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O
Eduardo Natalino dos Santos
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apenas uma de suas fases históricas, caracte- tributação e na ingerência política sobre as
rizada pela acentuada ascensão de poderosas comunidades menos hierárquicas e monu-
elites governantes e guerreiras, as quais, em mentais, fazendo que, muitas delas, tam-
constante disputa pela grandiosidade de suas bém passassem a se associar e a constituir
cidades e domínios tributários, contribuíram cidades de grande porte para garantirem
para o estabelecimento de fortes tensões po- alguma autonomia política ou mesmo para
líticas entre as mais de 30 capitais maias e competirem de modo mais simétrico com
entre essas capitais e as centenas de cidades as grandes cidades. Essa disseminação de
ou vilas sujeitas a elas. organizações sociopolíticas hierárquicas, de
Antes dessas cidades monumentais do monumentalidade e de conflitos por tribu-
período clássico, milhares de comunida- tos caracterizou a história maia no período
des maias com organizações sociopolíti- clássico e, certamente, acentuou a tensão
cas menos hierárquicas e edificações menos entre elites e população comum, o que teve
monumentais já se distribuíam na região um papel relevante no declínio e queda de
que mencionamos de início, principalmente centenas de cidades maias que haviam se
na região sul da atual Guatemala. Foi em desenvolvido nas terras baixas do centro e
meados desse milênio que algumas dessas sul, as quais foram destruídas ou simples-
comunidades optaram pela constituição de mente abandonadas a partir do século IX.
cidades monumentais, como Izapa e El Mi- A etapa seguinte da história maia, ou
rador, uma das maiores cidades do mundo seja, o período pós-clássico (século IX ao
em seu tempo. Esse processo resultou na XVI), foi marcada por amplas migrações
longa e movimentada história que esboçamos tamos nos referindo à monumentalidade que
acima. Sua narrativa foi produzida com base mencionamos antes, mas também a certo sis-
em livros e registros anteriores, os quais, por tema de calendário e a sistemas aparentados
sua vez, derivavam de tradições de pensa- de escritura pictoglífica, que foram emprega-
mento e sistemas de escritura e calendários dos em toda essa macrorregião cultural até
próprios e com pelo menos dois milênios o período colonial, época em que o alfabeto
de existência. Como mencionamos, desde o latino passou a ser paulatinamente adotado
período pré-clássico, algumas comunidades pelos povos indígenas mesoamericanos.
maias passaram a adotar formas de organi- Mais do que apenas uma forma de con-
zação sociopolíticas mais hierárquicas e com tar o tempo e de registrar informações, os
forte expressão monumental, as quais atestam sistemas de calendário e de escritura eram
suas relações com outras macroetnias ame- conjuntos de princípios interdependentes que
ríndias, que haviam começado a empreender geravam um modo de pensar, de se relacionar
esse caminho antes, como os zapotecas, da e de representar o mundo que hoje chamamos
região do istmo de Tehuantepec e leste do de natural e social, ou seja, eram um modo
atual estado mexicano de Oaxaca. Na região de produzi-lo. Nesse sentido, contar o tempo
do istmo de Tehuantepec, durante o I milênio por meio de períodos de 13 ou 20 dias, de
a.C., se consolidaram alguns sistemas e tra- nove noites, de anos de 260, 360 e 365 dias,
dições que marcariam o repertório cultural e de conjuntos de 52 anos e seus múltiplos,
não apenas de zapotecas e maias, mas tam- os quais formavam períodos que abrangiam
bém de outras macroetnias indígenas, como dezenas de milhares de anos ou mesmo mi-
os nahuas, e que, além disso, se tornariam lhões de anos em alguns casos, não era apenas
bastante disseminadas e presentes no milênio uma forma de quantificar matematicamente o
seguinte e em uma área ainda mais ampla, transcurso do tempo, mas era principalmen-
que tem sido chamada de Mesoamérica. Es- te um modo de pensar sobre os atributos e
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Mapa da Mesoamérica. Adaptado de: G. Duby (dir.), Atlas historique Larousse (Paris, 1987)
Imagem do
Código Madri aberto,
em formato de biombo
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entre esses indígenas e os cristãos de meados
do século XVI. Trata-se de uma fórmula
amplamente usada nesse tipo de contexto
colonial pelas comunidades indígenas maias
para obter, por exemplo, o reconhecimento
de seus territórios junto às autoridades es-
panholas, cujo poder estava, pouco a pouco,
se afirmando no mundo maia, especialmente
por conta das epidemias que diminuíam a
magnitude das populações indígenas de modo
acentuado e, consequentemente, as abran-
gências territoriais e poderes políticos das
comunidades maias. Contar a própria histó-
ria era um modo ou tentativa de pleitear o
controle de certo território e a legitimidade
das autoridades indígenas frente às autori-
dades espanholas1. Primeira página do manuscrito do Popol
O manuscrito original do Popol vuh foi vuh. Fonte: https://www.newberry.org/
composto por volta de 1544 e não se sabe popol-vuh-wuj-online
se ele chegou a ser efetivamente usado
em algum processo ou demanda com os
objetivos que mencionamos acima. É certo Chicago2. Além disso, Jiménez o traduziu
que foi guardado e tutelado pelos quichés novamente em 1722 e o incluiu na sua
do ramo cavec de geração a geração e Historia de la provincia de San Vicente
apresentado por eles ao frade dominicano de Chiapa y Guatemala. Seus trabalhos
Francisco Jiménez depois de 1688, data estiveram depositados na biblioteca do
em que o missionário chegou à Guate- Convento de São Domingo até 1830, de
mala. O frei Jiménez, versado no idioma onde passaram à Universidade da Guate-
quiché, estudou o manuscrito original do mala e foram estudados e publicados em
Popol vuh, hoje desaparecido, o transcreveu 1857 por Karl Scherzer e, depois, levados
na própria língua quiché e adicionou sua à França por Charles Étienne Brasseur de
versão em espanhol ao lado. Esse manus- Bourbourg, que o traduziu ao francês e o
crito produzido por Jiménez encontra-se publicou em 1861. Desde então, o Popol
atualmente na Biblioteca Newberry, em vuh foi traduzido para muitas outras lín-
guas ocidentais e também para algumas
línguas orientais, podendo ser considerado
1 Esse contexto de produção do Popol vuh é bas-
tante particular às regiões em que os espanhóis
haviam obtido vitórias bélicas algo significativas
e, como mencionamos, não deve ser universalizado 2 Uma excelente versão digital desse manuscrito pode
automaticamente para todo o mundo maia dos ser acessada na World Digital Library: https://www.
séculos XVI e XVII. wdl.org/en/item/19995/view/1/1/.
-Oculto). Esses dois, depois da infância e outro e depois ressuscitar. Esses prodígios
de parte da juventude dedicadas à caça com maravilharam os senhores do Xibalbá, que
zarabatana e às roças de milho, descobrem pediram aos gêmeos para que os realizas-
o apreço de seus pais pelo jogo de bola e sem com eles próprios. O primeiro senhor
serão, assim, convidados ao Xibalbá pelo do Xibalbá a ser morto foi Hun-Camé (Um
mesmo motivo que seu pai e parceiro, ou Morte), senhor principal e governante do
seja, por incomodarem os senhores do Xi- Xibalbá. No entanto, depois de matá-lo, os
balbá com os seus frequentes jogos de bola jovens gêmeos não o reviveram e ainda
sobre as suas cabeças. fizeram Vucub-Camé (Sete Morte) de pri-
Como Hunahpú (Um Zarabataneiro) e sioneiro, o qual se curvou e implorou por
Ixbalanqué (Jaguar-Sol-Oculto) eram autên- sua vida aos jovens gêmeos. Diante disso,
ticos seres prodigiosos, conheciam as pro- todos os senhores do Xibalbá fugiram para
vações e burlas em que seu pai e parceiro um desfiladeiro e se amontoaram no fun-
haviam sido derrotados e, desse modo, con- do dele, onde foram fustigados por uma
seguem triunfar nas provas todas e, assim, multidão de formigas. Os gêmeos vão até
derrotar os senhores do Xibalbá e vingar a esse desfiladeiro e os senhores do Xibalbá
morte de seus progenitores. A vitória final os recebem prostrados, humildes e choro-
se dá no mesmo campo de jogo de bola sos. Hunahpú e Ixbalanqué aceitam o pe-
onde seu pai havia sido decapitado. dido de clemência, mas impõem rigorosas
Mas em seguida a esses triunfos, os jo- condições aos senhores do Xibalbá. Eles
vens gêmeos são mortos no Xibalbá. No não teriam grandes celebrações ou grandes
entanto, eles pressentem a própria morte e oferendas e não receberiam sangue limpo.
escolhem sua forma: se atiram juntos, cons- Teriam apenas coágulos de seiva e rece-
ciente e voluntariamente, em uma grande beriam comales e panelas velhas, coisas
fogueira que pretendia ser uma armadilha frágeis e quebradiças. Só poderiam comer
feita pelos senhores do Xibalbá. Além disso, os filhos dos restolhos e dos ermos, mas
haviam antes persuadido os senhores do não as nascidas e os nascidos na luz, isto
Xibalbá sobre o que fazer com seus corpos é, os homens de milho que ainda seriam
depois da morte: deveriam moer separada- criados. Mesmo assim, não poderiam atacar
mente os ossos de cada um e jogá-los na repentinamente a qualquer pessoa, mas só
fonte de onde brotam os grandes e pequenos os desprezíveis, pecadores, violentos, des-
rios. Desse modo, seus ossos não foram graçados e perversos. Depois disso, ao final
levados para longe, pois se assentaram no dessa segunda parte do Popol vuh, os dois
fundo da água e se transformaram em dois jovens rodeados de luz viajaram ao céu e
belos jovens, com as mesmas faces, mas se tornaram o Sol e a Lua e todo o céu se
haviam ressurgido como homens-peixes. iluminou sobre o leito da Terra.
Como homens-peixes, os dois se traja- O início da terceira parte do Popol vuh
vam como pobres miseráveis que dança- é marcado por um episódio que, de algum
vam e faziam grandes prodígios para os modo, lhe é central, pois para ele concorrem
senhores do Xibalbá, como queimar casas as criações anteriores, a dos animais e as
e fazê-las ressurgir, se esquartejar um ao dos seres humanos de barro e de madei-
ao Xibalbá, de tomar a natureza, forma e produziram o Popol vuh abrange muito mais
aparência de uma cobra, águia, jaguar ou do que a história de seu grupo, pois a en-
poça de sangue. trelaça tanto com a história de outros gru-
Em suas últimas páginas, o Popol vuh pos maias como com a história de outros
traz os detalhes do poderio dos três ramos povos indígenas da Mesoamérica, como os
ou nações quichés – dos quichés que nar- nahuas. Além disso, entrelaça essa história
ram o Popol vuh, dos tamub e dos ilocab grupal e regional com a de todas as tribos
– com ênfase no primeiro grupo e seus e nações indígenas contemporâneas a eles,
três conjuntos internos de linhagens, ou aos maias-quichés, pois todas seriam com-
seja, os cavec, que escrevem o Popol vuh, postas pelas mulheres e homens de milho
os nihaib e os ahau-quichés. É a época da cujos antepassados viram o mesmo e pri-
quinta geração de senhores em diante, de meiro nascimento deste Sol e Lua atuais.
senhores menos prodigiosos do que Gucu- Vai ainda além. Aponta que essa grande
matz e Cotuhá. O livro termina com essa história ou idade dos seres humanos de mi-
espécie de panorama dos senhores, linha- lho não é a única, pois o mundo conheceu
gens e casas grandes, que vai até a época de humanidades e sóis anteriores, dando a en-
produção do próprio Popol vuh, isto é, até tender que o mundo-idade atual não é um
meados do século XVI. Os últimos dessas cenário pronto, acabado e estável, onde se
12 gerações de senhores mencionados são desenrola a história dos homens e mulheres
Oxib-Qeh e Beleheb-Tzi, que foram enfor- de milho. Ao contrário – e isso está expli-
cados depois da conquista de Gumarca- citamente presente em vários outros textos
ah pelos espanhóis e indígenas nahuas e maias e mesoamericanos –, o mundo atual
cakchiqueles. Os nomes dos soberanos da continua a ser instável e a estar sujeito a ca-
décima terceira e da décima quarta gera- taclismos e reviravoltas que irão transformar
ção, que já pagavam tributos aos espanhóis, a sua face e as sociedades humanas e não
são mencionados em seguida, assim como humanas que o habitam. Em outras palavras,
a relação das nove linhagens e das nove diferentemente da cosmologia judaico-cristã,
casas grandes dos cavec e dos nihaib, e das a feitura e produção do mundo não estão
nove linhagens e quatro casas grandes dos apenas em seu início, mas são um processo
ahau-quichés. Trata-se do mapa político de contínuo, cumulativo e marcado por grandes
uma nação derrotada e subordinada política e constantes transformações e metamorfoses
e tributariamente, mas não destruída. Uma no que chamamos mundo natural e social.
afirmação ou manifesto quiché da vigência Talvez isso nos pareça hoje bastante fami-
de sua estrutura comunitária no período liar e razoável como forma de olhar para o
colonial, assim como do papel das histórias mundo, pois coincide com ideias centrais às
e da cosmologia contidos nela. cosmologias científicas em vigor. No entan-
to, seu conteúdo é altamente contrário ao da
CONVITE À LEITURA cosmologia judaico-cristã com a qual o pen-
samento maia se defrontou a partir do século
Como se pode observar nessa breve sín- XVI e que vigorou no mundo ocidental com
tese, a perspectiva dos maias-quichés que exclusividade até muito pouco tempo atrás.
Temos a fortuna de contar com duas edições recentes dialmente na mais famosa e talvez mais lida tradução
e primorosas do Popol vuh em português em nosso país. ao espanhol do Popol vuh, a de Adrián Recinos. Partin-
A edição com organização e tradução de Gordon do dessa versão ao espanhol, a tradutora realizou um
Brotherston e Sérgio Medeiros foi a primeira publicada trabalho excepcional e muito robusto, pois comparou
em português no Brasil, em 2007, e supriu essa grave a versão de Adrián Recinos com mais oito traduções do
lacuna de nosso mercado editorial. Os dois estudiosos Popol vuh a línguas ocidentais e, também, ao próprio
se basearam primordialmente na tradução ao inglês do texto em maia-quiché. O resultado é uma tradução
maia-quiché de Munro Edmonson, do começo dos anos crítica de alto valor para aqueles que se interessam
1970, mas eles também consultaram outras traduções pelas pesquisas sobre os maias e sobre o Popol vuh.
a idiomas ocidentais, além do próprio texto em maia- No entanto, toda essa carga de estudos e debates é
-quiché, que consta nessa edição ao lado da versão em sabiamente apresentada, nessa edição, em notas que
português. Nessa edição, destacam-se o imenso zelo se encontram após o texto em português, o qual é
e acuidade com a palavra de Sérgio Medeiros, que é lido de modo fluente e tranquilo. Além disso, contribui
poeta e ensaísta, e o vastíssimo conhecimento de Gor- para essa leitura fluente a apresentação de traduções
don Brotherston, um dos mais destacados conhecedores ao português dos nomes em maia-quiché dos deuses,
mundiais dos códices mesoamericanos e das histórias animais e plantas, pois muitos desses animais e plantas
e cosmologias ameríndias de modo geral. nos são familiares, já que os maias-quichés habitam
A edição com tradução de Josely Vianna Baptista foi ambientes tropicais ou tropicais temperados, seme-
publicada recentemente, em 2019, e se baseou primor- lhantes aos que existem em boa parte de nosso país.