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Histórias e cosmologia indígenas

no Popol vuh, livro maia-quiché

O
Eduardo Natalino dos Santos

A LONGA HISTÓRIA DOS POVOS MAIAS

s cerca de 6 milhões de indígenas maias


que atualmente vivem no sudeste do Méxi-
co – estados de Chiapas, Tabasco, Campe-
che, Iucatã e Quintana Roo –, em Belize, na
Guatemala e nas porções oeste de Honduras
e El Salvador são os descendentes e atuais
construtores de uma cultura e de tradições
de pensamento que podem ser estudadas ao
longo dos últimos 3 mil anos, pelo menos.
Nessa longa trajetória, as famosas cidades
maias do período clássico (século II ao IX),
como Tikal, Palenque e Yaxchilán, marcam

EDUARDO NATALINO DOS SANTOS


é professor de História da América Pré-Hispânica
e História Indígena Colonial do Departamento
de História da FFLCH/USP.

Revista USP • São Paulo • n. 125 • p. 109-124 • abril/maio/junho 2020 109


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Reprodução

Mapa da região maia, com as divisões entre terras baixas do norte,


terras baixas do sul, terras altas de Chiapas e Guatemala

apenas uma de suas fases históricas, caracte- tributação e na ingerência política sobre as
rizada pela acentuada ascensão de poderosas comunidades menos hierárquicas e monu-
elites governantes e guerreiras, as quais, em mentais, fazendo que, muitas delas, tam-
constante disputa pela grandiosidade de suas bém passassem a se associar e a constituir
cidades e domínios tributários, contribuíram cidades de grande porte para garantirem
para o estabelecimento de fortes tensões po- alguma autonomia política ou mesmo para
líticas entre as mais de 30 capitais maias e competirem de modo mais simétrico com
entre essas capitais e as centenas de cidades as grandes cidades. Essa disseminação de
ou vilas sujeitas a elas. organizações sociopolíticas hierárquicas, de
Antes dessas cidades monumentais do monumentalidade e de conflitos por tribu-
período clássico, milhares de comunida- tos caracterizou a história maia no período
des maias com organizações sociopolíti- clássico e, certamente, acentuou a tensão
cas menos hierárquicas e edificações menos entre elites e população comum, o que teve
monumentais já se distribuíam na região um papel relevante no declínio e queda de
que mencionamos de início, principalmente centenas de cidades maias que haviam se
na região sul da atual Guatemala. Foi em desenvolvido nas terras baixas do centro e
meados desse milênio que algumas dessas sul, as quais foram destruídas ou simples-
comunidades optaram pela constituição de mente abandonadas a partir do século IX.
cidades monumentais, como Izapa e El Mi- A etapa seguinte da história maia, ou
rador, uma das maiores cidades do mundo seja, o período pós-clássico (século IX ao
em seu tempo. Esse processo resultou na XVI), foi marcada por amplas migrações

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que partiram das antigas cidades decaídas, confederações maias. Além disso, os resul-
destruídas ou abandonadas e se dirigiram tados das eventuais vitórias de espanhóis e
para o norte ou para o sul, transformando aliados indígenas, como a que se deu so-
o norte da península do Iucatã e as terras bre os quichés, se mantiveram restritos a
altas de Chiapas e Guatemala nas principais pequenas regiões por décadas e abrangiam
áreas de emergência de novas cidades e con- conjuntos bastante limitados de comunidades
federações ou de ressurgimento de antigas. maias, as quais, ademais, percebiam essa
Algumas novas capitais maias procuraram e reordenação política como ilegítima e, fre-
conseguiram ocupar o papel de suas prede- quentemente, se rebelavam contra ela.
cessoras do período clássico, como Chichén Desse modo, o início do período colonial
Itzá ou Uxmal, sem, no entanto, obterem na região maia é marcado por um alto índice
um êxito muito duradouro, pois também fo- de conflitos bélicos com os cristãos, espe-
ram abandonadas ainda em meados do pe- cialmente nas imediações do Lago Atitlán,
ríodo pós-clássico. Ao final desse período, onde viviam os maias-quichés que produzi-
isto é, no início do século XVI, quando os ram o Popol vuh, e no norte da península do
espanhóis chegaram à região maia, vindos Iucatã. Com exceção dessas duas pequenas
do altiplano central mexicano ou das ilhas áreas, no restante da região maia predomi-
do Caribe, predominavam as confederações navam as comunidades e confederações re-
políticas de menor porte, alcance regional lativamente autônomas, ou que mantinham
e expressão monumental, nas quais as vi- contatos seletivos com as vilas dominadas
las e cidades principais cobravam tributos pelos espanhóis e aliados indígenas, isto é,
e mantinham alguma precedência política em toda porção territorial ao norte da região
sobre comunidades menos poderosas. do Lago Atitlán e de Gumarcaah, onde os
Esse é, em linhas muito gerais, o mun- maias-quichés haviam sido derrotados, e em
do maia que entrou em contato, confronto toda a área das terras baixas do centro e
e conversação com os cristãos espanhóis, sul – essa região havia sido dominada pelas
que passaram a chegar às terras baixas do cidades monumentais do período clássico e
norte, no Iucatã, a partir de 1511, e às terras agora era ocupada pelo maias-itzaes, que mi-
altas de Chiapas e Guatemala a partir de graram desde o norte da península, fugindo
1524, onde os maias-quichés, produtores do dos domínios espanhóis, e fundaram uma
Popol vuh, eram uma das principais forças nova confederação ao sul, que se manteve
políticas desde sua capital, a cidade de Gu- autônoma frente aos poderes coloniais es-
marcaah ou Utatlán. Enquanto no altiplano panhóis até 1697.
central mexicano uma ampla coalizão for-
mada por cerca de 50 cidades indígenas e A PRODUÇÃO E OS
por espanhóis derrotou os astecas em 1521
e gerou uma mudança política que contava
USOS DO POPOL VUH
com abrangente apoio local, na região maia,
as alianças conquistadoras entre indígenas e O Popol vuh nos apresenta uma instigan-
espanhóis deflagraram guerras muito mais te narrativa com a perspectiva dos maias-
pulverizadas e longas contra as modestas -quichés de meados do século XVI sobre a

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longa e movimentada história que esboçamos tamos nos referindo à monumentalidade que
acima. Sua narrativa foi produzida com base mencionamos antes, mas também a certo sis-
em livros e registros anteriores, os quais, por tema de calendário e a sistemas aparentados
sua vez, derivavam de tradições de pensa- de escritura pictoglífica, que foram emprega-
mento e sistemas de escritura e calendários dos em toda essa macrorregião cultural até
próprios e com pelo menos dois milênios o período colonial, época em que o alfabeto
de existência. Como mencionamos, desde o latino passou a ser paulatinamente adotado
período pré-clássico, algumas comunidades pelos povos indígenas mesoamericanos.
maias passaram a adotar formas de organi- Mais do que apenas uma forma de con-
zação sociopolíticas mais hierárquicas e com tar o tempo e de registrar informações, os
forte expressão monumental, as quais atestam sistemas de calendário e de escritura eram
suas relações com outras macroetnias ame- conjuntos de princípios interdependentes que
ríndias, que haviam começado a empreender geravam um modo de pensar, de se relacionar
esse caminho antes, como os zapotecas, da e de representar o mundo que hoje chamamos
região do istmo de Tehuantepec e leste do de natural e social, ou seja, eram um modo
atual estado mexicano de Oaxaca. Na região de produzi-lo. Nesse sentido, contar o tempo
do istmo de Tehuantepec, durante o I milênio por meio de períodos de 13 ou 20 dias, de
a.C., se consolidaram alguns sistemas e tra- nove noites, de anos de 260, 360 e 365 dias,
dições que marcariam o repertório cultural e de conjuntos de 52 anos e seus múltiplos,
não apenas de zapotecas e maias, mas tam- os quais formavam períodos que abrangiam
bém de outras macroetnias indígenas, como dezenas de milhares de anos ou mesmo mi-
os nahuas, e que, além disso, se tornariam lhões de anos em alguns casos, não era apenas
bastante disseminadas e presentes no milênio uma forma de quantificar matematicamente o
seguinte e em uma área ainda mais ampla, transcurso do tempo, mas era principalmen-
que tem sido chamada de Mesoamérica. Es- te um modo de pensar sobre os atributos e
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Mapa da Mesoamérica. Adaptado de: G. Duby (dir.), Atlas historique Larousse (Paris, 1987)

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qualidades do tempo e, com isso, compreen- ou tiras, que eram dobradas como biombos
der os eventos pretéritos, presentes e futuros. e resultavam, quando dobradas, em formatos
No mesmo sentido, produzir registros escritos quadrangulares ou retangulares. Fossem de
sobre lápides de pedra, paredes, cerâmicas, papel ou de pele de animais, essas bandas
papéis ou peles de animais empregando glifos ou tiras recebiam uma fina camada de estu-
fonéticos e ideográficos em conjunção com que branco para uniformizar a superfície e
imagens figurativas não significava apenas prepará-la para a pintura dos glifos fonéticos
registrar conteúdos que seriam reabilitados e ideográficos e das imagens, sempre deli-
depois por um leitor, mas significava criar neados com traços negros, que compunham
um mundo, dar face, corpo e existência aos as formas que seriam preenchidas de cores,
entes, eventos e conceitos que habitariam es- com certa predominância de tons vermelhos.
ses registros escritos e pintados. Essas composições pintadas-escritas pode-
Entre esses registros, estavam manuscritos riam ocupar apenas um ou os dois lados do
conhecidos atualmente como códices me- manuscrito e eram realizadas por especialis-
soamericanos. Os códices eram registros tas no sistema escriturário e pictórico, que
pictoglíficos portáteis e de produção e uso trabalhavam em conjunto com sábios e go-
típicos das elites da Mesoamérica desde pelo vernantes das elites dirigentes. Os escritores
menos o I milênio a.C. Eram confeccionados do Popol vuh afirmam que sua narrativa em
com papel amate ou papel maguey – produ- maia-quiché e que emprega o alfabeto latino
zidos a partir da casca interna de um tipo fundamenta-se em leituras e consultas desses
de figueira e das fibras de cactos da família antigos códices pictoglíficos, semelhantes aos
do agave, respectivamente –, ou com peles raros códices maias pré-hispânicos que nos
de animais, principalmente de veados. As chegaram e que procedem das terras baixas
folhas ou lâminas de peles eram coladas e do Iucatã: o Códice de Dresden, o Códice
dispostas de modo a formarem longas faixas Paris e o Códice Madri. Essas tradições
Reprodução

Imagem do
Código Madri aberto,
em formato de biombo

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pré-hispânicas de pensamento e escrita es- É nesse contexto que frades dominicanos


tão fortemente presentes no Popol vuh, cujo passaram a se estabelecer em Gumarcaah
emprego do alfabeto latino deve-se às guer- e Iximché e que as tradições de escrita e
ras, conflitos e negociações entre quichés e pensamento maia tiveram contato com as
espanhóis. Vejamos como isso ocorreu. cristãs. Com o resguardo de vitórias bélicas
Os quichés e outros povos maias das precedentes nessas localidades, esses mis-
terras altas de Chiapas e Guatemala, como sionários atuavam junto aos quichés e aos
rabinales e cakchiqueles, mantinham in- cakchiqueles. Mesmo assim, essa atuação
tercâmbios comerciais e diplomáticos com ocorria de modo relativamente negociado
os indígenas nahuas do centro do México, com as elites maias locais, tentando evitar
como os astecas, por exemplo. Assim, lo- conflitos e rebeliões, pois esses enclaves
go após a derrota dos astecas, em 1521, de presença espanhola estavam cercados
uma expedição de conquista formada por por vilas, cidadelas e confederações maias
tlaxcaltecas, espanhóis e também astecas politicamente autônomas. Nesse ambiente,
partiu do centro do México, seguiu rotas e os conflitos e negociações impulsionaram
caminhos indígenas bastante conhecidos e o trasvase e transposição de registros pro-
chegou à região maia-quiché entre 1523 e duzidos em um sistema de escritura a outro
1524. Seu objetivo era derrotar os maias- e as histórias e cosmologias de uma tradi-
-quichés, que seriam antigos aliados dos ção de pensamento a formas mais inteli-
derrotados astecas e os principais senho- gíveis para a outra. Desse modo, o Popol
res políticos e tributadores dessa região vuh, literalmente, Livro da comunidade, é
naquele momento. Essa expedição contava uma nova e, ao mesmo tempo, tradicional
com uma aliança previamente estabelecida história e cosmologia maia-quiché e traz
com os maias-cakchiqueles, vizinhos que marcas dessas negociações e conflitos com
teriam sido derrotados pelos quichés al- os cristãos: narrado no idioma quiché, mas
gumas décadas antes e que, nesse momen- registrado com o alfabeto latino; destinado
to, estariam subordinados a eles. Assim, provavelmente a autoridades civis e reli-
de modo relativamente rápido, os quichés giosas cristãs, mas com um conteúdo cos-
foram vencidos por essa coalizão que os mológico e histórico bastante apegado às
derrotou em Gumarcaah ou Utatlán, sua tradições maias; reconhece certas vitórias
capital. No entanto, a vitória dos cristãos- do deus cristão, mas reafirma a validade
-ibéricos e seus aliados indígenas nahuas da cosmologia e da história dos quichés e
se mostrou frágil e territorialmente bas- seus vizinhos, como veremos abaixo.
tante circunscrita. Seus aliados locais, os A produção pelos maias-quichés de uma
cakchiqueles, logo se rebelaram contra narrativa em alfabeto latino que abrange des-
os espanhóis e, embora os cakchiqueles de a constituição de humanidades anteriores,
tenham sido derrotados em Iximché, sua passa pela criação da humanidade atual, a
capital, nunca foram totalmente vencidos, dos homens e mulheres feitos de massa de
pois se evadiram e migraram para regiões milho, como os próprios quichés, e chega
próximas, onde resistiram por décadas ao até a história dos próprios narradores e seus
domínio político espanhol. principais governantes e linhagens foi, cer-

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tamente, parte de negociações e conflitos

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entre esses indígenas e os cristãos de meados
do século XVI. Trata-se de uma fórmula
amplamente usada nesse tipo de contexto
colonial pelas comunidades indígenas maias
para obter, por exemplo, o reconhecimento
de seus territórios junto às autoridades es-
panholas, cujo poder estava, pouco a pouco,
se afirmando no mundo maia, especialmente
por conta das epidemias que diminuíam a
magnitude das populações indígenas de modo
acentuado e, consequentemente, as abran-
gências territoriais e poderes políticos das
comunidades maias. Contar a própria histó-
ria era um modo ou tentativa de pleitear o
controle de certo território e a legitimidade
das autoridades indígenas frente às autori-
dades espanholas1. Primeira página do manuscrito do Popol
O manuscrito original do Popol vuh foi vuh. Fonte: https://www.newberry.org/
composto por volta de 1544 e não se sabe popol-vuh-wuj-online
se ele chegou a ser efetivamente usado
em algum processo ou demanda com os
objetivos que mencionamos acima. É certo Chicago2. Além disso, Jiménez o traduziu
que foi guardado e tutelado pelos quichés novamente em 1722 e o incluiu na sua
do ramo cavec de geração a geração e Historia de la provincia de San Vicente
apresentado por eles ao frade dominicano de Chiapa y Guatemala. Seus trabalhos
Francisco Jiménez depois de 1688, data estiveram depositados na biblioteca do
em que o missionário chegou à Guate- Convento de São Domingo até 1830, de
mala. O frei Jiménez, versado no idioma onde passaram à Universidade da Guate-
quiché, estudou o manuscrito original do mala e foram estudados e publicados em
Popol vuh, hoje desaparecido, o transcreveu 1857 por Karl Scherzer e, depois, levados
na própria língua quiché e adicionou sua à França por Charles Étienne Brasseur de
versão em espanhol ao lado. Esse manus- Bourbourg, que o traduziu ao francês e o
crito produzido por Jiménez encontra-se publicou em 1861. Desde então, o Popol
atualmente na Biblioteca Newberry, em vuh foi traduzido para muitas outras lín-
guas ocidentais e também para algumas
línguas orientais, podendo ser considerado
1 Esse contexto de produção do Popol vuh é bas-
tante particular às regiões em que os espanhóis
haviam obtido vitórias bélicas algo significativas
e, como mencionamos, não deve ser universalizado 2 Uma excelente versão digital desse manuscrito pode
automaticamente para todo o mundo maia dos ser acessada na World Digital Library: https://www.
séculos XVI e XVII. wdl.org/en/item/19995/view/1/1/.

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a cosmologia e história ameríndia mais Tziís (Quati); Tepeu (Majestade) e Gucu-


traduzida, publicada e lida. matz (Serpente Emplumada); u Qux Cho
(Coração do Lago) e u Qux Paló (Coração
PRINCIPAIS TEMAS E BREVE do Mar); Ah Raxá Lac (O-do-Prato-Verde) e
Ah Raxá Tzel (O-da-Tigela-Azul); Iyom (A
SÍNTESE DO POPOL VUH Parteira) e Mamon (O Patriarca), chamados
de Ixpiyacoc e Ixmucané, A-que-Ampara,
O manuscrito do Popol vuh não possui O-que-Protege, Duas Vezes Parteira, Duas
claras divisões internas em capítulos ou par- Vezes Avô3.
tes. Possui apenas, na versão em espanhol Após esse breve preâmbulo, os capítulos
que consta ao lado do texto em maia-quiché, da primeira parte trazem uma detalhada
alguns espaçamentos mais amplos entre cer- descrição da formação do céu e da Terra,
tos parágrafos, os quais separariam certas de sua repartição precisa em quatro partes
unidades narrativas ou capítulos. Geralmente, ou regiões, da criação das águas e monta-
as traduções e edições modernas do ma- nhas, dos vegetais, dos guardiões das matas
nuscrito de Jiménez valorizam essa divisão e arbustos e dos animais, a quem os entes
do texto em capítulos, que costumam ainda criadores dão vozes e pedem que honrem
ser numerados e agrupados em quatro par- e invoquem os seus criadores. Estaríamos,
tes precedidas por um pequeno preâmbulo. aqui, diante de uma primeira criação: a
Esse agrupamento dos capítulos em quatro dos animais. Mas, por não terem falado
partes se justificaria pela existência de qua- como pessoas de um mesmo grupo, pois
tro grandes ciclos narrativos do Popol vuh, cada um teria sua própria e diferente voz,
como veremos na sequência. os primeiros animais foram mudados pelos
No preâmbulo, além da menção a um deuses, que os enviaram a morar nos gro-
Livro da comunidade mais antigo, que já tões e florestas e decidiram que eles teriam
não se poderia mais consultar e que, co- suas carnes comidas pelos seres humanos
mo dissemos, seria um códice pictoglífico, que ainda seriam criados.
anuncia-se o objetivo mais amplo da nar- Buscando a criação de seres que os in-
rativa: a formação da superfície da Terra e vocassem e alimentassem, os deuses resol-
da abóboda celeste, precisamente divididas veram conceber um ser humano de terra e
em quatro regiões, e a vida dos seres vin- barro. Mas a obra não saiu como planejada,
douros, dos nascidos e das nascidas na luz. pois esse ser humano de terra ficou enchar-
Além disso, esse preâmbulo apresenta uma cado, aguado e mole. Além disso, sua ca-
relação bastante completa dos nomes e tí- beça não virava, sua vista estava encoberta
tulos dos deuses que teriam participado do e seu rosto sempre estava voltado para um
princípio da vida e da história dos quichés:
Tzacol (Criador) e Bitol (Formador); Alom
(A-que-Concebe) e Qaholom (O-que-Gera); 3 Neste artigo, os nomes de lugares e personagens
constantes no Popol vuh estão grafados e traduzidos
Hunahpú-Vuch (Um Zarabataneiro-Gambá) de acordo com o proposto em: Popol vuh – O esplendor
e Hunahpú-Utiú (Um Zarabataneiro-Coio- da palavra antiga dos Maias-Quiché de Quauhtlemallan:
aurora sangrenta, história e mito, tradução crítica e
te); Zaqui-Nimá (Grande Caititu Branco) e notas de Josely Vianna Baptista, São Paulo, Ubu, 2019.

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mesmo lado. Apesar disso, esse ser huma- de madeira. No entanto, ele não seria um
no falava, mas suas palavras não tinham ente verdadeiramente prodigioso, um deus
sentido e os deuses resolveram desfazê-lo autêntico, portanto, mas apenas um ser que
e consultar adivinhos sábios e idosos para se vangloriava e se cobria de riquezas para
saber como produzir seres humanos que os parecer fulgurante.
sustentassem e alimentassem, que os invo- A centralidade desses gêmeos na nar-
cassem e deles se recordassem. O casal de rativa do Popol vuh é tamanha que toda
adivinhos, Ixpiyacoc e Ixmucané, lança e sua segunda parte é dedicada a narrar seus
consulta os grãos de milho e de tzité4 e a nascimentos, a apresentar sua mãe, Ixba-
resposta é: buscar boa madeira para enta- quiyalo (A-dos-Ossos-Atados) e a relatar
lhar os novos homens. as vidas e aventuras de seu pai e um par-
Esses homens e mulheres de madeira ceiro de lutas e aventuras: Hun-Hunahpú
povoaram a Terra e se multiplicaram, mas (Um Hunahpú) e Vucub-Hunahpú (Sete Hu-
não tinham coração, alma nem entendimen- nahpú). A trama central das vidas de Hun-
to, não se recordavam dos criadores, iam -Hunahpú (Um Hunahpú) e Vucub-Hunahpú
e vinham sem rumo, arrastando-se sobre (Sete Hunahpú), ambos chamados de pais
mãos e joelhos e, por isso, foram também dos gêmeos, consiste em uma viagem ao
aniquilados, destruídos e desfeitos com um Xibalbá, o Mundo de Abaixo e reino dos
grande dilúvio de resina ardente. Além des- senhores dos mortos. Eles são convidados
sa chuva de resina, os animais e objetos a adentrarem o Xibalbá por incomodarem
que esses seres humanos teriam maltratado constantemente os seus senhores principais,
em vida passam a atacá-los. Apesar dessa Hun-Camé (Um Morte) e Vucub-Camé (Sete
destruição em massa, alguns desses seres Morte), pois jogavam bola frequentemente
humanos, desfigurados por esses ataques e sobre suas cabeças, gerando ruídos e in-
cataclismo, teriam sobrevivido e dado ori- cômodos no Mundo de Abaixo. Lá, Hun-
gem aos macacos-aranhas. -Hunahpú e Vucub-Hunahpú são expostos a
Em seguida, ainda em sua primeira par- uma série de desafios, provações e burlas e
te, o Popol vuh apresenta as atuações de não se saem bem. Os dois são mortos pelos
Hunahpú (Um Zarabataneiro) e Ixbalanqué senhores do Xibalbá, mas Hun-Hunahpú,
(Jaguar-Sol-Oculto), deuses gêmeos que der- ao morrer decapitado, realiza o prodígio
rotaram Vucub-Caquix (Sete Arara) e seus de engravidar uma jovem senhora do pró-
dois filhos, Zipacná (O Jacaré) e Cabracán prio Xibalbá, Ixquic (Jovem Sangue Lua),
(O Terremoto), os quais criavam e derruba- com sua saliva, que é cuspida da sua ca-
vam montanhas somente para se vangloria- beça pendurada em um pé de cabaça na
rem. Em um mundo ainda sem Sol e Lua, mão da jovem que pretendia colher um dos
Sete Arara se proclamava o próprio Sol e frutos. Diante dos problemas que essa gra-
Lua para a linhagem dos seres humanos videz inexplicável lhe gera com seus pais
e senhores do Xibalbá, Ixquic foge para o
mundo da superfície e procura sua sogra
4 Grãos vermelhos com formato semelhante aos grãos
de feijão. Frutificam em uma árvore de médio porte
para dar à luz aos gêmeos Hunahpú (Um
chamada árvore-de-coral. Zarabataneiro) e Ixbalanqué (Jaguar-Sol-

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-Oculto). Esses dois, depois da infância e outro e depois ressuscitar. Esses prodígios
de parte da juventude dedicadas à caça com maravilharam os senhores do Xibalbá, que
zarabatana e às roças de milho, descobrem pediram aos gêmeos para que os realizas-
o apreço de seus pais pelo jogo de bola e sem com eles próprios. O primeiro senhor
serão, assim, convidados ao Xibalbá pelo do Xibalbá a ser morto foi Hun-Camé (Um
mesmo motivo que seu pai e parceiro, ou Morte), senhor principal e governante do
seja, por incomodarem os senhores do Xi- Xibalbá. No entanto, depois de matá-lo, os
balbá com os seus frequentes jogos de bola jovens gêmeos não o reviveram e ainda
sobre as suas cabeças. fizeram Vucub-Camé (Sete Morte) de pri-
Como Hunahpú (Um Zarabataneiro) e sioneiro, o qual se curvou e implorou por
Ixbalanqué (Jaguar-Sol-Oculto) eram autên- sua vida aos jovens gêmeos. Diante disso,
ticos seres prodigiosos, conheciam as pro- todos os senhores do Xibalbá fugiram para
vações e burlas em que seu pai e parceiro um desfiladeiro e se amontoaram no fun-
haviam sido derrotados e, desse modo, con- do dele, onde foram fustigados por uma
seguem triunfar nas provas todas e, assim, multidão de formigas. Os gêmeos vão até
derrotar os senhores do Xibalbá e vingar a esse desfiladeiro e os senhores do Xibalbá
morte de seus progenitores. A vitória final os recebem prostrados, humildes e choro-
se dá no mesmo campo de jogo de bola sos. Hunahpú e Ixbalanqué aceitam o pe-
onde seu pai havia sido decapitado. dido de clemência, mas impõem rigorosas
Mas em seguida a esses triunfos, os jo- condições aos senhores do Xibalbá. Eles
vens gêmeos são mortos no Xibalbá. No não teriam grandes celebrações ou grandes
entanto, eles pressentem a própria morte e oferendas e não receberiam sangue limpo.
escolhem sua forma: se atiram juntos, cons- Teriam apenas coágulos de seiva e rece-
ciente e voluntariamente, em uma grande beriam comales e panelas velhas, coisas
fogueira que pretendia ser uma armadilha frágeis e quebradiças. Só poderiam comer
feita pelos senhores do Xibalbá. Além disso, os filhos dos restolhos e dos ermos, mas
haviam antes persuadido os senhores do não as nascidas e os nascidos na luz, isto
Xibalbá sobre o que fazer com seus corpos é, os homens de milho que ainda seriam
depois da morte: deveriam moer separada- criados. Mesmo assim, não poderiam atacar
mente os ossos de cada um e jogá-los na repentinamente a qualquer pessoa, mas só
fonte de onde brotam os grandes e pequenos os desprezíveis, pecadores, violentos, des-
rios. Desse modo, seus ossos não foram graçados e perversos. Depois disso, ao final
levados para longe, pois se assentaram no dessa segunda parte do Popol vuh, os dois
fundo da água e se transformaram em dois jovens rodeados de luz viajaram ao céu e
belos jovens, com as mesmas faces, mas se tornaram o Sol e a Lua e todo o céu se
haviam ressurgido como homens-peixes. iluminou sobre o leito da Terra.
Como homens-peixes, os dois se traja- O início da terceira parte do Popol vuh
vam como pobres miseráveis que dança- é marcado por um episódio que, de algum
vam e faziam grandes prodígios para os modo, lhe é central, pois para ele concorrem
senhores do Xibalbá, como queimar casas as criações anteriores, a dos animais e as
e fazê-las ressurgir, se esquartejar um ao dos seres humanos de barro e de madei-

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ra, e dele derivam todas as histórias que mover de onde estavam para conhecer tudo
serão narradas depois, seja nessa terceira o que existia, pois seu entendimento e seu
ou na quarta parte da obra. Trata-se da olhar atravessavam florestas, rochas, lagos,
criação dos homens e mulheres que serão mares, montanhas e vales. Considerando
os primeiros pais e mães dos narradores que isso não era bom, pois desse modo
quichés do Popol vuh. Para fabricar essa os seres humanos não procriariam, não se
nova gente e completar a criação com seres multiplicariam, não semeariam e, assim,
que iriam prover o sustento dos deuses, os não haveria amanhecer, os deuses decidiram
seres prodigiosos, A-que-Concebe, O-que- em conselho alterá-los um pouco, para que
-Gera, O Criador, O Formador, Tepeu (Ma- vissem somente o que estava perto: Cora-
jestade) e Gucumatz (Serpente Emplumada) ção do Céu bafejou sobre os olhos desses
reuniram-se em conselho antes da aurora homens, embaçando-os como a um espelho.
para buscar o que deveria compor a carne Os mesmos deuses criaram então quatro
e sangue dos humanos. Optaram pelo mi- mulheres, que chegaram primeiro em so-
lho. Convocaram, em seguida, os animais nho aos quatro homens, mas que passaram
para procurar o milho e foram Yac (Raposa a existir quando eles despertaram. Assim,
Cinzenta), Utiú (Coiote), Quel (Periquito) e se formaram os primeiros quatro casais da
Hohn (Corvo) que encontraram e recolhe- gente de milho: Cahá-Paluna (Água Rubra
ram espigas de milho amarelo e espigas de do Mar) e Balam-Quitzé (Jaguar Risonho);
milho branco na Montanha do Sustento, em Chomihá (Água Formosa) e Balam-Acab
Paxil (Lugar da Fenda) e Cayalá (de Água (Jaguar Noite); Tzununihá (Água do Colibri)
Amarga), onde também havia cupuaçu, cacau e Mahucutah (O-que-Nada-Oculta); e Ca-
e inumeráveis sapotis, graviolas, ciriguelas, quixahá (Água da Arara) e Iqui-Balam (Ja-
muricis, sapotas-brancas e mel. As espigas guar Lua).
foram moídas nove vezes por Ixmucané, a A partir desse ponto, ainda em sua ter-
avó dos gêmeos que derrotaram os senhores ceira parte, a narrativa do Popol vuh apre-
do Xibalbá, e, junto com água descoberta senta os episódios relacionados à multipli-
também pelos animais, formaram a massa cação desses seres humanos, que ocorre
que comporia a carne dos seres humanos. na escuridão, antes do primeiro amanhecer
Assim surgiram quatro novos homens dessa nova idade. Nessa época, se forma-
e primeiros pais dos quichés e dos outros ram diferentes tipos de gentes e com mo-
povos maias: Balam-Quitzé (Jaguar Riso- dos de vidas variados: gente de pele escu-
nho), Balam Acab (Jaguar Noite), Mahu- ra ou clara, com muitas faces ou formas
cutah (O-que-Nada-Oculta) e Iqui Balam diferentes, gente da montanha que vagava
(Jaguar Lua). Esses novos seres, além de sem casa e era menosprezada pelas outras
falar, conversar, ver, ouvir, andar, tatear e, comunidades. Independentemente das di-
principalmente, agradecer aos seus criado- ferenças, todos esperavam o amanhecer e
res, eram prodigiosos e se igualavam aos ainda não possuíam seus deuses protetores.
deuses. Eles podiam ver e conhecer sem Mas cansados de esperar e impulsionados
obstáculos o que havia sob o céu e no leito pela grande quantidade de pessoas e tri-
da terra, ou seja, eles não precisavam se bos, alguns resolveram sair para procurar

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os deuses protetores para si e seus descen- A partir dessa situação, a narrativa do


dentes e, também, procurar o que deveriam Popol vuh entra em sua quarta e última
queimar diante desses protetores. parte, caracterizada pela fase final da mi-
Tinham notícias da existência de uma gração e pela ascensão política dos quichés,
cidadela mais antiga e os quichés, lidera- que passaram a dominar outras comunidades
dos pelos seus quatro primeiros senhores, maias. Para isso, os quichés ofereciam o
Balam-Quitzé, Balam-Acab, Mahucutah e próprio sangue ou o sangue de animais a
Iqui-Balam, e juntos com outras duas tribos Tohil, Avilix e Hacavitz, a quem pediam vi-
quichés, os tamub e os ilocab, marcharam gor e os meios e conselhos para derrotar as
para essa cidadela em algum lugar do Orien- outras tribos. Ainda habitando montanhas,
te: Tulán-Zuiuvá ou Lugar dos Juncos e Sete os quichés passaram a raptar pessoas que
Cavernas, que era governada por ninguém andavam sozinhas ou em duplas e sacrificá-
menos que Gucumatz (Serpente Empluma- -las diante de Tohil e Avilix. Deixavam
da). Lá, receberam seus deuses protetores, suas cabeças pelos caminhos, com sangue
que lhes foram dados nessa ordem: primei- espalhado, e produziam pegadas de jaguar
ramente, Tohil foi dado a Balam-Quitzé, para que as tribos vizinhas pensassem que
Avilix a Balam-Acab, Hacavitz a Mahucu- essas pessoas haviam sido devoradas por
tah, Nicahtacah a Iqui-Balam; depois, os esses animais. Essa estratégia funcionou
tamub receberam Tohil; em seguida, os ilo- por muito tempo, mas as outras tribos se
cab também receberam Tohil. Depois dos deram conta do que estava ocorrendo, reu-
quichés, chegaram os outros povos maias, niram-se em conselho e decidiram montar
como os rabinales e os cakchiqueles. uma artimanha para capturar Tohil, Avilix
Desse ponto em diante, a narrativa se e Hacavitz e adotá-los como seus próprios
concentra em episódios que tratam de ou- deuses tutelares. Mas o plano não é bem-
tras aquisições dos quichés durante sua -sucedido e eles resolvem atacar os quichés
estadia em Tulán-Zuiuvá, como o manejo em sua montanha. Embora muito mais nu-
e a produção do fogo, a atividade guerrei- merosos, os 24 mil guerreiros aliados foram
ra, o autossacrifício de sangue e o sacrifí- derrotados pelos prodígios de Tohil, que
cio de cativos de guerra a Tohil. Mas ali, adormece os guerreiros inimigos antes de
lhes adverte Tohil, não era a casa deles chegarem à montanha dos quichés, e pelos
e eles deveriam partir para procurar sua estratagemas dos quatro senhores quichés,
morada definitiva. Assim, juntamente com que construíram uma paliçada e dispuseram
muitas outras tribos, os quichés partiram bonecos adornados atrás dela, que os ini-
de Tulán-Zuiuvá antes do primeiro ama- migos pensaram ser guerreiros. Além disso,
nhecer, carregando seus deuses tutelares: fizeram armadilhas com vespas, zangões e
Tohil, Avilix e Hacavitz. É, portanto, no mamangavas que atacavam e atordoavam os
caminho, enquanto habitavam montanhas e inimigos, que eram, então, atacados pelos
não tinham boa comida ou bebida, que os homens e mulheres quichés. Desse modo,
quichés e os outros povos testemunharam os quichés derrotaram todas as tribos de
o primeiro amanhecer, que foi o mesmo uma só vez e elas passaram então a lhes
para todas as tribos que existiam. render submissão política.

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Depois de algum tempo, os quatro primei- poder dos quichés que narram o Popol vuh,
ros senhores quichés, Balam-Quitzé, Balam- ou seja, os quichés-cavec, que, junto com os
-Acab, Mahucutah e Iqui-Balam, pressenti- quichés-nihaib e os ahau-quichés, constituem
ram suas mortes. Reuniram seus filhos, lhes uma mesma comunidade política, formada
pediram para não serem esquecidos, lhes por três casas grandes que, juntas, fundam
aconselharam a continuar a busca de suas e fortificam a cidade de Izmachí, que ainda
moradas definitivas e deixaram um sinal de não seria a sua morada final.
sua existência, um envoltório esplendoro- Já se encaminhando para o final, o Po-
so, que ninguém ousava abrir, mas apenas pol vuh narra a última fase da migração
queimar incensos e resina de copal diante dos quichés, quando eles deixam Izmachí e
dele. Em seguida, desapareceram no alto da se dirigem para Gumarcaah, sua capital e
montanha Hacavitz e não foram enterrados derradeira cidade, também chamada de Uta-
por suas mulheres e filhos. tlán, como mencionamos antes. Quando isso
Após a morte dos pais, Qocaib (filho de ocorreu, tiveram por senhores principais a
Balam-Quitzé), Qoacutec (filho de Balam- Cotuhá e Gucumatz (Serpente Emplumada),
-Acab) e Qoahau (filho de Mahucutah) – Iqui- que governavam junto com muitos outros
-Balam não teve filhos – decidiram viajar senhores. Eles seriam a quinta geração desde
ao Oriente, para receberam a investidura do a origem da luz, desde a formação do ser
poder e retornarem aos quichés como senho- humano. Mas parece que o crescimento do
res legítimos. Chegaram ao reino de Nacxit, poder político e da riqueza tributária trouxe
grande senhor juiz único de um grande do- discórdias entre os quichés no momento de
mínio, que lhes deu as insígnias de poder: arranjarem seus casamentos e eles resolve-
um pálio, um trono; uma flauta de osso, ram, então, se dividirem em mais linhagens
um tam-tam; pó resplandecente, argila ocre; do que as que já existiam. Dividiram o pode-
presa de leão-baio, presa de jaguar; cabeça rio dos senhores em 24 casas grandes: nove
de veado, pata de veado; bracelete de couro, senhores eram cavec; nove senhores eram
chocalho de concha; cabaça de tabaco, tigela nihaib; quatro senhores eram ahau-quiché;
de comida; e penas de papagaio, penas de dois senhores eram zaquic, que tinham du-
garça-real. Além disso, os intitulou Ahpop as linhagens, mas apenas uma casa grande.
(Guardião da Esteira) e Ahpop-Camhá (Guar- O Popol vuh narra, em seguida, o cresci-
dião da Esteira da Casa do Recebimento). mento contínuo do esplendor quiché, que se
Ao regressarem a Hacavitz, sua primeira expressa na construção de templos e casas
cidadela, foram recebidos com alegria pelos dos senhores e na multiplicação dos filhos
tamub e ilocab, que também eram tribos de suas linhagens. Além disso, muitas das
quichés, e por todas as outras tribos ao re- comunidades políticas teriam passado a se
tomarem os governos. A partir de então, o submeter voluntariamente aos quichés, por
Popol vuh apresenta os locais em que os respeito aos prodígios que seus senhores
quichés se estabeleceram por algum tem- realizavam e ao esplendor que irradiavam
po ou as cidadelas que fundaram durante a Gucumatz e Cotuhá, seus principais senhores
migração. Apresenta também o começo dos e que possuíam natureza prodigiosa. Gu-
conflitos com os ilocab e o crescimento do cumatz era capaz de subir ao céu e descer

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ao Xibalbá, de tomar a natureza, forma e produziram o Popol vuh abrange muito mais
aparência de uma cobra, águia, jaguar ou do que a história de seu grupo, pois a en-
poça de sangue. trelaça tanto com a história de outros gru-
Em suas últimas páginas, o Popol vuh pos maias como com a história de outros
traz os detalhes do poderio dos três ramos povos indígenas da Mesoamérica, como os
ou nações quichés – dos quichés que nar- nahuas. Além disso, entrelaça essa história
ram o Popol vuh, dos tamub e dos ilocab grupal e regional com a de todas as tribos
– com ênfase no primeiro grupo e seus e nações indígenas contemporâneas a eles,
três conjuntos internos de linhagens, ou aos maias-quichés, pois todas seriam com-
seja, os cavec, que escrevem o Popol vuh, postas pelas mulheres e homens de milho
os nihaib e os ahau-quichés. É a época da cujos antepassados viram o mesmo e pri-
quinta geração de senhores em diante, de meiro nascimento deste Sol e Lua atuais.
senhores menos prodigiosos do que Gucu- Vai ainda além. Aponta que essa grande
matz e Cotuhá. O livro termina com essa história ou idade dos seres humanos de mi-
espécie de panorama dos senhores, linha- lho não é a única, pois o mundo conheceu
gens e casas grandes, que vai até a época de humanidades e sóis anteriores, dando a en-
produção do próprio Popol vuh, isto é, até tender que o mundo-idade atual não é um
meados do século XVI. Os últimos dessas cenário pronto, acabado e estável, onde se
12 gerações de senhores mencionados são desenrola a história dos homens e mulheres
Oxib-Qeh e Beleheb-Tzi, que foram enfor- de milho. Ao contrário – e isso está expli-
cados depois da conquista de Gumarca- citamente presente em vários outros textos
ah pelos espanhóis e indígenas nahuas e maias e mesoamericanos –, o mundo atual
cakchiqueles. Os nomes dos soberanos da continua a ser instável e a estar sujeito a ca-
décima terceira e da décima quarta gera- taclismos e reviravoltas que irão transformar
ção, que já pagavam tributos aos espanhóis, a sua face e as sociedades humanas e não
são mencionados em seguida, assim como humanas que o habitam. Em outras palavras,
a relação das nove linhagens e das nove diferentemente da cosmologia judaico-cristã,
casas grandes dos cavec e dos nihaib, e das a feitura e produção do mundo não estão
nove linhagens e quatro casas grandes dos apenas em seu início, mas são um processo
ahau-quichés. Trata-se do mapa político de contínuo, cumulativo e marcado por grandes
uma nação derrotada e subordinada política e constantes transformações e metamorfoses
e tributariamente, mas não destruída. Uma no que chamamos mundo natural e social.
afirmação ou manifesto quiché da vigência Talvez isso nos pareça hoje bastante fami-
de sua estrutura comunitária no período liar e razoável como forma de olhar para o
colonial, assim como do papel das histórias mundo, pois coincide com ideias centrais às
e da cosmologia contidos nela. cosmologias científicas em vigor. No entan-
to, seu conteúdo é altamente contrário ao da
CONVITE À LEITURA cosmologia judaico-cristã com a qual o pen-
samento maia se defrontou a partir do século
Como se pode observar nessa breve sín- XVI e que vigorou no mundo ocidental com
tese, a perspectiva dos maias-quichés que exclusividade até muito pouco tempo atrás.

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Não bastasse essa amplíssima perspecti- humanidades, que não são em nada inferiores
va temporal, social e cosmológica, os maias- às humanidades de matriz europeia que hoje
-quichés nos mostram ainda uma ampliação habitam e dominam politicamente o conti-
em outra direção: a dos agentes que parti- nente americano. São apenas humanidades
cipam dessas histórias e cosmologias. Além diferentes e que foram, em enorme medida,
dos deuses e homens, o mundo dos quichés despojadas de suas autonomias políticas e
conta com a participação de muitos outros territoriais nos últimos cinco séculos. Essa
agentes, como seres humanos prodigiosos, relativa vitória do mundo ocidental e cristão
mortos, guardiões das florestas, montanhas sobre essas humanidades indígenas é uma vi-
e rios, animais, vegetais e até mesmo obje- tória bélica e política, que lhes impõe adotar
tos. Vale notar que os animais e objetos, por ou negociar com uma forma de pensamento
exemplo, são apresentados no Popol vuh como que não é superior ou mais avançada que
agentes completos, ou seja, com vontade, pen- a deles próprios. Sendo assim, os povos e
samento e linguagens próprios; e não como nações indígenas não são resquícios do pas-
entes que seriam animados ou manipulados sado, sobreviventes imutáveis de uma etapa
pelos deuses para realizar os seus desígnios. anterior em uma história universal, etapa
Além disso, assim como em outras cosmolo- essa que já teria sido percorrida e supera-
gias ameríndias, a condição existencial desses da pelas sociedades cristã-ocidentais. Esses
agentes deve-se mais a um estado ou posse juízos de valores ou classificações baseados
de um tipo de corpo ou pele do que a al- na ideia de progresso são, claramente, parte
gum tipo de essência fixa e imutável. Sendo de um discurso, de uma ideologia criada e
assim, embora perigoso, as fronteiras entre imposta como verdade histórica pelas pró-
esses estados podem ser transpostas quando prias sociedades cristã-ocidentais que hoje
os corpos ou peles são alterados: os deuses controlam social e politicamente todos os
podem se tornar animais; os animais podem Estados-nações do continente americano,
se tornar humanos; os humanos podem se onde essas humanidades indígenas conti-
tornar montanhas ou deuses etc. nuam e continuarão a viver. Infelizmente,
Essas são algumas razões para ler o Po- a relação entre as sociedades nacionais de
pol vuh e empreender uma experiência que é matriz europeia e as populações indígenas
singular, pois nos traz a sensação de adentrar, continua a ser marcada pela violência con-
pouco a pouco, formas de pensamento que tra essas populações, pelo despojamento de
surpreendem, enfatizam aspectos inespera- suas terras e pelo genocídio premeditado
dos da realidade e constroem personagens, dessas humanidades indígenas, as quais, aos
tramas, tensões e desfechos narrativos ab- olhos de muitos ocidentais, são apenas povos
solutamente originais quando comparados atrasados e decadentes que atravancam o
aos que se encontram presentes nas histórias desenvolvimento suicida da civilização téc-
e cosmologias da antiguidade clássica ou nico-industrial-capitalista e que mancham a
judaico-cristã. Assim, e como muitas outras existência de Estados-nações que deveriam
histórias e cosmologias ameríndias, o Popol ser, segundo essa visão prepotente e narci-
vuh nos mostra que é possível construir e sista, homogêneos e uniformes em termos
narrar outros mundos, habitados por outras étnicos e culturais.

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EDIÇÕES BRASILEIRAS EM PORTUGUÊS DO POPOL VUH

Temos a fortuna de contar com duas edições recentes dialmente na mais famosa e talvez mais lida tradução
e primorosas do Popol vuh em português em nosso país. ao espanhol do Popol vuh, a de Adrián Recinos. Partin-
A edição com organização e tradução de Gordon do dessa versão ao espanhol, a tradutora realizou um
Brotherston e Sérgio Medeiros foi a primeira publicada trabalho excepcional e muito robusto, pois comparou
em português no Brasil, em 2007, e supriu essa grave a versão de Adrián Recinos com mais oito traduções do
lacuna de nosso mercado editorial. Os dois estudiosos Popol vuh a línguas ocidentais e, também, ao próprio
se basearam primordialmente na tradução ao inglês do texto em maia-quiché. O resultado é uma tradução
maia-quiché de Munro Edmonson, do começo dos anos crítica de alto valor para aqueles que se interessam
1970, mas eles também consultaram outras traduções pelas pesquisas sobre os maias e sobre o Popol vuh.
a idiomas ocidentais, além do próprio texto em maia- No entanto, toda essa carga de estudos e debates é
-quiché, que consta nessa edição ao lado da versão em sabiamente apresentada, nessa edição, em notas que
português. Nessa edição, destacam-se o imenso zelo se encontram após o texto em português, o qual é
e acuidade com a palavra de Sérgio Medeiros, que é lido de modo fluente e tranquilo. Além disso, contribui
poeta e ensaísta, e o vastíssimo conhecimento de Gor- para essa leitura fluente a apresentação de traduções
don Brotherston, um dos mais destacados conhecedores ao português dos nomes em maia-quiché dos deuses,
mundiais dos códices mesoamericanos e das histórias animais e plantas, pois muitos desses animais e plantas
e cosmologias ameríndias de modo geral. nos são familiares, já que os maias-quichés habitam
A edição com tradução de Josely Vianna Baptista foi ambientes tropicais ou tropicais temperados, seme-
publicada recentemente, em 2019, e se baseou primor- lhantes aos que existem em boa parte de nosso país.

Popol vuh, organização e tradução de Popol vuh – O esplendor da palavra antiga


Gordon Brotherston e Sérgio Medeiros, dos maias-quiché de Quauhtlemallan:
São Paulo, Iluminuras, 2007, 480 pp. aurora sangrenta, história e mito, tradução
crítica e notas de Josely Vianna Baptista,
São Paulo, Ubu Editora, 2019, 384 pp.

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