas.
— Ou as enlouquece. - Ele disse afagando o cabelo dela. — É verdade que incesto
é permitido em Uada?
— Sim.
— Já dormiu com seu irmão?
— Sim. Podemos casar com duas pessoas ao mesmo tempo também. - Ela riu, ao
ver a face de espanto dele. — Eu posso casar com você e Olyn sem problemas em
Uada.
— Não sei se eu e Olyn gostaríamos disso. - Disse Varg sorrindo.
— Está tudo dentro de nossa cabeça. A única coisa que temos que fazer é abortar
caso engravidarmos de irmãos, por motivos óbvios, quando no caso de incesto.
Mas, casarmos eu, você e Olyn, podemos ter quantos filhos quisermos.
— Vocês dois poderiam fechar a matraca? - Esbravejou Adara.
Eles ficaram em silêncio novamente, observando Adara enterrar o relicário,
enquanto entoava um encantamento. Com pedras que ela juntou no caminho,
começou a fazer um cone, colocando pedra sobre pedra, de forma tão precisa e
delicada que elas sequer se moviam.
— Preciso fazer uma coisa. - Sussurrou Kattla no ouvido de Varg, colocando o
dedo na boca dele em sinal de silêncio.
Ela deslizou o indicador nos lábios dele, massageando-os vagarosamente e em
seguida penteou os cabelos longos para trás num gesto carinhoso. A boca dele
estava fechada e por isso ela beijou tranquilamente os lábios dele como um
pedido. Ele a olhou sem entender, mas não opôs resistência quando a língua
deleitosa e úmida da moça começou a massagear a dele.
— O que está fazendo? - Ele sussurrou, beijando suavemente os lábios dela.
— Não estava brincando quando perguntei do incesto.
Ele a apertou ainda mais forte contra o corpo e apossou-se da boca dela,
deixando uma mão penteando os cabelos negros, enquanto a outra a apertava
com força sobre a cintura. Nem se atentaram quando Adara, com um galho que
pegou no chão, começou a bater nos dois, dizendo:
— Eu estou aqui fazendo um rito de passagem antigo e poderoso, enquanto vocês
dois estão aí se pegando? Não sei nada sobre respeito em Uada, mas Varg!
— Desculpa, Adara.
— Bem, se quiser comprar os vinhos para o seu deus dançarino para o ritual de
lua cheia de amanhã, é melhor que vamos logo para o outro vilarejo do lado da
caverna comprar alguns, porque logo o sol se põe. - Disse Kattla.
— Eu não te perguntei se você me perdoaria. - Disse Adara.
— Por me bater por beijar o Varg? Claro que não te perdoo, tive esse desejo desde
a primeira vez que o vi.
— Não, Kattla. Você me perdoa pelo meu pai matar sua mãe.
— Eu te perdoo porque sei que foi a imposição de minha mãe. Mas, nunca te
culpei por isso. Seu pai matou minha mãe e dele sim, eu arrancaria até as
tripas… Com os dentes. Da minha parte, retiro de você qualquer maldição que
seu povo colocou. Só não me bata mais quando eu estiver beijando seja quem for.
— Vocês estavam desrespeitando o ritual! - Defendeu-se Adara.
— Quando nossos entes queridos morrem em Uada, fazemos festa, transamos,
dançamos ao redor da fogueira, em honra a vida digna e guerreira que levou por
todos os anos que viveu. Alguns até acreditam que se durante essa festa alguém
engravidar, pode se tratar do morto que retornou para nós. Não entendo muito de
Norga como talvez vocês gostariam. Minha mãe passou a maior parte da vida dela
estudando nossa tradição porque ela não podia voltar pra cá.
— E como é bem isso? - Perguntou Varg interessado.
— Bem, faz parte da nossa sacralidade, dissemos: “Uma festa para o fogo e uma
festa para a água; uma festa para a vida e uma festa ainda maior para a
morte!”Assim simples. Celebramos as estações, a vida e a morte.
— Vocês não choram? - Perguntou Adara.
— Muito. Não somos de ferro. Temos sentimentos, amamos, odiamos, nos
alegramos, entristecemos. Mas você tem o seu ritual e nós o nosso.
— A floresta está estranhamente quieta. - Disse Varg.
— Acho que Adara conseguiu trazer minha mãe para passear nela. - Os olhos de
Kattla marejaram: — E acho que ela deve estar muito feliz por isso.
— Precisamos nos apressar. Kattla, carregue nossas roupas ou não chegaremos
no vilarejo em tempo. - Disse Varg, transformando-se em lobisomem, seguido por
Adara.
Ao que chegaram no outro vilarejo Varg e Adara se trocaram ao assumir a forma
humana novamente. Kattla achou aquele vilarejo ainda mais bonito e mais
organizado do que o que Adara vivia. As ruas eram de paralelepípedos o que dava
um charme ainda maior aos candeeiros.
Contudo, ela sentia algo, algo extremamente conhecido, uma energia com a qual
lidou por muito tempo e sem falar nada para os outros começou a caminhar a
esmo pelo vilarejo, tentando encontrar quem ou o que estava emanando aquela
energia. Parou abrupta quando Varg a segurou pelos ombros, dizendo:
— O que está fazendo? Esse vilarejo é tão cheio de Viktis quanto o outro e a essa
altura todos devem estar nos procurando.
— Tem algo ou alguém aqui que eu conheço, Varg. - Ela fez um esforço e pediu:
— Por favor, me solta!
— Temos de ao menos fazer o ritual do deus dançarino de Adara, se nos pegarem
agora já era
— É importante pra mim, Kin. - Ela apelou.
— Merda! Merda! Por que você não tinha que ser mais fácil? Nós prometemos que
vamos ajudar Adara.
— E vamos! Só me deixa encontrar isso.
— Encontrar o quê? Estou te sentindo há dias!
Varg olhou para a moça, não era muito alta, tinha os cabelos castanhos raspados
dos dois lados da cabeça formando uma trança com o cabelo comprido do topo.
Os olhos eram tão castanhos quanto o cabelo. Tinha tatuagem na cabeça, braços,
mãos.
Ela entregou um cajado enrolado num pano negro, que rapidamente Kattla
desenrolou e eles puderam ver uma pedra negra e brilhante, um diamante negro
preso à ponta do cajado que era de madeira escura, com outras pedras negras
ainda menores que brilhavam, dando a impressão de que todo o cajado brilhava
em negro.
— Ava! - Disse Kattla, a abraçando. — Não podemos ficar aqui, tivemos alguns
problemas com alguns Viktis e precisamos fazer um ritual amanhã para um deus
dançarino que precisa de muito, mas muito vinho mesmo. Você consegue isso pra
mim?
— Quantas pessoas? - Ela perguntou.
— Talvez não muitas, mas é necessário muito vinho. - Disse Adara.
— Essa é Adara, minha prima. - Disse Kattla, percebendo o olhar inquisitivo de
Ava.
— Alguma coisa mudou em você, Kattla.
— Muitas coisas mudaram, Ava. Venha participar da festa do deus dançarino
deles que eu te conto tudo.
— Posso levar algumas pessoas? - Ela perguntou.
— Sim. E instrumentos musicais e esteja pronta caso formos atacados. Porque,
com a permissão de Danê, amanhã essa floresta é nossa.
— Que assim seja. - Disse Varg.
— Comida? - Ava perguntou, dessa vez olhando para Adara.
— Sim, especialmente carne. - Respondeu Adara.
Ava abraçou Kattla novamente, dizendo:
— É bom te encontrar, Preceptora.
— Já disse que não é para me chamar assim. E quando ir para a floresta amanhã
siga minha energia.
Risonha, Ava os deixou para comprar tudo que Adara e Kattla pediram.
— Preceptora? - Perguntou Adara, enquanto caminhavam para longe do vilarejo.
— Ela acha que só se tornou uma necromante por minha causa, o que não é
verdade. Mantus a escolheu do mesmo modo que me escolheu.
— Esse cajado é seu?
— Sim.
— E por que estava com ela?
— Porque se eu morrer ela fica em meu lugar.
— Estou certo de que não está dizendo tudo. - Disse Varg interrompendo as
duas.
— Nem tudo convém contar, mas se seu sexo for bom, talvez eu conte. - Kattla
riu.
16 – União

— Você tem certeza de que eles vêm? - Perguntou Adara, ansiosa.


— Ava não me traria por nada.
— Mas, vocês tiveram um traidor entre vocês. - Disse Varg.
— Necromantes não se traem, Varg. Mas, o motivo disso eu não posso te dizer.
Contudo, se quiser, pode perguntar para Mantus.
— E como faria isso?
— Acho que está velho para isso e teria que sobreviver a todos os obstáculos que
ele colocaria em seu caminho até encontrá-lo e se conseguisse o alcançar vivo,
então talvez, e só talvez, ele te aceitaria. Dizem ser o deus mais perigoso de Uada.
Meus pais acharam que eu fosse morrer quando o escolhi. Por muito tempo,
séculos talvez, Uada não tinha necromantes. Mantus é um deus rigoroso.
— Uau! - Bradou Ava. — O que você fez com essa caverna?
— O que você deveria ter aprendido a fazer, mas nunca aprendeu. - Retrucou
Katta. — Por que demorou tanto?
— Acha que é fácil subir até aqui carregando esse monte de carne e vinho com
esses dois molengas?
— Eu não acredito! - Disse Kattla, correndo na direção dos dois homens.
Um era Igor, mais conhecido como o homem dos raios, a aparência tipicamente
Uadani, usando os cabelos raspados nos dois lados da cabeça, com os olhos
avelãs e traços apessoados. O outro era Victor, cabelo castanho, com a cabeça
toda raspada, exceto pela franja que caia lisa sobre o rosto, mesmo sendo um
guerreiro poderoso, Victor era um curandeiro.
— Como nos deixaram tão perto? - Perguntou Kattla, confusa.
— É culpa minha. Sabia que era você que teria que procurar por nós em Norga e,
bem, você sabe que é minha melhor amiga e quis te ajudar com isso.
— Quem são esses dois? - Perguntou Victor.
— Essa é a minha prima Adara e esse é Varg, meu irmão.
— Como você fez um irmão Norgian? - Perguntou Igor, observando Varg de perto.
— Porque uma deusa daqui, chamada Danê, me escolheu e nos ligou num laço
oculto. E quero que respeitem ambos da mesma forma que me respeitam.
— Ele é bem bonito! - Disse Ava aproximando de Varg.
— Bem, precisamos ficar na caverna por um tempo porque eu estou esperando
por alguém. Enquanto isso vamos fazendo um resumo do que aconteceu com a
gente até aqui, porque por mais que esse ritual pareça uma festa e é assim que
tem que ser, pode ser que tenhamos alguns problemas com alguns Viktis. - Disse
Kattla.
Ela mesma começou contando tudo o que se passara com ela no vilarejo, sobre
ficar presa, o encontro com a Deusa Danê, o resgate de Varg, a situação da prima
e sobre como ela estava disposta a ajudar Adara. Não negou a urgência que
tinham de retornar para Uada.
— Então, seu deus te deu uma marca que lhe foi arrancada por homens? -
Perguntou Igor.
— Sim. E agora estou fraca. Não sei nem se serei capaz de realizar esse ritual e
fazer com que meu deus venha. Ainda que meu Kin logo estará aqui.
— Nós vamos evocar seu deus nem que seja a base de pauladas. - Disse Ava.
— Como conseguiu esconder essa caverna desse jeito? - Disse Olyn entrando,
carregando alguns instrumentos e uma mochila consigo.
Parou abrupto ao perceber as pessoas sentadas ao redor da fogueira sem querer
acreditar muito em seus olhos. Estava na forma híbrida e logo se transformou em
homem, vestindo rapidamente em seguida como se estivesse tímido. Kattla
apresentou os que ele não conhecia e em seguida beijou-lhe a boca, dizendo:
— Acha que conseguimos?
— Adara tem que conseguir. Tudo o que vou fazer é tocar. Você vai tocar comigo?
— Sim, ela vai. - Respondeu Ava, intrometida. — Trouxe o tambor, flauta doce e
gaita de fole. Só ela escolher.
— E como vou saber o que tocar? - Perguntou Kattla.
— Só me acompanhar.
— Então posso acompanhar com seu violão se não for usar. - Disse Igor.
— E eu com o tambor. - Disse Varg.
— Vocês estão querendo dizer que eu terei que evocar o deus? - Perguntou Adara,
trêmula.
— Sim. - Respondeu Olyn. — E é bom que todos se vistam de branco ou fiquem
nus, como preferirem.
— Não acho que tenha qualquer coisa branca. - Disse Kattla.
Ao mesmo tempo Olyn e Varg entregaram, cada um, uma camiseta branca e
comprida para ela. E se olharam, como se tivessem entendido o recado que sem
querer um passou para o outro. Ava e Adara riram ao notar e começaram a
organizar as coisas.
Adara os guiou até uma clareira no alto da floresta, de onde ela sabia que os
outros os veriam. Sabia que era um risco, mas não era isso o que a incomodava.
Nunca tentara evocar seu deus desde que retiraram sua tatuagem e temia que ele
não viesse ao seu chamado. Pensava na vergonha e tristeza que sentiria.
Quando chegaram ao local todos saíram recolhendo galhos e troncos porque
Adara e Olyn informaram que a fogueira tinha que ser tão alta quanto aquelas
antigas árvores, o que acharam um exagero, mas entenderam o que queriam
dizer.
— Estou com medo, Varg. - Disse Adara, segurando o braço dele.
— Adara estamos em três Viktis e quatro Ljots, fazendo uma fogueira enorme e
daqui a pouco a musica vai ecoar pelo vale todo. Eles virão, Adara e talvez
ninguém nem tenha tempo de perceber se você falhou ou não.
— O que fazemos primeiro? - Perguntou Igor, assim que deixou as lenhas para a
fogueira bastante alta. — Acendemos a fogueira?
— Não. - Disse Olyn. — A musica começa baixa e vai aumentando e aqueles que
não estão tocando dançam livremente e os músicos que conseguirem dançar,
dançam também. Mas, não sem antes servir vinho para os músicos. - Virou-se
para Adara. — Adara, pode consagrar e nos servir o vinho?
Assim que beberam Olyn começou a tocar num volume baixo, até os outros se
acostumarem com a musica, mas na medida em que o vinho era servido iam
ficando cada vez mais altos, a musica mais alegre e até mesmo a floresta parecia
ganhar vida.
Aos poucos foram se sentindo intoxicados e mais alegres, assim a musica
também se tornou mais alta, foi quando Adara segurando uma tocha se
aproximou da grande fogueira e a acendeu. A madeira perfumava o ar. Quando
Kattla percebeu que sua flauta não era necessária, abandonou os outros para
dançar.
Mesmo Adara, já um pouco intoxicada pelo vinho se sentia mais leve e suas
preocupações pareceram varridas pelo vento. Ava se juntou as duas e logo sem
sequer pensar as três estavam dançando completamente nuas. Ava beijou
suavemente a boca de Adara e em seguida de Kattla e continuaram dançando.
— Sim, intoxica-nos. Dai-nos de teu sagrado êxtase! - Disse Adara com os braços
levantados.
Parou por um momento ao perceber Leif, Luí e Adish diante dela, encarando-a. A
floresta logo deu sinal de que outros também estavam naquele local. Kattla se
aproximou dela, segurando seu cajado negro, ainda que estivesse nua e sorriu
com desdém para Leif. Sussurrou no ouvido de Adara:
— Continua.
— Como se pudesse evocar o deus dançarino para te ajudar agora. - Disse Leif.
— Este é um ritual sagrado, Leif. Convido-os a se juntarem à gente e beberem do
vinho. A carne ainda está assando, a não ser que queira comer a crua que
separamos para o meu deus. - Disse Olyn.
Ava serviu os três enquanto ainda dançava, o que fez Adish a olhar com ódio.
Adara respirou fundo e ergueu as mãos novamente, gritando continuou:
— Sim, eu te chamo, meu deus, deus do alto grito, aquele que perambula
continuamente entre os vales cobertos de árvores, com uma miríade de ninfas
atrás de ti, preencha essa floresta com seus gritos, deus do êxtase, brandindo a
tocha nas tuas mãos. Tu que és luz na escuridão da noite, de Muitos Nomes,
Secreto e Sagrado, fértil e nutridor. Que traz a centelha de vida e faz os frutos
florescerem e crescerem. Ressonante, Poder Magnânimo, Deus Multiforme da
Saúde, Flor Sagrada. Os mortais encontram repouso do trabalho na Tua mágica, e
tu és desejado por todos.
A musica parara e Adara sentiu os olhos marejando ao não ouvir nada além do
crepitar do fogo. Em seguida sentiu-se ainda pior ao ouvir a risada de Leif, que
disse:
— Achou mesmo que seu deus te tomaria de volta? Veja seu Kin, incapaz de
qualquer coisa a não ser beber e morrer de depressão. Que deus que quer
pessoas fracas e amaldiçoadas? Por que liberaram Kattla?
Para o espanto de todos, gritos começaram a ser ouvidos por toda a floresta, com
as árvores se movendo como se algo corresse por elas passando com tanta força
que quase as fazia curvar.
Alegre Olyn pegou a flauta e começou a tocar e dançar. Todos podiam sentir uma
energia poderosa por todo o local. E como se fosse mágica, a tatuagem de Adara
aparecera em seu ombro novamente bem diante dos olhos de Leif.
— Nenhum homem é capaz de tirar de alguém aquilo que foi a dádiva de um
deus. - Disse Kattla, dando-lhe as costas, pegando outro chifre cheio de vinho e
voltando a dançar com Olyn.
— Acha mesmo que vou acreditar nessa magia barata com esse monte de Ljot
para fazer seus ilusionismos? - Disse Leif se aproximando dela. — Aquela Adara
por quem me apaixonei, que lutou ao meu lado na guerra, morreu há muito
tempo. Sempre te controlei, fazendo com que fizesse o que eu quisesse na
esperança de pegar seu posto de liderança de volta. Percebeu que não teria
quando decidiu ficar ao lado da sua prima?
— Meus ancestrais me pediram para ajudá-la, Leif. Contudo, eu não lhe devo
nenhuma satisfação e a festa de meu deus está muito boa para eu ficar perdendo
meu tempo com suas palavras ácidas.
— Você não vai a lugar algum sem minha permissão.
Esticando o braço para frente, de uma alta árvore, heras surgiram abruptas e
magicamente, sustentando Leif pelas axilas e o levantando até a copa, onde,
como correntes, o amarraram. Ele gritou:
— Adara, como conseguiu recuperar seu poder? Tire-me daqui.
Ela mostrou o dedo do meio e se envolveu com os outros que estavam festejando,
enquanto que Adish e Luí olhavam Leif preso no alto da árvore sem saber
exatamente o que fazer.
17 – Como sempre foi

— Ficar comparando não levará ninguém a lugar nenhum. Cada qual tem sua
qualidade e é bom em algo. - Disse Victor tão bêbado que quase não conseguia se
manter em pé.
— Isso não quer dizer que devemos fechar os olhos para quantidade de Viktis que
estão rodeando esse lugar nesse momento. Acho que só não avançaram ainda por
respeito ao deus que está presente. - Disse Igor.
— Estamos carecas de saber que eles não gostam da gente. Isso não quer dizer
que devemos começar uma briga. Acho que você devia ter participado do exército
como eu, Kattla e Ava. - Disse Victor.
— Kattla não me escolheu para essa missão à toa e eu recebi treinamento tanto
quanto você. Só não gosto de me sentir cercado e vigiado.
— Tem alguma coisa acontecendo? - Perguntou Kattla se aproximando dos dois.
— Tenho certeza de que você percebeu que esse lugar está cheio de Viktis. Não
viemos para morrer aqui. - Disse Igor.
— Sabe, eu gostei bastante desse deus da minha prima. O que acha de erigirmos
um templo para ele em Uada quando vencermos a guerra?
— Você está mudando de assunto! - Disse Victor.
— O que quero dizer, meu querido, é que nós sabemos o que fazer caso for
necessário e se eu pegar os dois preocupados novamente com a quantidade de
inimigos que temos, eu os expulso. Entendidos?
Ela os deixou voltando a dança com Olyn, que, assim como ela, já estava nu. Igor
e Victor olharam para os dois e depois de um longo suspiro, Igor disse:
— Por que ela tem que ser sempre tão dura?
— Eu não esperaria que uma protegida de Mantus fosse uma donzela indefesa.
— Bem, acho que vou conversar com a prima dela. Ela é linda!
Ao que se aproximou novamente de Olyn, tomou-lhe a flauta e entregou para
Victor, que ficou olhando para o instrumento sem entender. Ela disse:
— Em vez de ficar se preocupando, vá tocar musica para esse deus porque logo
ele se tornará nosso deus também.
— Eu nem sei tocar flauta.
— Tambor, violão, se vira.
O deixou novamente e enroscando os braços ao redor do pescoço de Olyn,
começou a beijar suavemente seu pescoço, afastando o cabelo comprido e
dourado para trás. Apossando-se de sua boca num úmido e demorado beijo, ela
deixou que suas mãos deslizassem pelo peito glabro.
Acomodando algumas folhas largas no chão, ele se deitou puxando-a para cima
dele. Se acariciaram e beijaram por um longo tempo, até que Kattla ajeitou-se
sobre o quadril dele e gemeu ao senti-lo penetrá-la. Olhava-o nos olhos de tempos
em tempos, quando invadia-lhe a boca em beijos úmidos.
Não soube quando tempo se passou quando ela olhou para o lado e viu Varg
sentado sobre um toco de tronco, tomando vinho, olhando-a. Olyn virou para ver
o que a tinha feito parar e também encarou Varg, que já estava pronto para
deixar aquele lugar e os deixar sozinhos.
— Você se importa? - Ela perguntou para Olyn.
Ele balançou a cabeça negativamente. Ela levantou rápido feito um raio e
segurou a mão de Varg que a olhou sem entender. Com delicadeza ela o puxou
para perto onde Olyn estava e deixou que seus lábios úmidos roubassem um
beijo dele. Varg a beijou com tanta paixão que ela se surpreendeu.
Quando os três começaram a transar, Kattla sobre Olyn e Varg atrás dela. Sentiu
um prazer tão grande, que tudo o que ela pôde fazer foi gritar:
— Como é o nome desse deus?
— Bacchus. - Sussurrou Varg no ouvido dela, enquanto beijava-lhe a nuca e o
pescoço.
Três Viktis se aproximaram de Adara, dois homens e uma mulher, perguntando
se poderiam participar do ritual. Adara sabia que aquilo era comum, já que há
muito tempo Bacchus não era evocado e as pessoas estavam precisando de um
pouco de diversão, sexo e bebida depois de tanto sofrimento na guerra.
Aquele pedido fez com que ela olhasse para o alto da árvore onde Leif estava, ele
começou a resmungar, pedindo para ser liberto, mas assim que Adara foi
responder qualquer coisa, sentiu a mão de Igor sobre seu ombro. Sorriram um
para o outro e ele disse:
— Se algum momento eu parecer rude ou não te tratar você do jeito que você
merece, por favor me avisa, porque nossas culturas são muito diferentes.
— Minha prima nunca pareceu preocupada com isso.
— Amo e respeito Kattla de todo o meu coração, mas ela é uma necromante e em
Uada essa é uma posição muito alta. Então, não acho que ela se importe muito.
— E por que Ava é diferente?
— Não sou tão diferente. - Disse a moça que ouviu os dois conversando. — Mas,
Mantus deu tudo para ela e apenas uma parte do poder para mim.
— E o que você fará agora, Adara? - Perguntou Luí. — Recuperou seu poder,
provavelmente seu status, está envergonhado nosso líder o amarrando na árvore.
— Eu poderia dizer que isso não é da sua conta, mas nunca tive nenhum
problema com você. Estou indo para Uada.
— Que? - Berrou Leif de cima da árvore. — Você está completamente pirada,
Adara.
— Renovada, seria a palavra correta. - Ela respondeu. — O que você me deu? O
que fez por mim além de me tratar como idiota? Todos deveriam saber de seus
planos pelas minhas costas. Por que eu deveria me preocupar com sua opinião?
— Porque eu sou seu líder.
— Varg é o líder do meu clã. - Ela se virou para procurá-lo, contudo Ava
sussurrou no ouvido dela:
— Ele está ocupado com Kattla e Olyn agora.
— Eu acho que você devia morrer com seus amigos Uadanis. - Disse Adish. —
Não sei nem porque estamos aqui discutindo.
— Melhor não irmos ao extremo. - Disse Leif. — Deixe-me descer daqui e
conversaremos.
— Você é xenofóbico, Luí? Tem alguma coisa contra Uadanis?
— Por que me pergunta?
— Porque se não for, evitaria essa conversa chata e transaria com você em algum
lugar.
Luí olhou o belo e pequeno corpo de Ava e sem pensar muito a arrastou para
longe dos outros. Igor olhou para Leif por um tempo e disse:
— Bem sobramos eu, a mulher mais linda desse lugar e o passarinho preso na
árvore.
— Mulher mais linda? - Perguntou risonha.
— Posso te tocar?
— Pode fazer o que quiser.
Ele a envolveu num abraço e a colocou sobre a mesa de tronco que
improvisaram. Sem nem se importar que Leif via tudo, os dois deixaram a boca
deslizarem pelos corpos nus, como se precisassem de mais excitação. Adara
sentiu Igor muito mais carinhoso do que já tinha notado.
Com cuidado ele abriu as pernas dela, massageando-a entre elas com a língua, o
que fazia com que Adara gemesse alto. De lá de cima Leif via tudo, sem saber do
que exatamente ele estava com raiva. Mas, os gemidos cada vez mais altos de
Adara, o deixava cada vez mais nervoso com a situação que se encontrava.
Sentia-se humilhado diante de todos os Viktis que ele sabia que estavam na
floresta.
Mas, com o deus dela correndo e gritando pela floresta, seria loucura tentar
alguma coisa contra todos aqueles que agora transavam, levantando uma energia
tão poderosa que o deixava tonto. Adara tinha conseguido, recuperou o poder e
talvez naquela altura já não se importava mais com ele, não depois de tudo o que
disse.
Do outro lado de onde estava Adara, Kattla, Olyn e Varg ainda transavam, ela
sentia estar bem perto de gozar, contudo nesse momento se viu andando nas
ruas asfaltadas de Uada. Sabia para onde ia. Os pés descalços sentiram as
pedras da pequena escada do templo da justiça.
Ela deixou deslizar a mão numa das colunas redondas que sustentavam o pórtico
e adentrou o templo. Era estranho, porque podia sentir seus homens em seu
corpo, mas ali estava, dentro do Templo da Justiça, que estava estranhamente
vazio.
Estava se retirando quando sentiu algo úmido sob seus pés. Virou-se para olhar
o que era e viu que de um lado descia um líquido parecido com gelo e do outro
lado um que parecia com fogo. No meio do percurso eles se misturavam e se
tornavam uma coisa só e ouviu uma voz que sussurrou:
— Como sempre foi.
18 – Decisões

Kattla acordou com a cabeça apoiada no peito de Olyn, com Varg a abraçá-la por
trás. A floresta como sempre estava coberta pela neblina, os outros participantes
do ritual estavam dormindo espalhados pelo lugar. Ela se levantou com cuidado
para não os acordar.
Com o pensamento de que daria qualquer coisa por um pouco de água, já que a
cabeça latejava, ficou por um tempo em silêncio para ver se ouvia um córrego por
perto. Rastrear coisas, especialmente pela audição, não lhe era difícil e saiu
caminhando pela floresta, não sem antes olhar Leif dormindo amarrado na
árvore.
O lugar foi se tornando estranhamente conhecido conforme andava e reclamava
dos arbustos que arranhavam sua pele nua. Foi então que viu o lugar onde ficou
presa e lembrando-se de Oliver, ela desceu a rampa na qual ficou por tanto
tempo e procurou por ele.
Estava morto, com um corte fundo no pescoço. Ela não quis acreditar naquilo,
esperava de todo o coração que Oliver se tornasse um híbrido. Começou a andar
pelo lugar que formava quase que um labirinto em torno da pequena fresta onde
viu Danê. Não havia nenhum outro homem lá, apenas Oliver apodrecendo.
Abaixou-se e as unhas de suas mãos tornaram-se lâminas negras, tão afiadas e
cortantes quanto de uma arma branca. Tomou o braço de Oliver e traçou três
símbolos sobre ele. Ainda que o corpo estivesse parcialmente decomposto, ele
abriu os olhos opacos.
— Sou eu, Oliver, Kattla. Não te incomodarei por muito tempo. Diga-me o que
aconteceu.
— Quando Varg te levou, Adish veio aqui e começou a me interrogar como se eu
soubesse de alguma coisa. Ameaçou me matar e implorei para que não fizesse
isso, eu tinha esperança de que Danê me tornasse num híbrido. Mas, ele o fez.
Ela fez outro símbolo, dessa vez na testa, colocando a mão sobre a cabeça de
Oliver, dizendo:
— Que Mantus te tenha em seu palácio e que você descanse, e, renasça para ser
um dos grandes.
Kattla sentou-se no chão, apoiando as costas na parede, segurando a cabeça
entre as mãos, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Sentiu vontade de gritar,
mas apenas deixou as lágrimas rolarem. Ele não quis ir com eles porque ainda
tinha esperança.
— Que deus que nega tanta devoção? Que deusa é você Danê, que deixou um
idiota matar aquele que tudo o que queria na vida era você? - Levantou-se: —
Preciso de água, minha cabeça está explodindo e estou me sentindo péssima.
Ela deixou o lugar e continuou seguindo seu ouvido para encontrar água e para
sua alegria encontrou uma cachoeira não muito alta e estreita. Bebeu tanta água
por causa da ressaca que achou que explodiria. E depois se permitiu tomar um
banho na cachoeira e chorar por Oliver, já que ninguém estava vendo.
Não havia nada para se secar e sabia que seria bastante frio até chegar onde os
outros estavam. Só não contava que Olyn despertara, sabia onde ela estava e do
que precisava. Ela se trocou, enquanto ele bebia água e tomava banho e depois
esperou por ele.
— Algo te deixa muito triste. - Ele disse.
— Você se importa com isso, Olyn? - Sua voz era quase chorosa.
— Eu não saberia mensurar e te dizer o quanto eu me importo com você.
— E se eu matar um Vikti antes de partir?
— Como assim antes de partir?
— Estou voltando para Uada, tenho assuntos para tratar lá. Quero que você vá
comigo, mas disseram que a guerra te deixou depressivo e meio doido. E é pra
guerra que estou indo.
— Não sou doido, Kattla. Só estou cansado de toda essa burocracia, clã, líderes,
assembleias. E é óbvio que estou depressivo, sou o único que restou do meu clã.
— Você me tem e tem Adara agora. Eu não posso te obrigar a vir comigo. Não
posso.
— E nem precisa. Irei com você.
Kattla se virou ao que ouviu algo se movendo próximo deles e por mais estranho
que aquilo pareceu, era Danê, andava como um animal de quatro patas, só que
estava com a barriga e peito para cima, enquanto a cabeça com seus olhos negros
e vazios estavam virados para baixo.
— O que quer me dizer? - Perguntou Kattla, ainda a olhando naquela forma
estranha.
Ela nada disse.
— É pelo que estou por fazer? - Perguntou Kattla.
Olyn olhava para onde a moça fitava, mas nada via. Sabia se tratar que algo
sobrenatural estava acontecendo porque conseguia sentir, mas não tinha ideia do
que estava acontecendo.
A deusa gritou fazendo todos os pássaros voarem e nesse momento Olyn
conseguiu ouvir, sentindo todo o seu corpo se arrepiar. Ele e Kattla se olharam
por um momento, logo ele se levantou e tomando a moça pela mão se retiraram
daquele lugar.
— O que isso quer dizer? - Perguntou Kattla.
— Minha lua, eu sei o que você tem em mente e parece que é pra acontecer. Só
não espere que a natureza esteja calma.
Quando os dois retornaram a maioria já estava acordada, com uma parte dela
procurando por água. Kattla olhou para Varg, que parecia ter um olhar triste,
quando a viu abraçada a Olyn.
Ava estava embaixo da árvore onde Leif ainda estava amarrado, pensando se
haveria um jeito de tirá-lo de lá da pior forma possível, ou se apenas Adara com o
poder do deus dela poderia fazer isso. Contudo, Adara e Igor ainda dormiam
sobre a mesa improvisada. “É só planta!” - ela pensou.
Deu uma olhada ao redor e viu o cajado de Kattla perto de Varg, que estava tão
absorto que parecia sequer estar na Terra. Kattla conversava compenetrada com
Olyn e talvez sequer percebesse. Como quem não queria nada, caminhou a esmo,
até conseguir pegar o cajado de Kattla sem que ninguém visse.
“Isso é morte pura. Será que vou matar o cara também ou só a planta?” Ava
encostou o cajado na hera e deixou claro que só queria matar a planta que
prendia o homem na árvore. Murmurou um encantamento que conhecia bem e a
hera rapidamente começou a apodrecer, derrubando Leif da árvore.
— Vocês acham que vão passar ilesos por isso? - Esbravejou Leif.
— Se você passou com tudo o que você fez para a minha prima, acho que é bem
possível. Diga-me uma coisa, Leif. O que faz de você líder de todo mundo? -
Perguntou Kattla.
— Ele controla o gelo. - Disse Olyn no ouvido dela.
— Deve ser bastante útil num país que neva tanto como Norga. - Disse Kattla, —
Acorda Adara.
Alegre como sempre, Ava avançou sobre Adara e Igor e os acordou. Assim como
também acordou Victor e outros Viktis que ela nem conhecia, mas que tinham se
juntado ao ritual da noite anterior. Um deles fez os olhos de Kattla mudar de
direção prontamente. Adish.
— Estou morrendo de sede. - Disse Adara.
— Alguém deve estar trazendo água, estamos todos de ressaca. - Disse Ava.
— Posso buscar. - Disse Victor. — Aproveito e curo a dor de cabeça de todo
mundo.
— Perfeito. Eu vou com você. - Disse Igor.
— Como pode ver, prima, Ava, sem a permissão de ninguém, usou meu cajado e
libertou o Leif. O que fará com que eu e ela teremos uma conversa mais tarde.
Primeiro por usar meu cajado e segundo por libertar um prisioneiro que não é
dela.
— Desculpa, Kattla, prometo que não vai acontecer mais.
— Eu confio bem menos na metade de vocês. - Continuou Kattla. — Mas, minha
prima está vindo comigo. A verdade é que não era para termos nenhum Vikti com
a gente, porque é a nossa guerra, nossa expedição. Mas, desde que cheguei aqui
as coisas ficaram loucas e o deus Bacchus me deu uma visão.
— Você está louca? Eles sequer têm treinamento. - Protestou Ava.
— Eu sou a capitã aqui, Ava.
— Que está colocando nossa expedição em risco levando esses malucos que
podem nos matar a qualquer momento.
— Eu levaria Leif, numa guerra o gelo pode ser muito útil. - Disse Adara.
— E quem disse que quero ir para Uada com vocês? - Perguntou Leif.
— E ficará fazendo o que aqui? Sendo o líder supremo de um vilarejo escondido
até que o império nos encontre e nos mate a todos como fizeram com os Ljots? -
Perguntou Adara.
— Essa floresta nos protege! - Ele protestou.
— Sim, protege e sempre protegeu, mas quando Uada cair, então eles começarão
com a exploração, inclusive desse lugar. Se quiser ficar aqui e ser um líder de
merda e esperar, ótimo. Eu vou lutar enquanto não estou morta. - Disse Adara.
— Se eu tinha alguma dúvida que Adara e Kattla eram primas, agora eu não
tenho mais. - Disse Ava.
— Sinal de que Uadanis e Norgians não são assim tão diferentes como tentaram
nos fazer acreditar. - Disse Varg.
— Vocês estão todos loucos! - Esbravejou Adish. — Como podem confiar nessa
gente? Como pode Leif estar com essa cara de quem está pensando seriamente no
assunto? Nós devíamos aproveitar que estamos aqui e que o deus foi embora e
matar todos eles.
Kattla levantou-se num salto e se aproximando de Adish sem carregar qualquer
arma nas mãos, exceto por suas unhas que cresceram como lâminas negras
novamente, enfiou uma das mãos no peito dele agarrando-lhe o coração e
aproximando sua boca da dele, começou a sugar uma fumaça esverdeada e o fez
até que ele secasse, pele, carne, músculos e cair no solo feito pó. Virando-se para
Leif, disse:
— Se eu souber que você tem algo a ver com a morte de Oliver como esse imbecil
farei ainda pior com você, por tudo o que fez também para a minha prima.
— Você é uma necromante. - Disse ele, surpreso. — Mas, por que fez isso?
— Oliver tinha a esperança de ser um sacrifício agradável para Danê e não quis
vir comigo e Varg, na esperança de se tornar um híbrido e esse idiota tirou isso
dele. Vocês podem não entender o que é ser um sacrifício, mas eu fui um e meu
deus era tudo o que eu queria. Então, sei exatamente o que Oliver sentiu quando
vocês cortaram o pescoço dele.
— Você devia colocar ele lá como sacrifício, Kattla. - Disse Ava.
— Ava, eu não quero ouvir sua voz por no mínimo duas horas e você não toca
mais no meu cajado.
— Tomara que eles vêm logo com a água da ressaca, ou ela ficará insuportável. -
Cochichou Ava no ouvido de Adara, que segurou o riso.
— E então, Leif? - Perguntou Adara.
— Luí? - Perguntou Leif.
— Eu topo. - Disse Luí. — Já perdemos tudo o que tínhamos, o que mais temos
para perder? E se a tia da Adara não morreu em Uada, talvez não morramos
também.
Leif encarou Adara, havia algo naquele olhar que ela não soube identificar
prontamente, mas sabia haver um pouco de raiva pelo que tinha acontecido na
noite anterior. Disse ríspido:
— Terei que me submeter ao comando de Kattla?
— O quanto você conhece Uada ou sabe da nossa expedição? - Perguntou ela.
— Nada.
— Decide logo porque eu tenho coisas para fazer. - Disse Kattla.
— Pode deixar, Kattla, eu converso com ele. Depois eu te digo. - Disse Adara.
— Vai descer no vilarejo? - Perguntou a prima.
— Acho que todos deveríamos.
— Tenho coisas para pegar na caverna, mais tarde eu desço. - Respondeu Kattla.
— Onde nos encontramos?
— No galpão do Leif. - Disse Luí.
— Não mesmo, ele nem sabe se vai.
— Minha casa é grande suficiente. - Disse Olyn.
— Nos encontramos todos na casa de Olyn. Pode dizer para Ava onde fica para
que ela possa guiar os outros, meu sol?
— Sim.
19 – Acerto de contas

Adara e Leif seguiram para o galpão dele acompanhados por Luí. Ao que
entraram, Luí rapidamente colocou a cafeteira para funcionar para ver se o café
melhoraria os ânimos e o estado físico de todos. Leif nada disse durante todo o
percurso, mas não evitou sentar na mesma mesa que Adara. Ele disse:
— Eu sempre pensei que você os odiaria por ter sido amaldiçoada pelo que
aconteceu em sua família. Quando sua prima chegou achei que não conseguiria
se tornar amiga dela, que vocês duas não se ajudariam.
— Você não estava de todo errado, Leif, eu estava perdida, fraca, ressentida,
estava certa de que ela me mataria. Não conseguia ouvir minha própria intuição.
Tudo o que conseguia fazer era me transformar em loba e controlar os lobos da
floresta para evitar que ela fugisse. Na verdade foi você que nos uniu.
— E por que está indo para Uada? Só por causa da guerra?
— Não apenas por isso, tenho outra coisa para fazer lá, que não convém te
contar. Estou aprendendo devagar, mas estou aprendendo. Você não deve saber
de tudo. Essa noite eu tive uma lição valiosa: a de que não posso confiar em você.
— E por que você quer que eu vá? - Ele perguntou.
— Porque lutamos juntos e vi o quanto seu poder pode ser útil.
— Por que isso se tornou tão importante para você?
— Porque pode ser que seja nossa chance de livrar Norga do domínio de Fopros.
Podemos ter nossa vida de volta.
— Tem certeza que não é por algum sentimento de culpa com relação a sua
prima? - Perguntou Luí, colocando o café na mesa para todos.
— Acho que nós duas sofremos o suficiente durante todos esses anos. Sofremos
com nossas famílias, com a guerra, com todos aqueles que se foram. Como todos
vocês também sofreram. Uada não é exatamente o que nos contaram desde de
pequenos, estou certa disso.
— Só estou perguntando por perguntar, eu já concordei de ir com vocês. Se eles
decidirem fazer com os Viktis o que fizeram com os Ljots, e, estou certo de que
vão, não vejo razão para ficar aqui parado esperando.
— Não podemos convencer toda a nação de que Uada não é o monstro que
pintamos por aqui. - Disse Leif.
— Não chegamos nessa parte ainda, Leif. E eu também não sei dizer qual o plano
de Kattla, exceto que ela é capitã do exército de Uada, que precisou se esconder
por ser uma Ljot.
— Então o outro Ljot traidor está solto por aí? - Perguntou Luí.
— Provável.
— Ele só reconhece Ljot ou ele tem algum tipo de talento para reconhecer Viktis
também? - Pergunou Leif.
— É algo que teremos que perguntar para Kattla.
— Eu vou para a reunião na casa de Olyn e lá decido o que vou fazer. - Disse Leif.
***
Kattla e Varg estavam em silêncio na caverna, enquanto organizavam suas
coisas. Ele mal a olhava enquanto ela se trocava e colocava uma roupa mais
propícia para o clima úmido e frio da floresta. Não o olhava, pensava em tudo o
que tinha para fazer, questionava se estava fazendo a coisa certa.
— Eu vou com você? - Ele perguntou.
— Varg, você é muito melhor que isso. O que está te incomodando?
— Eu te achei linda desde a primeira vez que te vi.
— A recíproca é verdadeira.
— Só que não me importava com isso. Você deve imaginar que eu não tenho
dificuldade com mulheres. Mas, parece que com você tudo se tornou tão difícil
abruptamente.
— Vocês são monogâmicos, não eu. Em Uada somos livres para amar quem
quisermos. A única coisa que me incomoda nessa conversa é que meu foco é
completamente outro. Eu gosto de você e de Olyn, mas não são minha prioridade
agora.
— Está sendo dura comigo, eu te observo com Olyn.
— Está com ciúmes?
Ele ficou quieto e voltou a organizar as coisas. Ela se aproximou dele, agachando-
se para afastar a mochila de suas mãos. Segurou o belo rosto entre as mãos,
acariciando suas bochechas, encostou o nariz no dele, enquanto os olhos se
encaravam e o beijou. Sem se afastar muito do rosto dele, ela disse:
— Você vem comigo?
— Para fazer meu coração sangrar?
— Talvez você e Olyn possam aprender como é amar em Uada. Não nascemos
para ser monogâmicos.
— Cultura não é algo que você se livra da noite para o dia.
— Eu quero que venha comigo.
— Não me obrigue, Kattla.
— Não me faça escolher, Varg.
— Terminou de organizar as suas coisas?
— Terminei.
— Vamos então. Olyn deve estar nos esperando.
Kattla parou e começou a se despir diante dele.
— Por que está fazendo isso?
Já totalmente nua, ela disse:
— Diga que não me quer. Se aproxime de mim, olhe nos meus olhos e me diga
que você quer que eu vá embora e te deixe para trás.
— Kattla, não temos tempo para isso.
— Temos. Você está com ciúmes de Olyn, mas aqui eu estou, totalmente
entregue, apenas para você. Só sua. Diga que não me quer.
Ele continuou parado a olhando, sim, estava com ciúme e não queria dividi-la
com ninguém, mas sabia que o que ela sentia por Olyn era diferente do que
poderia sentir por ele, ou ao menos achava isso. Estava acostumado com tantas
mulheres apaixonadas por ele, enquanto que nunca se apaixonou por nenhuma.
Ele sequer poderia imaginar o quanto aquilo poderia magoar Olyn. Justo Olyn
que estava depressivo. Não fosse aquela loucura que estava sentindo por ela,
poderia dizer que ela era a encarnação de algum espírito mau. Mas, ali ela estava,
em silêncio, o observando.
— É só uma questão de cultura. - Ela disse, se aproximando dele.
Ele não se moveu enquanto ela começou a despi-lo, acariciando o corpo esbelto e
o beijando a cada peça de roupa que tirava. Quando despiu a calça dele colocou o
falo dele na boca, fazendo-o virar a cabeça para trás, deixando os cabelos loiros e
compridos caírem como uma seda.
A empurrou contra a parede da caverna e penetrou, enquanto suas mãos
percorriam por todos os lugares do corpo dela. Ela inclinou a cabeça para trás,
deitando-a no ombro dele e sentiu os beijos em seu pescoço, disse:
— Sou só sua agora.
— Só agora?
— Só agora. Mas, continuarei sua, se você quiser.
Ele a penetrou ainda com mais força até gozar. Abandonou-a e se trocou, sem
dizer qualquer palavra. Esperou até que ela ficasse pronta e seguiram em total
silêncio para a casa de Olyn.

20 – Partindo

Kattla entrou na casa de Olyn e todos estavam lá, exceto pelos Uadanis que ainda
não haviam chego e Varg. Estranhou ao ver Nytt sentada e conversando com os
outros, mas ela mesmo nada disse. Sequer sentou ao lado de Olyn, que a olhou
desconfiado.
Entre seus planos, também estava sua raiva sobre não ser entendida, sobre as
pessoas serem capazes de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Era um
pensamento simples, mãe ama filho, marido, a mãe dela, os irmãos, os amigos e
etc. Como aqueles loiros não podiam entender aquilo?
Sentou-se na mesa que Olyn claramente tinha mudado de lugar para acomodar
todo mundo e ficou por um tempo olhando para Leif, que também estava sentado.
Olhou para a porta quando ela se abriu, mas não sorriu quando viu Varg
atravessá-la.
Faltavam apenas os Uadanis e ela precisava se concentrar para ajudá-los a
encontrar o caminho. Contudo, não deixou de perceber o modo como Nytt olhava
para ele, ela gostava dele sem sombras de dúvidas. Adara se aproximou de Kattla
e perguntou:
— Está tudo bem com você?
— Não sei. - Respondeu, honesta.
— Quer conversar?
— Não. O que se passa comigo não é prioridade.
“Mande um sinal mais forte, Kattla, não estou conseguindo te achar” - Ouviu a voz
de Ava em sua cabeça.
Kattla deixou o ambiente para fazer o que Ava solicitara e se sentiu melhor
quando deixou os outros e o vozerio para trás. Dessa forma não demorou muito
até Ava, Igor e Victor chegarem. Entraram os três desconfiados, mas quando
Kattla saiu da cozinha onde estava sozinha, sentiram-se mais à vontade.
Ao perceberem que logo começariam a falar, todos se posicionaram, tomando
seus lugares, alguns à mesa, outros em sofás e poltronas. Kattla inspecionou um
por um, apenas Ava sabia que ela verificava a energia vital de cada um deles para
saber de seus desejos e propósitos.
Estranhamente, Kattla abaixou a cabeça e esboçou um sorriso com o pensamento
que lhe ocorreu. Sim, estava feliz de voltar para onde pertencia, de ter o perigo
sempre ao seu encalço, de rever Bjorn. Ava sorriu também, pois que
telepaticamente sabia o que se passava na mente da amiga. Musicas, bebidas,
danças, sexo… Ava estava certa que todos os Uadanis ali presentes estavam
sentindo falta disso.
— Então, vamos falar sobre o quê? - Perguntou Luí.
— Que se tivéssemos algum juízo tingiríamos nossos cabelos de loiros iguais de
vocês. - Disse Ava.
— Ah claro, seu penteado não diria nem um pouco que você é de Uada. - Disse
Igor.
— Kattla não está como a gente.
— Porque não fiz minhas tranças ainda. - Respondeu Kattla. — A questão é a
seguinte, desde o começo nunca esteve em nossos planos carregarmos qualquer
Vikti com a gente e não preciso ficar explicando os motivos. Todos nós sabemos.
Esconderam-nos em Norga, apenas porque seria o único lugar que não nos
procurariam.
Ela fez uma pausa para ver se alguém tinha alguma pergunta, mas todos a
olhavam em silêncio. Ela continuou:
— O homem que nos traiu é um Ljot capaz de reconhecer Ljots e Viktis. Ele está
vivo, mas não temos ideia de onde ele está. Então, como alguns de vocês já
pensaram, quando nós cairmos, vocês serão os próximos a serem caçados e
assassinados. Contudo, há um segundo problema e por isso me trouxeram aqui.
Eu também posso fazer o mesmo que ele através da energia vital das pessoas.
Então, de certa forma, vocês já devem ter em mente que é como um jogo de
xadrez.
— Ele é um necromante? - Perguntou Leif.
— Não. Minha única vantagem é essa. Nem todo mundo pode entrar no
submundo e os que entram não saem dele. Procuro me ocultar o máximo que
posso, assim como Ava.
— Certo, então temos um Ljot louco capaz de rastrear a energia e que está
trabalhando para o Império a fim de nos exterminar. Por que Uada nunca disse
nada disso para gente? - Perguntou Leif.
— Meu tio foi para a minha terra matar minha mãe porque casou com um de
nós. O que você esperava que Uada fiesse por vocês? Quer ser nossos aliados,
ótimos. Mas, não estamos aqui para ser o redentor de ninguém.
— Por que você não os ocultou como fez com a gente na caverna? - Perguntou
Varg.
O semblante de Kattla mudou completamente. Os olhos se encheram de uma
tristeza tão visível que todos notaram, especialmente quando baixou a cabeça,
fitando a madeira escura da mesa.
— Não precisa falar sobre isso agora. - Disse Adara, lançando um olha
intransigente sobre Varg.
— Não dá para salvar todo mundo, por mais que você queira. - Disse Olyn. — Eu
passei por isso, experimentei na carne como é perder pessoas queridas,
compatriotas e toda sorte de horrores que vemos na guerra.
Varg olhou para Olyn e odiou-se ao comparar-se com ele. Ele que sempre fora o
centro da atenção das mulheres, talvez faltasse aquela gentileza que o louco do
Olyn tinha e ele não.
— Tornaram-me prioridade e me esconderam a força, porque não queria parar de
lutar. Por isso não fiz nada. - Disse Kattla. — Assim como fizeram com os poucos
que sobreviveram. Uma traição não era algo que esperávamos e sem Ljots nossa
queda era apenas questão de tempo. Como é provável que ainda seja.
— Eu não tenho nem o que falar sobre isso. Saber que tem um Ljot que pode nos
reconhecer e que podemos morrer depois que Uada cair pra mim é suficiente para
querer ir com vocês. - Disse Luí.
— Eu vou. - Disse Leif.
— Eu também vou. - Disse Nytt.
— Você nem híbrida é! - Disse Luí.
— Mas, sou Vikti como vocês! Só não sou híbrida.
— Eu sei o que é ser só metade e voto para que ela vá! - Disse Ava.
— Só se você se encarregar do treinamento dela, como terá que treinar outros. -
Disse Kattla.
Um a um foi concordando de seguir com eles, exceto por Varg, que olhava para
Kattla. Ela se levantou e foi na direção dele que estava sentado numa das
poltronas brancas de Olyn. Curvou o torso sobre ele, deixando os lábios tocarem
sua orelha e disse:
— Você cresceu acostumado com um monte de mulheres que te amavam e te
queriam, que estavam prontas para fazer qualquer coisa por você, abandonar
tudo por você, prontas para darem até o que não tinham para estar com você.
Meu lobo, eu não sou esse tipo de mulher e não vou te implorar para vir comigo.
Ou você aprende a deixar de ser mimado ou não faço ideia se vamos ou não nos
vermos novamente. A escolha é sua.
— Está dizendo que tudo o que importa para mim agora é você?
— Se tivesse ouvido o que os outros ouviram, se tivesse prestado atenção que
temos um Ljot capaz de encontrar Ljots e Viktis e que ficar aqui é esperar por ele,
eu seria a menor de suas preocupações. Você só está me demonstrando que é
fraco e por Mantus, nunca quis um Kin fraco, porque eu não sou!
— Está me obrigando! - Disse irritado.
Ela deu as costas para ele e voltou para a mesa onde abriu um mapa. Havia um
pequeno pontilhado que marcava um caminho para o sul de Norga até a fronteira
entre Traesia e Tunus, onde havia um X. Kattla disse:
— Não temos bases em Norga, então teremos que viajar até a fronteira de Traesia
onde está uma de minhas bases. Lá teremos o suficiente para ficar alguns dias e
teremos os jipes com tração nas quatro rodas que serão necessários. É um
caminho muito longo e infelizmente só temos a opção de ir de carro. Eu vou
precisar confiar em todo mundo.
— Precisamos de carro. - Disse Leif.
— Eu e Igor trouxemos dois. Não é um zero-quilômetro, mas está novo e em bom
estado. - Disse Ava.
— Eu tenho um também. - Disse Olyn.
— Estamos em quantos? - Perguntou Adara.
— Nove. - Disse Kattla.
— Dez. - Disse Varg.
— Certo, temos carros suficientes, mas temos que viajar leves. - Disse Igor.
— Trinta minutos para ficarmos prontos e partimos. - Disse Kattla.
— Como assim trinta minutos, você está doida? - Perguntou Nytt.
— Não vou repetir. - Disse Kattla.
— Venha, eu te ajudo. Ela é assim mesmo. Você vai precisar se acostumar, certo?
- Disse Ava para Nytt.
A pobre moça balançou a cabeça em concordância, questionando se tinha de fato
feito a escolha certa. Contudo, Ava foi deixando as coisas mais fáceis para ela,
conforme explicava como funcionava o exército e as táticas de Uada.
21 – Viagem

— Estamos há quatro dias viajando direto, apenas trocando de motorista para


deixar os outros dormirem. O que acham de dormirmos num hotel hoje? -
Perguntou Leif.
— Não seria nada mal. - Respondeu Igor, que dirigia e que em seguida deu seta,
avisando para os outros pararem.
Assim que todos os carros pararam Igor falou sobre o plano de dormirem num
hotel naquela noite e como todos estavam esgotados, a concordância foi unânime.
Seguiram por alguns quilômetros, até encontrarem uma espelunca que ao menos
tinha a placa informando de que era um hotel e pararam no estacionamento.
Antes dos Uadanis descerem do carro, Nytt os fez usar perucas loiras e lente de
contato para que não chamassem a atenção de ninguém. O que deixou Ava
orgulhosa em sua escolha de trazer ela com eles, poderia não ser muito forte,
mas era uma boa cabeleireira e maquiadora.
Na parte térrea do lugar havia um enorme balcão e do outro lado várias mesas
que ficavam menos expostas. Não precisaram pensar muito para escolherem as
mesas do fundo mais escuro, as juntando para que todos pudessem sentar
juntos.
Adara sentiu vontade de rir quando percebeu que todos os Uadanis olharam
todas as pessoas presentes, com tanto esmero, que ela sabia que eles poderiam
dizer até mesmo porque elas estavam ali. Provável que era parte do treinamento
deles e se sentiu meio boba quando achou aquilo bonitinho.
— Estou exausto! - Disse Luí, enquanto olhava o menu.
— Ainda não me decidi se estou com mais fome ou sono. - Disse Ava.
— Quando vocês forem pedir, deixe que façamos isso. Por melhor que vocês falem
Norgian, ainda dá para perceber um pouco de sotaque, o que pode fazer com que
as pessoas perguntem de onde vem e etc. - Disse Olyn.
— Todos estão permitidos de tomar apenas uma dose de bebida alcoólica, nada
mais. - Disse Kattla.
Ao ver o rosto nervoso de Leif, Victor disse com sua costumeira calma:
— Falamos coisas que não queremos quando estamos bêbados e temos coisas
que não podemos falar de modo algum nessa expedição, por isso o controle é
necessário.
— E por que um pode? - Perguntou Leif, encarando Kattla.
— Para relaxar e dormir bem. Não será assim para sempre Leif, chegará o
momento em que a coisa ficará tão feia, que beber e se drogar será nossa única
opção.
— Você gosta de manter o controle, não? - Perguntou Varg.
— Perdoe-me, mas sou a capitã dessa expedição.
Ela se levantou e estava saindo, quando Ava perguntou:
— Onde vai?
— Preciso de ar, mas antes disso passarei no balcão e comprarei um cigarro.
Adara a olhou saindo e se aproximando de Varg, perguntou:
— O que está acontecendo?
— Não faço ideia, ela não fala comigo e com Olyn desde que partimos do vilarejo.
Nos evita. Conseguimos sentir, mas muito pouco, ela está usando o poder dela
para se ocultar com certeza.
— Varg, você já pensou em conversar com Olyn? Ver com ele o que ele acha disso
tudo?
— O que me preocupa. - Disse Victor, fazendo todos olharem para ele, inclusive
Adara e Varg. — Nós somos um e eu temo que vocês não entendam isso. Estamos
numa missão perigosa e eu nem sei se posso confiar minha guarda em vocês.
Temos muitos dias pela frente para aprendermos a confiar um nos outros, mas o
que sinto é que todos nós estamos cheios de problemas uns com os outros. Não,
isso não é uma equipe. É só um bando. Quatro dias não foram suficientes para
fazer ninguém virar amigo de ninguém, nem de ninguém confiar em ninguém.
— Eu confio em minha prima. - Disse Adara.
— Confia em Leif? - Perguntou Luí.
— Talvez seja melhor deixá-los para trás e seguirmos sozinhos. - Disse Igor.
— Kattla não está aqui para seguirmos com uma discussão como essa. - Disse
Ava.
— Eu tenho uma dúvida, até um pouco boba, cultural. - Disse Adara. — Será que
você pode me responder, Igor?
— Claro.
— Vocês não sentem ciúme?
— Sentimos. Bastante até. Mas, não permitimos que isso estrague um
relacionamento ou o que quer que seja. Tentamos lidar com ele, entendemos que
ciúme muitas vezes é quando carecemos de amor-próprio e que precisamos fazer
algo por nós que mais ninguém pode fazer. Por que pergunta?
— Porque eu acho que parte do que estamos passando por aqui, em toda essa
questão de desconfiança, também está relacionado ao fato de que nossas culturas
são diferentes.
— Isso não muda o fato de que sei que você está com algumas pendências com o
Leif. - Disse Luí.
— Ei! Esse tipo de poder é meu! - Disse Ava, cutucando Luí. — E digo mais! Olyn
e Varg deviam arrumar um tempo para conversar antes de conversarem com
Kattla.
— Como você sabe dessas coisas? - Perguntou Nytt.
— Os mortos conversam comigo.
— Estamos todos exaustos, não pode simplesmente nos colocar para conversar
sobre coisas difíceis. Precisamos de comida e cama. - Disse Luí.
Assim que serviram a comida, Ava foi lá fora para chamar por Kattla. A encontrou
olhando para o céu e sorriu, desde pequenas elas gostavam de ficar olhando para
as estrelas pensando como seria viver no espaço. Ava disse:
— Já serviram o jantar.
— Mas, eu nem pedi o meu.
— Eu sei do que você gosta e pedi.
— O que seria de mim sem você, Ava?
— A Kattla rabugenta de sempre. Entretanto, eu não gosto de te ver triste como
tenho visto nos últimos dias.
— Tenho a sensação de que estou falhando. Parece que quanto mais eu tento
suprimir meus sentimentos, mais intensos e descontrolados eles ficam.
— O que vocês estão fazendo aqui fora? - Perguntou Adara se aproximando.
— Ava me chamando para jantar e eu pensando em fumar outro cigarro.
— Posso fumar um também? - Perguntou Adara.
Kattla estendeu o maço de cigarro para ela tirar um e acendeu para ela. As três
encostaram num dos carros deles e ficaram por um minuto em silêncio. Adara
disse:
— Varg está com ciúme de você, Kattla.
— Eu sei, Adara, mas o ciúme dele está sendo cruel. Tão cruel ao ponto que não
sinto vontade de ficar perto dele. Então, desisti, dos dois.
— Você ao menos os informou disso? - Perguntou Adara.
— Não está claro?
— Não. Eles estão achando que você está apenas brava com eles e não que
desistiu deles completamente.
— Isso quer dizer que em algum ponto da viagem, você os jogará para fora do
carro? - Perguntou Ava.
— Já cheguei a pensar nisso. - Disse Kattla. — Mas, ainda não. Apenas desisti,
deixei pra lá, não quero saber.
— Mas, você gosta deles, não gosta? - Perguntou Adara.
— Gosto da ideia de ver meu país ganhando a guerra. - Ela jogou o cigarro no
chão, pisou nele e entrou.
— Ava, o que tudo isso significa? Sei que você é amiga dela de infância.
— Estressou. Cansou. E está a um passo de mandar tudo à merda.
22 – Confiança

Continuavam viagem naquela tarde ensolarada, quando um dos carros deu seta
sinalizando os outros para pararem. Quando todos pararam, Leif saiu do carro,
dizendo:
— Furou o pneu. Vamos ter que trocar.
— Eu te ajudo. - Disse Igor.
— Vocês achariam muito ruim que eu e Adara andássemos mais alguns
quilômetros para achar um mercado ou algo do tipo para comprarmos algumas
bebidas e petiscos? Esse sol está me matando. - Disse Kattla.
— Sem problema! - Disse Victor.
— Deixa eu apenas colocar a peruca em você e prendê-la de modo que não se
solte. - Disse Nytt.
Kattla esperou e quando estava loira com a peruca entrou no carro com a prima e
ligou a musica baixo. Adara a olhou por um tempo e depois disse sorrindo:
— Você realmente parece um de nós com essa peruca.
— Estou feliz em parecer Uadani. Tenho orgulho da minha terra e ela é menos
complicada que a sua.
— Sei que isso parece muito pessoal, mas não a vi conversando com Olyn ou
Varg já tem alguns dias.
— Sério que você quer insistir nessa história de amor e paixonite?
— Você está deprimida, Kattla, só você que não está percebendo isso. Você nem
fumava e está fumando. Eu não vejo você conversando com ninguém, nem rindo.
— Você até parece minha mãe falando. - Kattla fez uma pequena pausa: — Nytt
gosta de Varg, não é mesmo? Ela é sua melhor amiga, certo? Ela sabe de alguma
coisa?
— Acho que desconfia. Varg não consegue esconder os sentimentos.
— O quanto seu povo pode ser guiado pela fúria passional? Estou tentando ser
justa e não generalizar o que seu pai fez. Sei que Olyn não é assim e que você
também não, teria matado Leif naquela noite se fosse.
— De certa forma nós temos códigos como vocês, temos vários clãs e isso exige
milhares de regras que somos obrigados a seguir.
— Nytt poderia tentar me matar, ainda que eu não estivesse com Varg?
— Ao que noto, Nytt gosta de estar com a gente e o contato entre vocês duas é
ínfimo.
— Por isso que estou desconfiada. Mas, de todo modo, eu não estou com nenhum
deles. Só estou cansada e estressada dessa viagem. Entediada seria a palavra
certa.
— Acho que todos nós estamos.
Quando as duas retornaram, todos estavam parados esperando por elas. Kattla
desceu do carro e disse:
— Nós fomos e voltamos, e, vocês não trocaram esse maldito pneu?
— Alguém teve a grande ideia de deixar todos os malditos macacos no porta-
malas do seu carro. - Disse Igor.
— O que é bom, pois podemos esticar as pernas um pouco. - Disse Ava. E
tocando nos braços de Olyn e Varg, ela disse: — Vocês podem me acompanhar e
me esperar no acostamento, eu realmente preciso me aliviar.
— Claro! - Responderam juntos, embaraçados.
Kattla olhou para Ava ao sentir que ela estava fazendo magia, mas procurou dar
às costas e encostar no carro enquanto bebia suco. Ao menos esperava que ela
não criasse uma grande bagunça com aquilo, o que era uma esperança nula. Ava
não sabia fazer nada que não causasse grande transtorno.
Mas, por que não a parou? - foi a pergunta que lhe saltou à mente em seguida. No
fundo ela sabia, estava preocupada com aqueles Viktis, com a confiança que
poderia colocar sobre eles. Confiou enquanto esteve no vilarejo, mas eles eram
mais estranhos do que ela imaginava.
— Será que ela vai demorar? - Perguntou Olyn.
— Não sei, mas temos que esperar eles trocarem o pneu de todo jeito. -
Respondeu Varg.
— Kattla conversou com você?
— Não. Por que me pergunta isso? É mais provável que ela converse com você,
você é o namorado dela afinal.
— Não acho que namoramos.
— Você sabia que transei com ela?
— Nós três transamos juntos.
— Depois disso, Olyn, eu transei com ela, sem você. Achei que você soubesse.
— Imaginei que tivesse acontecido, mas não, eu não sabia. Mas, por que está me
contando isso?
— Porque acho que você precisa saber que não é único e especial.
— Pode ser. Mas, perdi as contas de quantas vezes ela fugiu para a minha casa
para ficar comigo. Quantas vezes isso aconteceu com você?
Varg deu um soco em Olyn fazendo-o cair. Subiu em cima dele e continuou o
esmurrando. Os outros fizeram um círculo ao redor, enquanto Nytt tentava tirar
Varg de cima de Olyn. Com isso, Olyn conseguiu fazer uma manobra e ficou por
cima de Varg, esmurrando-o sem parar.
Kattla se aproximou carregando as mochilas dos dois e jogando sobre eles, disse:
— Vou liberar um carro para que vocês voltem para o vilarejo.
Os dois pararam de brigar prontamente e olharam ansiosos. Era como se pela
primeira vez pudessem sentir a mesma coisa, não queriam voltar, queriam
continuar e ajudar no que fosse preciso. Olyn sentiu-se envergonhado e disse:
— Poderia ter evitado essa conversa, ainda que Varg me bateu primeiro. Não pode
fazer isso comigo, Kattla, não quero voltar, não há mais nada naquele vilarejo
para mim.
— Não poderia esperar coisa mais ridícula do que brigar por causa de mim. - Ela
disse, jogando um bolo de dinheiro sobre eles.
— Se vocês se batem enquanto estamos trocando pneu, quem pode garantir que
um não vai matar o outro na missão? - Perguntou Igor.
— Um pacto. - Disse Varg, olhando para Kattla.
Escondida no matagal, Ava vibrou, havia conseguido o que queria. Agora restava
tratar de Adara e Leif. Contudo, não esperava quando viu Kattla retirando uma
pedra pequena do seu cajado, pressionando no braço de Leif, fazendo-o gritar de
dor. Ele olhou para o antebraço e lá estava uma pedra minúscula e brilhante, que
fazia arder e doer todo seu corpo.
— Agora confio em você. - Ela disse se afastando.
— O que é isso? - Ele perguntou.
— É tipo uma bomba. - Disse Igor que o ajudava com o pneu. — Você nos trai,
você explode.
— Vocês vão aceitar o Pacto? - Perguntou Varg.
— Abstenho-me de decidir sobre isso. - Disse Kattla.
— Você realmente me quer longe de você? - Perguntou Olyn, após correr até ela.
Ela não disse nada, não conseguiria responder aquilo, se dissesse que não
mentiria. Mas, estava cansada e triste, queria que as relações fossem de prazer e
não de conflitos idiotas por causa da cultura deles. E ela, sim, ela poderia ceder,
mas não o faria, porque não estava ali vivendo tudo aquilo para ficar escolhendo
macho.
Sua missão, o que tinha para fazer era muito maior do que qualquer amor que
pudesse sentir naquele momento. Os olhos de Olyn ficavam ainda mais
transparentes sob o sol e não pode negar a beleza dele, ainda que estivesse com
hematomas e um pouco de sangue saindo da boca.
— Te deixei saber o que sinto, mas preciso me ocultar com magia para não ser
encontrada.
— Eu sei, minha lua.
— Gosto tanto de Varg quanto de você. Mas, não vou escolher e nem me importar
com o orgulho cultural de vocês.
— Ele não sabe sobre o que estamos conversando.
— Você aceita isso?
— O deus dançarino que me escolheu não é e nunca foi monogâmico.
— Paramos num hotel essa noite e vocês fazem o Pacto. Mas, respeitem meu
tempo, preciso ficar sozinha um pouco. - E falando com a voz ainda mais alta,
disse: — Paramos num hotel hoje à noite para Olyn e Varg fazerem o Pacto.
23 – Últimos acertos

Encontraram um hotel quando o sol ainda estava se pondo. O que os deixou


animados, pois que poderiam caminhar e fazer outras coisas antes de dormir.
Antes de seguir com os outros Kattla segurou Ava, Victor e Igor. Fez de tal forma,
usando sua magia que ninguém percebeu. Ela disse:
— Já conseguimos resolver em partes a questão de Olyn e Varg. Quero que Igor
fique com eles no quarto enquanto eles fazem o ritual. Nytt gosta de Varg e quero
que Ava dê um jeito nisso, não faço ideia como, mas já que se aproximou tanto
dela veja a possibilidade dela tentar fazer algo contra mim. Victor, você ainda
consegue despertar o desejo sexual num casal?
— Sim.
— Fará isso com Leif e Adara e Ava dará um jeito para que eles conversem
lançando um encantamento tão logo entrarmos, porque hoje eu quero que você
faça algo especial por mim, Ava.
— O que Kattla?
— Quero que me oculte porque eu preciso muito beber bastante.
— Nunca dá muito certo essa história de você querer beber bastante. - Disse
Victor.
— Um dia só não vai matar ninguém. - Disse Ava.
— Mas, ela dá a ordem para os outros não beberem e entra em coma alcoólico? -
Disse Igor.
— É por isso que sou a capitã. Eu faço o que quero, vocês me obedecem.
— Deixa de ser rude! - Protestou Victor. — Mas, faremos tudo como solicitado,
até mesmo deixar você cair de bêbada.
Os quatro apertaram os passos para alcançar os outros e lá estava Adara no
balcão já solicitando os quartos, o que fez Ava ficar ao lado dela e pedir alguns
quartos de casal também, embora não houvesse nenhum casal ali. Como Adara
olhou estranho para Ava, a Uadani disse:
— Precisamos de um quarto de casal. - E sussurrou: — Para o pacto. E eu acho
que gostaria de dormir numa cama de casal hoje. Enfim, a diferença em dinheiro
nem é tão grande. Se importa que eu faça isso?
— Ava, sou eu, ou Kattla não está bem?
— Não está. Mas, dizem ser coisa de necromante. A energia em nós é muito
pesada, escura, entende? - E olhando para onde Kattla estava sentada ao lado de
Leif, disse: — Ela está querendo beber. Se importa de levar uma bebida pra ela?
Quem sabe se você conversar com ela, ela venha se sentir um pouco melhor.
Ava pediu uma bebida forte para o balconista e entregou para Adara, que
seguindo o conselho da baixinha foi ao encontro de Kattla e entregou a bebida,
sentando-se ao lado de Leif. Logo todos que estavam espalhados pelo lugar se
juntaram à mesa.
Kattla continuava bebendo enquanto os observava conversarem. Ava sempre
checava o molho de chave dos quartos que tinham alugados, como se não
pudesse esquecer para quem era cada quarto. Não demorou muito até que Varg
pediu uma garrafa de vinho e deixou a mesa junto de Olyn e Igor.
Ava sentou-se ao lado de Kattla segurando o cajado dela, para manter a magia de
ocultação, enquanto que ela não parava de beber uísque por nada. Nytt
aproximou-se de Luí e iniciou uma conversa enquanto escolhiam alguma coisa
para comer.
— Talvez devêssemos conversar. - Disse Leif para Adara.
— Por que agora?
— Acho que me sinto pronto para fazer isso agora. Será que podemos subir num
dos quartos para termos um pouco de privacidade?
— Tudo bem.
Leif pediu uma chave dos quartos para Ava, que fez questão de entregar uma
chave de um quarto de casal. Embora, poucos os quartos ali não eram de casal,
logo que a espelunca mais parecia um motel do que um hotel em si mesmo. Ela
sorriu ao ver Kattla bebendo como há muito não via. Elas estavam fazendo o que
era certo para o bem da missão.
Assim que subiram a escada para o andar de cima e Leif abriu a porta do quarto,
Adara observou o ridículo papel de parede floral, mas ao menos havia uma
garrafa de vinho barato sobre o criado-mudo ao lado da cama, onde os dois
sentaram.
Ela encarou Leif por um momento, sim, ele ainda era bonito, ao menos
fisicamente, já que depois do que disse durante o ritual, algo nela parecia ter
morrido a respeito dele. Ele encheu as duas taças e entregando uma para ela,
disse:
— Eu não quis dizer o que disse durante o ritual. Eu estava muito nervoso com
tudo o que estava acontecendo. Onde Uada estava quando Fopros nos atacou?
— Eles ofereceram uma aliança porque sabiam o que estava por vir, mas nossos
políticos, pelas razões que estamos carecas de saber não aceitaram. E eu também
não aceitei naquela época. Aceitariam Traesia se essa não fosse praticamente
uma cópia de Uada a quem já estava aliada. Mas, viemos aqui para conversar
sobre a guerra que perdemos?
— Faz parte de tudo, não faz? Se o seu pai não tivesse matado sua tia, você sabe
que era pra você estar no meu lugar.
— Você sempre teve sede por poder, Leif. E por mais que isso me deixa triste,
acho que você me tiraria do caminho de modo muito pior do que você me tirou.
— Eu te amava, Adara. Eu não te tirei do caminho, só segui com as nossas
regras.
— Tão logo perdi a tatuagem do meu deus, você terminou comigo. Eu só não era
menos que Nytt porque ainda era híbrida e podia controlar os lobos normais. Eu
nem mais esperava cargo ou qualquer coisa, Leif, eu só queria que você
continuasse comigo, apesar da minha fraqueza. Que não me abandonasse.
Ele baixou a cabeça.
— Eu estava sem poder, órfã de pais, de deuses, tentando acreditar que suas
promessas fossem verdadeiras, que se eu fizesse o que você queria eu teria um
espaço na assembleia. Não porque a assembleia ou o cargo em si me
interessavam. Porque eu precisava de uma família, precisava pertencer a alguma
coisa. Nem sei dizer se isso é culpa minha ou sua.
— É minha. - Ele disse. — Eu devia ter percebido isso. Eu também gostava de
você Adara. As pessoas me aconselhavam para deixá-la de lado, uma
amaldiçoada só poderia denegrir minha imagem. Mas, eu não conseguia ficar
longe e por isso a mantinha por perto com mentiras. Acho que denigri sua
imagem ainda mais.
— Mas, estou recuperando minhas forças agora e não dependo de você para
nada. Sequer quero fazer parte da assembleia. Não sei nem se quero fazer parte
dos Viktis.
— Você sempre será uma Vikti, não é mista como sua prima para ser uma Ljot.
— Leif, vamos ao menos tentar ser amigos. É isso o que eles estão esperando de
todos nós.
Ele mostrou o braço onde Kattla havia colocado uma pedra negra nele e disse:
— Se eu trair, explodo. Se eu tentar tirar, explodo. Isso é confiança?
— Isso é Kattla e eu não sou Kattla. Mas, não deixe sequer passar pela sua
cabeça que ela é sua inimiga, porque eu garanto que ela não é. Ela só é difícil de
lidar e se matá-la, matará um de nós também e será amaldiçoado.
Ele puxou Adara pelos braços a jogando na cama. Ela tentou lutar, mas assim
que ele deitou sobre ela, Adara relaxou sob o peso do corpo proporcional de Leif.
Ele começou a beijar o pescoço dela, enquanto desabotoava o peitoral do vestido
que ela vestia. Ela disse:
— Só uma última vez, como uma forma de fazermos as pazes.
Sentiu a mão dele escorregando numa de sua coxa, com o vestido a ajudá-lo a
acariciar outras partes do corpo dela. Ela sentiu os dedos dele a acariciando por
cima da calcinha e sentiu o corpo relaxando ainda mais. O barulho do bar no
andar de baixo enchia-lhe a cabeça.
As mãos ágeis de Leif tirava-lhe a calcinha e embora seu corpo se enchia de
prazer, ao mesmo tempo não estava certa de que aquilo era mesmo o que queria
fazer, não depois de tudo o que passaram. Mas, logo sentiu a boca dele sugando
seus seios roliços, um de cada vez.
— Não sei se devíamos. - Ela disse.
Ele escorregou a mão entre as pernas dela e sentiu o líquido quente e úmido.
Acariciou a região com as pontas dos dedos fazendo Adara gemer. Com mãos
delicadas a fez segura o falo rijo e ela não demorou em o masturbar. Sabia que
talvez aquilo fosse a coisa mais idiota que ela poderia fazer, mas o desejava.
O barulho do bar novamente a trouxe para a realidade, não precisava fazer
aquilo, os outros estavam lá embaixo comendo e conversando, entretanto ele a
penetrou e aquilo a fez desistir de qualquer ideia de fuga da situação.
24 – Irmãos

Ao que entraram no quarto, Varg, Olyn e Igor ficaram se olhando por algum
tempo. Os dois Viktis não estavam em nada confortável em fazer algo como aquilo
com Igor os olhando. Varg após um tempo, disse:
— Eu entendo que Kattla pediu para que você testemunhasse o ritual, entretanto,
isso não está certo. Ela devia estar aqui. Não foi ela que deu a palavra final para
que isso acontecesse? Por que evitaria estar aqui nesse momento como tem nos
evitado o tempo todo?
— Porque ela quer assim. - Replicou Igor.
— Mas, nós não queremos e ela mesmo sabe a importância que quanto eu, tanto
Varg tem para ela. Por favor, você poderia descer e avisá-la?
Igor ficou parado por um momento, não queria desobedecer uma ordem de
Kattla, especialmente quando era visível que ela não estava nada bem àquela
noite, ou não teria pedido para Ava a encobrir para se embriagar. Ele também
não entendia muito o que tinha acontecido com ela e os Viktis.
Olyn e Varg o encaravam, esperando qualquer tipo de reação que fosse que ele
tivesse, claro que esperava que Igor deixasse o quarto e em troca Kattla tomasse
seu lugar. Mas, Igor não estava tão certo assim da reação da capitã e insistiu:
— Ela disse para eu acompanhá-los e será isso que vou fazer.
— Se ela não estiver nesse quarto pacto nenhum vai acontecer, nem que eu e
Olyn tenhamos que voltar para o vilarejo. Diga isso a ela. - Disse Varg.
— Você fala como que se você tivesse algum tipo de autoridade! - Exclamou Igor.
— Eu sou o Kin dela, embora sei que você não faz ideia do que isso significa, só
precisa descer, dizer isso a ela e pedir para que suba.
Igor estava claramente confuso, deu alguns passos de um lado para o outro como
se isso o fizesse pensar. Kattla tirou a noite para beber e ele sabia o que aquilo
queria dizer, ela não queria que qualquer pessoa a incomodasse de qualquer
maneira. Mas, com aqueles dois resistindo em fazer o pacto, não sobrou outra
opção e descer.
Kattla bebia uma garrafa de uísque no gargalo e ele nem queria pensar o quanto
que ela já tinha bebido, já que sua face entregava claro como o dia a sua
embriagues. Ele cochichou no ouvido dela o que estava acontecendo com os dois
Viktis e deixou claro que eles queriam a presença dela. Ela bufou e disse em
seguida para Ava:
— Estou subindo para o quarto daqueles dois idiotas e preciso que você fique no
quarto ao lado para me manter oculta. É demais para você?
— Posso ao menos terminar de comer?
— Pode.
Enquanto isso no quarto Olyn e Varg estavam inquietos, Igor os deixou e não
voltou com qualquer resposta. Os dois sentaram na cama como se fosse tudo o
que pudessem fazer, e era, já que Igor deixou a porta trancada e eles não
assumiriam a forma híbrida para arrombá-la.
— Você não sente ciúme dela? - Perguntou Varg.
— Sinto. Mas, eu procuro entender que tudo isso para ela é normal. E meu deus
ajuda um pouco com isso, ele nunca se importou com monogamia.
— E você se importa?
— Talvez eu gostaria de estabelecer algumas regras, sabe. Não vou negar que não
me incomodo com essa coisa ditatorial de Kattla, mas ao mesmo tempo eu tento
pensar que ela é do exército, que foi educada para dura como é.
— Mas, você não acha que você se anula com isso, Olyn?
— Não. Eu e ela fizemos o pacto porque eu quis, ela tentou evitar, se esquivar. Eu
não sei dizer o que eu faço para lidar mais fácil com ela do que você.
— Você é mais gentil do que eu. - Concluiu Varg.
— Penso mais nas diferenças culturais que você, Varg, só isso.
— E como eu poderia fazer isso?
— Já pensou em adquirir alguns livros de Uada, filosofia, história, arte e etc?
Acho que isso ajudaria você a entender melhor porque Kattla age como age.
— E você leu isso?
— Alguns quando era adolescente. Eram proibidos em Norga, então fazíamos de
tudo para conseguir alguns. Contudo, esses livros não me explicaram porque ela
nos ignora agora.
A porta se abriu e para a surpresa de ambos Kattla entrou cambaleando,
segurando uma garra de uísque cheia em sua mão. Havia uma poltrona ao lado
da cama de casal onde os dois estavam sentados e sem dizer qualquer palavra ela
ficou os encarando, bebericando a bebida.
— É assim que você vai nos assistir? - Perguntou Varg.
— Um é meu Kin, o outro meu Pacto. Se eu não puder cair de beber na frente de
vocês, o que e que eu posso fazer?
Sem mais palavras, os dois se levaram e se despiram diante dela. Tomando o
punhal que estava em cima do criado-mudo, Olyn cortou a mão deixando o
sangue pingar no chão e uma pequena mecha de cabelo. E erguendo o punhal
acima da cabeça, disse:
— Ouça-me, Filho de Duas Mães, Abençoado, Deus do Vinho, Bacchus do Evoé,
de Muitos Nomes, Secreto e Sagrado, fértil e nutridor. Que traz a centelha de vida
e faz os frutos florescerem e crescerem, ressonante, Poder Magnânimo, Deus
Multiforme da Saúde, Flor Sagrada. Os mortais encontram repouso do trabalho
na Tua mágica, e tu és desejado por todos. Belo, Brômio, Jubiloso Deus que
carrega o bastão trançado de vinha. Inclina-te a estes ritos, seja favorecendo
Deuses ou mortais. Esteja presente e escute quando seus místicos oram. E venha
se rejubilar, trazendo frutos abundantes.
Varg cortou a mão deixando bastante sangue cair sobre o chão e enquanto o
sangue escorria, ele disse:
— Oh aquela que cuida da floresta que é a mais antiga do mundo. De olhos que
carregam o infinito em seus estranhos buracos, como se para dentro dele
pudéssemos entrar e conhecer tua magia. Aquela que corre nas matas e ama
todas as coisas selvagens e livres, que devora tudo o que não deve estar em seu
sagrado lugar. Ouça-me quando a ti eu oro e testemunhe esse pacto.
Também pegando o outro punhal sobre o criado-mudo, sem conseguir se mover
direito, nenhum dos dois tentou a impedir. Ela cortou a mão fundo, deixando o
sangue dela misturar com os deles e erguendo o punhal, disse:
— Vou cantar a mãe dos deuses e dos homens, a noite, origem de tudo. Escuta-
me ó deusa, bem-aventurada, dum azul cintilante, brilhante de estrelas, que
rejubilas com a paz e a tranquilidade do sono profundo. Ó felicidade, ó
encantamento, ó veladora noturna, mãe dos sonhos, tu que trazes o doce repouso
das fadigas. Ó mãe negra, amiga de todos. Ó tu que expulsas a luz das regiões
infernais e foges novamente para o submundo. Assista esse ritual.
Depois dessa invocação, os dois a olharam inquisitivos, sem entender porque ela
tinha feito aquilo. Era um Pacto, ela não tinha que se intrometer. Olyn apenas
silenciou, mas Varg não se conteve e perguntou:
— Por que fez isso?
— Eu não queria estar aqui e vocês insistiram, então invoquei uma deusa para
me assistir também.
— Acho que você gosta de provocar! - Exclamou Varg.
— Vamos começar, Varg. - E sem dizer mais nada, ele perfurou Varg com o
punhal, dizendo: — Eu, Olyn, bebo de teu sangue e te torno meu irmão. - Varg o
apunhalou fazendo o mesmo em seguida.
Varg o apunhalou dizendo:
— Eu, Varg, apresento teu sangue aos meus antepassados e eles te tomam como
filho. - Disse após outra estocada no corpo de Olyn, que repetiu o mesmo
procedimento.
— Eu, Olyn, jamais brigarei, machucarei ou matarei por causa da Kattla.
Enquanto observava Olyn beber do sangue dele, sentiu-se um pouco
desconfortável, mas estocando Olyn, disse a mesma coisa e bebeu de seu sangue.
— Eu, Varg prometo te proteger com a minha própria vida..
E assim continuaram como era normalmente típico no ritual de Pacto.
— Eu Varg combino um pouco de minha magia com a sua; Eu Varg te acharei
onde quer que esteja; Eu Varg jamais te trairei e isso juro diante de todos os
nossos ancestrais e deuses; Eu Varg proclamo ao universo que você também é
minha família agora; Juro fazer tudo ao meu alcance para te proteger, acolher e
nutrir; Juro que darei as costas ao que me for mais importante se você estiver em
necessidade; As cicatrizes jamais me permitirão esquecer desse elo mágico; Que
os deuses transformem em pó aquele de nós que falhar com esse juramento, seja
manipulando, enganando, mentindo e traindo.
Os dois, híbridos que eram já não estavam sangrando muito, mas pareciam
cansada e nem se importaram de deitar ambos na mesma cama de casa,
enquanto que Kattla ainda bebia os observando. Sabia que o ritual só teria efeito
na próxima lua cheia, mas se sentia fez de certa forma que eles tinham feito
aquilo.
Olyn olhou para ela em silêncio, com aquele olhar que a encantava. Ela sabia que
ambos esperavam algum tipo de explicação, ou que conversasse com eles,
contudo ela deixou a garrafa em cima do criado-mudo e deixou o quarto, os
deixando sozinho.
25 – Base

Já na fronteira de Traesia, Kattla que seguia com o seu carro na frente dos
outros, fez uma curva repentina e seguiu por alguns quilômetros numa estrada
de barro, que ela agradeceu que estava seca, ou muito provável que ficariam
atolados com aqueles carros.
Ela fez outra curva abrupta e dessa vez não conseguiam ver exatamente uma
trilha, era como se Kattla se guiasse pelas árvores, ou a trilha tivesse sido
propositadamente oculta. Seguiu adiante por um caminho tortuoso e então
parou. Do chão ergueu-se um pilar metálico, com um pequeno painel protegido
por uma caixa metálica.
Kattla aproximou um dos olhos no painel e em seguida o chão começou a se
erguer, com árvores e qualquer coisa que estivesse em cima dele e perceberam
que era um portal de ferro que dava para uma base subterrânea. Os três carros
entraram e assim que Kattla desceu do carro, uma voz computadorizada, disse:
— Bem-vinda, Capitã Sethra.
— Bom te ouvir, T4KS. Localize Bjorn.
— Gente, que lugar é esse? - Disse Nytt surpresa e admirada com a tecnologia.
— Uma das bases de Kattla. - Disse Igor. — Preciso levá-los para reconhecimento
ou pode ser que fiquem presos aqui em algum lugar.
— Devo informar que seu irmão está vivo, mas infelizmente não é possível agora
fazermos uma videoconferência.
Ao ouvir T4KS, Kattla soltou um longo suspiro de alívio. Se havia algo que sentia
falta naquele momento era de seu irmão. Sustentou a cabeça nas mãos, apoiando
os cotovelos sobre as coxas e ouviu T4KS:
— Mais alguma coisa que eu possa fazer?
— Reconhecimento dos novos membros da minha expedição junto com Igor e
treinamento dos novatos. Quantos dias eu tenho que ficar aqui?
— Você chegou muito antes do que esperávamos, capitã, deve ficar 31 dias.
— Nossas provisões?
— Para dez pessoas, como posso contar, temos o suficiente para 3 anos, 4 meses
e 23 dias.
— Bebidas alcoólicas?
— Sabe que é a mais mimada de todo o exército. Também temos o suficiente.
— Vamos ficar bem. - Disse Kattla voltando-se para os outros.
Ela parou diante de uma enorme porta de metal, onde Igor a abria pela
identificação de sua mão. Não demorou muito para as duas portas pesadas
correrem uma para cada lado. Assim que todos entraram, Igor informou:
— Fiquem todos nus.
Em cada ponto da sala havia uma marca quadrada no chão, onde Igor e Victor foi
colocando um por um diante de um computador. Assustaram-se quando raios
lazeres começaram a percorrer o corpo deles. O computador dava as instruções
como colocar as mãos nos lugares indicados e muitos se assustaram quando
drones aproximaram de seus olhos para fazer uma leitura de suas íris.
A cada um o computador ia dizendo:
— Olyn Diad, híbrido, bode, com poderes de intoxicação, pânico, terror e controle
de algumas plantas.
— Adara Kari, híbrida, loba, com poderes de intoxicação, controle de algumas
plantas, parente da Capitã Sethra.
E assim por diante. Luí perguntou:
— Como essa máquina pode fazer isso?
— Isso é Uada! - Disse Ava, rindo.
— Ninguém nunca falou sobre toda essa tecnologia. - Disse Leif.
— Ah é claro! Vamos anunciar para todos os países tudo o que temos por aqui e
nos deixar vulneráveis. - Disse Ava.
— Só estou pensando sobre ficar 31 dias presa nesse lugar até que possamos nos
mover para a outra base. - Disse Kattla.
— Eles vão precisar de treinamento, eu e T4KS vamos dar um pouco de diversão
para eles. Quanto a você pode participar, ou pode fazer qualquer coisa que você
quiser. - Disse Igor.
— T4KS, preciso de um banho relaxante, com velas e champanhe. - Disse Kattla,
retirando-se do lugar.
Igor continuou explicando como funcionava a identificação e que mesmo dentro
da base, muitos deles não teriam permissão para entrar a não ser que Kattla o
desse. Para acessar qualquer porta, eles tinham apenas que colocar a mão sobre
o painel. E enquanto ele explicava, não viu Varg deixar o grupo após se vestir.
— Vocês matam crianças com seis e sete anos para se tornarem Ljots e ótimos
guerreiros. Como tem toda essa tecnologia? - Perguntou Adara, indignada.
— Mantivemos a tradição e continuamos estudando. Em Uada crianças
defeituosas, que nascem com deformação física, síndrome de down, autismo e
etc, são cuidadas com muito cuidado e educadas desde de cedo. Muitos de
nossos cientistas são crianças que nasceram assim. Dizem que quando alguma
coisa não funciona de maneira adequada no corpo, o próprio organismo acha
uma compensação.
— Não responde minha pergunta sobre guerreiros e Ljots.
— Só os mais fortes e melhores ficam, infelizmente. Venham! - Disse ele fazendo
um sinal para sair da sala de identificação.
Caminharam por um corredor metalizado, de chão branco e deram num saguão
amplo, onde várias cabines de vidro, com uma cama de solteiro e um pequeno
móvel estavam. O lençol branco estava perfeitamente limpo. Igor abriu a porta e
mostrou o móvel, onde na porta de correr abaixo tinha cobertores e travesseiros.
— A cabine não deixa vazar som nem de dentro e nem de fora, para proteger o
sono de vocês. Ao lado da cama tem um botão que escurece completamente o
vidro para que tenham privacidade. Como já foram identificados, basta
escolherem onde querem dormir e coloquem a mão no painel. T4KS vai entender
que é uma escolha.
Assim que o fizeram, Igor saiu mostrando o lugar, uma sala de jogos para matar o
tédio, onde ficava a despensa e a cozinha. Onde ficavam os banheiros, os de
banhos que eram coletivos para homens e mulheres e os outros banheiros para
necessidades que eram separados para alívio de Adara e Nytt.
Quando os levou para a sala de treinamento, ficaram perplexos, era gigante, com
uma enorme rampa de escalar, pilares que simulavam prédios altos, floresta, tiro
ao alvo, toda a sorte de instrumentos e até uma academia. Todos os Viktis
olharam para aquilo tudo e depois entreolharam-se. Era obvio que pensavam o
mesmo, Uadanis eram loucos.

***
Varg encontrou o banheiro onde Kattla estava. Era numa parte quase escondida
do lugar e percebeu que ali devia ser o lugar onde ela ficava, pois que além do
banheiro também tinha um quarto com uma cama aparentemente bastante
confortável e coisas pessoais como fotos que ele julgou ser da família dela.
Ele entrou no banheiro e ficou imóvel, ao vê-la se masturbando na banheira.
Talvez fosse melhor que saísse dali e a deixasse relaxar da maneira que queria,
mas não conseguia parar de olhar. Quando, por fim, conseguiu se mover, ouviu a
voz daquele computador maldito:
— Senhor Varg, o senhor não tem permissão para estar nesse recinto. Por favor,
se retire.
Kattla sentou-se na banheira e ao vê-lo, disse:
— Eu dou a permissão dessa vez, T4KS.
Ele ficou ali parado sem saber o que fazer ou dizer, enquanto Kattla o olhava,
como que se esperasse que ele lhe dissesse algo. Ele tinha algo para lhe dizer
quando tomou a liberdade de a seguir, mas naquele momento era como se todas
as palavras tivessem lhe fugido.
— Tire a roupa e vem tomar banho comigo. - Ela disse. — A água está
maravilhosa.
— Não sei se isso é certo, Kattla.
— Eu nunca sei o que é certo, por isso cometo erros às vezes.
— Uadanis podem cometer erros?
— Tecnicamente, não. Humanamente todos somos passíveis de erros.
— Está querendo dizer que errou comigo.
— Não. Fiz o que achei que era certo, agora você e Olyn tem um Pacto e não
podem matar um ao outro. T4KS, sirva uma bebida para Varg, por favor.
— Vocês fizeram tudo aquilo? Encenaram para fazer com que fizéssemos o que
quisessem.
— Tentei poupar a vida de dois homens que gosto. Prefiro ver assim. Você é meu
Kin, Olyn também é meu Pacto. E você estava enciumado, esperando que eu
escolhesse alguém. Sim, nós estudamos aqui na terra primitiva como muitos
pensam que Uada é e eu sei que crimes passionais existem. Julgue-me ou odeie-
me, você é livre.
Um drone deixou a bebida de Varg na borda da banheira redonda e bege onde
Kattla relaxava. Ela olhou para o loiro com um olhar inquisitivo e convidativo. Ele
tirou a roupa e entrou na banheira. Ela sentou sobre ele e começou a beijá-lo.
Mas, ele a afastou, perguntando:
— Por que me ignorou essa viagem toda e agora que estamos aqui você está em
eu colo como se nada tivesse acontecido?
— Porque meu primeiro objetivo foi alcançado. E porque eu quero transar com
você.
— Isso não responde nada, Kattla. Você me ignorou!
— Eu não sei o que dizer sobre isso. Se quer saber, eu também não estava feliz.
Na minha terra eu posso casar com dois homens, como um homem pode casar
com duas mulheres, como dois homens podem se casar e o mesmo para as
mulheres. Eu não sei lidar com essas coisas de escolher, de ter um homem só. Se
eu tivesse apenas você e você quisesse casar com outra, seríamos uma família
feliz, entende? É assim que as coisas funcionam em Uada.
Ela deu gole na champanhe.
— Agora não me faça escolher porque você está com ciúme. Você é especial
porque é forte, inteligente, sabe o que fazer na hora que tem que fazer, tem
sempre os melhores comentários. Olyn é uma doçura, é centrado, está dando a
mínima para o que os outros estão pensando, é focado e calmo. E eu gosto dos
dois por isso. Então, sim, eu também estava estressada e triste. Estava tentando
focar na minha missão porque eu não conseguia pensar em qualquer outra coisa
que não fosse vocês dois e isso estava me matando. Minha missão tem que vir
sempre em primeiro lugar, não dois loiros híbridos.
— E por que não me disse isso antes? Achou que eu não ia entender?
— Achei. Como continuo achando. Que você tem o sonho de que eu te escolha e
em algum momento no futuro a gente se case e jure amor eterno, então eu serei
só sua e você só meu, até que você se enjoe dessa brincadeira e comece a sair
com outras mulheres sem que eu saiba. Eventualmente vou descobrir e vou me
sentir uma idiota.
— Quem te conta essas coisas se a sua cultura é tão diferente?
— Tenho olhos para ler. Meu pai decidiu ficar apenas com a minha porque para
ela isso era importante e ele nunca fez nada que a machucasse. E eu não quero
machucar Olyn.
— Acho que você está machucando nós dois.
Ela se levantou da banheira, enrolando-se na toalha e dizendo:
— Fique à vontade para relaxar aí. T4KS, dê a Varg qualquer coisa que ele pedir.
— Sim, Capitã Sethra.
— Espere, Kattla! - Disse Varg.
— Preciso ficar sozinha agora, entenda.
26 – Treinamento

Igor os treinava especialmente na forma híbrida, pois tinha notado que eram
incrivelmente velozes e tinha ainda mais facilidade para usar seus poderes
naturais como de gelo, intoxicação, força e etc. Embora Varg precisasse estar ao
lado de fora para usar seus poderes com os animais selvagens, o que não era
permitido.
Ainda assim era um lobisomem forte e com mordidas fatais, que Igor em si
mesmo não gostaria de sentir na própria pele nem por um momento. Igor os fazia
treinar os saltos e as barras que imitavam prédios ficavam cada vez mais
afastadas uma da outra.
Todos eram muitos hábeis, mas Leif falhava se a distância fosse muito grande,
assim ele sempre acabava criando uma passarela de gelo e tão logo atravessava, a
destruía em seguida. Os lobos eram mais hábeis para saltos, mas Olyn ainda
ganhava deles em escalada.
Nytt os olhava triste, não era uma híbrida e tudo o que poderia fazer era se tornar
uma Yorkshire terrier. Aquilo fazia com que Ava sentisse pena dela, como por
muito tempo sentiu pena de si mesma. Kattla era uma necromante tão poderosa,
enquanto que ela não conseguia sequer fazer metade do que ela fazia.
Contudo, sem dizer uma palavra para Ava, ela caminhou até o tiro ao alvo. Pegou
uma arma que estudou sozinha por um tempo até saber usar e em seguida
começou a treinar. Ava se aproximou dela e deu algumas instruções, sobre como
segurar a arma, o que acertar no boneco e disse:
— Eu sei que você vai se tornar uma atiradora de elite.
— Você é exagerada!
— Precisa entender que nem todo mundo tem superpoderes, mas que coisas
simples são essenciais. Se você acertar na cabeça ou no coração você vai matar
seu inimigo e não precisa ser híbrida pra isso. Você pode se transformar num
cachorro fofo, o que pode ajudar outras a passarem sem serem percebidos. Ou
você pode continuar se lamentando porque não é híbrida.
— Acha que Igor vai me deixar passar? Olhe os outros.
— Cabeça e coração. Joelho para imobilizar. Se ficar boa nisso, faço Igor te
treinar como atiradora de elite.
— Porque você me ajuda?
— Porque não sou tão diferente de você.
Assim que terminaram o treinamento naquele dia, todos foram tomar banho,
enquanto que Victor foi preparar algo para que eles comessem já que estavam
exaustos. Igor era bastante rigoroso com o treinamento, mas parecia feliz com o
desempenho dos Viktis, sequer podia entender como eles falharam em proteger
Norga.
Entraram no refeitório quando a comida ficou pronta e ao fundo viram Kattla
sentada em silêncio, sem se servir, apenas segurando um copo de água na mão,
tão absorta que parecia estar em outro planeta. Varg esperava que ela ao menos
assistisse o treinamento por algum computador, já que nunca comparecia, mas
parecia apenas uma esperança vã.
Adara foi a única a se aproximar dela, tão logo se serviu. Pediu licença ao sentar
do lado da prima e a olhou por um momento. Faminta comeu uma pouco de sua
comida e disse em seguida:
— Eles não te sentem? Não sabem que você está mal?
— Talvez eu os afaste demais. - Ele respondeu, sustentando um sorriso pálido. —
Quando tentei me aproximar de Varg, ele me afastou com uma maestria, que até
parecia eu.
As duas riram.
— Estou preocupada com Bjorn. Faz dez dias que estamos aqui e eu ainda não
consegui falar com o meu irmão. Ele tem sinais vitais, mas está incomunicável.
Acho que deve estar preso em algum lugar. Aliás, todo mundo sabe que ele é o
irmão da necromante.
— Você o encontraria?
— Sim, mas sei que é uma armadilha. Vou seguir com o plano dessa expedição e
se não encontrar Bjorn, irei atrás dele, nem que eu tenha que o encontrar no
submundo.
— Você tem comido?
— Acho que tem uns três dias que não faço isso.
— Então, comece a fazer agora. Porque parte da minha decisão em vir para cá é
encontrar seu irmão e se vamos até o inferno pra isso, então é bom que estejamos
bem alimentadas.
Kattla se levantou e foi se servir, sentando-se ao lado de Adara em seguida. Não
foi tão fácil comer como pensou que seria, remexia a comida com o garfo, mas ao
menos comeu um pouco, o que deixou Adara feliz.
Num dos momentos livres do dia, Adara saiu procurando por Olyn. A base era de
fato enorme, mas ela queria falar com ele, não apenas pelo estado depressivo de
Kattla, mas também por ela, que se sentiu por muito tempo abandonada por ele.
Andou a esmo, indo para todos os lugares que ela tinha permissão de ir, até que
o encontrou sentado num sofá confortável, sozinho e em silêncio.
Ela sentou-se ao seu lado, que a olhou de soslaio, sabendo que uma conversa
estava por vir. Não que aquilo o incomodasse, mas tinha planejado anteriormente
tirar aquele momento para ficar consigo mesmo. Ele disse:
— É óbvio que vamos conversar.
— Algumas coisas me incomodam. Você é o Pacto da Kattla e deve saber que ela
não está nada bem e eu não vejo fazendo qualquer esforço para alcançá-la. Do
mesmo modo que você é meu Kin e por anos eu sequer ouvi uma palavra sua.
— Vamos por partes: você ou Kattla primeiro?
— Olyn, você me abandonou!
— Não, não abandonei, eu só não suportava ver você deixando os outros,
especialmente Leif te tratando de qualquer jeito. Eu não suportava mais a ideia
de Viktis se esconderem porque nossos líderes eram idiotas e não tinham sequer
uma tática de guerra. Eu perdi tudo também, Adara. Você ainda tinha seu clã, eu
não tinha mais nada. E não me lembro de você ter me visitado mais do que uma
vez. Parecia que naquele momento tudo o que te importava era manter Leif por
perto.
— Eu precisava de uma família, precisava sentir pertencer a alguma coisa.
— Eu era sua família. Só que um bode velho e chato que gosta de correr pelas
montanhas não lhe pareceu suficiente.
— Você nem é velho. - Ela fez uma pequena pausa: — E Kattla?
— Quem consegue chegar perto dela desde que chegamos aqui?
— Você vai conseguir e hoje.
27 – No limite

Adara e Olyn circulavam pela base abrindo toda e qualquer porta que eles tinham
permissão, mas Kattla não estava atrás de nenhuma delas. Tentaram conversar
com T4KS, mas a IA não respondeu. O que acharam estranho, porque
normalmente o computador respondia, mesmo quando não era Kattla que falava
com ele.
Assustaram quando ouviram barulho de tiro e rapidamente foram para a sala de
treinamento. Nytt estava lá treinando e seus tiros eram perfeitos. Adara se
aproximou dela e perguntou:
— O que está fazendo?
— Tentando me tornar uma atiradora de elite. Ou certamente serei deixada para
trás.
Olyn e Adara entreolharam-se e a deixaram. Viram Varg esticado no sofá
assistindo televisão e tudo fizeram para não serem vistos. Nem sabem por quanto
tempo caminharam, a base era imensa e em todos os lugares que podiam, iam.
Adara parou por um momento e disse:
— Ela não dorme no mesmo lugar que a gente. Onde será que deve ser esse
lugar?
— Alguma porta que a gente não abre?
— Ava deve saber.
E lá estavam os dois procurando, mas agora por um novo alvo, que felizmente
fora muito mais fácil de encontrar, já que ela adorava jogar videogame.
Adentraram a sala e ela já os olhou com seu costumeiro olhar inquisitivo. Adara
se aproximou dela e disse:
— Preciso muito de um favor seu.
— O que?
— Quero que leve Olyn até Kattla.
— E por que eu faria isso?
— Porque assim como nós você sabe que ela está depressiva e muito preocupada
com o irmão, do qual não tem notícia, a não ser que ele ainda tem sinais vitais.
— Vocês não entendem? Quando Kattla está mal, ela gosta de ficar sozinha.
— Por favor, Ava, ela e Olyn tem uma ligação muito forte. Eu não vou ficar, só
preciso que você o leve até ela.
— Está bem, mas se ela me castigar por isso, eu vou punir você dois.
— Feito.
Ava saiu caminhando com passos pesados, como que se precisasse demonstrar
que não queria fazer aquilo de jeito nenhum. Olyn nem se importou, apenas a
seguiu, por um dos milhares dos corredores metalizados, que deu numa parte
um pouco mais alta e ambos pararam diante de uma porta dupla.
Ava colocou a mão para tentar abrir a porta, mas essa não se abriu, ouvindo
ambos a voz de T4KS em seguida, dizendo:
— A Capitã não quer ver ninguém.
— Diga que Olyn quer vê-la. - Disse Ava.
Sem receberem qualquer tipo de resposta, ficaram lá parados por um tempo na
frente da porta metálica. Ava olhou para ele e balançou a cabeça negativamente,
como que se a falta de resposta fosse claramente um não. Quando ambos deram
alguns passos para deixar o lugar a porta se abriu e rapidamente Olyn passou
por ela.
Kattla estava numa cama de casal enorme, possível de caber dois casais. A tela
passava as informações sobre a guerra e ele percebeu que as mãos delas
estranhamente tremiam. Sentou-se na cama e sem dizer qualquer palavra, ele a
abraçou, deslizando o nariz no pescoço perfumado da moça.
— Por que foge de mim? - Ele perguntou.
— Porque não posso demonstrar fraqueza. Sou uma necromante, capitã de um
pelotão de elite, tenho que estar sempre forte, firme e categórica. Você não faz
ideia do que essa terra esperava de um necromante. Somos as coisas mais fatais
que existem aqui. Depois o exército.
Ele acariciou o rosto dela e disse:
— Eu não quero e não preciso que você seja nada disso comigo. Eu quero que
você deite em meu peito e chore porque está preocupada com seu irmão. Quero
que você me diga “Olyn, estou muito triste, pode cuidar de mim enquanto eu
bebo até cair?”. Porque eu também quero poder deitar no seu ombro e você não
me julgar fraco porque algo difícil está acontecendo comigo.
— Eu sei que estão com meu irmão, Olyn e por mais que minha nova família
cresceu com vocês, Bjorn é tudo o que tenho. Eu não posso simplesmente sair
mudando tudo, preciso destruir uma base importante e eu sei que meu irmão é
uma armadilha. Qualquer idiota sabe que irei atrás dele. Mas, minha vontade é
sair daqui e encontrá-lo.
— Quer fazer isso?
— Quero, mas não posso. O exército depende da destruição da base.
— Podemos encontrar seu irmão depois disso?
— Se tivermos sucesso, sim, é o que farei.
— Faremos, porque não vou te deixar sozinha nisso.
Eles se abraçaram e enquanto ela se deliciava no cheiro dele, perguntou:
— Por que, diferente de Varg, você não me pressiona a escolher um ou outro?
— Não acho necessário, minha lua. Eu não me incomodo que você transe com ele
e que se gostem. E quando sentir ciúme, eu sei que posso conversar com você e
darmos um jeito de acertamos as coisas. - Ele sorriu: — Quer fazer amor comigo
ou ficar assim apenas abraçados?
— Eu não sei se conseguiria fazer amor preocupada com Bjorn do jeito que estou.
Embora você sempre me deixa excitada.
— Vamos ficar aqui deitados e abraçados. Se em algum momento sentirmos
vontade, então saberemos o que fazer. Só quero que você se sinta bem.
28 – Atiradora de elite.

Nytt encontrou Kattla na sala de controle, olhou ao redor para todos aqueles
computadores, telas e botões e por um momento tentou entender para o que
servia aquilo tudo. Estranhou também que a porta não estava fechada como
costumava ficar e até mesmo o rosto da necromante parecia melhor do que nos
dias anteriores.
— Vai ficar me rodeando ou vai me dizer logo por que está aqui? - Perguntou
Kattla.
— Eu conversei com Igor e com Ava. Minha pontaria está perfeita, mas aqui é
impossível que eu tenha um treinamento adequado para me tornar uma atiradora
de elite. E nesse sentido, você é a única com quem eu posso conversar e
conseguir, talvez, uma aprovação.
— Para o que você quer isso?
— Você sabe que nem todos os Viktis são híbridos e eu não sou híbrida, tudo o
que eu posso me tornar é num cachorrinho bonitinho. Eu não deveria ser tão
sincera, mas eu não quero ser deixada para trás, não quero ser inútil e Ava me
deu esperança de que eu conseguiria seguir adiante com essa missão, mesmo
não sendo poderosa como vocês.
— Contudo, permitir que você faça um treinamento como esse significa deixar
você sair da base, locomover instrutores para te ensinar e essa manobra é
enorme, especialmente se tratando de uma Norgian. Não sei se estou afim de
falar com gente importante demais e tentar convencê-los de que uma Norgian
precisa de um treinamento como esse.
— Então quer dizer que você me deixará para trás?
— Eu ainda não me decidi sobre isso, Nytt, até o momento você está aqui na
base. Você deixar qualquer um e qualquer coisa para trás. Não se iluda comigo.
— O que eu tenho que fazer pra te convencer? Eu sou a amiga de infância da sua
prima. Isso não deveria significar algo para você?
Kattla não respondeu nada e voltou a mexer no computador diante de Nytt como
se ela sequer estivesse ali. Atordoada com aquela reação, a moça deixou a sala
com os olhos marejados e sem saber exatamente para onde correr, adentrou a
sala de televisão fechando a porta atrás dela.
Quando se virou se viu numa situação ainda pior, Varg estava esticado no sofá, a
televisão estava ligada, mas era como se nem ele estivesse ali, não fosse pelo
olhar que pousou sobre o rosto úmido de Nytt, que ele já tinha visto tantas vezes
quando negava-lhe seu amor. Ele bufou, tudo o que não queria lidar naquele
momento era com alguém com problemas, ele mesmo já estava sufocado com os
próprios.
— Quer conversar alguma coisa comigo? - Ele perguntou.
— Na verdade, eu nem esperava te encontrar aqui. Só queria poder ficar sozinha
em algum lugar.
— Então, por que não foi para o seu quarto?
— Eu não acho que você seja a pessoa mais adequada a me dizer o que e o que
não fazer.
— Eu não tenho culpa por não me apaixonar por você, Nytt. Isso não é algo que
você força e pronto, tudo está resolvido.
— Eu só quero continuar com vocês. Se eu não tiver um treinamento de atirador
de elite, eu serei deixada para trás.
— E por que isso é tão importante? Sempre gostou de maquiagem, moda e etc.
Por que só agora a guerra se tornou algo que você quer tanto?
— Porque não acreditava em mim antes, mas agora acredito.
— Deve conversar com Kattla sobre isso, não comigo.
— E você acha que eu não conversei? Mas, eu acho que ela desconfia de mim.
Desconfia porque você a ama e eu te amo, e, que talvez eu possa vir a matá-la po
isso.
— Você acha mesmo que ela pensa isso? - Ele gargalhou.
— Estamos todos numa posição delicada. - Disse Ava abrindo a porta, como se
soubesse o que estava acontecendo. — A questão, Nytt, é que não se trata de um
treinamento mágico que um Ljot resolveria, mas de um treinamento militar. Os
militares de Uada começam o treinamento com sete anos de idade. Kattla tem um
posto alto, mas ela tem superiores e recebe ordens.
— Então, você veio aqui me dizer, Ava, que eu serei deixada para trás?
Ava sentou-se ao lado de Nytt e tocou o rosto alvo e suave, com duas safiras que
brilhavam junto com as lágrimas que escorreriam pela sua face. Sem dizer
qualquer coisa deu um beijo no rosto de Nytt e depois sobre seus lábios,
delicadamente enxugando suas lágrimas.
— Quando eu e Kattla saímos daquela caverna de Mantus anos depois, ela seguia
com um estranho manto negro, olhos que mudavam de cor e o cajado que
dizemos ser do próprio Mantus. Claro que quando saí em seguida, todos me
inspecionaram e eu não tinha nada demais. Kattla se sentiu responsável por mim
e tentou me ensinar milhares de coisas que ela fazer com um estalar de dedos,
mas que eu nunca consegui.
— Ela não gosta de mim, Ava.
— Eu também acho que não. Mas, é bom que você arrume a suas coisas, porque
um atirador de elite está vindo para te ensinar. Ele disse que é pouco tempo para
você ficar realmente boa, mas vai te ensinar o básico e você terá que treinar por si
mesma.
— Isso é coisa de Kattla ou sua?
— Minha. Espero ganhar um beijo por isso um dia.
29 – Seguindo em frente

Kattla dirigia o jipe dela na frente dos outros, pois que conhecia o lugar pelo qual
passariam, embora ainda passassem pela fronteira de Traesia, ela sabia que teria
que fazer um pequeno desvio por Tunus, antes que adentrasse novamente em
Traesia e consequentemente adentrar Uada.
Luí estava sentado ao lado dela, pois que sempre nutriu algum tipo de
curiosidade por Kattla e especialmente pelo militarismo de Uada, que nunca
ousou revelar nem mesmo para aqueles a quem ele mais confiava. Kattla olhou
para Varg pelo retrovisor.
— A viagem será um pouco longa, especialmente porque vamos por dentro da
floresta e de um mangue, mas espero que as coisas fiquem mais fáceis ao
entrarmos em Uada.
— Estranho você querer explicar alguma coisa para nós. - Disse Luí. — Desde
que engajei nessa aventura com você, sinto que estou fazendo tudo às cegas.
— O que exatamente você quer saber? - Ela perguntou.
— Não sei se você sabe exatamente, mas não sou do vilarejo onde você estava. Vi
Ava num outro vilarejo e achei que era importante informar Leif de que outros
Ljots estavam pelo local. Mas, quando eu te vi, minha intuição gritou tão alto,
que eu não podia confiar em você.
— Na realidade acredito que ninguém pode confiar em mim. - Ela disse num tom
debochado.
— Mas, depois do treinamento que tivemos, de eu me mostrar como a águia que
sou, de ver você resolvendo conflitos de dentro da base e de fora dela, estaria
mentindo se dissesse que não confio em você.
— Varg não confia em mim. Por mais que eu diga para ele que gosto tanto dele
quanto de Olyn, ele simplesmente não acredita em mim.
— Comentário totalmente desnecessário! - Reclamou Varg.
— Estou mentindo?
Varg a ignorou.
— Eu realmente não gostaria de ficar entre o problema e o drama de vocês.
Escolhi vir no seu carro porque estou curioso ao seu respeito. - Disse Luí.
— Sabe que informação é poder, não? Quando o Império soube que Norga não era
apenas uma pedra gigante de gelo, mas que estava repleta de petróleo, ele
desviou o ataque de Uglain para sua terra. E embora soubesse que Uada não
faria muito para ajudar Norga, lançou o ataque ao mesmo tempo, porque sabiam
que nós tínhamos a informação do ataque em Norga e que por isso poderíamos
estar completamente despreparados. Não acho que há absolutamente nada que
queira saber de mim.
— Posso falar de mim se isso fizer se sentir mais à vontade.
— Isso se ela já não souber de tudo mexendo na sua energia vital.
— Quero ouvir. - Ela disse.
— Meu pai não era um Vikti, era um político e não lidava tão bem com a minha
natureza como os outros pais de Viktis. Ele queria que eu fosse como ele, não
entendo porque os pais têm a pretensão de que seus filhos sejam assim ou
assado. Mas, enfim, desde de pequeno, em vez de ficar com outros como eu, era
obrigado a seguir com o meu pai e aprender sobre política, investimento,
economia.
— Deve ter ajudado em alguma coisa. - Ela disse.
— De certa forma sim, mas, por outro lado, eu não sabia ser um Vikti, eu sequer
conseguia me transformar num híbrido direito. Mas, gostei da ideia de me tornar
um embaixador quando fiquei mais velho. Conheci outros Viktis e com isso
passei a conhecer melhor a mim mesmo.
— Então, você lidava com outros países além de Norga? - Ela perguntou.
— Sim, até sermos conquistados por Fopros.
— Não devia ser um ataque surpresa para você, não acha? - Perguntou
desconfiada. — Sabia que viria.
— Tentamos negociar o petróleo. - Ele respondeu, envergonhado.
— Sinceramente, eu não sei o que pensar de Norga às vezes, porque os outros
países ao redor de Fopros já tinham sido conquistados. Você era um embaixador,
devia ao menos desconfiar das negociações. Norga também é grande é da acesso
para outros países como Tunus, Traesia e Getonia. Não era apenas petróleo o que
eles queriam, mas também uma passagem para um cerco.
— Eu tinha que ser um Vikti, não um político.
— Você tinha de ser menos estúpido. Nossa sorte é que o Imperador louco é tão
estúpido quanto você, ou já teria sitiado Uada.
— Eles vão sitiar Uada, já estão fazendo isso, depois que mataram os Ljots, é
exatamente isso que estão prontos para fazer. Eu não me surpreenderia
encontrar o império por aqui. - Disse Varg.
— Vai me contar algo sobre você agora? - Perguntou Luí.
— O que você quer saber?
— Como são escolhidos os capitães?
— Não existe favoritismo e nem embaixadores que tomaram esse cargo porque o
pai mexeu os dedinhos. Só os melhores são escolhidos para as patentes maiores
do exército e você preciso provar isso. E não falo de força física apenas, as
melhores mentes, os melhores estrategistas. Nada em Uada é feito por
favoritismo, por coleguismo ou o que seja.
— Então você nos aceitou em sua equipe por achou que somos bons?
— Eu os trouxe para a minha base porque eu tenho a esperança de que algum
dia essa rixa idiota que temos termine em memória a minha mãe. E porque, sim,
alguns de vocês se mostraram excepcionais no treinamento de vocês. Se tivessem
falhado, não estariam nesse jipe comigo.
— E por que é tão difícil para você dizer coisas simples como essa?
— Nem tudo convém dizer. Quantas vezes você ouviu o deus do submundo
falando com você? Ou melhor, quantas vezes você o ouviu te elogiando?
— Você é Kattla e não Mantus. - Disse Varg, olhando distraído pela janela.
— Nunca deixei de te dizer o que achei que precisava ouvir, Varg, mesmo meu
amor e meu desejo de você está aqui comigo lhe foi revelado pela minha própria
boca. Só não sou obrigada a dizer o que se passa na minha cabeça o tempo todo
para ninguém.
— O que Olyn escuta? - Varg perguntou.
— O que ele precisa e que não tem nada a ver com você. A única coisa que eu
preciso que você saiba é que esse jogo emocional que você está tentando brincar
está me deixando literalmente cansada. E se eu cansar de verdade não pensarei
duas vezes em te jogar nessa floresta e deixar que você volte para Norga a pé.
— Nós vamos revesar a direção? - Perguntou Luí, tentando mudar o clima dentro
do carro.
— Vamos. Só paramos quando chegarmos na entrada dos criptopórticos de Uada,
onde encontraremos Nytt.
— E como vamos saber o caminho?
— Se não percebeu esse jipe é militar e computadorizado, então vocês saberão a
rota certa a seguia se seguirem esse pequeno painel aqui diante de vocês. Sei que
vamos chegar no criptopórtico bem cansados, mas não temos tempo para esperar
muito. Lá é possível que consigamos ao menos dormir a noite em algumas
câmaras, mas tenho que ser sincera de que eu não faço muita ideia do que vai
acontecer de agora em diante. Uada está sendo atacada.
— Não gosto de guerra. - Disse Luí.
— Não acho que qualquer pessoa gosta da guerra, mas já que estamos nela,
teremos de fazer nosso melhor. Não estamos aqui para perder, estamos aqui para
resistir.
— Isso não liberta Norga, apenas mantém Uada independente. - Disse Varg.
— Não gosto de ficar me repetindo, mas o Ljot que consegue encontrar outros
Ljots também consegue encontrar Viktis, e assim que Uada cair, vocês são os
próximos.
— Mas, já estamos dominados.
— Contudo, um pequeno pensamento é suficiente para saber que um Vikti é uma
grande possibilidade de resistência. Podem saber que o Imperador Louco é só um
retardado, mas o caçador de Ljots é de Uada e é um Ljot. Foi por isso que vieram,
não?
Os dois concordaram.
30 – A cidade submersa.

Kattla sabia que o mais importante naquele momento era evitar Vudria, a capital
de Uada. Sabia que seguir pelo rio próximo seria um pouco mais seguro, mas não
dava para saber. Naquele ponto onde estavam, podiam ver as bombas caindo pela
cidade, os canhões que pareciam ter munições infindas. O Imperador Louco de
fato estava obstinado.
Ela parou o jipe por um momento e verificou o mapa da própria cidade para se
certificar do melhor caminho para alcançar o criptopórtico. O rio seria uma boa
opção, mas a floresta poderia esconder soldados inimigos. Reuniu todos ao redor
dos carros parados e disse:
— Dá pra ver que a situação aqui não está nada boa e não temos cobertura no
momento. Seguir pela floresta é uma opção, mas não temos como saber se tem
soldados inimigos camuflados por lá. O rio é uma boa opção, não acho que Uada
e Traesia deixaria o rio sem cobertura porque é nossa rota principal entre os dois
países. Mas, por isso mesmo pode ser totalmente perigoso. Não tenho tanto
tempo para pensar quanto gostaria.
— Eles estão protegendo a capital, Kattla. Eu arriscaria seguir por ela sem medo.
- Disse Igor. — Abandonamos os jipes um pouco antes e pedimos aos híbridos
nos carregarem ao menos para a entrada de um esgoto. Lá embaixo você segue o
caminho que temos que seguir.
— Temos que encontrar Nytt. - Disse Ava.
— Kattla conhece a Cidade Submersa como a palma da mão, ela sabe onde pegar
Nytt. - Disse Igor.
— Ainda assim os Viktis precisam concordar com isso. Porque eles terão que
carregar quatro de nós.
— Eu não vejo muito problema nisso. - Disse Luí.
Kattla continuou olhando o mapa e de vez em quanto seus olhos se tornavam
negros e ela mirava em direção a capital de Uada. Deixando-os sem entender o
que estava acontecendo, começou a caminhar ao redor, carregando seu cajado
consigo.
Abaixo de seus pés apenas um lamaçal e adiante o pântano. Ela se agachou e
enfiou os dedos na lama e lá ficou por alguns minutos. Não demorou muito para
os outros começarem a se questionar o que ela estava fazendo, Ava que sempre
estava pronta para responder ficou completamente calada, o que os deixou ainda
mais alvoroçados.
Ao se aproximar dele, sentia saber o que fazer. Não contornaria todo o pântano,
pois o solo havia lhe informado que havia um caminho que poderiam passar e
ainda assim evitar a capital. Ava estranhou o olhar que Kattla lançou para Igor,
mas balançou a cabeça em seguida e explicou o que fariam.
A viagem seguiu mais ou menos tranquila com todos seguindo o carro de Kattla
sem qualquer desvio para não ficarem atolados, o que às vezes acontecia, mas
Olyn era muito forte e não tinha muita dificuldade para desatolar os carros.
Passaram pela fronteira de Eshal, mas não havia nada lá que lhes causassem
qualquer perigo.
Logo eles estavam em Uada novamente já um pouco adiante da capital. Quando
rapidamente Kattla fez todos descerem dos carros, pegando suas coisas e os
explodindo em seguida. A partir dali, os Viktis tomaram a forma híbrida e
correram em máxima velocidade carregando os Ljots.
Kattla os fez parar logo que chegou num museu que estava parcialmente
destruído. Adara o olhou com os olhos marejados pelo que a guerra fizera com
ele, era uma estrutura antiga e abobadada, parte do pórtico ainda estava em pé e
sabia que devia ser um monumento lindo.
Olyn não demorou para arrancar a tampa do boeiro e todos pularam para dentro
rapidamente. Era necessária que a tampa fosse fechada e subindo uma pequena
escada de ferro, Olyn a puxou e fechou. Todos colocaram capacetes que tinha
uma luz no alto, exceto por Kattla, que enxergava no escuro.
Ela começou seguir pelo corredor, a água batia na altura da canela deles, mas
não molhavam seus pés porque estavam bem equipados, mas o cheiro era
insuportável. Kattla parou por um segundo apenas para perceber que Igor ficara
por último, atrás de todo mundo e esses pequenos movimentos incomodavam
Ava.
Os ratos corriam aos montes e Adara não queria nem saber o que mais poderia
ter naquela água além dos estrumes dos homens e coisas típicas de esgoto. As
baratas corriam pelas paredes como se estivessem fazendo uma maratona. Adara
não via a hora de sair daquele lugar.
A caminhada pelo esgoto levou mais de uma hora e eles raramente falavam uns
com os outros, apenas seguiam Kattla que fazia curvas, subia algumas pequenas
escadas que dava em outros túneis. Era visível que aquilo era mais do que um
esgoto, mas um labirinto.
Finalmente Kattla encontrou uma escada em degraus feitos em pedra e eles
puderam vislumbrar a Cidade Submersa. Na verdade mais parecia um labirinto
como os esgotos, mas ela tinha casas, monumentos em ruínas e muitas, mas
muitas ruas feitas com pedras. O criptopórtico era a coisa mais linda e Adara
lamentou não haver luz suficiente para ver coisa tão bela.
Quando a Cidade Submersa se tornou em ruínas, sobrando apenas os
criptopórticos, canais fluviais e outros monumentos desintegrados, eles
construíram uma nova cidade, claro que monumentos e templos foram
restaurados, mas fizeram de um jeito onde a Cidade Submersa fosse mantida.
Por isso ali era tão cheio de criptopórticos, colunatas arqueadas, várias colunas
para manter o peso da cidade acima e um ponto estratégico em casos de guerras,
que não era o lugar onde estavam exatamente, mas havia muitas bases onde
evacuavam os cidadãos para se proteger da guerra.
Kattla seguiu pelo labirinto que eram os criptopórticos. Todos se sentiram
melhores, porque era perceptível que o lugar era cuidado e limpo, ainda que
pudessem sentir um pouco o cheiro do esgoto abaixo, mas conforme ela andava,
o cheiro diminuía.
Adara estava deslumbrada, cada pedra, mesmo os túneis arqueados pelos quais
andavam, pequenas ruínas, tudo aquilo a fazia pensar na beleza que devia ter
aquela terra. Era como se tudo fosse muito antigo e eles prezavam manter essa
antiguidade e era tão belo que não dava para não se deslumbrar.
Contudo, mesmo Adara estava incomodada com o silêncio de Kattla e de todos os
outros, como se algo ali dentro tivesse que ser respeitado, como se qualquer
palavra pudesse profanar aquele lugar. Mas, nada desse tipo fora dito. Em
nenhum momento nenhum deles pediram por silêncio.
Ela olhou para os rostos daqueles que estavam próximos dela e eles mantinham
um olhar severo, como se estivessem sentindo a mesma coisa. Tudo o que se
ouvia era o barulho dos passos, o chacoalhar das mochilas pesadas que
carregavam nas costas e nada mais.
Para o alívio de Adara, Kattla subiu uma escada, ainda mais alta do que a
primeira que subiram, com seus tijolos antigos nos degraus e um corrimão feito
em pedra cheio de esculturas em relevo. Talvez por isso fossem tão orgulhosos da
terra deles, Uada era linda e antiga, mesmo semidestruída.
Ao final da escada havia uma porta de pedra, que Adara olhou por um bom
tempo porque também parecia contar uma história em escultura em relevo.
Kattla sem dizer qualquer palavra, encostou seu cajado num dos desenhos, que
Adara julgou ser uma lua e em seguida a porta de pedra abriu sozinha.
Ava sorriu ao ver Nytt com o guerreiro do outro lado, que antes de deixá-la entrar
e acompanhá-los, lhe disse algumas palavras, provavelmente a lembrando de algo
importante que ela aprendeu no curso. Ele bateu continência para Kattla e saiu
em seguida, enquanto Nytt o perseguia com os olhos, como um tipo de despedida.
Ao entrarem, Katlla fechou a porta novamente e continuou os conduzindo, até
levá-los numa câmara onde todas as paredes mantinham escultura em relevo.
Nas paredes haviam tochas e ela acendeu todas. O lugar tinha colunas por todo o
recinto, como se o teto despencaria se elas não estivessem ali.
— Sinto-me melhor aqui. - Disse Adara. — Enquanto caminhávamos tive a
impressão de que seu falasse alguma coisa eu seria agarrada ou coisa pior.
— Senti isso também. - Disse Varg.
— Sentiram exatamente o que eram para sentir. Os criptopórticos foram usados
muito por políticos, mas também muitas câmaras aqui da Cidade Submersa
foram usadas por magos e bruxos muitos antigos. Às vezes é muito sábio não
falar em determinados lugares para não chamar a atenção de coisas indesejadas.
- Disse Ava, e, virando-se para Nytt perguntou: — Como foi o treinamento?
— Aprendi muitas coisas, mas sei que precisava treinar muito mais e não terei
como agora, mas estou muito melhor do que estava quando deixei a base.
— Estou orgulhosa de você.
Nytt se aproximou dela e beijando suavemente a boca de Ava, disse:
— Devo isso a você.
Ava encarou-lhe os olhos claros e a trazendo ainda para mais perto, tocou
suavemente os lábios rosados de Nytt e depositou o olhar novamente naqueles
olhos que achava tão bonitos, como que se estivesse pedindo permissão.
Contudo, Ava não fez nada, Nytt apossou-se de sua boca, num delicado e úmido
beijo.
31 – Gelo

Caminharam por tanto tempo seguindo pelos criptopórticos que já não tinham
noção se era dia ou noite. Às vezes ouviam o barulho dos bombardeios que
aconteciam acima, mas estavam seguros onde estavam. Caminharam por algum
tempo até Kattla parar noutra câmara para se alimentarem.
Já acostumados com aquela rotina, já que estavam caminhando há dias ou
meses, quem poderia julgar depois de tanto tempo confinados naqueles
corredores, para chegar em algum lugar que Kattla ainda não havia lhes dito. Os
momentos em que paravam nas câmaras, ou ao menos algumas, sentiam-se
aliviados, pois sempre parecia haver alguma coisa naqueles corredores que não
eram daquele mundo.
Adara era a que mais se deslumbrava com tudo aquilo, e, na monotonia e silêncio
das longas caminhadas, sempre se pegava imaginando o que poderia ter
acontecido naquele lugar alguns milhares de anos atrás. Como eles viviam?
Mantinham a mesma estranha tradição? O que era na realidade Uada?
Antes que a gororoba que comiam há dias estivesse pronta, Kattla se sentou
entre eles e abriu novamente um mapa. Esse mapa mostrava em grande parte a
Cidade Submersa, mas também mostrava o último portão para onde estavam
indo naquele momento.
— Quando cruzarmos esse portão não estaremos mais em Uada, mas sim em
Uglain. Eles deixaram uma base fortemente fechada e de acesso quase
impossível, pois que estão guardando grande parte do suprimento do Império,
inclusive armamento. Minha missão é destruir essa base. A ideia da expedição
ser com poucas pessoas é porque eles particularmente acreditam que uma
grande campanha viria destruir uma base como essa. A chance de morrermos é
enorme, então se quiserem desistirem, esse é o momento.
— Não saberia mensurar o quanto você é filha da puta, Kattla. Fez-nos chegar as
portas da base para perguntar se queremos ou não seguir em frente. - Disse Luí.
— Esse mapa não é o único que tenho e qualquer comunicação minha alguém
virá buscá-los. Acreditei que queriam estar aqui, que por isso treinaram tanto.
Mas, não os condeno se desistirem. Sei o quanto é perigoso.
— Por um mundo onde Ljots e Viktis possam lutar juntos. - Disse Leif.
Todos sustentaram um olhar claramente surpreso para ele, mas de certa forma,
durante todos aqueles dias, esse tipo de comportamento havia crescido. Ava e
Nytt viviam juntas e Nytt nutria um carinho pelo seu instrutor de elite. Adara se
tornava cada vez mais encantada com a beleza de Uada, curiosa com sua cultura,
a mistura do muito antigo com o moderno. Sim, em todo aquele tempo eles
tinham criado um vínculo e aquilo era mais importante naquele momento.
— Não vamos falhar. - Disse Varg.
— Ao destruir essa base, ganhamos um tempo considerável e o Império vai sofrer
uma perda significativa, sem munição e sem suprimento, eles terão que recuar
um pouco.
— Você escolheu isso a resgatar seu irmão? - Perguntou Igor. — Que tipo de
pessoa você é? - Seu tom era indignado.
Nesse momento o silêncio foi tumular e a comida veio como um alívio para todos,
até mesmo para Kattla, que sentia todos os dias a dor e o medo de perder o
irmão, de não saber quem estava com ele, embora sabia que o Ljot traidor estava
envolvido. Pensar no que ele poderia passar naquele momento partia-lhe o
coração.
Era uma armadilha, ela bem sabia, mas isso não significava que não faria
qualquer coisa por ele, estava pronta para matar e morrer por ele, do mesmo jeito
que estava inclinada a fazer qualquer coisa por Uada e pela sua equipe que ali
comia com ela.
Ainda assim pensar em Bjorn a entristecia, mesmo sabendo que estava vivo, não
tinha ideia em que condições ele poderia estar, mas também se ele era uma isca,
não devia estar muito longe de Uada. Ava a olhou, sabia dos sentimentos que se
passavam dentro dela, assim como Olyn e Varg.
Assim que terminaram de comer, todos se prontificaram, mochilas, armas,
granadas e outras coisas necessárias. Nytt sentiu-se claramente animada ao
perceber que estava prestes a colocar em prática tudo o que tinha aprendido.
Estranhamente, como se sentisse algo, enquanto caminhavam pelo criptopórtico
Kattla entregou o cajado dela para Ava. As duas acabaram ficando para trás,
enquanto o grupo seguia na marcha normal. Ava sussurrou:
— Por que isso?
— Porque não estou com um bom pressentimento e acho melhor que fique com
ele.
— Você sabe de alguma coisa que não quer me dizer?
— Não, só achei os espíritos da Cidade Submersa agitados demais. E Ava… Se
alguma coisa acontecer comigo, não fique na base, fuja com os outros para um
lugar seguro. Entendeu?
— Acha que esse povo vai me respeitar?
— Imponha, nem que for a dor e força, está com meu cajado para isso.
— Kattla, tenho certeza de que você sabe de alguma coisa.
— Não sei, os mortos não querem falar comigo.
— O que vocês estão conversando? - Perguntou Adara, aproximando-se delas.
— Que se algo acontecer comigo, vocês devem deixar a base imediatamente.
Entendeu, Adara? Consegue liderar seus Viktis para isso?
— E por que você não diz isso para todo mundo? - Perguntou Adara.
— Porque apenas vocês precisam saber. Entendeu?
Kattla encerrou a conversa, caminhando no ritmo dos outros e se envolvendo com
eles no meio da fila indiana que faziam. Caminharam por um tempo em silêncio,
alguns metrôs e então ouviram o que não esperavam. Aquele exato lugar estava
sendo bombardeado bem acima da cabeça deles.
— Sabem que estamos aqui! - Gritou Igor.
O barulho era ensurdecedor e a estrutura do criptopórtico tremia, ao ponto de
algumas pequenas pedras se soltarem do teto e cair sobre eles. O bombardeio foi
se tornando mais intenso. Era claro que o lugar não suportaria, as colunas de
algumas galerias estavam rachando, outras prontas para despencar.
— Vamos morrer aqui! - Gritou Nytt.
Nesse momento Leif começou a usar seu poder e reforçar todas as paredes, tetos
e colunas com o seu gelo, conhecido como gelo eterno, pois que nunca derretia.
Muitas vezes ele tinha que parar para direcionar gelo para o lugar exato que ele
queria evitar que despencasse.
— Falta muito? - Ele perguntou.
— Um pouco. - Respondeu Ava.
— Então só terá um jeito de eu fazer com que vocês saiam daqui com vida.
— Leif, não, por favor, não! - Implorou Adara.
— Era parte do que queríamos, não? Que Ljots e Viktis podem trabalhar juntos.
Se eu não fizer isso, não conseguirei evitar que tudo venha abaixo sobre nossas
cabeças.
— Não. - As lágrimas já deixavam um rastro úmido no rosto de Adara.
— Perdoe-me pelo que te fiz, Adara. Agora todos corram e saiam daqui o mais
rápido que conseguir.
— Vamos! - Disse Kattla com sua frieza de sempre, puxando a prima pelo braço.
Leif começou a concentrar uma luz azul em seu peito, que foi aos poucos
crescendo por todo seu corpo, exceto pela sua cabeça. Ele fechou os olhos por um
momento, lembrou-se de coisas de seu passado, do líder que um dia fora, que
teria feito aquilo sem qualquer problema para Norga. Mas, estava ali, não por
Uada, ou não apenas por Uada, mas pelos seus amigos.
Ele pensou em toda a Cidade Submersa, deixou que sua mente e sua magia
captasse todos os espaços que tinham naquele momento e naquele momento
explodiu numa luz azulada de puro gelo, reforçando toda a cidade submersa.
Contudo, sabia que quando terminasse de lançar todo seu poder, ele mesmo seria
uma estátua de gelo eterno.
Enquanto isso os outros corriam, vendo o gelo os perseguindo, cobrindo tudo em
volta deles. Não era certo se Leif naquele estado os congelaria também, mas por
precaução eles corriam o máximo que podiam antes do gelo os alcançarem.
Quando finalmente encontraram a porta de pedra, Ava a abriu veloz e fechou tão
logo todos passaram. A porta também recebeu uma camada de gelo.
Adara sentou-se sobre o chão aos prantos, por mais que ele tinha feito tanta
coisa ruim com ela nos últimos tempos, nem sempre fora assim. Começaram a
namorar na adolescência e embora ele não fosse perfeito, porque ninguém o era,
sempre fora um namorado cuidadoso e carinhoso.
As memórias corriam em sua cabeça, quando ele corria como urso e ela como
lobo na floresta, ou quando escolhiam os lugares mais inusitados para transar ou
quando passavam horas conversando sobre tudo. E mesmo sabendo que o corpo
dele tornara-se uma estátua de gelo eterno, ele não estava mais naquele mundo.
Os outros viktis também choravam e lamentavam, mas Victor e Kattla começou a
levantar todo mundo, porque eles sabiam que estavam ali e outro bombardeio
poderia começar e precisavam encontrar algum lugar onde pudessem se abrigar
ao menos por algum momento.
32 – Abrigo

Todos os Viktis estavam completamente desconsolados com o que acontecera


com Leif. Os olhos de Kattla tornaram-se completamente negros, até mesmo os
glóbulos oculares e fitou Ava assim por um tempo, os deixando para trás por um
momento.
Precisava ao menos encontrar um jardim ou qualquer lugar que não fosse
asfaltado, para assim usar de seu poder para encontrar uma caverna, gruta, toca
ou qualquer coisa parecida, onde eles pudessem se esconder.
Estava sentindo por Leif também. Tantos dias juntos com brigas, ou sem brigas,
com desconfianças, ou sem elas, era impossível não criar algum tipo de afeto,
ainda que não fosse algo forte como deveria ser para Adara, que ela sabia, estava
arrasada.
Ao que encontrou um canteiro numa praça próxima a base que tinham que
atacar, enfiou os dedos na terra, com seus olhos ainda negros e infelizmente não
havia nada por perto. Metade do lugar era um bairro residencial e independente
de Uglain ter sido conquistada, era parte do Império.
Sem ter muito o que fazer, tudo o que restava era tentar invadir uma casa, ao
menos para passarem aquela noite e pensar no que fazer em seguida. Sua equipe
estava emocionalmente destruída, não podia esperar o melhor desempenho deles
naquele momento. Aproximou-se de Nytt e disse:
— Eu não entendo muito do seu treinamento e do que você faz. A caverna mais
próxima daqui é em Uada e são muitos quilômetros, não vamos desistir dessa
missão. Você precisa conseguir uma casa para nós. Ocultá-la depois não será
fácil pra mim, mas talvez com Ava façamos com que passe desapercebida. Você
consegue isso?
— Consigo, mas preciso de ajuda, porque posso me aproximar como um
cachorrinho, mas alguém tem que deixar minhas armas por perto para que eu
possa eliminar seja lá quem for que estiver dentro da casa.
— Sério que você fez um treinamento para agir como Vikti?
— Sério que você precisa ser rude mesmo depois que perdemos o Leif?
— Eu preciso de uma equipe competente. Eu mesma poderia me aproximar da
casa e matar todo mundo lá dentro com um estalar de dedos.
— Da mesma forma que fez com que Varg se apaixonasse por você?
— Você é inútil! Lembrarei disso. Deixa eu resolver o que eu preciso com mais
urgência e depois vejo o que farei com você. Está dispensada.
Kattla andou de um lado para o outro, chamando assim a atenção de Ava, que
também escutava de Nytt a conversa que as duas tiveram. Adara que estava ao
lado das duas também não deixara de ouvir a conversa sobre o que tinha
acontecido. Levantou-se deixando Ava e Nytt discutindo e escolheu uma casa.
Bateu palma e em seguida uma senhora abriu a porta e deixou-se ser vista. Com
os olhos ainda úmidos, pelo choro que ainda nutria por Leif, Adara disse:
— Senhora, eu e meu marido estávamos viajando, não sei se pôde ouvir o
bombardeio, mas com isso ele perdeu a direção e bateu o carro. A senhora
poderia, por favor, me deixar usar seu telefone?
— Os tempos andam tão difíceis que não é muito seguro deixar estranhos entrar
em casa.
— Por favor, senhora, olhe para mim, tenho olhos azuis, cabelos claros, não
tenho nada a ver com o que está acontecendo com o Império e Uada, vivo uma
vida tão parecida quanto a sua. Mas, preciso de sua ajuda, se não conseguir um
resgate, ele morrerá.
— Tudo bem. Venha, mas seja breve.
Adara entrou na casa, a mulher passou por uma sala logo após a porta de
entrada e a levou para um corredor, onde tinha um móvel alto que estava o
telefone. Adara farejou, havia mais alguém na casa além da senhora, suspeitava
que estivesse na cozinha, já que a casa também estava perfumada por comida.
Ela pegou o telefone e fingiu ligar para o resgate. A velha se sentindo um pouco
mais à vontade, foi dizer algo para o marido na cozinha. Nesse momento Adara se
transformou num lobisomem e matou ambos, se desculpando em seguida, já que
sentia que não mereciam, mas eram tempos difíceis.
Retornou para onde o pessoal estava e informando que tinha conseguido uma
casa, guiou todos para lá. O cheiro de sangue na cozinha era forte e Kattla
ordenou que Nytt limpasse e se livrasse dos corpos. Para não causar ainda mais
atritos Ava aconselhou que ela fizesse e ainda a ajudou, fazendo Kattla lhe lançar
um olhar desafiador.
Assim que a cozinha estava limpa colocaram-se para cozinhar, outros tomaram
banhos, outros tentavam encontrar lugares suficientes e confortáveis para
dormir. Apenas Kattla se mantinha num quarto escuro, fazendo magia para a
casa se tornar no mínimo desapercebida.
— Queria muito que as coisas tivessem sido diferentes, que Leif não morresse
daquele modo. - Disse Varg, ajudando Adara cozinhar.
— Esse vai ser o fim de todos nós, Varg, ninguém vive pra sempre.
— Só não queria que fosse agora ou que fosse daquele jeito. - E sussurrando,
disse: — Acho que tem um traidor entre nós.
— Espero que não seja Nytt, soube que ela discutiu com Kattla e por isso eu
mesma vim resolver a questão de ficarmos nessa casa.
— E por que ela trairia Kattla?
— Por você?
— Olha, eu sei que a Nytt é meio doida, sei que gosta de mim sei lá por quantos
anos, mas ela está tendo um caso com Ava e não acho que ela tenha o desejo de
nos trair.
— Nytt tem motivos, assim como a própria Ava tem motivos. Se não estou errado
ouvi dizer que ela fica no lugar de Kattla se ela morrer. - Disse Luí.
— Vocês realmente acham que esse tipo de conversa a essa altura do campeonato
vai trazer algo de bom para todos nós? - Perguntou Adara.
— Eles bombardearam exatamente em cima da gente, eles sabiam exatamente
onde estávamos. E para isso alguém contou. Não foi um ataque aleatório. - Disse
Luí. — E se não fosse por Leif, todos nós estaríamos mortos agora.
— E como o traidor escaparia? - Perguntou Adara.
— Ele tinha uma rota extra e segura, certamente.
— O que me incomoda é que Kattla não diz absolutamente nada. Ela não devia
saber dessas coisas? Os mortos não falam com ela? Ou Mantus? Por que ela não
nos diz nada? - Disse Varg.
— Já pensou em perguntar para ela? - Perguntou Adara.
Ele deixou a cozinha e a procurou pela casa, encontrando-a no quarto do casal de
velhinhos, contudo com a porta trancada. Ele bateu à porta, informou que era ele
e não demorou muito até que ela o deixasse entrar, trancando a porta
novamente.
Sobre a cama tinha mapas, um aparelho eletrônico que ele não sabia para o quê
servia e um pequeno computador. A mochila enorme que ela carregava estava
sobre o chão ao lado da cama. Um dos aparelhos tocavam musica, aquilo a fazia
pensar melhor. Ele sempre achava estranho quando todo o glóbulo ocular dela
ficava totalmente preto, mas assim ela estava.
— As pessoas estão desconfiando de que há um traidor. - Ele disse.
— Parece aquele tipo de praga que não conseguimos nos livrar.
— Eu estou com medo de que algo aconteça com você. Estou com medo do seu
silêncio, do seu isolamento. Estou com medo das coisas que você está sentindo.
— Eu não posso deixar que você se dê o luxo de sentir medo, apenas de ser forte
e fazer o que deve ser feito, não importa o que aconteça. - Ela segurou o rosto
dele com as duas mãos e fixando o olhar nos olhos dele, disse: — Eu preciso que
você seja o lobo mais forte e agressivo dessa terra por mim, mas também o lobo
mais inteligente e calculista.
— O que você quer de mim?
— Vou te dar o mapa de uma base minha, se as coisas derem erradas você vai
pra lá com os outros. A IA de lá é T5KS, é próximo de Uglain, mas precisará
colocar os outros em segurança. Apenas você poderá abrir essa base além de
mim. Daí em diante, se as coisas realmente derem mal, Adara lidera os Viktis e
Ava os Ljots. Vocês tem que viver, entendeu? Eu não posso contar tudo agora,
mas eu dependo muito disso.
Ela pegou um aparelho e fez a leitura da íris de Varg, dando para ele um mapa
em seguida. Era próximo de Uglain, mas já no território de Uada. Eles se olharam
por um tempo e sem pensar, ele a trouxe contra o corpo, deixando sua língua
invadir a boca delicada dela. Há tanto tempo não faziam aquilo, que ficaram ali
por um longo tempo.
Sentia falta do cheiro dele, do toque suave que costumava acariciá-la com as
costas da mão. Seria tudo mais fácil se ele pudesse se resolver com Olyn, se
pudesse deixar sua cultura de lado. Queria sentir a pele dele sobre a dela, tirou a
camiseta de ambos enquanto ainda se beijavam.
— Pessoal, vem jantar! - Gritou Ava na porta do quarto.
Entreolharam-se e após vestirem as camisetas deixaram o recinto, não sem antes
Kattla trancar com a chave e a carregar consigo. Ela sentou à mesa, com todos a
olharem seus olhos negros que a fazia parecer um demônio ou algo do tipo. Ela
ficou por um longo tempo olhando para Nytt, que se sentiu acuada.
A comida estava maravilhosa, especialmente depois de tanto tempo comendo as
gororobas que eles comiam na Cidade Submersa. Se deu o direito de olhar um
por um com esmero, com seus olhos demoníacos. Victor disse quebrando o
silêncio:
— Não gosto quando você me olha assim.
— Amanhã à noite vamos para a base e estaremos camuflados. Nytt ficará longe
dela, mas o suficiente para acertar os barris químicos que tem lá. A base é
cercada por uma cerca elétrica e em seguida tem ainda um muro fortificado, com
outra cerca elétrica sobre ele. Não sei precisar muito bem a quantidade de
soldados que estão nessa base, mas há muitos carros e caminhões que precisam
ser destruídos.
— Como entraremos? - Perguntou Adara.
— A cerca elétrica não deve ser um problema para o Igor. - Disse Kattla.
— E de fato não é. - Disse Igor.
— Vou procurar ocultar nossa presença, nossas mochilas estarão repletas de
bombas relógios e granadas. Os Viktis também podem usar a força se necessário.
Temos de colocar essa base no chão. Eu serei a primeira a saltar dentro da base e
matar a maioria dos soldados que estiverem lá. Em seguida vocês agem.
— Por que sinto que você não deveria fazer isso? - Perguntou Varg.
— Eu sinto a mesma coisa. - Disse Ava.
— Se acontecer algo comigo abordem a missão e sigam o Varg. Os Ljots ficarão
sob a supervisão de Ava e os Viktis de Adara.
— Eu não estou gostando muito dessa conversa. - Disse Olyn.
— Somos uma equipe pequena, meu sol e não posso colocar todos vocês em risco,
se falharmos em algo, precisamos fugir para tentar novamente. Talvez recrutando
mais pessoas, trocando outras. Por favor, só façam o que estou dizendo. Posso
contar com vocês?
Todos concordaram, ainda que Olyn se sentisse inquieto com aquela conversa,
sentia algo que vinha dela, sentia que ela sabia de alguma coisa que não queria
contar. Ignorou Varg completamente após o jantar e foi com ela para o quarto,
por mais que ela não quisesse falar e mantivesse aqueles olhos negros, ele queria
passar aquela noite com ela.
33 – Invasão

Desde o dia anterior ninguém mais vira os olhos de Kattla verdes, estavam
sempre negros, como se aquilo a preparasse para algo. Claro que sabiam que ela
poderia usar seu poder para ocultá-los, mas mesmo durante todo o dia, ela
manteve aquela face estranha, que fazia com que ela mesma parecesse um
defunto.
Ela seguiu com Igor deixando os outros para trás para que ele desativasse a cerca
elétrica, estava preparada para matar qualquer um que aparecesse naquele
momento, nem que tivesse que trazer Mantus em pessoa para aquela base. Ela
esperou.
Não devia ser um trabalho complicado para Igor, já que era um Ljot da
eletricidade e dos relâmpagos, mas ele demorava, como que se estivesse tendo
alguma dificuldade. Finalmente ele desativou a primeira cerca e com a ajuda de
Olyn, ela foi cortada, já que era basicamente um alambrado.
A pedido de Kattla, Ava, Adara e Varg não se aproximaram prontamente, ficando
cada um em seu esconderijo. Agora tinham um muro alto diante deles e uma
cerca elétrica no topo do muro. Olyn suspendeu Igor para que esse desativasse a
segunda cerca e novamente houve a mesma demora.
Assim que a cerca foi desativada Olyn jogou Igor por cima do muro, que se
agarrando na cerca desligada, amorteceu a queda. Em seguida fez o mesmo com
Kattla, ela agarrou-se na cerca, amorteceu a queda e se viu cercada por milhares
de soldados com armas apontadas para ela.
— Eu sinto muito, Kattla. - Disse Igor, se afastando dela, dando alguns passos
para trás.
Ela rapidamente retirou os sapatos e fez movimentos circulares com os pés. Os
homens armados gritavam para ela não se mover e Olyn do outro lado sentiu-se
angustiado, transformando-se em híbrido e quebrando o muro com seus chifres.
Kattla falava palavras e um por um começou a cair morto, inclusive Igor.
— Quanto tempo, minha amiga.
Ela conhecia aquela voz, era de Taber, o traidor que matou mais Ljots do que
qualquer exército fez em toda história de Uada. Ela virou-se para Olyn e disse:
— Saia daqui agora.
— Eu realmente não esperava que a destruição dessa base fosse mais importante
do que o resgate de seu irmão.
Olyn correu para cima dele para atacá-lo, mas Taber tinha o poder da telecinese e
sem nem mesmo tocar Olyn, o lançou para longe. Enquanto isso acontecia, Kattla
tentava ser o mais ágil possível para tentar lançar um feitiço nele, mas um
soldado a pegou desprevenida por trás, lançando uma rede de chumbo sobre ela
que a fez cair ao chão, gritando de dor.
Olyn tentou mais uma vez lutar contra aqueles que estavam presentes, mas
alguém lhe deu um tiro usando uma bala de prata, o que o fez cair prontamente.
Ele ainda tentou se arrastar para alcançar Kattla, mas levou outro tiro que o
deixou ainda mais fraco. Taber disse:
— Igor nos disse que Viktis viriam também e sabemos que balas de prata
funcionam bem para qualquer um de vocês, não apenas os lobisomens.
Desesperados Adara e Varg dispararam a correr na direção deles. Olyn ainda se
arrastava ensanguentado e fraco sobre o chão, num esforço inútil de alcançar
Kattla. Adara em sua forma híbrida saltou sobre Olyn e o tomando no colo deixou
o lugar, gritando:
— Recuar, Varg!
Um homem apontou a arma para atirar em Varg, mas de longe e camuflada, Nytt
deu um tiro certeiro, não permitindo que Varg fosse atingido. Ava e Victor
pararam com o carro próximo ao ponto de onde os Viktis estavam deixando o
lugar, passando em seguida no lugar onde Luí estava escondido.
Taber se aproximou de Kattla, que estava imóvel sob a rede de chumbo e apenas
libertando a cabeça dela da rede colocou uma coleira de chumbo em seu pescoço,
fazendo-a gritar novamente, porque aquele metal machucava sua pele. Colocou
duas grossas algemas também de chumbo em ambos os pulsos.
Com delicadeza e um olhar sádico, num pequeno elo da coleira, ele prendeu uma
corrente também de chumbo e com aquilo fez sinal para que tirassem a rede de
cima dela. Colocou-a num furgão, entrando junto com ela e seguiram para uma
cadeia, muito bem escondida em Uglain.
— Acho que não vai querer conversar comigo, não é mesmo? Mas, sinceramente
queria saber como se sentiu ao falhar em me encontrar enquanto seus amigos
morriam?
Ela nada disse.
— Depois de tantos anos com Mantus nos ignorando, ele nos trouxe você. Uma
necromante plena, com um poder além do normal. Muitos Ljots não se sentiram
muito bem, sabe? Todo general a queria, todo exército a queria, todos os políticos
a queriam… Você fez exigências que nenhum de nós podíamos fazer. Isso não é
ruim, entende? Mas, tem muitos que não se sentem tão bem com isso.
— Você por exemplo. - Ela disse.
— Ah, não, não eu. Sempre te admirei muito. Quantas guerras vencidas por sua
causa. Quantas honrarias você recebeu. Sempre gostei de assistir isso. Sempre
pensei: como seria se ela sofresse ao invés de ser tão querida pela nação? E aqui
te olhando, vendo sua pele se tornando cada vez mais vermelha, inútil, sem poder
usar seu poder, eu só posso dizer que isso me deixa excitado. Talvez se você não
tivesse sido tão especial, eu estaria completamente entediado com essa missão
que me foi imposta.
Ele puxou a corrente dela com força, fazendo-a cair no chão do furgão e em
seguida puxou novamente com bastante força, jogando-a de qualquer jeito no
banco do carro. Aproximou-se do rosto dela e lambeu-lhe, dizendo:
— O que ainda me deixa intrigado é observar em sua energia vital que você ainda
acha que pode sair dessa. Que você se julga tão inteligente e superior, que acha
que sou incapaz de te manter presa. Você não tem ideia do que vou fazer com
você. Qualquer imaginação que você pode ter tido na vida sobre sofrimento, será
pouco com o que vou fazer com você. Porque você tomou o meu lugar, você tomou
tudo o que era meu.
— Escolhemos deuses diferentes, Taber. - Ela disse.
— E era para você ter morrido com o seu, teria sido muito mais sábio da sua
parte. Ainda mais uma mestiça como você é. Logo chegaremos na sua nova casa e
espero que você se satisfaça com o tratamento.
34 – Sem tempo

Victor pressionava os ferimentos de Olyn, mas sabia que tinham que chegar na
base para remover as balas do corpo dele, antes de aplicar toda a sua magia de
cura. Ava chorava desconsolada, balançava o corpo para frente e para trás como
se aquilo pudesse acalmá-la de alguma forma, disse:
— Ela sabia. Ela sabia. Por que ela foi pra base sabendo que eles a pegariam? Ela
nos instruiu a todos, porque sabia que seria pega. Por que? Por que?
— Acho que todos podemos dizer que sabíamos que tinha um traidor entre nós. -
Disse Luí.
— Ainda pode ter. - Disse Nytt.
— Era Igor, ela me comunicou sobre isso quando tudo estava acontecendo. -
Disse Ava.
— Viktis não tinham que sangrar tanto. - Disse Victor, preocupado.
— Prata nos mata e nos faz sangrar muito. - Disse Adara.
— Então, ande logo, Varg! - Disse Victor.
— Estou fazendo o melhor que posso, não conheço esse lugar.
— Desce daí, deixa que eu dirijo. - Disse Ava, enfática.
Eles trocaram de lugar e como Ava conhecia o lugar melhor, dirigiu com mais
velocidade e logo alcançaram a base, que Varg sendo o único que tinha permissão
abriu. Em nada era diferente da base anterior que ficaram, ouviram a voz
eletrônica:
— Bem-vindo, capitão substituto Varg. Existem algumas informações
confidenciais que preciso te passar a pedido da Capitã Kattla.
— Por favor, T5KS, prepare a sala para cirurgia, temos um homem ferido. - Disse
Victor.
— Sim.
Rapidamente drones apareceram com uma maca e ajudaram Victor a colocar
Olyn sobre ela. Saíram rapidamente para a sala deixando todos os outros para
trás. Diante de Varg, duas portas enormes de metal se abriram, com o
computador o informando para entrar, Adara o seguiu rapidamente, fazendo o
computador falar:
— Senhora Adara não pode estar aqui.
— Eu dou a permissão para que ela fique. – Disse Varg.
Uma tela se acendeu e em seguida uma gravação de Kattla dentro do quarto dos
velhinhos, onde ficaram na noite anterior dela ser pega começou a passar na tela,
os olhos de Varg marejaram, mas logo os limpou para que Adara não percebesse.
— É provável que estejam assistindo isso na base. Estou certa de que não voltarei
com vocês porque desde que chegamos nesse lugar, sei que meu pior inimigo está
aqui. Estou fazendo uma aposta, na verdade, se eu conseguir pegá-los, os novos
Ljots ficarão seguros, se eu falhar, ele me manterá como cativa ou coisa pior. Pode
ser que vocês ainda tenham tempo de me resgatar se encontrarem e resgatarem
meu irmão, Bjorn.
A tela mudou a imagem e um homem loiro e alto, com os lados da cabeça
raspada e cheias de tatuagem, com uma trança enorme com o cabelo do centro
da cabeça e os olhos azuis como se lá estivessem confinados o céu de verão.
— Bjorn não pôde ser escolhido como sacrifício e foi direto para o exército aos sete
anos, porque não havia um treinamento adequado para o que ele é. Ele é um
híbrido como vocês, uma onça, que ao tocar na fronte das pessoas e usar seu
poder é capaz de controlar o cérebro da pessoa, fazê-la convulsionar, ou
simplesmente derreter o cérebro mesmo. Bjorn é ainda mais poderoso para lidar
com Taber do que eu. Ava consegue encontrá-lo, estejam prontos para qualquer
coisa e não se preocupem comigo. Nossa prioridade é matar Taber. Sejam rápidos,
como meu irmão era a isca, pode ser que seja descartado.
— Precisamos sair agora. - Disse Varg agitado.
— Precisamos que Olyn esteja bem para isso, não podemos abandoná-lo aqui.
— O irmão dela é um Vikti e ela não nos disse nada. Como ele viveu aqui? Como
não o expulsaram daqui?
— Eu não sei responder essas perguntas, Varg. Às vezes eu acho que sabemos
bem menos da Kattla e Uada do que imaginamos.
Varg abriu a porta e chamou por Ava, que logo apareceu. Contou quais eram as
instruções e que ela precisava encontrar Bjorn. Deixou-a assistir a mensagem
que Kattla tinha deixado para ele. Ava chorou ao ouvi-la, sentia tanto por ela que
até tocou a tela como se aquilo a permitisse tocar o rosto dela.
— A verdade era que muitos poucos sabiam que Bjorn era um Vikti. Todos
concordaram com o casamento dos pais deles, mas acreditaram que ter um Vikti
claramente lutando para nós e especialmente para o exército não seria muito
bem-visto pela população. Contudo, sua excelência marcial o tornou um homem
de alta patente. Acredito que Taber só pegou Bjorn porque viu que era um Vikti e
usou prata. Não sei precisar.
— Precisamos encontrá-lo. - Disse Adara. — Precisamos muito encontrá-lo vivo.
— Trabalharei nisso a noite toda enquanto vocês descansam. Só espero que ele
não esteja muito longe.
Ela deixou rapidamente a sala, enquanto Varg levou os outros para a sala de
identificação como instruído pelo T5KS. Estava se esforçando ao máximo para
não demonstrar seus sentimentos, sabia que Kattla não estava bem e aquilo o
feria.
Não deixava sequer passar os pensamentos aleatórios que lhe vinham à mente
sobre o que estava acontecendo com Kattla. Assim que identificou os que
precisavam, procurou por um lugar isolado, lá se sentou no chão frio e chorou
diante de sua impotência e diante do que sentia de Kattla.
Sequer percebeu quando Adara se aproximou dele e sentou-se ao seu lado,
segurando ternamente sua mão. Ela ficou em silêncio por um tempo, por respeito
ao choro de seu amigo. Acariciava-lhe a mão e esperava que ele por si mesmo
dissesse qualquer coisa e ele o fez:
— Estou com a intuição de que ela não sai viva dessa. Que passar a noite aqui é
uma perda de tempo, que temos de sair e tentar resgatá-la agora.
— Precisamos de Bjorn, ela deixou claro o motivo, ele lida com nosso inimigo
melhor do que todo mundo. E é certo que estejam esperando que vamos tentar
resgatar Kattla agora, não o irmão dela. Eu sei que está sendo difícil pra você,
Varg, eu não quero nem pensar em como Olyn vai acordar. Mas, precisamos ser
fortes, deixar um pouco as nossas emoções de lado e fazer o que tem de ser feito.
Se salvá-la é o que você realmente quer, precisa pensar assim agora.
Ele sorriu entre as lágrimas, dizendo:
— Ela me disse algo parecido. “Eu preciso que você seja o lobo mais forte e
agressivo dessa terra por mim, mas também o lobo mais inteligente e calculista.”
Você teria alguma noção porquê ela me escolheria?
— Talvez ela esteja começando a entender o que é ser o Kin de alguém.
— Não acho que ela entendeu muito bem isso, não acho que tivemos tempo
suficiente para isso. E talvez meu ciúme de Olyn tenha estragado muita coisa.
— Varg, não é hora de pensar nos seus sentimentos, até porque você nem é
assim.
— Se você estivesse sentindo o que estou sentindo do corpo e emoções de Kattla,
entenderia.
— Vá descansar. Eu preciso ver Olyn antes de dormir. - Disse a moça.
Adara procurou pela sala onde Olyn estava e se sentiu aliviada ao vê-lo dormindo
e sem qualquer marca de tiro em seu corpo. Numa tigela de metal, as duas balas
de pratas residiam e Victor sorriu para ela dizendo:
— Ele já está bem, os drones apenas aplicaram um calmante porque ele está
muito agitado com o que está sentindo com relação a Kattla e precisamos que
todos estejamos completamente descansados amanhã para resgatar Bjorn.
Inclusive você. - Ele sorriu: — Precisa de alguma coisa para te ajudar a dormir?
Uma bebida ou qualquer coisa que deseje.
— Uma bebida seria perfeita, desde que bebesse comigo.
— Claro que vou, estou precisando de algumas.
Sorriram um para o outro, apagando a luz do quarto, Victor fechou a porta em
seguida e seguiu com Adara.
35 – Morte

Sentia o chão gelado sob os pés, enquanto descia uma escada que parecia
infinita, com Taber a puxá-la pela corrente em seu pescoço. Às vezes ele a puxava
com força, fazendo-a cair propositadamente, apenas para arrastá-la pelo chão e
machucá-la ainda mais.
Viraram à esquerda num corredor fedorento, onde havia várias masmorras,
contudo uma era especial. Três laterais eram feitas com grades de chumbo,
enquanto apenas a parte traseira era de pedra. Diferente da maioria das
masmorras daquele lugar, que apenas o portão era feito com grades de chumbo.
Após abrir a grade, ele a empurrou fazendo-a cair no chão novamente e entrou
logo em seguida, fazendo-a ficar em pé, puxando-a pela coleira. Sem dizer
qualquer palavra rasgou toda a roupa dela, deixando-a completamente nua.
Puxou-a pela coleira novamente e a fez andar no corredor, dizendo:
— Veja só como é belo o corpo da nova colega de vocês. Devem saber que se trata
de Kattla, que de poderosa agora não tem nada, é apenas a minha cadela e que
fará tudo o que eu mandar.
Alguns homens e mulheres se aproximaram das grades de suas celas, como se
não tivessem acreditando no que estavam ouvindo e suspiraram, deixando esvair
qualquer esperança de vitória de Uada com aquela cena. Depois de a exibir nua
para todos, deixando até mesmo alguns guardas tocá-la em suas partes íntimas,
ele entrou novamente na cela com ela.
Pegou uma corrente de chumbo e a pressionando contra a parede a chicoteou as
costas, deixando-a em carne viva. Não satisfeito, despiu o falo e a estuprou com
tanta violência, que mesmo os outros presos preferiram não olhar aquilo. A jogou
no chão quando se sentiu satisfeito, já que a cela dela não tinha nada, sequer um
vaso sanitário.
Com o rosto voltado para o chão, Kattla ouviu sua cela ser trancada e se arrastou
tentando se encolher no único lugar que não havia chumbo, já que ela estava
muito machucada. As horas não passavam, o tempo não corria, apenas sentia o
ódio crescendo dentro de si, mas sabia que não suportaria aquilo por muito
tempo, o chumbo num momento ou outro a mataria.
Olhou por um tempo para a cela nojenta que se encontrava, sabia que quando
precisasse fazer suas necessidades teria que fazer no chão, a não ser que alguém
aparecesse com algum balde em algum momento. Tocou a vagina dolorida, na
esperança de ao menos encontrar algum sangue, mas estava apenas dolorida.
— Hey! — Sussurrou o moço da cela ao lado. — Passe sua mão pela grade, não
posso curar, mas posso fortalecer a energia vital.
— O chumbo me drena, já tenho algemas de chumbo, se colocar mais é provável
que eu viva menos do que eu espero. - Ela sussurrou de volta.
O moço se aproximou à grade que não lhe causava nenhum dano e invadindo a
cela de Kattla com o braço, segurou a mão dela. Ela começou sentir certo alívio,
não era algo excepcional e sequer uma cura, mas fazia ela sentir que pudesse
suportar mais daqueles abusos.
— Você não pode morrer. - Ele disse, com sua mão quente sobre a dela.
— A morte vem para todos.
— Não desista, você não pode desistir, toda a nossa esperança estava em você.
— E agora não está mais, porque estou aqui nesse antro fedorento junto com
você.
— Farei tudo o que eu puder para que você viva, por mais que eu sei que lhe
alimentar de energia vital será algo doloroso demais para você enquanto não sair
desse lugar.
Só naquela noite Taber chicoteou Kattla com chumbo e a estuprou por mais três
vezes. E embora estivesse passando por aquilo, seu ódio era tão intenso que
sequer uma lágrima ou um gemido de dor ela verteu. Apenas deixava que o amigo
da cela ao lado segurasse sua mão após as seções de tortura.
— Meu nome é Ladarius e eu sei que é Kattla, não porque esse idiota falou, mas
porque já fiz parte de sua tropa uma vez e sempre me senti honrado por isso.
— Acho que nós dois devíamos estar numa situação melhor, Ladarius.
— Taber sempre quis o seu lugar, mas alguns disseram que ele nunca teve
coragem de escolher Mantus.
— Os homens amam a ilusão da vida e odeiam a verdade da morte. É provável
que eu morra aqui, meu amigo. Mas, quero uma festa ainda maior para a morte.
E por falar nisso, se alguém vier me buscar e eu estiver morta, diga que quero ser
enterrada ao lado do túmulo da minha mãe na Floresta de Danê. Pode me
prometer isso?
— Eu sei que ficar alongando sua energia vital aumenta seu sofrimento. Mas,
quero manter a esperança.
— Prometa, por favor.
— Prometo.
— A base do meu sofrimento. - Ela riu. — A morte é algo engraçado, uns a
desejam como um homem excitado deseja uma mulher, outros a temem porque
não sabem o que vai acontecer depois disso; outros dizem sobre mundos e
deuses, paraísos e punições.
— E o que Mantus diz sobre a morte?
— Ela é tão maleável quanto a própria vida, se você tiver poder suficiente para
isso.
— Não está se sentindo triste?
— Estou. Tenho pessoas que amo que estão lá fora e com esse monte de chumbo
não faço ideia do que estão fazendo, se estão bem ou se vão fazer o que eu disse.
Mas, na verdade, estou mais preocupada onde é que vou fazer xixi nessa cela
agora. Não quero dormir em cima da minha própria urina.
— E pelo que Taber está te fazendo?
— Já me senti triste por Taber se tornar um traidor uma vez, mas isso já passou,
ficou enterrado no passado. Hoje o que eu quero é a cabeça dele para servir
numa bandeja de prata numa mesa. E se por acaso eu morrer e você não, diga
isso para o meu irmão, como sendo meu último desejo, como também ele o leve
com você em gratidão ao que me fez.
— Você não devia chorar? Implorar por sua vida? - Disse uma mulher na cela do
outro lado. — Eu sinto sua dor todas as vezes que ele te bate e te estupra. Eu não
consigo nem imaginar a dor que você está sentindo, sua pele está em carne viva.
— Admito que me mijo involuntariamente quando ele me bate, mas chorar não.
Não darei esse gosto, nunca me curvarei, não importa o quanto ele tente me
humilhar, eu não vou curvar a minha cabeça. Eu não tenho medo da morte, ou
de punições e até acredito que posso lidar com tortura por um bom tempo. Mas,
não com chumbo.
E aquilo era verdade, quanto mais tempo ficava naquele lugar torturada, sem ser
alimentada, só bebia alguns poucos goles de água porque Ladarius divida a dele
com a dela e sem comer há dias, sentia que toda a sua vida estava se esvaindo.
Ladarius tudo fazia para dar-lhe energia vital, mas era como se o chumbo
sugasse ainda mais rápido do que ele lhe dava.
Quando percebia que Kattla estava a beira da morte, Taber fazia algo para
melhorar um pouco o estado dela, nada de cura, apenas deixava passar alguns
dias sem apanhar com chumbo ou sem ser estuprada, ou lhe servia uma
gororoba como comida. O que não adiantava muito, porque faminta e sem comer
há dias, sempre acabava vomitando.
— Que triste! - Disse o sádico acariciando o rosto dela, o único lugar do corpo
naquela altura que ainda tinha pele. — Tão bela e o chumbo está te envenenando
rapidamente, acho que seus amigos não terão sequer a chance de tentar um
resgate.
— Mantus decide o dia que vou morrer.
— Não acho que seu deus está nessa posição, porque se eu quiser posso matá-la
agora. Mas, não vou. Porque estou interessado naqueles Viktis rebeldes que se
juntaram a sua causa. Será que Norga também terá que pagar pelo que Uada e
Traesia tem feito contra o Império? Ou será que Uada esconde mais Viktis além
de seu irmão?
Ela nada disse.
— Você não gosta mesmo de falar, mas não vou te punir por isso hoje, ainda
quero você viva amanhã.
36 – O Guepardo

Um dia após a prisão de Kattla.

Ava acordou a todos bem antes do sol nascer, ela mesma não dormira nada, mas
sabia onde Bjorn estava e da base onde estavam, precisariam dirigir trezentos
quilômetros. Temia que naquela altura e com toda aquela agitação que sentia,
Taber sabia que estavam indo atrás do irmão de Kattla.
Contudo, seu coração não estava calmo, sentia a energia de sua amiga cada vez
mais fraca, como se estivesse descendo as escadas do submundo mais uma vez,
mas para nunca mais voltar. Ativou T5KS, solicitando por todos os armamentos
pesados, metralhadoras, bombas relógios, granadas e que preparasse coletes à
prova de bala, especialmente de prata.
Eles caminhavam sonolentos pelo local, mas não titubeavam aos comandos de
Ava, exceto quando Olyn acordou que as coisas ficaram um tanto fora de
controle. Ele estava certo de que tinham que voltar e resgatar Kattla e não o
irmão porque ela estava morrendo.
Ele contou a todos os sonhos que teve com ela a noite toda, que ela estava sendo
torturada, estuprada e sofrendo toda sorte de humilhação. Sim, ele tinha visto
exatamente o que tinha acontecido com ela naquela noite e que ao ter um pacto
não devia abandoná-la quando estivesse em necessidade.
Não comoveu apenas a Ava que já sentia que o chumbo estava esvaindo com a
vida da amiga, mas Varg que também sentira tudo aquilo, não se sentiu
envergonhado em deixar as lágrimas de seu ódio escorrerem pelo rosto. Ava
percebendo que aquilo de certa forma estava dividindo o grupo, disse:
— Ouvimos a Kattla, Taber tem o poder da telecinese, o que apenas ela ou o
irmão dela são pários para lidar. Contudo, enrolada em chumbo como está, ela
não tem poder algum e sua vida está se esvaindo e nenhum de nós aqui temos
qualquer chance com Taber seja onde ele estiver com ela. Bjorn pode controlar o
cérebro dele e com isso podemos resgatar Kattla ainda com vida.
Olharam para ela como se precisassem pensar.
— Não é fácil, ele está numa prisão de segurança máxima, vamos criar uma
tática no carro, Varg leve o tablet grande para ficar em contato com T5KS que vai
nos ajudar com isso e vamos discutindo como faremos no carro a invasão.
— Eu não posso ir com vocês, falharia com o meu pacto, falharia com ela. - Disse
Olyn.
— Falharia comigo. - Disse Varg.
— Sei que só a ideia de perder alguém que você ama é doloroso para você, meu
Kin, mas sem você não vamos conseguir resgatar o Bjorn e sem ele não
conseguimos resgatar Kattla e eu perderei tudo o que resta da minha família.
— Uniformes, munições, tablet e carros prontos. Assim como suprimentos. -
Disse T5KS.
Os ânimos não eram dos melhores para ninguém, mas Adara era Kin de Olyn, e o
bode tinha feito pacto com Varg e também sabia que sozinho não poderia fazer
alguma coisa. Não, isso não o agradava em nada, não quando se tratava dela, não
com sua lua morrendo em alguma cela qualquer.
Logo abandonaram a base, a viagem levaria algumas horas, mas o que os daria
tempo suficiente para pensar em como invadiriam a prisão, enquanto Ava dirigia,
Varg sentado ao lado, olhava atentamente a planta da prisão que T5KS mostrava
para ele.
— Pelo que vejo aqui, a planta foi alterada algumas vezes pela quantidade
absurda de túneis que tentaram cavar. Por mais que tenhamos a força de Olyn,
os túneis foram preenchidos completamente por ferro, concreto e outros
materiais e levaria horas até conseguir arrombar um desse.
Ele continuou olhando e continuou:
— Os muros são altos e há caminhos e cabines de vigia neles. Ou seja, devemos
esperar bastante policiais protegendo essas muralhas.
— Nytt poderia acabar com alguns. - Disse Ava.
— Não com todos, as muralhas formam um retângulo e eles podem transitar de
um lado para o outro livremente.
— Explodir o muro?
— Muitas bombas e um caminhão com algumas toneladas, seria possível. - E
tornando-se para o tablet, ele disse: — Conseguimos um caminhão extremamente
pesado para derrubar o muro, T5KS?
— Dê-me alguns minutos, capitão substituto Varg e vejo se consigo um para
você.
— Obrigado. - E sem nem olhar para Ava, disse: — Acha que vamos recuperá-la
viva?
— Eu espero que sim, espero que sim. - Disse ela, dando um tapinha de leve na
mão dele.
— Você sabe precisamente onde ele está? Pois, não temos como ficar rondando
prisão até você senti-lo. A ideia é pegarmos Olyn e irmos direto para a cela onde
ele está e ao que o bode quebrar a parede, o tiramos de lá e saíamos da prisão o
mais rápido possível.
— Varg, eu não sou Kattla, mas farei o melhor que posso.
Após ser informado por T5KS de que conseguiriam o caminhão e a localização
precisa dele, Varg continuou estudando seu plano sem conversar com ninguém.
Os Viktis tinham velocidade suficiente para fugir, mas os Ljots não. Roubar um
ou dois carros da polícia era uma opção, mas também os tornavam visados.
Esconder os jipes na localização do caminhão e depois seguir com os carros da
polícia até os carros deles era uma boa opção, mas depois disso não sabia mais o
que deveria fazer, se tinha que retornar para a base e esperar, curar Bjorn se
esse precisasse de algum tipo de cura, sair correndo direto para onde sua amada
estava.
Havia sentimentos ali, sentimentos conflitantes, por ele teria concordado com
Olyn e tentado resgatar sem o irmão. Ava estava com o cajado de Kattla, o que a
deixava mais poderosa do que realmente era, mas pela primeira vez na vida seus
sentimentos pareciam ofuscar sua inteligência.
Seguiram para o ponto onde os caminhões estavam, pois embora Varg tivesse
pedido um, T5KS solicitou dois, tinha também pequena tropa do exército de
Uada, que saudou Varg com uma continência. Um homem de cabelos negros,
com parte da cabeça raspada, deixando um moicano a vista, bateu continência
para ele, dizendo:
— Sou o tenente Orestes e estou a sua disposição. Fomos enviados para ajudá-
los para libertar o Coronel Bjorn. Qual o plano, Senhor?
Varg explicou todo o plano que ele tinha traçado no carro, bananas explosivas e
bombas no muro, com o auxílio do caminhão para derrubarem o muro por
completo, em seguida os Ljots e Viktis entram em ação para resgatá-lo e deixarem
o lugar.
— Então, fica claro nossa função aqui. - Disse Orestes. — Vamos dar cobertura.
Vou deixar uma pequena tropa exclusiva para entregar-lhes os carros para a fuga
e damos cobertura para vocês do começo até o final da operação.
— Era exatamente disso que eu estava precisando, Tenente, mas não estava
sabendo de onde tiraria todas essas forças para nos ajudar.
Com um sorriso no rosto, ele se aproximou de Varg e disse no ouvido dele:
— Kattla diz que é capitã, mas na verdade ela é Marechal e tem muita gente
interessada não apenas no resgate dela como também no do irmão. Estamos com
vocês e não os deixaremos sozinhos. Vou enviar alguns soldados a paisana para
colocar as bombas nos muros, não será muito fácil por ser uma prisão de
segurança máxima, mas já temos alguns atiradores de elite a postos para facilitar
o trabalho.
Orestes entregou rádios de comunicação para todos os presentes, dando algumas
coordenadas em seguida para a tropa dele. Orestes retirou dos Viktis e Ljots
qualquer obrigação com o muro e a destruição dele. O que fez com a que Varg,
Ava e os outros se juntassem novamente para renovar o plano.
Nytt fora a única que não gostara, pois que teria que seguir com eles, ao invés de
se divertir como uma atiradora de elite, o que logo a convenceu que poderia ser
divertido, já que ela poderia lhes dar cobertura assim como a tropa Orestes. De
acordo com Orestes os Viktis e Ljots entrariam logo atrás do caminhão com um
jipe maior.
37 – O resgate

Os Viktis e Ljots ficaram distantes enquanto Orestes destruía o muro e o tiroteio


tornava o lugar ainda muito perigoso. Os mortos caíam de ambos os lados e ao
que Varg percebeu que toda a muralha ficou sem qualquer policial em pé,
questionou quantos atiradores de elite estavam presentes na tropa de Orestes.
Quando Orestes fez o sinal, dando um tiro para cima como previamente
combinando, rapidamente Varg e Adara transformaram-se em híbridos e
correram carregando Victor e Ava com eles.
Atrás do muro estava o que eles esperavam, o complexo presidiário, com quatro
prédios altos. Ava logo se viu muito acuada, pois mesmo com o cajado de Kattla,
sua magia era bem mais fraca e encontrar Bjorn ali parecia quase que uma tarefa
impossível. Não conseguia sentir a energia dele.
Com medo de não conseguiria concluir sua tarefa, ela pediu para Adara correr
com ela por todo lugar enquanto rastreava todos os tipos de energia que vinham
daqueles prédios vezes se contas. Em alguns momentos, tinham que se
preocupar com tiroteios aleatórios.
— Estão chamando reforços, não temos muito tempo. - Ambas ouviram no rádio.
Adara subia nos prédios com ela, descia, ia para outro, contornava, a levava para
todos os cantos na maior velocidade lupina que tinha. Mas, Ava não sentia
absolutamente nada e em desespero gritou, tentando expelir a raiva que sentia de
si mesma e a frustração.
Assim que um novo tiroteio começou, Varg correu para se proteger com Victor e
num dado momento, olhou para o tablet que carregava na bolsa. Passou
novamente toda a planta do lugar e num lampejo pegou o rádio e disse para Ava:
— Procure-o num dos túneis. Eles não o deixariam fácil para ser encontrado.
— Mas, como? - Perguntou Ava.
Ouvindo o que se passava no rádio, Nytt se aproximou de um dos prédios, se
transformou no cachorrinho que era e começou a cavar. Não demorou muito até
Adara e Varg tomarem a forma de lobos e cavarem também. Logo Olyn se uniu
também e todos continuaram cavando.
Não tinham tempo. Orestes estava solicitando mais homens, mas não se sabia em
quanto tempo eles chegariam, estava em Uglain afinal. Assim que cavaram um
pouco, Ava colocou o cajado na terra e disse:
— Ele não está aqui.
— Então vamos nos separar e cavarmos cada um nos três prédios restantes e
com um pouco de profundidade de terra pode ser que ela o encontre. - Disse Luí.
Concordaram e Luí os deixou para pedir cobertura para Orestes enquanto eles
cavavam o lugar para Ava inserir o cajado numa profundidade suficiente para
saber se Bjorn estava lá ou não. Foi então, que no chão onde Adara estava
cavando que Ava sentiu a energia de Bjorn.
Como o tirariam dali, questionavam-se, enquanto protegiam-se de um novo
tiroteio. Varg aproximando-se de Ava, disse:
— Você tem o cajado de uma necromante, está ligada com o submundo e é a
única entre nós que poderia tirar Bjorn daí debaixo. Não temos tempo para cavar,
não sei se a tropa de Orestes vai aguentar muito para para nos dar cobertura e se
você não fizer nada, tudo o que fizemos até agora foi em vão.
— Eu não sei se posso fazer isso. Tem paredes, concreto, tem tudo entre eu e a
terra.
— Levanta o prédio todo! - Disse Olyn.
— Eu não sou Kattla para fazer algo grande como isso! - Ela berrou.
— De fato, mas você precisa confiar na sua própria magia, se não fizer isso
ambos vão morrer e terá que lidar com a sua inutilidade, porque nem tentar você
está tentando. - Disse Adara.
Ava começou a falar numa língua que ninguém entendia e falou por alguns
minutos, a única coisa que era entendível era o nome de Bjorn. Outros tiroteios e
Nytt tomou a postura para proteger Ava de quem quer que fosse que atirasse
nela. Os outros Viktis juntaram-se a Orestes para destruir alguns homens que
estavam atacando.
Quando Ava terminou absolutamente nada aconteceu. Todos já se sentiam
desesperados com aquela situação, mas ela respirou fundo, com os olhos cheios
de lágrimas, disse:
— Mantus, você não me deu tudo, sabia que eu não era merecedora de tudo, mas
eu te imploro, dê poder ao meu encantamento, eu preciso salvar sua filha mais
querida, aquela que eu também amo de todo o meu coração. Por favor, dê poder
ao meu encantamento.
Ela colocou a cabeça no chão e se levantou novamente, pronunciando o mesmo
encantamento mais uma vez. Num dado momento, Olyn percebeu que alguns
metros de onde Ava estava, começou a se formar uma estranha escada,
quebrando o concreto, mas não havia ninguém lá quebrado nada.
Correu para lá e o percebendo, Adara fez o mesmo. Os dois desceram a escada,
Ava sequer tinha percebido, pois que estava muito concentrada em seu ritual. Ao
final da escada que começou de concreto e foi se misturando com terra, os dois
seguiram por um corredor.
O corredor era todo de terra batida, não parecia o trabalho de um homem,
continuaram correndo até que encontrarem uma parede que os separavam de
alguma coisa. Adara não teve dúvida de que se tratava do primo. Olyn
rapidamente quebrou a parede com sua força descomunal.
Bjorn estava deitado no chão, Adara sabia que era ele, pois o tinha visto no
computado de T5KS e tornando-se híbrida o tomou no colo, estava magro, fraco e
sujo, como se não fosse alimentado por muitos dias. Olyn avisou a todos pelo
rádio que estavam com Bjorn e Orestes deixou os carros prontos para eles
fugirem.
Ava nem pôde se conter quando viu Bjorn e começou a chorar ao perceber que
sua magia dera certo. Sem demorar muito entraram no carro e partiram,
deixando que Victor tomasse Bjorn desacordado no colo para fazer as curas que
pareciam necessárias naquele momento.
Adara o olhava, era não apenas um Vikti, ao contrário da irmã toda a sua
aparência lembrava-se da aparência dos Norgians, embora usava os dois lados da
cabeça raspada, com uma trança enorme que lhe roçava sobre as coxas. Kattla
era completamente Uadani em sua aparência, mas ele não.
Sentiu-se estranha, mas não conseguia parar de olhá-lo, Victor retirava os trapos
que o cobriam para ver como estava o estado de seu corpo e ele estava muito
magro e extenuado. Sua pele tinha perdido o colorido, os lábios rachados e
descoloridos demonstrativa um claro estado de desidratação e desnutrição.
— Não sei como ele está vivo. - Disse Victor finalmente. — A única coisa que sinto
é que há algo dentro dele que o está envenenando aos poucos e precisamos
chegar o mais rápido à base para que eu possa fazer algo de mais concreto. Por
enquanto vou hidratá-lo e aumentar sua energia vital o máximo que conseguir.
— Você é um Ljot curandeiro ou um médico? - Perguntou Luí.
— Os dois. Só quero confirmar o que acho que fizeram. Percebem que as veias de
Bjorn estão estranhamente escuras, como se riscadas numa mistura estranha de
azul e preto?
Os que estavam mais próximos olharam e viram o que Victor apontava,
balançando a cabeça em seguida em concordância.
— Ou é veneno ou é prata, agindo lentamente como um alérgico que é exposto a
uma química, no começo o corpo vai lutando, mas com o tempo essa luta vai se
tornando cada vez mais difícil e ocorre o choque anafilático. Então, acho que ele
vai suportar a viagem se eu continuar aumentando a força vital e a imunidade
dele.
Aquilo soou como um alívio para Adara, era bom saber que poderia conversar
com ele na base quando se recuperasse, embora também temia essa conversa
mais do que qualquer outra coisa que poderia passar na cabeça dela naquele
momento.
Katlla lhe chegou lúcida, escura como era, com aquela cara Uadani inegável e até
se questionava por um segundo, porque pensava que por ele ser mais parecido
com ela, seria mais fácil lidar com ele do que com a irmã? Não encontrava
respostas para aquelas perguntas. Talvez ele a odiasse e ao seu pai e a todo seus
ancestrais.
O pouco tempo que estava em Uada percebeu que embora eles tinham uma
combinação esquisita de magia, tradição, tecnologia e ciência, eles também
tinham seus preconceitos, não eram perfeitos, tinham normas, regras e
sentimentos estranhos.
Teria que ao menos esperar que a tia morta tivesse passado alguma coisa boa
sobre Norga para os dois. Kattla já a tinha perdoado, mas ali o olhando, sentia
receio, porque seu poder ancestral, o poder de sua linhagem, dependia de Bjorn e
de ninguém mais.
38 – De volta à vida

Victor percebendo que o estado de Bjorn não estava dos melhores, pediu para que
eles dirigissem na maior velocidade possível, especialmente para não serem pegos
de surpresa por nada e nem ninguém no território de Uglain. Ainda que atalhos
foram usados para adentrarem Uada.
Ao chegarem na base, o que foi um alívio pela viagem ter corrido bem, Victor
correu com Bjorn pediu uma sala de cirurgia para T5KS. Adara sentiu uma forma
forte vontade de acompanhar e deu alguns passos para dentro da sala. Victor o
colocou sobre a maca e solicitou que T5KS purificasse o corpo dele. Virando-se
para Adara, disse:
— Sei que o que te preocupa e agora que ele está aqui não há outra forma dele se
levantar dessa maca senão vivo, quando acabar eu te chamo e deixo você ficar
aqui com ele até ele acordar porque precisará de observação de qualquer forma.
— Obrigada por entender meu ponto, Victor.
Ela deixou a sala e foi cercada pelos outros que estavam curiosos sobre o que
estava acontecendo lá dentro, ela não soube dizer, não sabia o que afligia Victor
ou Bjorn, mas disse que Victor manteria todos informados. Jogaram-se no sofá,
como se precisassem relaxar ao menos um pouco.
Não, Varg, esse estava inquieto, porque percebeu a pele arroxeada e estranha do
irmão de Kattla e já viu um amigo morrer assim por bala de prata e se ele era a
única esperança que tinham naquele momento, temia que já fosse muito tarde.
Sentia em cada poro da própria pele o que acontecia com Kattla e aquilo também
não o agradava em nada.
Tentava se mostrar forte como sempre fizera, pediu uma bebida para T5KS e foi
prontamente atendido, mas não quis dizer para ninguém o que se passava em
sua cabeça, sabia que talvez de todos ali, o único que devia sentir algo parecido
com ele era Olyn. Só que também sabia que Olyn estava a um passo de perder a
cabeça e tentar resolver tudo por si mesmo.
Tinha que confiar na capacidade de liderança de Adara, já que foi o posto que
Kattla dera a ela com relação aos Viktis, mas ela conseguiria segurar Olyn se o
bode surtasse? Alguém ali teria essa capacidade? Esperar o matava, beber o
relaxava e assim passou grande parte do tempo.
Como Victor e até mesmo Varg esperavam, o corpo de Bjorn estava repleto de
balas de pratas e como a cicatrização dos Viktis era muito rápida o
envenenamento era algo comum. Taber não precisou muito além de alguns tiros e
esperar a cicatrização, embora Victor deixou claro que prata líquida foi injetada
nele, o que tornou o procedimento mais difícil, mas que agora precisavam apenas
ele acordar e se fortalecer. E fez um sinal com a cabeça para Adara, avisando que
poderia entrar.
Bjorn estava um pouco mais corado e sua beleza ficou aparente, não parecia
muito com nenhum parente de Adara, mas era um Vikti completo, sequer era
possível que lembrava a irmã tão escura e tão Uadani. Tocou a mão dele num
impulso e logo retirou, sem entender ao certo o que estava fazendo.
A cabeça estava a mil, o que diria para ele quando acordasse? Essas coisas não
passavam de passar pela cabeça dela nem por um momento, sequer sabia por
onde começar. Na verdade nem sabia como ele a encararia. E com a cabeça
lotada de perguntas sem respostas, acabou dormindo na cadeira.
— Quem é você? - Ela acordou com a pergunta dele rebombando no quarto.
— Adara Kari. - Ela respondeu, esfregando as mãos nos olhos. — Estive ontem
com a equipe que te resgatou.
— Então, minha irmã decidiu trazer você com ela? Juro que ela não faria isso.
— Penso que não se tantas coisas não tivessem acontecido.
— Você lembra um pouco minha mãe.
— Acho que fico feliz que você não me lembre ninguém.
— Ainda não estou bem o suficiente.
— Quer que eu chame o Victor?
— Ele está aqui?
— Sim, é ele quem está cuidando de você.
— Ficarei bem logo então… Por favor, o chame pra mim.
Logo Adara entrou no quarto seguido de Victor que começou a examinar Bjorn,
tirou outro raio-x para ter certeza de que não havia mais nenhum resquício de
prata em seu corpo. Percebeu apenas que ele precisaria de um pouco mais de
meditação, nutrição e hidratação. O que logo fora resolvido pelos drones.
— Onde está minha irmã? - Bjorn perguntou.
Adara e Victor entreolharam-se, ficaram em silêncio por alguns instantes até que
Victor decidiu falar:
— Taber está com ela. E ele descobriu a capacidade do chumbo sobre ela.
— O que? - Bjorn quase levantou-se num salto, mas Victor o segurou.
— Você está me dizendo que eu tenho que ficar aqui tomando remedinho,
enquanto aquele psicopata estava matando minha irmã em algum lugar por aí?
Não mesmo.
— Precisamos que você esteja forte, Bjorn, sabe disso, é o único que pode com
ele.
— Mas, quando mais esperarmos, menos chance de salvá-la teremos.
— Deixe o soro correr com os medicamentos, vou trazer algo para te alimentar e
após alguns exames vemos se você está pronto para salvar a sua irmã ou não.
Após perceber que Bjorn cumpriria ao menos por hora a ordem dele, deixou
Adara com o loiro novamente, fazendo sinais para não deixar que ele se
levantasse e ao sair deu o mesmo comando a T5KS, o que fez com que a porta se
trancasse automaticamente.
— Já que não posso fazer muito no momento, talvez seja coerente conversarmos
um pouco. O que acha? - Ele perguntou para ela.
— Acho que fiquei aqui para fazer exatamente isso, mas nunca soube exatamente
como começar uma conversa com você.
— Uadanis são difíceis, admito. - Sorriu. — Especialmente quando a primeira que
se conhece é minha irmã. A Velha Sábia me disse que a levaria para você, sempre
estivemos de acordo com isso.
— Então, vocês já sabiam que tudo o que aconteceu, aconteceria de fato?
— Não sabíamos de nada, só queríamos esconder Kattla. Mas, a Velha achou que
seria melhor que ela ficasse com você. Coisas de família, talvez.
— Você parece saber muito mais do que sabe.
— Sabemos que seu pai matou minha mãe, então não precisamos brincar de que
não estamos falando de algo que é claro para ambos. Sou um Vikti, Adara, ao
contrário da minha irmã, sou loiro como vocês, sou mais Norgian do que Uadani,
como dizia meu pai. Minha mãe me ensinou muita coisa, porque aqui só ela
poderia me ensinar dessas coisas. Minha irmã foi entregue ao submundo e todo
mundo acreditou que ela jamais retornaria, então minha mãe me ensinou tudo o
que pode. Você quer o meu perdão.
— E você vai me dar?
— Não sei, não conversei com minha mãe ainda.
— E como conversaria com ela?
— Não conheceu minha irmã?
— Foi assim que conversei com a sua mãe e ela disse que eu precisava receber o
perdão de ambos os filhos. Kattla me deu o dela, pois disse que não poderia
acreditar que o filho tem culpa pelos erros dos pais.
— Como já te disse, Adara, sou mais Norgian que Uadani em comparação com a
minha irmã. Mais confuso, talvez até mais sentimental, quem pode dizer?
Adara o encarou por um momento, mas era como se seus pensamentos tivessem
desaparecido completamente de sua mente. Infelizmente parecia que ele seria
ainda mais duro que Kattla pela forte ligação que devia ter com a mãe.
39 – Nos braços de Mantus

Todos começaram a perceber um reboliço, que logo os Viktis notaram o que


estava acontecendo. Olyn se debatia com seus fortes chifres numa parede à
outra, ele urrava e gritava ao mesmo tempo:
— Ela está morrendo.
Varg também muito inquieto começou dar vários comandos para T5KS para
armas, carros e o que mais fosse necessário. Ava olhava de forma passiva, o que
irritava de certa forma ainda mais Olyn. Bjorn deixou o quarto seguido de Victor,
que rapidamente os apresentou para ele.
Todos se olharam como se houvesse certa tensão entre eles, Bjorn desviou o olhar
para Ava e observou o cajado da irmã na mão dela. De modo estranho, ela baixou
a cabeça para ele, como se estivesse sob sua submissão.
— Vocês podem ficar aqui se quiser, eu sei que posso encontrá-la e será isso que
vou fazer. Não posso mais esperar até que aquele insano a mate. Sinto a vida dela
se esvaindo cada vez mais rápido e eu não posso mais perder ninguém.
De fato não demoraram, não era apenas Varg e Olyn que sentiam, mas também
Bjorn, que não estava recuperado completamente, mas estava pronto para salvar
a irmã custe o que custasse. Toda a tensão caiu sobre Ava que tinha o cajado e
que tinha que encontrá-la.
Ela sentia a mão tremer, enquanto Nytt segurava a apoiando entre suas duas
mãos. Não era apenas Bjorn que tinha uma grande função ali, ela teria que
encontrá-la. Contudo, Kattla sempre lhe fora mais fácil, mas não com tão pouca
força vital.
Todos estavam em silêncio e aquilo enervava a Varg que parecia precisar falar ou
se mover. Seus pensamentos eram bagunçados, seus sentimentos faziam-no com
que pensasse em tantas vezes que poderia ter ficado com ela e que agora estava
ali encoberto por uma agonia, sem saber se a veria novamente.
— Ele não a levou muito adiante daquela prisão que invadimos. - Ava disse.
— Você tem certeza? - Perguntou Varg.
— É bem fraco a energia que eu sinto dela, mas ela estava no solo, nos braços de
Mantus.
— O que você quer dizer com isso? - Perguntou Olyn, afobado.
— Que a vida dela está por um fio. Talvez estar num subsolo dê um pouco de
energia para ela, mas não dá para saber o quanto de chumbo ele está mantendo
sobre ela também.
— Nem planejamos nada. - Disse Luí.
— Ava nos fará entrar nesse lugar nem que isso custe a vida dela. - Disse Bjorn.
— Por que está falando assim com ela? - Perguntou Nytt, o encarando.
— Porque Ava deu a informação do chumbo para Taber.
— Não é justo você me culpar por isso eternamente, Bjorn, eu não sabia que ele
era um traidor.
— Você disse os segredos de seu próprio deus e é por isso que ele te trata com
escárnio.
— Não precisa ser tão duro, Bjorn. - Disse Victor.
— Não estou sendo duro, apenas honesto. Como alguém conta sua maior
fraqueza para alguém? Trágico.
— Aqui! Ela está aqui!!
Todos olharam para o local e perceberam que se tratava de um pântano de águas
rasas e bastante bambus. Nenhum trecho demonstrava a entrada de algo ou uma
porta. Bjorn se questionava porque um pântano, mas assim como os outros,
saíram caminhando procurando por alguma entrada.
Ava se esforçava o máximo que ela podia para sentir de onde exatamente vinha a
energia de Kattla, mas ela mesma não conseguia ter sequer uma visão de onde
poderia ser a entrada do lugar. Sentia-se magoada por Bjorn e ao mesmo tempo
sabia que ele estava certo, precisava ser mais eficiente.
Luí se transformou numa águia e alçou voo, também na esperança de encontrar
a prisão onde Kattla estava enclausurada. Era o maldito esconderijo perfeito para
uma prisão, pensava Luí enquanto voava, pois o solo aguado escondia muitas
coisas.
Varg, Adara e Nytt transforam-se e colocaram-se para farejar, contudo Adara
parou por um momento quando viu Bjorn transformando-se num guepardo e o
pensamento que lhe escapou era de que ele era a coisa mais linda que tinha visto
naquele momento.
— Não é aqui. - Disse Olyn. — A entrada está para cima, pouco acima do
pântano.
— Como sabe disso? - Perguntou Varg.
— Ela foi guiada por uma escada. Há certamente alguma porta em algum lugar
aqui, por onde ela entrou.
Farejavam, voavam, caçavam, sequer souberam dizer por quanto tempo fizeram
atrás de uma porta no chão, ou coberta por mato, ou dentro de uma caverna.
Bjorn estava ficando completamente impaciente, quando gritou:
— Ava, abra essa maldita porta ou eu acabarei com você agora!
Ava tremia tanto que era visível pelo cajado que sustentava. Começou a lançar
um encantamento. Com educação Bjorn pediu para Luí continuar voando na
esperança de ver onde o portal estava, o que ele fez de bom grado. Depois de um
longo tempo e algumas repetições ritualísticas, Luí apareceu.
Os guiou para a porta que se abriu numa parte escondida da floresta,
especialmente por arbustos e desceram uma escada de pedra. O lugar fedia o que
repugnava a todos. Mal terminaram de descer as escadas, iluminando com as
lanternas e ouviram a voz de Taber:
— Parece que o gatinho veio mesmo atrás da irmã. Uma pena que seja tarde.
Varg e Bjorn se lançaram sincronizados contra ele, enquanto que Ladarius,
olhando para Olyn que quebrava a grade de chumbo que a prendia, disse:
— Tire todo o chumbo dela e de perto dela.
As lágrimas banharam o rosto de Olyn quando viu que ela apenas tinha pele no
rosto e mantinha o cabelo. O resto era apenas sua carne viva, temia machucá-la
mais do que já estava, mas com cuidado tirou peça por peça do chumbo.
Ladarius disse:
— Eu tentei manter a energia vital dela viva por todo este tempo, mas estuprada,
espancada e sem ser alimentada direito, isso foi tudo o que consegui, sinto muito.
Não poderia abandoná-la ali sem antes livrar-se de todos aqueles chumbos, do
contrário, teria seguido seu instinto e atacado Taber prontamente, tal era a raiva
que sentia dele e da situação que ela se encontrava.
Mesmo avançando com rapidez Bjorn e Varg foram parados no ar pela telecinese
de Taber. Para tentar tornar as coisas mais caóticas naquela masmorra
fedorenta, tão logo livrou Kattla dos chumbos, Olyn começou a abrir todas as
celas. Alguns fugiram prontamente, outros estavam enlouquecidos pela fome,
pelo poder controlado.
Entretanto, Taber era muito bom com o poder da mente e ninguém conseguia de
fato se aproximar dele. Nytt tentou atirar e nesse momento ele se focou nela, para
fazê-la com que apontasse a arma para a própria cabeça e se dar um tiro.
Desesperada com a situação, Ava lançou o cajado de Kattla acertando Taber na
cabeça.
Como ótimo felino, rapidamente tornou-se híbrido e tocando a mão na cabeça de
Taber começou a fazê-lo convulsionar. A cena era terrível, todo o corpo do algoz
se debatia com violência contra o chão. Era claro para todos que Bjorn estava
fora de si em sua raiva.
Tanto que logo começaram a sentir o cheio de carne e cabelo queimando. Bjorn
fritava a cabeça de Taber, como se tivesse a jogando dentro de uma enorme
panela de óleo ou numa fogueira. O cheiro insuportável misturou-se com a
podridão que permeava aquele lugar e quando o viu morto o soltou.
Ladarius lembrando-se de tudo que Kattla lhe disse, aproximou-se dos outros,
perguntando:
— Quem é Bjorn?
— Eu.
— Eu cuidei de Kattla enquanto estive aqui, não sou curandeiro, mas dei a ela
toda a força vital que eu podia, estava na cela ao lado e assisti todo seu
sofrimento e quando eles se afastavam, procurava mantê-la viva e ela pediu para
que eu te desse alguns recados.
— Que recados?
— Se ela morrer ela quer ser enterrada ao lado do túmulo da mãe dela que Adara
erigiu na floresta de Danê. Também quer que a cabeça de Taber seja servida num
banquete numa bandeja de prata.
— E minha irmã está morta? - Ele correu até ela e não pôde conter as lágrimas.
— Eu carregarei ela comigo e vou tentar curando suas feridas e a dor que deve
estar sentindo por estar com a carne exposta. Vamos para base e veremos o que
poderemos fazer lá.

40 – Submundo

Não que seus olhos não pudessem acreditar no que fitava, Bjorn vira muitos
mortos ao longo de sua vida, mas naquela maca branca, coberta por um lençol
branco estava sua irmã, com seu belo e lívido rosto descoberto, os olhos que ele
mesmo acabara de fechar e o peito sem se movimentar.
Adara, Ava e Victor estavam ao redor dele em silêncio, enquanto ele deixava
escorrer lágrimas silentes sobre o rosto desconsolado. Quando percebera que a
irmã fora capaz de colocar alguns Viktis para lutar quando ele mesmo foi
resgatado, encheu-se de esperança para vencer o império. O que tinha agora?
— Por que, Mantus? Por que, Mantus? - Repetiu para si mesmo.
— Talvez a história não acabou ainda. - Disse Adara, sem entender porque
dissera aquilo.
Bjorn a olhou de soslaio.
— Claro que não terminou, não acabamos com o Império ainda. Mas, agora tenho
que fazer um enorme desvio com o corpo da minha irmã, aonde ela não pertence
para retornar e ver o que será daqui pra frente. Um enterro sem grandes pompas
porque Norga é território do Império. Acho que você pode entender meu ponto,
não?
— Eu não tenho culpa que ela morreu. - Berrou Adara, se retirando.
— Eu posso parecer louca, mas é como que eu sentisse que Kattla tivesse
gargalhando da gente. - Disse Ava.
— Contudo ela não pediria para ser enterrada em Norga por nada e se isso tem
que acontecer, acho melhor sairmos daqui o mais rápido possível porque a
viagem a carro é realmente longa. - Disse Victor.
E após preparo para a viagem deixaram a base T4KS em direção à Norga e seu
vilarejo nevoento. Apenas um carro era grande o suficiente para comportar o
caixão de Kattla e esse era dirigido por Bjorn, Adara e Olyn, já que Bjorn se
recusava parar em hotéis e preferia os acampamentos quando precisavam muito
dormir.
Todavia, para Adara o silêncio do irmão de Kattla era incômodo e quando falava,
trocava apenas algumas palavras com Olyn, que já sabia que tivera um caso ou
algo do tipo com a irmã. Não precisava muito, o sofrimento do bode estava
estampado em seu rosto.
Será que ela não parecia sofrer o suficiente com tudo aquilo? Será que seu
sofrimento tinha apenas relação com uma sensação de que Bjorn poderia pensar
que tudo o que ela precisava era recuperar seu poder? Entretanto, procurava não
pensar muito que ele poderia pensar isso dela.
Naquela terceira noite de viagem decidiram acampar para realmente descansarem
um pouco. Bjorn se transformou num guepardo e caçou o suficiente para um
banquete. Não era tão calado quanto a irmã, mas era claro que sua dor não o
deixava falar muito.
Enquanto ainda cozinhavam a carne, Bjorn sentou-se ao lado de Ladarius e
perguntou:
— Diga exatamente o que minha irmã te disse.
— Os homens amam a ilusão da vida e odeiam a verdade da morte. É provável que
eu morra aqui, meu amigo. Mas, quero uma festa ainda maior para a morte. E por
falar nisso, se alguém vier me buscar e eu estiver morta, diga que quero ser
enterrada ao lado do túmulo da minha mãe na Floresta de Danê. Pode me prometer
isso?
— Aí eu disse: — Eu sei que ficar alongando sua energia vital aumenta seu
sofrimento. Mas, quero manter a esperança.
— Prometa, por favor. - Ela implorou.
— Prometo. Sim, isso foi tudo o que saiu da minha boca. Então ela brincou com
algo, dizendo:
— A base do meu sofrimento. – Ela riu. — A morte é algo engraçado, uns a desejam
como um homem excitado deseja uma mulher, outros a temem porque não sabem o
que vai acontecer depois disso; outros dizem sobre mundos e deuses, paraísos e
punições.
— E o que Mantus diz sobre a morte? – Eu não queria que ela se fosse, sabe? E ela
sorriu me dizendo:
— Ela é tão maleável quanto a própria vida, se você tiver poder suficiente para
isso.
Por um segundo Bjorn deixou um rápido sorriso escapar-lhe dos lábios. Claro
que pareceu louco, já que a irmã estava morta há três dias dentro do carro, mas
aquilo pareceu ressoar dentro dele de uma forma muito estranha. Era claro que
não queria que a irmã se tornasse um zumbi, tampouco ele era um Ljot para lidar
com aquilo.
— Sua face mudou abrupta! - Observou Ladarius.
— Acho que só preciso de vinho. - Disse Bjorn, levantando-se para se servir.
Nytt olhava ao redor e via que entre os arbustos havia milhares de olhos, como se
fossem de animais, mas de várias cores distintas, apontou alguns para Ava, que
também se viu cercada, mas acalmando a amiga, disse:
— É por causa do corpo de Kattla, não se assuste, não farão nada contra nós.
— Mas, por que estão aqui?
— Não sei, talvez estejam entregando alguma mensagem do submundo para
alguém.
— Não devia ser para você?
— Teoricamente sim, mas não é pra mim. Talvez estejam apenas cuidando da
gente. Talvez estejam vigiando o corpo da Kattla apenas também. Não dá pra
saber. Não precisa ter medo, estou aqui com você. - Ava passou o braço no ombro
de Nytt, beijando-lhe suavemente os lábios.
— Dizemos em Uada que esses são os olhos do submundo quando eles querem
ser vistos ou quando querem ensinar. Eu e Kattla cansamos de vê-los na caverna
onde ficamos como sacrifício para Mantus. Eles dizem o que fazer, o que é
engraçado por serem olhos e não boca. O silêncio é sagrado. Por isso nem devia
estar te explicando isso, mas como percebo que está muito assustada, achei
melhor.
— Você se preocupa muito comigo.
— Eu gosto de você, Nytt, por mais que às vezes você age como uma tola, eu
gosto muito de você.
— Quer falar sobre isso?
— Não, quero respeitar o silêncio que Mantus está pedindo.

41 – O enterro.

— Não muito rasa e não muito funda. - Disse Ava, enquanto observava Bjorn e
Olyn cavando a cova de Kattla, ao lado da cova que Adara fez para a mãe dela.
Varg não conseguia sequer se mexer, quanto mais acreditar que aquilo estava
acontecendo. Naquele momento só podia sentir com tamanha intensidade o amor
que sentia por ela e que deixou sua cultura levar para dentro daquela cova de
terra escura.
Nenhuma lágrima vertia de seus olhos, era incapaz de chorar, mas o uísque
molhava sua garganta com muita frequência, fazia-lhe engolir as lágrimas que
insistiam não querer deixar seu âmago. Sentiu-se um idiota por não conseguir
levar aquilo junto de Olyn.
Deixou a garrafa sobre o chão e tomando a pá de Bjorn, deu a ele um descanso,
cavando junto de Olyn dessa vez, como sempre deveria ter sido. Sentia remorso e
sentir aquilo lhe deixava numa posição vulnerável e que ele considerava patética,
ele escolheu afinal.
O nevoeiro comum daquela região pareceu dar uma trégua e Bjorn viu a Velha
Sabia caminhando pela floresta, como que se ela também quisesse assistir aquilo,
abandonou a garrafa e a seguiu a toda velocidade em sua forma felina. Já
próximo a ela, parou, a encarando. Perguntou:
— O que quer dizer tudo isso? Por que levou toda a minha família embora?
— Adara é sua família.
— Não, ela não é minha família. Aquele buraco no chão é para a minha família.
— Você ouviu Mantus aquela noite, Bjorn, não preciso repetir o que lhe foi dito.
Às vezes é uma questão de propósito e só isso que importa. Um mal menor por
um bem maior. Não tinha em mente que seria tão doloroso, mas o que eu tinha
em mente está acontecendo agora e você sabe o que fazer.
— Minha irmã nunca foi um mal menor, Velha.
— Eu nunca disse isso. Mas, o que os Viktis sabem de sacrifício? Dos grandes
sacrifícios?
— A senhora já sabia de tudo isso?
— Não. Não sabia de muitas coisas, não sabia dos sentimentos que despertariam
nas pessoas, não sabiam que eles se submeteriam ao comando de Kattla.
Ninguém pode saber de tudo, mesmo uma velha cretina como eu. Talvez seja
melhor que fique aqui com Adara.
— Ficarei por aqui um tempo, mas prefiro minha própria casa. Não quero ouvir
novamente essa sua conversa sobre família e sobre como somos importantes uns
para os outros em momentos tão tenebrosos. E assim que enterrá-la, tenho que
fazer uma festa ainda maior para a morte.
— Sua tristeza me comove, Bjorn, mas tudo o que eu tenho para te dizer é que
não ficará assim por muito tempo. Há outros Ljots entregues em sacrifícios que
você e sua irmã conseguiram proteger.
— Eu tenho que destruir o Império, Velha. Jamais desonraria sua sabedoria, mas
se ele não cair, não sei por quanto tempo lutaremos. Não posso dizer se todos
esses anos tirarão a coragem de nossos homens, se a morte de minha irmã já não
foi o suficiente para fazer isso.
— Resgate Norga, Bjorn. Você é um Vikti como eles. Resgate a magia nos
corações dos homens. Mostre o que Uada consegue fazer, mostre que Uada
convive com a magia e com a tecnologia.
— Por que você tem que sempre pedir tanto pra mim? Já não bastou matar
minha irmã com o seu pedido?
— Não bastou fazer tudo o que você fez em prol de Traesia e Uada pelo meu
pedido?
— A custa da vida da minha irmã?
— Você sabia que ela estava pronta para fazer tudo para salvar os Ljots, grandes
ou pequenos, e, com a sua ajuda ela conseguiu isso.
A velha desapareceu de súbito, deixando apenas seu manto negro no chão, como
sempre fazia quando ia embora. Bjorn voltou para onde estava a cova, já tinham
parado de cavar por ordem de Ava, que disse estar num tamanho perfeito. Bjorn
foi até o carro e trouxe o caixão.
Ao abri-lo todos levaram as mãos às narinas porque o cheiro era fétido pela longa
viagem. Ele não se negou chorar, enquanto colocava a irmã sobre a terra em
posição de feto. A ajeitou com todo esmero e como se cantasse uma canção,
disse:
“Para Terra retornará como veio
Com as pernas dobradas feito feto
Para mãe primeva que deu teu corpo
E para mãe destruidora que também o leva.

Dela toda sorte de alegrias e bençãos podem vir


Essas que agora nos fazem chorar, outras rir.
Dou-lhe à Terra novamente como semente,
E você hei de florescer em sua hora novamente.”

Ava mal se continha de tanto que chorava, sabia que o correto seria ela ficar com
o cajado de Kattla e tomar-lhe o lugar, mas não queria aquilo, sequer sentia que
Mantus gostasse dela e sentia culpa por deixar a amiga morrer por deixar
escapar um segredo de seu deus.
Com cuidado para não pisar na amiga, ela entrou na cova e com dificuldade fez
com que Kattla segurasse seu cajado com a mão direita. Bjorn a olhou
desconfiado, pois todos em Uada sabia que o cajado deveria seguir para ela. Mas,
ela não queria, não queria se sentir culpada toda vez que olhasse para aquilo. Ela
disse:
— Não desça muito fundo, kattla
Não se dispa demais para o senhor do submundo.
Não coma de seu fruto e não renda-se aos seus encantos.
Volte para nós, eu, Ava, clamo.
— Isso foi um encantamento, você ainda espera trazê-la de volta, Ava. - Disse
Olyn.
Ava balançou a cabeça afirmativamente, as duas eram amigas desde a infância, o
que poderia mudar naquele momento. Claro que todos sabiam que Ava era uma
negação com os encantamentos, mas, no fundo, todos queriam ter esperança de
que alguma coisa mudasse naquela situação.
Em sua despedida, Varg apenas observou se ela ainda tinha a marca de Danê, as
lágrimas fluíam como um rio veloz, cada ponto que ele tocava na terra uma flor
surgia, púrpura para combinar com ela. Deixou o local para Olyn, que ninguém
soube precisar por quanto tempo chorou sobre ela.
Mesmo Ladarius estava comovido. Não levaram muito tempo para fechar a cova,
Varg a encheu de flores púrpuras, enquanto Adara e Nytt fizeram um discurso
final de despedida. Bjorn disse:
— Infelizmente eu ainda não tenho uma casa nesse lugar e nessa noite, temos de
fazer uma festa ainda maior para a morte.
— Será em minha casa. - Disse Olyn sem dar qualquer opção para os outros.
Eles começaram a se afastar, exceto por Varg que ficou olhando o túmulo
púrpura ao lado do túmulo de pedra da mãe dela que Adara fizera. Aquela
floresta era mágica ele bem sabia e sussurrando fez uma prece para Danê, que
era aquela que protegia aquele lugar.
De certa forma, se confessava, chorava por ter perdido a chance de fazer o que
queria para se apegar em seu orgulho e cultura. Nunca amara alguém na vida,
ela tinha sido a primeira mulher que sentiu algo e ali estava diante de seus pés,
diante de seus erros, diante de sua estupidez e ganância.
Aqui não era apenas uma prece ou confissão, aquilo era remorso, dor, sofrimento,
resquícios de sua ignorância e preconceito. Deu de ombros, como tudo na vida,
deveria esperar que houvesse uma segunda vez, se houvesse para fazer certo.
Deitou a cabeça sobre o chão e chorou feito criança.
42 – Seguindo o conselho da Velha

O vozerio preenchia a assembleia, mesmo Olyn que estava muito deprimido, por
insistência de Bjorn compareceu e estava sentado ao lado dele numa das cadeiras
mais importantes do lugar, seu lugar de direito. Muitos vieram de longe, tamanha
era a importância daquela reunião.
Adara estava sentada ao lado do primo, com Varg a sua esquerda e aquilo fazia
com que se sentisse especial novamente, sentia que era importante para Norga
mais uma vez, embora Bjorn não tivesse a perdoado ainda. Luí e tantos outros
que eram para Bjorn desconhecidos também estavam lá.
Havia a plateia e dois tronos onde as duas velhas estavam sentadas, a Velha
Sábia e Aquela Que Sabe, a segunda que aparecia menos em eventos como esses.
Alguns políticos também estavam presentes, mas numa quantidade ínfima. Os
outros Viktis estavam espalhados, assim como os Ljots que não tinham voz
nenhuma.
— Sei que não deveria começar com a palavra, mas sou Bjorn Kari e senti que
ninguém melhor do que eu para colocar à mostra a nossa situação. Muitos de
vocês me veem como uma aberração, porque sou metade Uadani e metade
Norgian, sou um Vikti híbrido para piorar. A vitória que conquistamos em Uada,
através da morte da minha irmã fora apenas para que Viktis e Ljots deixassem de
ser caçados por um psicopata. Por isso eu acho que já devemos erguer um
brinde.
Todos se serviram, ficaram por um tempo em silêncio e depois beberam em honra
tanto a morte de Kattla quanto a vitória. Bjorn olhou para todos que pareciam
curiosos com o que viria depois e continuou:
— A Velha Sábia pediu para que eu libertasse Norga do domínio de Fopros.
— Por que ela pediria isso para você e não para nenhum de nós que somos puros
Norgians? - Perguntou Adara.
— Pergunte pra ela. Ela está presente, pode falar por si mesma.
— Pedi para Bjorn porque ele é um Vikti, que cresceu em Uada e entende o que é
ser um guerreiro e um Vikti, confio na liderança dele para reerguer Norga e tirá-la
do poderio de Fopros. - Disse a Velha.
Aquilo gerou rapidamente uma comoção e logo o vozerio se levantou. Luí levantou
abanando as mãos num pedido de silêncio para que a assembleia pudesse
continuar e assim que todos silenciaram, Adara disse:
— Mas, isso quer dizer que você está dando a minha cadeira para Bjorn.
— Que teoricamente é dele já que seu primo ainda não te perdoou pela morte de
sua mãe. Mas, me responda, Adara, o que é mais importante para você?
Recuperar seu poder ou Norga?
— O que penso sobre isso não vem ao caso.
— Vem sim. - Disse Luí.
— Eu fui culpada por todos esses anos por algo que eu não fiz. Fui destituída de
todo o meu poder e voz, estive submissa, confiei em Leif que me enganou, fui tão
vítima disso quanto minha tia.
— Mas, quando Norga foi tomada e seu pai estava a caminho de Uada você a
deixou cair em duas semanas. - Disse Luí.
— Isso é um julgamento? - Ela perguntou nervosa.
— Eu te quero em sacrifício, Adara. Para devolver a vida à minha irmã. - Disse
Bjorn.
— Do que você está falando? - Ela perguntou assustada.
— Seu pai retirou o sangue do útero que a concebeu e você devolverá esse sangue
para que ela viva. Magia Uadani, desculpe.
Novamente o vozerio, a maioria contra.
— Eu não quero e eu não vou fazer isso. Vocês não tem permissão para fazer isso
comigo. Na verdade, todos vocês enlouqueceram, não é possível. - Gritou Adara,
levantando-se da cadeira.
— Você já se provou incapaz de proteger e erguer Norga, por que insiste? -
Perguntou outro Vikti.
— Velha, por que isso está acontecendo? O que eu devo fazer? - Choramingou
Adara.
— Por que você traiu seu país, Adara. - Respondeu Aquela Que Sabe.
Novamente o lugar estourou num vozerio. Agora todos estavam nervosos, uns
tentavam até mesmo atacar Adara, que gritava dizendo que aquilo era mentira.
Foi presa antes que se transformasse num lobo e tirada do recinto. Nytt chorava,
Varg e Olyn estavam cabisbaixos.
Levaram Adara para o túmulo de Kattla, com toda a multidão a segui-la, mesmo
as duas velhas. A pedido de Ava acenderam um enorme círculo de velas ao redor
do túmulo. Ava ergueu uma invocação a Mantus tão antiga que ninguém
conseguia entender, mesmo os Uadanis.
Varg ao notar um movimento na floresta que começava a se cobrir com o véu da
noite, percebeu Danê, andava sobre os pés e mãos, com a barriga voltada para
cima e seus olhos negros e infinitos o encaravam, como se estivesse gargalhando
para ele.
— Duvido que algo como isso vai dar certo. Kattla está morta há meses. - Disse
Nytt. — Acho que todos vocês estão ficando louco. Adara é minha amiga de
infância e nunca trairia Norga.
Adara foi despida completamente por Ladarius, enquanto alguns Viktis a favor do
ritual, tentavam evitar que os Viktis contra atrapalhassem. Rápido como um raio,
Victor cortou a jugular e a artéria fibular. Fez vários cortes na parte frontal do
corpo dela e a deitou sobre a terra no túmulo de Kattla.
Ava continuava rodeando o lugar, a floresta pareceu silenciar completamente,
como se apenas a escuridão e o silêncio pudesse estar ali presentes, ainda que os
cantos abafados de Ava continuavam de tempos em tempos, era como se não
saísse som.
As duas velhas seguiram Ava, mas falavam numa língua ainda mais estranha e
antiga do que esta. As pessoas perceberam-se confusas, como se estivessem
bêbadas, mas nada ingeriram. Não havia lua naquela noite, apenas o vento e logo
o nevoeiro que levou as duas Velhas embora.
— Se Adara nos traiu eu quero provas. - Disse um Vikti.
— Continuaremos conversando sobre isso na assembleia. Vamos todos sair daqui
agora.
Todos voltaram, exceto por Olyn, que embora deixou a floresta ficou olhando de
longe para aquilo. A terra devia estar umedecida pelo sangue da sua kin para
trazer à vida a sua namorada e ele não tinha certeza se aquilo pirava sua cabeça,
ou se simplesmente foi algo que desejou.
Desconhecia também aquelas magias sinistras de Uada e não fazia ideia se Kattla
se lembraria dele quando se levantasse, se é que se levantaria, já que ele mesmo
nunca viu um morto levantar.
Sabia de certa forma que Adara passara algumas informações importantes para
os inimigos e por isso o clã dele foi dizimado e ele a abandonou por isso. Preferiu
viver só. Quando a Uadani chegou ela se tornou sua obsessão, a observava, cada
trejeito, seu respeito pela floresta desconhecida.
Sempre soube demais e sempre quis saber de menos, essa era a verdade daquele
bode cansado. Mas, naquele momento a curiosidade lhe invadia a mente. O que
aconteceria? Quando aconteceria? Funcionaria?
Ficou lá sentado por horas, como fazia, quando foi abordado por Varg, que
sentou-se ao lado dele, oferecendo uma garrafa de uísque, já que ele mesmo
segurava uma para si.
— Está esperando ela levantar? - Perguntou Varg, divertido.
— De certa forma. Mas, não sei como isso funciona.
— Nem eu. - Ele deu um gole no gargalo e perguntou: — Você sabia da traição de
Adara, não? Foi por isso que se afastou dela.
— Sim, mas fiquei quieto porque ela foi enganada, nunca viu um tostão do preço
de sua traição e depois disso só lhe recaiu sofrimento. Já estava com a vida
entrelaçada, não sei como nosso deus realmente veio para ela.
— Acho que ele veio para você.
— Bem, eu acho que nada vai acontecer essa noite. Talvez seja melhor irmos para
casa dormir.
Dias e dias se passaram, Adara fora enterrada e nada de fato acontecera desde
então. Todos aqueles que presenciaram o ritual já tinham deixado de lado a
curiosidade de saber se o túmulo estava aberta nalguma manhã.
Contudo, Varg sempre o visitava para o deixar repleto de flores. E aquilo ele fazia
naquela manhã, cuidando das flores e pensando nela como jamais conseguiu
deixar de fazer.
A mão saiu firme de dentro da terra e segurou a dele tão forte, que ele sentiu dor.
Olhou para o pulso da mão que escapava do túmulo e as árvores de Danê
estavam lá.

Quando duas culturas distintas e inimigas se chocam, é impossível saber o que


vem a seguir, ainda mais quando o inimigo deve ser escondido em terras inimigas
e todos devem aceitar esse fato. Um lugar mágico que combina magia e
tecnologia, tradição e modernidade.
Kattla deve viver com sua prima Adara, da qual o pai matou a mãe da primeira,
como esse relacionamento se desenrola, apenas o tempo e as duas poderão dizer.
Com o Império a invadir as terras livres, não apenas seus problemas familiares
são trazidos à tona.

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