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HISTÓRIA DA AMÉRICA PRÉ-COLOMBIANA

Profª Maria Cristina Bohn Martins


UNISINOS

1 - O PÓS-CLÁSSICO AMERICANO

1.1 Os Astecas de Tenochtitlán

1.2 A Confederação Asteca

1.3 A morte e o princípio gerador da vida

1.4 O Império Inca

1.5 Tenochtitlán e Cuzco

1.6 Incas e astecas: cosmologia e cosmovisão

O PÓS-CLÁSSICO AMERICANO

A crise que afetou os grandes centros urbanos marcando o final do Período Clássico e que se encerra por
volta do século X dC, é um tema que deve ser compreendido a partir de fatores e situações diversas.
Como vimos, Teotihuacán que chegou a ser centro de uma cultura bastante influente em toda a
Mesoamérica, atingindo um território de cerca de 30 quilômetros quadrados e contando com cerca de
200 mil habitantes, foi incendiada, perdeu sua população e entrou em colapso.

Este processo de abandono é similar ao que ocorreu, em tempos diversos, em outros reinos e cidades-
Estados mesoamericanas do clássico. Muitos centros urbanos maias, por exemplo, sofreram destinos
semelhantes nos séculos seguintes, numa série de eventos frequentemente referidos como o “colapso
dos maias clássicos” que parece estar associado, em alguns casos, ao deslocamento de rotas comerciais
que sustentavam sua riqueza, crises ambientais e econômicas que levavam ao desprestígio dos reis.

Na região andina, por sua vez, o colapso do Reino Moche parece advir de uma grave crise econômica
resultante da desorganização do seu sistema produtivo em virtude do fenômeno climático El Niño, a que
se seguiu um período de crise e conflitos em disputa por recursos que se tornaram escassos.

Entre os séculos IX e X da Era Cristã, as cidades do Clássico tinham perdido sua influência, havendo uma
reorganização dos centros mais importantes e remodelação das áreas de influência das sociedades. Há
grandes movimentos populacionais, conflitos e crescente militarismo. proporcionando o surgimento de
novos centros de poder. Nas novas entidades políticas, o poder teocratizante que havia marcado a Época
Clássica é suplantado por autoridades seculares (não religiosas) sustentada por guerreiros, embora os
fundamentos religiosos do poder não tenham sido completamente anulados.

Entretanto, assim como não se pensa mais o Clássico como um tempo de governantes pacíficos,
devotados ao estudo dos astros e especulações filosóficas, ideia muito influente no que concerne aos
maias1, como já vimos, os governantes do Pós-Clássico também merecem uma ideia mais matizada. Com
efeito, compreendê-los em guerras constantes para obter presas para ritos de sangue também é um
estereótipo. Apesar disto, é certo que os novos Estados terão um perfil mais militarista, o que é distintivo
do Pós-Clássico. As expressões artísticas e culturais também sofreram agudas transformações. A
escultura, especialmente a religiosa, tornou-se, mais severa, hierática e marcial. Na arte pós-clássica, os
principais motivos ligavam-se à guerra e à força física e os sacrifícios humanos eram um tema recorrente.

1O avanço no processo de decifração da escrita maia e novos achados arqueológicos contribuíram para uma revisão
destes temas, e os reis maias têm emergido dos novos estudos, liderando Estados belicosos.
No Pós-Clássico, que se estende entre o século X e o XV, quando a América será invadida pelos europeus,
o militarismo, as guerras de conquista e a tributação serão a forma de relacionamento privilegiada entre
os novos reinos e impérios. Realmente, apesar da historiografia tradicional da época clássica, com sua
visão de sociedades pacíficas em grandes metrópoles teocráticas estar desacreditada, não se pode negar
a diferença entre estes reinos anteriores e entidades políticas de caráter mais claramente secular e forte
conteúdo militarista do pós-clássicos. A secularização progressiva da sociedade, o militarismo e o
aparecimento de estilos artísticos que se afastam dos temas religiosos do período anterior, bem como as
guerras de expansão, desenham o panorama americano depois do ano mil. O que se segue de imediato é
um período de reacomodação, deslocamentos populacionais e instabilidade política. Os novos centros de
poder instaurados neste período, não buscavam apenas o domínio econômico através do controle de
rotas comerciais. Buscavam, também, a submissão política e fluxos tributários em favor das novas
capitais. Na região andina, num primeiro momento, observa-se um processo de unificação política a partir
do Império Chimu cuja capital era Chan-Chan, a que já nos referimos, desde o século XII até o século XV.
Foi o reino costeiro mais próspero e poderoso de América andina pré-colombiana.

Esta integração alcançou seu momento mais expressivo com os Incas de Cuzco no século XIV. Eles
conquistarão o reino chimu e o incorporarão ao seu império. A estes e outros reinos e senhorios, os incas
de Cuzco vão impor sua língua e trabalhos [mita] em favor do império. Soldados para o exército inca eram
recrutados como pagamento de tributos e organizavam-se de acordo com suas comunidades de origem,
o que gerava uma aberta competição entre os grupos. Os incas não celebravam a guerra como fizeram os
astecas, mas não deixaram de usá-la para ampliar territórios e grupos de trabalhadores submetidos. Os
revoltosos eram severamente punidos, e o Inca bebia em taças feitas do crânio dos inimigos.

Na área mesoamericana, o período se inicia com acentuada fragmentação das entidades políticas. O vazio
de poder vai ser preenchido por novos estados que tentam restaurar e controlar as rotas comerciais
tradicionais. A forte competição acentuou o militarismo e a instabilidade política, o que ajuda a
compreender os deslocamentos de vastos contingentes populacionais, impulsionados uns pelas guerras,
outros pela fome, buscando espaços aráveis, ou aventuras de conquista.

Provavelmente fatores ambientais adversos estiveram na origem das migrações de populações


setentrionais para o centro do México, entre elas os habitantes de Aztlán, entre os quais os que seriam
conhecidos como mexicas [que chamamos astecas]. Genericamente, todos estes povos do norte, recém
chegados a terras de alto grau de urbanismo e civilização, eram chamados de chichimecas, isto é,
“bárbaros”. Ao se estabelecerem no planalto do centro do México, eles irão absorver elementos das
avançadas culturas urbanas da área, bem como influenciá-las com seu militarismo. Os mais conhecidos
serão os fundadores da cidade de Tenochtitlán, os mexicas, adoradores de Huitzlopochtli.

Os códices indígenas e as representações visuais do século XVI fazem referência às ordens militares que,
no caso dos astecas, eram corpos de elite de guerreiros profissionais vestidos como animais ferozes: águia,
jaguares e coiotes, que se reuniam em torno de cultos particulares. A carreira militar gerava prestígio e
podia conduzir à ascensão social daqueles que se destacavam na captura de inimigos. O militarismo estava
associado ao mito do Quinto Sol, que colocava os astecas como o povo cujo destino e cujo dever era
manter satisfeitos os deuses e a ordem do universo a partir da oferta do “líquido precioso”, o sangue dos
sacrificados. Os sacrifícios não foram uma criação dos astecas, mas ganharam com eles uma nova
dimensão, sendo que o mito dos “guerreiros do Quinto Sol” como chamavam asi próprios, dava um
sentido sagrado às guerras e conquistas.

Embora os Impérios Asteca (Mesoamérica) e Inca (Região Andina) não tenham sido as únicas entidades
políticas deste tipo em seu tempo, são, sem dúvida, os mais significativos e eram dominantes quando da
chegada dos espanhóis e da Conquista da América. O contato que tiveram com os europeus nesta
situação, contribuiu para que se gerasse uma massa documental que é muito importante, com os devidos
cuidados metodológicos, para que se possa estudar sua história2.

OS ASTECAS DE TENOCHTITLÁN

Costuma-se chamar de “astecas” aos fundadores da cidade de México-Tenochtitlán, povo dominante na


Mesoamérica ao tempo da conquista espanhola. Entretanto, eles próprios chamavam a si de mexicas ou
tenochas3. O nome “asteca” surgiu depois, relacionando-se a Aztlán, local de onde, segundo um relato
mitológico, diversas populações de fala nahuatl, entre os quais mexicas, teriam saído para dar início a
uma longa migração que os levou até o Vale do México onde fundaram, em 1325, a cidade de
Tenochtitlán4.

No vale, situado no planalto de Anahuac, os mexicas encontraram cidades e tradições culturais muito
antigas, que se desenvolviam na Mesoamérica desde o Pré-Clássico, às quais acrescentaram elementos
que lhes eram próprios. Exemplo disto, foi um panteão de deuses, entre os quais Tlaloc e Quetzacoatl, a
“Serpente de plumas, ao qual introduziram divindades como Tezcatiploca5 e Huitzilopochtli 6

2 A análise destes documentos deve levar em conta que se trata de uma perspectiva eurocêntrica, isto é, que parte
do ponto de vista dos europeus e, ainda, que estes buscam justificar suas ações de conquista. Desta maneira, embora
algumas fontes registrem sua admiração sobre certos elementos (cidades, capacidade de produzir alimentos, por
exemplo), há uma forte condenação moral sobre sua religião e práticas sociais. Há também um ajuizamento sobre o
fato de serem, eles próprios, conquistadores e tiranos, o que justificaria as ações dos espanhóis.
3 Quando Cortez e seus homens se dirigiram para Tenochtitlhan, ouviram os inimigos dos astecas se referirem a eles

como colhua-mexica”.
4 Documentos pré-hispânicos e cronistas coloniais contam sobre um lugar chamado Aztlán, embora hoje sua

localização não seja conhecida, nem haver consenso sobre se realmente existiu. Seus habitantes seriam os astecas:
"aqueles que vêm de Aztlan". De acordo com várias fontes, no ano 1-Técpatl, 1064 do calendário atual, uma fração
do povo asteca ouviu o chamado do deus Huitzilopochtli, que lhes prometeu uma nova terra para viver. Eles teriam
que deixar Aztlan e encontrá-la, lá teriam riquezas e seriam poderosos. Então realizaram uma peregrinação que teve
várias etapas para finalmente chegar ao lago de Texcoco (onde se ergue hoje a capital mexicana) em que fundaram a
cidade de México-Tenochtitlan, embora isso não tenha acontecido imediatamente após a chegada. Acredita-se que
foi no ano de 1325. Aí criaram a sua própria identidade e, apesar de terem vindo de Aztlán, não se identificaram como
astecas, mas como "mexica", que na língua náuatle significa "aqueles de México".
5Tezcatlipoca (Espelho de Fogo ou Espelho Ardente) é a deidade suprema do povo asteca; é o deus do céu noturno,

da lua e das estrelas, senhor do fogo, da magia, da vida e da morte. Uma das figuras mais temidas do panteão asteca,
criador do mundo, vigilante das consciências. Às vezes é representado como um jaguar. Ele carregava um espelho ou
um escudo, do qual tomava seu nome, e no qual ele deveria ver refletidas as ações da humanidade. Originalmente é
a personificação do ar, fonte do sopro de vida tanto como da tempestade, ele possuía todos os atributos de um deus
que presidia esses fenômenos. Tezcatlipoca avançou tão rapidamente em popularidade e honra pública que num
espaço de tempo comparativamente curto, passou a ser considerado um deus do destino, da fortuna e
inseparavelmente ligado ao destino do povo asteca. Era, também, o deus mais temido em Anahuac, portanto aquele
cujo o culto rapidamente ofuscou o de outros e deuses semelhantes. Ele era a personificação do vento, doador de
vida, mas também podendo destruir a existência. Era geralmente retratado segurando em sua mão direita um dardo
em um atlatl (lançador de lança), e seu escudo de espelho com dardos de reposição na esquerda. Este escudo é o
símbolo de seu poder como juiz da humanidade e defensor da justiça humana. Outros deuses eram venerados para
algum propósito especial, mas o culto de Tezcatlipoca era considerado obrigatório. Era quem protegia contra a
destruição do universo, uma calamidade que os nahuas tinham sido levados a acreditar que poderia ocorrer. Sua
maior festa era o Toxcatl, realizado no 50 mês, quando era morto um jovem prisioneiro, escolhido cuidadosamente e
preparado durante um ano inteiro. Ganhava vestimentas de Tezcatlipoca e era admirado por toda a população,
recebia donzelas de alta classe e era entretido nas mesas da nobreza como representante terreno do deus.
6Huitzilopochtli ("Beija Flor") ocupou no panteão asteca um lugar semelhante ao de Marte no panteão romano como

deus da guerra. Foi dele a profecia anunciada aos sacerdotes para dar início à migração que conduziu o povo de Aztlán
para o Vale do México. Sua imagem estava cercada de serpentes e apoiada em bastões em forma de serpente. Seu
cetro era uma única cobra e seu grande tambor era de pele de serpente. Como o “deus da serpente do relâmpago”,
ele tinha uma conexão com o verão, a estação do relâmpago, e, portanto, domínio, em certa medida, sobre as
colheitas e os frutos da terra. Os nahuas acreditavam que Huitzilopochtli podia conceder-lhes tempo bom para a
frutificação de suas colheitas, e colocaram uma imagem de Tlaloc, o deus da chuva, perto dele, para que, se
necessário, o deus da guerra pudesse obrigar o deus da chuva a exercer seu papel ou abster-se de criar inundações.
Devemos ter em mente a conexão, na consciência dos povos nahuas, entre o panteão, a guerra e a provisão de
alimentos. Se a guerra não fosse travada anualmente, os deuses ficariam sem alimentos carnais e pereceriam, e se os
Códice Mendoza

Os astecas dominaram um extenso território, que os especialistas hesitam em chamar de “império”, pela
falta de uma centralização político-administrativa característica deste tipo de organismo; preferem,
assim, chamar esta entidade política de “confederação”. Fundada originalmente a partir de uma aliança
entre as cidades de Tenochtitlan, Texcoco e Tlacopan para combater o poderoso governante da cidade de
Azcapotzalco, senhor dos tepanecas, a confederação tinha como sede a capital dos astecas, a qual
sustentou seu poder a base da tributação que impunham às províncias conquistadas.

Tezcatlipoca e Uitzlopochtli

A maioria dos 38 alpepeme7 submetidos devia pagar tributo a uma das cidades principais [“cabeceiras”];
algumas tinham que fazê-lo para as três: alimentos, objetos de luxo, têxteis ou matérias primas, escravos,

deuses sucumbiam, as colheitas falhariam e a fome os destruiria. Por isso Huitzilopochtli era um dos principais deuses
do México.O festival principal de Huitzilopochtli era o Toxcatl, celebrado imediatamente após o festival de
Tezcatlipoca, com o qual tinha uma forte semelhança. Festivais deste deus eram realizados em maio e dezembro
quando uma imagem dele, moldada na massa amassada com o sangue de crianças sacrificadas, era perfurada pelo
Sacerdote com uma Flecha - um ato significativo da morte de Huitzilopochtli até sua ressurreição no ano seguinte. O
sumo sacerdote de Huitzilopochtli, o Mexicatl Teohuatzin, era considerado o chefe religioso do sacerdócio mexicano.
O conjunto de seus sacerdotes ocupavam o cargo por direito denascimento, e seu maioral exigia obediência absoluta
dos sacerdotes de todas as outras divindades, sendo considerado próximo ao próprio monarca em poder e domínio.
7 Altepetl [plural: altepeme] é um dos conceitos culturais mais importantes da Mesoamérica, sendo a forma de

“organização civil” por excelência de suas sociedades. Seu uso é preferente às variantes ocidentais "cidade", "vila" e
"pueblo". Em nahuatl, seu significado literal é "montanha de água". Trata-se de uma entidade tanto étnica como
territorial, em que se organizaram social e politicamente os povos mesoamericanos no período pós-clássico (c. de
1200 - 1521). Se refere aos assentamentos humanos titulares de um território habitado em geral por uma etnia que
ou outros bens. A quantia era determinada pelas possibilidades de cada região e pelo grau de resistência
que apresentavam, sendo os povos mais resistentes ou rebeldes, os mais sobrecarregados de impostos.
Tenochtitlan ocupava um lugar especial entre as 3 capitais e centralizava o recebimento dos tributos.

Vale do México, Lago Texcoco onde será fundada Tenochtitlán

reconhece antepassados comuns, assim como a língua e divindade protetora. Cada altepetl era governado por um
tlatoani, que podia liderar um ou vários deles. O governante de Tenochtitlán era tlatoani, conhecido como Huey
Tlatoani. Os astecas ou mexicas constituíram o altépetl mais poderoso de seu tempo, que dominou outros menores
mediante a tributação, escravização e a aceitação de Huitzilopochtli como divindade máxima.
O domínio de Tenochtitlán foi construído por meio de guerras, e os astecas alcançaram uma reputação
feroz a este respeito. Uma vez que um altepetl fosse submetido, ele tinha a obrigação de pagar tributos,
adorar os deuses astecas e obedecer à sua política externa. Em alguns casos, mantinha-se a linhagem
governante, possibilidade que acabava diante de rebeliões ou desobediência. Nestes casos, instigava-se
a população rebelde a depor seus senhores e entregá-los aos mexicas; quando a resistência persistia, a
carga tributária era aumentada. Os astecas não tinham um exército permanente. Apenas dois “corpos de
elite”, os “guerreiros águia” e os “guerreiros jaguar’, estavam dedicados em tempo integral aos combates.
Os demais cidadãos eram mobilizados para as campanhas, quando ocorriam.

. À esquerda, estátua de guerreiro águia encontrada


durante as escavações Templo Mayor de Tenochtitlan; à direita, representação de um “guerreiro jaguar”

O ataque a embaixadores do Estado Asteca ou a mercadores (pochtecas), ou ainda, o não reconhecimento


da superioridade dos seus deuses, eram motivos para iniciar uma guerra. O Códice Mendoza registra os
tributos devidos por 38 províncias que formavam a Confederação. O funcionário designado para
supervisionar a cobrança era o “calpixque”. Cada calpixque tinha seu “duplo” em Tenochtitlán, com a
tarefa de assegurar que os tributos chegassem na quantidade e tempo determinados. Este funcionário
era o principal

Codex Mendoza: tributos pagos pelas províncias


Realmente, o controle asteca sobre os principais centros nunca foi rígido, e certas zonas nunca foram
conquistadas. Como se pode ver no mapa abaixo, regiões não conquistadas e que eram enclaves em meio
ao território da confederação. Além de Estados independentes como Tlaxcala, ou de regiões fronteiriças
insubmissas (o Reino Tarasco), diversos vales e montanhas situados fora das rotas principais, nunca viram
um exército asteca. Assim, o “Império” antes série de centros importantes que um território contíguo.

Não houve esforço em impor a cultura dos astecas que, como dissemos, tendiam a respeitar os
governantes das cidades conquistados, permitindo que se mantivessem os que se submetiam e serviam
a seus interesses. Ademais, depô-los, a não ser em casos de ofensa especial, violaria o princípio
monárquico que sustentava sua própria autoridade.

O governante de cada altepetl era o tlatoani (orador; o que fala; plural: tlatoque) com um poder que era
militar, civil e religioso; o governante de Tenochtitlán era “huey tlatoani. Ele era uma representação divina
na Terra, mas não era considerado como uma encarnação das divindades ou seu descendente. Sua eleição
dava-se dentro de um “colégio eleitoral” composto de um grupo de nobres (pipiltin) da cidade. Uma vez
eleito, o imperador tinha como obrigações importantes o culto aos deuses (principalmente Uitzilopchtli e
Tezcatlipoca) e a proteção ao povo asteca. Era exortado a mostrar-se generoso, clemente e justo.

As outras cidades da confederação tinham também os seus tlatoque que, no caso das regiões submetidas,
deveriam ter seu nome aprovado por Tenochtitlán, o que permitia manter o controle político sobre elas.
O título era herdado dentro da linhagem, embora os detalhes desta sucessão variassem de um local para
o outro: irmão para irmão, pai para filho, etc. Em Tenochtitlán havia a preferência pelo irmão do soberano
morto. Os soberanos das diversas cidades mantinham vínculos familiares mediante uma ativa política de
casamentos promovida por Tenochtitlán, incentivando casamentos com membros da família real mexica.

Abaixo do Huey tlatoani, estava, desde o reinado de Itzcoátl (1426-1440), um “vice regente”: o cihuacoátl
[“mulher serpente”], que substituía o imperador quando ele estava ausente, organizava expedições
militares, julgava apelações e presidia o Grande Conselho nos intervalos entre um e outro reinado.

O imperador asteca no Códice Mendoza. De sua boca sai a representação de um som e ser
proferidor de “boas falas” para o povo era uma de suas obrigações.

Códice Tovar: “coroação” de Montezuma

No alto da hierarquia social estavam dignitários e sacerdotes. O título de tecuhtli (Senhor) distinguia os
que eram investidos das altas funções militares ou civis. Desobrigados de pagar impostos, eles recebiam
terras trabalhadas pelos camponeses [maceaultin], rendeiros ou escravos. Beneficiavam-se da
distribuição de tributos, recebendo, segundo sua posição, joias, plumas e pedras preciosas. Seu palácio
era mantido pelo poder público; dispunham de servidores, escravos, escribas e todo o tipo de
funcionários. Não se tratava de uma nobreza hereditária, sendo que feitos guerreiros podiam elevar a
posição de um homem. Em princípio, terras, domínios e palácios dos senhores não lhes pertenciam como
propriedade absoluta: eram usufruto em recompensa por suas ações destacadas. Contudo, as grandes
famílias tendiam a se perpetuar. O filho de um tecuhtli era intitulado pilli. Recebiam educação especial
impartida pelos sacerdotes no calmecac e determinados domínios (os pillalli). Eram os preferidos dos
soberanos na designação para embaixadores, governantes ou juízes. Ainda que enriquecida pela
contribuição de uma elite de origem popular, a aristocracia se consolidava com privilégios econômicos e
políticos. Se campanhas militares podiam dignificar indivíduos vindos dos grupos populares, também era
possível uma família nobre cair na obscuridade, se os filhos não mantivessem a tradição de serviços ao
Estado herdada dos pais. Em troca das vantagens que recebiam, os “tecuhtli” devotavam seu tempo e
energia ao serviço público; leis e costumes condenavam severamente os que se mostrassem indignos.

Apesar da importância da religião na vida asteca, as funções religiosas não se confundiam com as
governamentais. Havia uma hierarquia religiosa própria que compreendia dos simples servidores dos
templos de bairro, aos sacerdotes superiores que controlavam a prática do culto nas províncias. Havia 2
grandes sacerdotes (Serpentes de Plumas), iguais em título e poder: [um consagrado ao deus solar asteca
(Utzilopochtli) e outro à antiga divindade da água e da chuva, Tlaloc. O principal edifício religioso da cidade
era uma pirâmide com dois templos eu seu cume: um dedicado a Utzilopochtli e outro a Tlaloc.

Templo Mayor

Na capital cada deus tinha seu próprio santuário e servidores. Os principais sacerdotes eram nomeados
pelo Grande Conselho por mérito e conhecimentos. Eram celibatários e deviam cuidar dos cultos, da
educação dos jovens aristocratas no calmecac, e do resguardo das tradições nos livros sagrados. Eles não
pagavam impostos e levavam uma vida monástica dentro dos templos (que detinham grande riqueza) e
no calmecac. Eram representados no Grande Conselho que escolhia o imperador. Jovens dos dois sexos
podiam se dedicar ao serviço religioso, mas as funções mais elevadas eram exclusivas da aristocracia.

No extremo oposto da escala social estavam os maceaultin (singular: maceualli). Cidadãos comuns,
membros das comunidades (calpulli) que eram anteriores ao surgimento do Estado. Prestavam serviço
militar, pagavam impostos e estavam sujeitos ao trabalho coletivo em obras públicas. Com o casamento
adquiriam a maioridade, recebiam um lote de terras e podiam integrar um conselho reunido em torno do
chefe local. Seus filhos recebiam educação gratuita em escolas comuns. Cada camponês era um soldado
convocado quando preciso. Educação e religião pressionavam para a carreira militar, a via de ascensão
social disponível, pois a hierarquia militar era dada pelas façanhas dos guerreiros. Além das carreiras
militar e sacerdotal, uma multiplicidade de funções administrativas eram oferecidas aos homens do povo,
como escribas e mensageiros. A vida nas cidades também abria a possibilidade de ocupações urbanas.
Fólio do Codex Mendoza8 mostra um plebeu
subindo posições sociais ao obter prisioneiros guerra. Cada traje podia ser alcançado com o recolhimento de um
certo número de cativos

Certas atividades ligadas ao artesanato, como os trabalhos em ouro, pedras semipreciosas e plumaria,
eram altamente respeitáveis. Os artesãos dedicavam a elas eram conhecidos como “toltecas”, pois se
atribuía sua invenção à civilização de Tula, capital tolteca em séculos anteriores. Os artesãos agrupavam-
se em corporações com seus próprios bairros, deuses e ritos, como o culto a Xipe Topec. Tais ofícios eram
transmitidos de uma geração para outra dentro das mesmas famílias, sendo muito bem remunerados. Os
chefes das corporações as representavam diante dos tribunais. Seus impostos eram pagos em artigos da
sua especialidade e não estavam sujeitos à corveia, isto é, ao trabalho na terra dos nobres.

O pequeno comércio era exercido pelos próprios macehualtin nos mercados locais, enquanto os pochteca,
congregados em poderosas corporações, detinham o monopólio do comércio exterior. Com seu deus
particular, seus próprios chefes e tribunais, os pochtecas constituíam uma classe em ascensão, em uma
sociedade onde representavam a fortuna privada, o luxo e a opulência em contraste com o ideal austero
e marcial da classe dirigente. Assim como entre os artesãos e diferentemente do grupo sacerdotal e
militar, este grupo não recrutava novos elementos do povo, passando seu ofício de uma geração a outra
dentro das mesmas famílias. Sob o reinado de Auitzol (1486-1502), depois de sustentarem e vencerem
uma guerra contra povos insubmissos da região do Istmo de Tehuantepec, foram dados a eles alguns
privilégios e seu papel social foi elevado. Combatente enérgicos e fontes de preciosas informações sobre
regiões rebeldes onde não hesitavam em penetrar, frequentemente davam o pretexto bélico para
guerras. Seu status era intermediário entre o povo e a classe dirigente. Pagavam impostos e evitavam
mostrar riqueza, salvo quando dos grandes banquetes das corporações que marcavam sua condição
econômica. Seus filhos podiam frequentar as escolas especiais, mas eles não tinham representação no
Grande Conselho. Tal grupo mercantil estava em vias de consolidar seu lugar ao lado da aristocracia militar
e sacerdotal quando medidas do último governante barraram este processo.

Uma espécie de escravismo era imposto aos os indivíduos que se deixavam escravizar para pagar dívidas
(perdiam sua condição de homens livres, mas não seus bens), aos condenados pela justiça civil (não
cumpriam pena de prisão mas eram obrigados a trabalhos para a coletividade), e prisioneiros de guerra
destinados aos sacrifícios. Como no escravismo clássico, o escravo era aquele que perdia sua condição de
cidadão, mas era tratado como qualquer outro indivíduo do grupo. Podia possuir bens, terras e mesmo
outros escravos, bem como casar-se com mulheres livres. Seus filhos não eram escravizados. Ao que se

8 O Códice Mendoza (ou Códice Mendocino ou Codex Mendoza) é um códice asteca colonial, datado de c.1541. É
assim chamado porque foi encomendado pelo primeiro vice-rei da Nova Espanha, Antonio de Mendoza. Depois da
conquista do México, foi pintado por astecas, que usaram o formato pictórico e iconográfico antigo. Posteriormente
foi adicionado o texto em castelhano. O códice é constituído por 71 folhas de papel europeu e divido em três partes
sabe os astecas só conheceram o escravismo a partir de suas conquistas. Havia várias possibilidades de
liberdade: alforria, recompra, atos oficiais, testamento, pagamento da dívida.

Codex Mendoza: criação e educação de meninos e meninas


astecas. O documento informa como eram instruídos em diferentes tipos de trabalho, e como eram punidos por
mau comportamento

Astecas ou mexicas? E por que há confusão sobre isto? 9

O cenário do mito fundador do México, em 1325, tornou-se 5 séculos mais tarde, após a Independência
do país, seu símbolo nacional: ele está estampado no centro da sua bandeira, em moedas e documentos
oficiais, incluindo passaportes. É uma representação de um alegoria pré-hispânica relacionada aos
mexicanos por gerações: a de um povo que fez uma longa peregrinação antes de encontra o lugar em que
iriam prosperar.Segundo a mitologia asteca, uma profecia ordenou a migração que deveria se encerrar
onde o povo encontrasse, em uma ilha, uma águia pousada em um cáctus, devorando uma serpente.

9 Redación BBC News Mundo; 2 de setembro de 2020; Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-


5382875
Os mexicas eram herdeiros de uma tradição cultural milenar à qual acrescentaram elementos
novos que eram próprios deles. Dominaram um extenso território, que os especialistas hesitam em
chamar de “império”, pela falta de uma centralização político-administrativa característica deste tipo de
organismo; fala-se assim, em “confederação”. Fundada originalmente a partir de uma aliança entre as
cidades de Tenochtitlan, Texcoco e Tlacopan para combater o poderoso governante da cidade de
Azcapotzalco, senhor dos tepanecas, a confederação tinha como sede a capital dos astecas, a qual
sustentou seu poder a base da tributação que impunham às províncias conquistadas. Mesmo as duas
outras “capitais” reconheciam o status superior de Tenochtitlan.

O governante desta sociedade era o tlatoani (orador; o que fala; pl: tlatoque) com um poder que
era militar, civil e religioso. Havia um tlatoani em cada cidade principal; o governante de Tenochtitlán era
“huey tlatoani. Ele era uma representação divina na Terra, não sendo ele próprio considerado como uma
encarnação das divindades ou um seu descendente. Sua eleição dava-se dentro de um “colégio eleitoral”
composto de um grupo de nobres (pipiltin) da cidade. Uma vez eleito, o imperador tinha como obrigações
importantes o culto aos deuses (principalmente Uitzilopchtli e Tezcatlipoca) e a proteção ao povo asteca.
Era exortado a mostrar-se generoso, clemente e justo.

As outras cidades da confederação tinham também os seus tlatoque que, no caso das regiões
submetidas, deveriam ter seu nome aprovado por Tenochtitlán, o que permitia manter o controle político
sobre elas. O título era herdado dentro da linhagem, embora os detalhes desta sucessão variassem de um
local para o outro: irmão para irmão, pai para filho, etc. Em Tenochtitlán havia a preferência pelo irmão
do soberano falecido. Os soberanos das diversas cidades mantinham freqüentes vínculos familiares
mediante uma ativa política de casamentos promovida por Tenochtitlán, incentivando os casamentos com
membros da família real mexica.

Logo abaixo do Huey tlatoani, estava - desde os tempos do governante Itzcoátl (1426-1440), uma
espécie de “vice-governante”: o cihuacoátl [“mulher serpente”]. Ele substituía o imperador quando ele
estava ausente, organizava expedições militares, julgava apelações e presidia o Grande Conselho nos
intervalos entre um e outro reinado.

Imperador no Códice Mendoza


Códice Tovar: “coroação” de Montezuma

No ápice da hierarquia social estavam dignitários e sacerdotes. O título de tecuhtli - senhor -


distinguia os que eram investidos das altas funções militares ou civis. Isentos de impostos, eles recebiam
terras que eram trabalhadas pelos camponeses, rendeiros ou escravos. Beneficiava-se da distribuição de
tributos, recebendo, segundo sua posição, jóias, plumas e pedras preciosas. Seu palácio era mantido às
custas do poder público; dispunha de servidores, escravos, escribas e todo o tipo de funcionários.

De acordo com J. Soustelle não se tratava ainda de uma nobreza hereditária, e esta estaria em
processo de gestação.10 Em princípio as terras, domínios e palácios dos senhores não lhes pertencia como
propriedade absoluta, apenas como usufruto em recompensa por suas ações sobressalentes. Contudo, as
grandes famílias tendiam a se perpetuar. O filho de um tecuhtli era intitulado de pilli, tinha direito à
educação superior transmitida pelos sacerdotes no calmecac e recebia determinados domínios (os pillalli).
Eram os preferidos dos soberanos na designação para embaixadores, governantes ou juízes.

“Assim, ainda que constantemente enriquecida pela contribuição de uma elite de origem popular,
a aristocracia se consolidava com privilégios econômicos e políticos”11. Se, de um lado, campanhas
militares podiam levar a dignificação de indivíduos procedentes dos grupos populares, também era
possível de uma família nobre cair na obscuridade, caso os filhos não soubessem manter a tradição de
serviços ao Estado herdada por seus pais. Em troca das vantagens de que dispunham, os “tecuhtli” ou
“senhores”, devotavam todo seu tempo e energia ao serviço público, e as leis e costumes condenavam
severamente aqueles que se mostrassem indignos.

Apesar da importância considerável da religião na vida asteca (do alto dos templos, por exemplo,
o som das conchas e gongos saudavam o movimento dos astros e regiam a vida das pessoas), as funções
religiosas não se confundiam com as governamentais. Havia uma hierarquia religiosa própria que
compreendia dos simples servidores dos templos de bairro, aos sacerdotes superiores que controlavam a
prática do culto nas províncias J. Soustelle lembra que os espanhóis identificarão estes últimos com os
seus “bispos”.12 Dois grandes sacerdotes (Serpentes de Plumas), iguais em título e poder podem ser
identificados, um consagrado ao deus solar asteca (Utzilopochtli) e outro à antiga divindade da água e da
chuva, Tlaloc. O principal edifício religioso da cidade era uma pirâmide com dois templos eu seu cimo: um
dedicado a Utzilopochtli e outro a Tlaloc.

10SOUSTELLE, J. A civilização asteca. R.J: Jorge Zahar Ed.1987, p. 37


11idem, p. 38
12idem, p. 38
Eram nomeados pelo Grande Conselho com base no mérito e conhecimentos. Em Tenochtitlán
cada divindade tinha seu próprio santuário e servidores. Presos ao celibato, os sacerdotes, além das
obrigações de culto, deviam cuidar da educação dos jovens aristocratas e do resguardo das tradições nos
livros sagrados. Os templos chegavam a deter de grandes riquezas em terras e víveres, graças a devoção
com que eram contemplados. Os sacerdotes não pagavam impostos e levavam uma vida monástica
dentro dos templos e calmecac; eram representados no Grande Conselho e no Colégio Eleitoral que
escolhia o imperador.

A MORTE E O PROCESSO CRIADOR DA VIDA: O CASO DO MÉXICO PRÉ-HISPÂNICO

Se dice que, cuando aún era de noche, cuando aún no había luz, cuando aún
no amanecía, se juntaron, se llamaron unos a otros los dioses allá en
Teoticuacán. Se dijeron entre sí:

- Venid. Oh dioses! Quienes tomará sobre sí, quién llevará cuestas, quíen
alumbrará, quién hará amanecer?

Códice Florentino, Bernardino de Sahagun

Somos mortales / todos habremos de irnos, /todos habremos de morir en la


tierra... / Como una pintura, / todos iremos borrando. / Como una flor, / nos
iremos secando /... / Meditadlo, señores águilas y tigres, / aunque fuerais de
jade, / aunque fuerais de oro, / también allá iréis / al lugar de los descansos. /
Tendremos que despertar, / nadie habrá de quedar.

Netzahualcóyotl, príncipe de Texcoo (1391-1472)

Memória e história: os mesoamericanos:

A forma mais antiga de preservação da memória entre os povos nahualt13 do altiplano mexicano pode ser
encontrada naquilo que se traduziu como “tradição”: itoloca: “o que se diz de algo ou alguém”. Quando
o Ocidente entrou em contato com estes povos nos inícios do século XVI, contudo, “o que se dizia, também
se inscrevia nos códices” (León-Portilla, 1999, p. 54). Através destes códices, temos conhecimento de uma
extensa elaboração discursiva, que se ocupava de uma série de temas, bem como da existência de locais
privilegiados de produção (amoxcalli ou “casas de códices”), assim como de especialistas que as tinham a
seu encargo (tlacuicos). “Hallamos las casas de ídolos y sacrificios ... y muchos libros de su papel, cogidos
a doblece, como a manera de los paños de Castilla”14, informou Bernal Díaz del Castillo, um dos
protagonistas da conquista do México-Tenochtitlán.

Estas duas possibilidades de guardar a memória e o conhecimento eram complementares, e dizem


respeito a uma forma indígena de conceber a história. A ela associava-se, ainda, uma configuração
sistematizada, ensinada em centros especiais de educação (calmecac), de transmissão da tradição oral
espontânea. Tratava-se de uma espécie bastante elaborada de textos rítmicos (huehuetlatolli), de
memorização de cantos, discursos e poemas, que guardavam comentários explicativos sobre o que estava
escrito – em forma pictográfica – nos textos.

13 No momento da invasão europeia da América, o nahualt era uma espécie de “língua franca” do centro do México,
sendo falado por um significativo conjunto de povos.
14 Bernal Diaz de Castillo membro da expedição que derrotou o México-Tenochtitlán (1519-1521), e autor de “Historia

Verdadera de la Conquista de la Nueva Espana”, em que pretendeu fornecer uma compreensão deste episódio que
relevava o papel de Cortez e acentuava dos “soldados”. In: León-Portilla, 1999, p. 54
Yo canto las pinturas del libro, lo voy desplegando, soy cual florido
papagayo, hago hablar los códices, en el interior de la casa de las
pinturas (In: León-Portilla, 1999, p. 66).

Muito pouco do que foi consignado neste sistema de registro que associava os “livros de pinturas” com
seus comentários expressos em cantos, poemas e discursos, escapou à destruição que acompanhou a
conquista e colonização européia. Aquilo que não foi eliminado pelos espanhóis, que percebiam nestes
registros mostra das “superstições indígenas” e deviam ser banidos, o foi pelos próprios nativos, seja para
evitar que textos sagrados caíssem em mãos dos espanhóis, seja por receio de serem castigados pela sua
preservação. Como resultado disto, entre os vários códices nahuas que se conhecem - Códices Bórbonico,
Mendoncino, Azcatitlán, Mexicanus, por exemplo -possivelmente apenas dois sejam de origem pré-
hispânica.

Alguns poucos religiosos europeus, sob os influxos do humanismo renascentista, preocuparam-se em


conhecer e guardar dados acerca do que chamavam de “antiguidades dos índios”: Bernardino de Sahagun,
Andrés de Olmos. Diego Durán e Jerónimo de Mendieta e, posteriormente, seus discípulos como os
estudantes nativos do Colégio de San Luis de Tlatelolco. Depois ainda, foi a vez de historiadores indígenas
e mestiços – Alvarado Tezozomóc, Juan de Tovar, Ixtlixóchitl, entre outros, aproveitarem o que restava
dos textos e conhecimentos antigos para construir um corpo considerável de documentos acerca da
história, da vida, das crenças e cultura dos povos nahuas.

Como podemos perceber, estes materiais não conformavam um bloco homogêneo, mas estavam ligados
a origens, interesses e objetivos diversos, situação que, certamente, influenciou profundamente os
conteúdos e as formas de sua narração. Além de serem informações fragmentárias e esparsas, deviam
passar a se ajustar a uma estrutura e a uma lógica narrativa estranhas15 ao mundo que as produziu. É
preciso pois, que se reconheça a necessidade de uma utilização muito cuidadosa de tais fontes quando
as tomamos como referenciais (praticamente os únicos disponíveis) na tentativa de conhecimento da
cultura mesoamericana16 previamente à conquista espanhola.

A origem da vida e as obrigações do “Povo do Sol”

Os mitos17 da criação dos “mexicas”18 revelam dois conceitos profundamente arraigados: de um lado a
crença de que o universo é instável estando constantemente ameaçado de destruição; de outro, a ideia
de que esta destruição pode ser adiada por meio de sacrifícios humanos. Para entendermos estes dois
conceitos e as condições em que eles se relacionam, é preciso que nos reportemos ao principal deles:
àquele que se refere aos astecas como o “povo do quinto sol”.

Assim como outras sociedades americanas, os astecas acreditavam haverem existido quatro humanidades
anteriores à sua, cada uma delas destruída em meio a cataclismos. Desta forma, denominavam o seu
próprio tempo de “Quinto Sol”. Ao primeiro sol (que durou 676 anos) chamaram “4-Jaguar”, tempo em

15 Serge Gruzinski ressalta ainda o que chamou de “el transtorno de las memórias” diante dos efeitos da conquista e
colonização, como outro elemento a ser considerado na análise destas fontes. (Gruzinski, 1993).
16 O termo Mesoamérica compreende uma região que abrange o México e partes da América Central e que se define

pela presença de algumas características culturais comuns entre os povos que a habitaram. Entre eles, a agricultura
do milho, o sistema calendárico, a produção de códices, a divisão do espaço horizontal em quatro direções e um
centro, e do espaço vertical em treze céus e nove inframundos, entre outros.
17 A utilização desta noção traduz parcela da dificuldade encontrada em lidarmos com o mundo indígena a partir de

premissas ocidentais, haja vista que, por exemplo, o conceito de mito (como relato fantasioso, oposto do real,) era
desconhecido entre os mesoamericanos, que não adotavam, portanto, a nossa forma de diferenciação entre mito e
logos. Uma das suas estratégias de organização e expressão = do conhecimento do mundo, eram as narrativas que
abrangiam temas que iam desde as origens dos deuses e do universo, em que se buscava a precisa localização
cronológica destes eventos, o que está de acordo com a grande importância que dadam aos calendários.
18 Mexicatl (pl) ou tenochatl (pl) eram os termos pelos quais eram designados os habitantes de Tenochtitlán e que

foram, posteriormente, chamados astecas.


que a humanidade teria sido destruída por este felino que era o totem de Tezcatlipoca19. O segundo,
conheceram como “4 –Vento”, e foi nele que, depois de 364 anos, um furacão mágico transformou os
homens em macacos. A catástrofe foi provocada por Quetzacoátl20 sob a forma do deus dos ventos
Ehécatl. Uma chuva de fogo, sob o patrocínio de Tlaloc21, deus dos raios e trovões, teria posto fim ao
“Terceiro Sol” (4-Chuva), que tinha durafo 312 anos. Finalmente, o “Quarto Sol” (4-Água), sob o signo de
Chalchiuhtlicue, deusa da água, findou, aos 676 anos, sob uma gigantesca inundação de 52 anos. Apenas
um casal sobreviveu, refugiado em um cipreste. Por desobedecerem às ordens de Tezcatlipoca (O Espelho
Fumegante, Vento da Noite), ambos foram transformados em cachorros.

A humanidade do “Quinto Sol”, portanto, não surgiu desta parelha salva do cataclismo, mas foi uma
criação de Quetzacoátl que – com a ajuda de seu gêmeo Xólotl, deus com a cabeça de cachorro – recolheu
os ossos descarnados dos antigos mortos que estavam na região de Mictlan22 e os fez renascer
alimentando-os com seu sangue. Para que a vida perseverasse, contudo, os deuses criaram ainda o sol e
a lua, e garantiram que o primeiro se movimentasse regando-o com seu próprio sangue.

Mas, esta quinta Era, a Era do Sol, tal como as quatro anteriores, também estava condenada a desaparecer
diante de um imenso movimento telúrico, quando monstros parecidos com esqueletos, os Tzitzimime,
viriam matar todos os homens. Nada garantia o retorno do Sol ou a sucessão das estações, insegurança
que gerava grande angústia. O dever do “Povo do Sol” era justamente impedir este assalto do nada, e
garantir harmonia do cosmos, satisfazendo os deuses por meio da oferta do “líquido precioso” -
tlaxcalltiliztli -, o sangue obtido através de ritos sacrificiais. Assim, o bem estar e a sobrevivência mesma
do universo dependiam de constantes oferendas de sangue humano, ritual que acabou por assumir papel
central em seu sistema religioso. Dessa noção fundamental decorreu a estreita relação entre a morte
ritual e a vida e, com isto, o valor da prática dos sacrifícios humanos e das guerras sagradas que forneciam
as suas vítimas. De acordo com os mitos, ambas tiveram início com a própria criação do mundo23. O Sol
exigia sangue e os próprios deuses haviam concedido o seu; cabia aos homens repetirem a oferenda.

Embora a forma mais usual de sacrifício fosse extirpação do coração24, em certas cerimônias, as vítimas
eram ainda decapitadas, esfoladas, afogadas ou queimadas. A guerra era o principal meio de obter a

19 Uma das principais divindades do panteão mexica, símbolo do céu noturno, “vento da noite” que a tudo via,
garantia proteção aos jovens guerreiros, inspirava os eleitores por ocasião da designação do soberano, castigava ou
perdoava as faltas. No passado mítico fora o responsável pela introdução dos sacrifícios humanos.
20 A “Serpente de Plumas”, originalmente associada entre povos do planalto mexicano às forças telúricas e à

abundância da vegetação, assume entre os astecas a personificação de Vênus, ao mesmo tempo Estrela Matutina e
Estrela Verspertina, e à noção de morte e ressurreição. “Senhor da Casa da Aurora”, deus do vento, herói civilizador
era, por excelência, o deus dos sacerdotes.
21 Antiguíssimo deus da chuva e das águas, adorado pelos povos agrícolas do planalto mexicano muito anteriormente

aos astecas. Tláloc tinha, em uma região de clima seco, o papel importantíssimo de ser o dispensador das chuvas,
mas também era responsável pelos raios e pelo granizo. Seu sacerdote ocupava um dos mais elevados postos na
hierarquia, e seu santuário ocupava um dos dois espaços do alto do grande Templo de Tenochtitlán, ao lado daquele
de Uitzilopochtli, o disco solar, deus guia da tribo asteca, que encarnava o sol do meio-dia.
22 Segundo os conceitos cosmológicos astecas, acima da terra encontram-se 13 “céus”, o mais elevado deles “onde o

ar é delicado e frio”, é o lugar onde mora a “parelha suprema”. Tratava-se de Ometecuhtli e Omecihuatl (Senhor e
Senhora da Dualidade), que decidiam sobre a data de nascimento de cada ser humano e, desta forma, sobre seu
destino. Abaixo da terra estão os 9 “infernos” de Mictlán, com vários rios que as almas dos mortos devem atravessar.
Quando a noite se estendia sobre a terra, iniciava-se o dia em Mictlán a morada dos mortos.
23 Na verdade, esta identificação está relacionada às medidas de caráter político, social, histórico e religioso adotadas

pelos astecas depois da derrota (1428) que impuseram a Azcapotzalco, o mais rico e poderoso reino (altepetl) do vale
e que, por muitos anos, havia exercido a hegemonia na região. É neste momento que nasce a a visão místico-guerreira
dos astecas, que consideram a si próprios como o povo eleito do Sol, numa interpretação particular do antigo
pensamento cosmogônico nahuatl. Junto à concessão de títulos de nobreza e terras obtidas dos povos conquistados,
foram destruídos os antigos códices e livros de pintura dos povos agora submetidos aos astecas, assim como os seus
próprios. Concebidos para serem fundamento da grandeza recém adquirida, os textos escritos e reescritos nesta
oportunidade, destacam a importância dos astecas, assim como a interpretação do mito das idades anteriores que
reproduzimos anteriormente.
24 No processo mais freqüente, a vítima era estendida em um altar de pedra e tinha seu peito aberto por um golpe

potente de um machado de sílex; o sacrificador arrancava o coração do sacrificado e o oferecia ao Sol. Em seguida
ele era decapitado e seu crânio ia juntar-se aos que se acumulavam em uma estaca especial: o tzompantli.
preciosa oferenda e as batalhas tinham como primeira finalidade capturar o maior número de prisioneiros
possível. Por isto, quando o poder mexica se impôs no Vale do México e diminuiu o ímpeto dos
enfrentamentos bélicos, guerras rituais (a “guerra florida”) foram organizadas em seu lugar25.

Práticas sacrificiais não eram uma exclusividade asteca, havendo evidências delas em vastas áreas da
Mesoamérica no século XVI e antes disto. Paradoxalmente, elas tornaram-se crescentemente ampliadas
à medida que os costumes e os modos de vida destas sociedades mostravam crescente refinamento.

Apenas numa perspectiva estritamente individual a morte era tida como uma catástrofe, diz Tzvetan
Todorov (1999). Do ponto de vista social, “o benefício obtido da submissão à regra do grupo pesa mais
que a perda do indívíduo” (Todorov, 1999, p. 80). Esta era uma resposta da sociedade à ameaça constante
de destruição sob a qual vivia, nascida não da esperança, mas da ansiedade. Além disto, a morte por
sacrifício era tida como uma maneira segura de alcançar uma vida eterna feliz, sendo possivelmente aceita
com certo estoicismo ou até buscada voluntariamente. Por isto os futuros sacrificados aceitavam sua
sorte sem desespero, embora, para se para evitar uma reação que trouxesse presságios funestos, eles
recebessem drogas potentes na preparação da cerimônia. Eram, depois, vestidos com os atributos do
deus que seria honrado e chamadas de “ixiptla”: a imagem.

Purificadas por meio de banhos rituais, enfeitadas com as vistosas insígnias da divindade pelo qual
haveriam de morrer, as vítimas não representavam, o inimigo que deveria ser abatido por vingança26. Ao
contrário, sua morte deveria ser vista como uma homenagem ao deus em cuja encarnação viva elas se
transformavam por um instante.

Nos textos antigos, os sentimentos dos atores do drama encenado no altar dos sacrifícios são
apresentados como de exaltação e esperança, de parte das vítimas, e de certeza da realização de um
dever cósmico, por parte dos sacerdotes. Dever cósmico porque com esta ação o Sol se elevaria, a chuva
cairia do cume das montanhas, o milho surgiria do ventre da terra e o tempo seguiria seu curso. Este
aspecto da civilização mexica está, como vimos, ligado a uma concepção de universo em que o sangue
dos sacrificados é indispensável para a vida do mundo e da humanidade. Desta forma, também os
sacerdotes e dignitários faziam suas próprias ofertas, escarificando as pernas, as orelhas e os órgãos
genitais, para suas ofertas27.

Assim, esta obrigação explica a importância da função militar na sociedade e no Estado, o entusiasmo dos
jovens consagrados à guerra e à morte pelos deuses, bem como a alta consideração social dos
combatentes e de seus chefes. Mas ao lado dela, outras forças sociais atuavam em direção diferente no
seio da sociedade asteca, sendo evidência de uma sociedade que não era, como sugeriram os
observadores europeus 28, dominada pela violência.

25 A grande escassez de alimentos verificada em 1540 foi atribuída à diminuição da oferta de sacrifícios, sendo a
“Guerra Florida” a resposta das autoridades aos deuses insatisfeitos. Da mesma forma, a permanência de um enclave
livre no centro do território asteca - Tlaxcala -, possivelmente foi tolerado pelos senhores mexicas para que a guerra
pudesse sempre perdurar.
26 Os astecas não usaram o termo "sacrifício humano“, nem consideravam suas atividades rituais conectadas a tal

prática, como o fizeram os europeus mais tarde. Para eles tratava-se de “nextlaualli”, o pagamento de uma dívida
para com os deuses.
27 Ao lado dos sacrifícios humanos, muitos outros tipos de ofertas acumulavam-se diante dos altares: espigas e tortas

de milho, tecidos e vestimentas, folhagens e flores. Os fogos que ardiam no cimo das pirâmides jamais podiam
extinguir-se e eram constantemente alimentados de madeira trazida pelos fiéis.
28 Entre os textos coloniais a oferecerem visões da sociedade asteca alguns são documentos que procedem dos

próprios conquistadores, como as Cartas de Relación enviadas por Hernán Cortez ao imperador Carlos V, ou a já
referida Historia verdadera de la conquista de la Nueva Espana, de Bernal Díaz Del Castillo. Outros são testemunhos
da ação evangelizadora dos primeiros missionários, como a Historia General de las Cosas de la Nueva España do Frei
Bernardino de Sahagun. Mestiços ou indígenas alfabetizados pelos missionários, por sua vez, como Tezozómoc,
Ixtlilxóchitl e Chimalpahin, remetendo-se a antigos manuscritos pictográficos, registraram também o seu ponto de
vista.
Tais valores podem ser vislumbrados, por exemplo, nos discursos oficiais pronunciados nas cerimônias de
entronização dos soberanos, os quais deixavam de centrar-se nas virtudes guerreiras para reforçar a
benevolência, a bondade, a dignidade e a moderação que deveriam pautar suas condutas. O governante29,
que exibia o diadema de ouro e turquesas e o manto de plumas verde-azuladas como insígnias de poder,
recebia o título de Huey Tlatoani, “o grande orador”. Os documentos indígenas da época da Conquista,
revelam que o espírito público asteca exaltava valores morais como a bondade e a doçura. Os deveres
mais importantes do governantes eram os de honrar aos deuses e proteger o povo asteca. Ele devia
inclinar-se diante da miséria e não vacilar em reconhecer seus erros, sendo estimulado a se mostrar justo,
clemente e generoso. O complexo ritual pelo qual o governante era entronizado, envolvia escutar e
pronunciar longos discursos moralizantes.

Ningún soberbio, ni erguido, ni presuntoso, ni bullicioso, ha sido


electo por señor; ningún descortés, malcriado, deslenguado, ni
atrevido en hablar, ninguno que habla lo que viene a la boca, ha sido
puesto en el estrado y trono real”. (In: Lucena-Salmoral, 1992, p. 396).

Na educação dos jovens também eram valorizadas condutas corteses e delicadas:

Mira, hijo, que no hagas burla de los viejos o enfermos, (...), no hieras
a otro ni de mal ejemplo”. A um adulto ele aconselhava que “no hieras,
ni hagas mal alguno, y haciendo lo que debes, no te ensalces por ello,
porque pecarás contra los dioses...” (In: Lucena-Salmoral, 1992, p. 38).

A aparente incongruência de uma sociedade que confere sentido religioso à guerra, mas desqualifica a
violência fora dela, também se manifesta em suas concepções acerca da vida após a morte. Podemos
perceber aí as contradições internas e as sínteses operadas em seu sistema religioso, fruto de
composições entre as crenças e concepções das sociedades mais antigas, que precederam os astecas na
região, e aquelas introduzidas aí pelos “guerreiros do sol”.

A morte e o que ela reserva

Nos muros da antiga cidade de Teotihuacán30 encontramos evidências da crença no “paraíso” de Tlaloc,
o deus da chuva, igualmente presente entre os mexicas. Era o Tlalocam, lugar em que abundavam rios,
árvores frutíferas e todo tipo de cultivos. Esta antigaa divindade, associada aos ritos das sociedades
agricultoras do México central, abria seus jardins tropicais aos que morriam por sua interferência:
afogados, fulminados por raio, lepra, hidropesia ou infecções pulmonares. Em Tenochtitlán, enquanto a
grande maioria dos mortos costumava ser incinerada, aqueles que pereciam afogados em uma das
inúmeras lagunas que cercavam a cidade, tinham seu corpo transportado em uma liteira até um dos
pequenos templos (“casas da neblina”) consagrados aos deuses da água, onde eram enterrados com
grande veneração.

Também as crianças que nasciam mortas tinham um destino especial. Elas se dirigiam ao 13º céu onde,
segundo certas tradições, existiria uma “árvore de leite” para lhes proporcionar alimento durante sua
infância eterna. Neste jardim denominado Tonacaquauhtitlan – o “parque de nossos alimentos” – elas
viveriam eternamente sob a forma de pássaros, entre flores.

29 Quando chegaram ao vale do México em que fundariam sua capital, os astecas encontraram aí diversas cidades-
estado (altepeme, pl. altepetl) em que a autoridade política pertencia a um chefe, o tlatoani (“aquele que possui a
palavra”, ou “o que comanda”), proveniente da aristocracia militar e eleito vitaliciamente no seio de uma mesma
família.
30 Um dos mais importantes centros da Época Clássica mesoamericana, teve seu apogeu entre 400-700 dC, quando

veio a ser a maior cidade americana, situação consolidada a partir de seu poderio econômico e prestígio religioso. Os
astecas reconheceram nas ruínas da imponente Teotihuacán, o lugar de origem de vários de seus próprios mitos de
criação.
Duas categorias de mortos (Gente da Águia: Cuauhteca) subiam aos céus como companheiros do sol. A
primeira era a dos guerreiros mortos em campos de batalha ou na pedra de sacrifícios e dos comerciantes
(Pochteca) que faleciam durante suas viagens para lugares distantes. A segunda era das “Mulheres Divinas
(Cihuauteteo), mortas ao darem à luz pela primeira vez. Os guerreiros que compunham este “Valhala”
americano passavam a compor o cortejo alegre que acompanhava oSsol durante seu percurso da manhã.
As mulheres mortas no parto eram assimiladas a eles, sepultadas com grande pompa no interior de um
templo consagrado a elas, passavam a formar um segundo cortejo de acompanhamento ao sol, o qual
se estendia durante a tarde até o poente.

Todos os demais mortos dirigiam-se aos desertos do Norte, rumo a Mictlan, morada de Mictlantecuhtli31,
o deus da morte com máscara de caveira. Sua viagem até este lugar tenebroso e glacial durava quatro
anos, durante os quais cumpriam uma série de provas como a travessia dos “nove rios”. Aochegarem ao
nono infra mundo, se fundiam no nada, no esquecimento absoluto.

Faziam-se oferendas aos mortos passados 80 dias de seus funerais e, depois, ao completar um, dois, três
e quatro anos da data de sua morte; em seguida ficavam cortados todos os laços entre mortos e vivos. Os
guerreiros que atravessavam o céu como companheiros do Sol, contudo, voltavam a terra depois de
quatro anos, metamorfoseados em colibris para viver entre as flores das regiões cálidas.

Percebe-se que a morte reservava destinos diferentes aos homens. Isto é, o outro mundo não é comum
para todos, nem há moradas distintas para os “bons” e para os “maus”. Nenhuma noção moral interfere
neste destino. O que se segue após a morte, o que está destinado a cada um, liga-se a um gênero
específico de morte, sendo a sorte mais invejável a dos que pereceram cumprindo os deveres que lhes
foram destinados ao nascer. No tempo certo, morreram pelo Sol e pela Terra, não porque quiseram, mas
porque, desde seu nascimento, estavam destinados a isto pelo mandato soberano dos deuses.

O mundo, tal como o entendiam os astecas, parecia não deixar muito lugar para o arbítrio dos homens
que vêm ao mundo com destinos rigorosamente traçados. Nascem para desempenhar um papel: o de
sacrificado ou sacrificador. Os eleitos não são aqueles que imolam sua vida aos deuses, mas sacrificam
sua vida aos deuses aqueles que foram destinados para isto. A vida lhe chega dos deuses e só lhes é dada
para que, depois das gerações que os antecederam, possam pagar a sua parcela da dívida. Encarregados
deste terrível dever, os mexicas vivem em um mundo instável e ameaçado, onde a atividade pessoal, os
desejos e vontades, contam pouco diante da influência soberana do tonalpohualli (calendário), decifrado
para cada um pelos sacerdotes.

Como vimos, enquanto as sombras de Mictlán envolviam a multidão anônima de mortos ordinários, uma
imortalidade celeste aguardava os guerreiros, sendo uma imortalidade terrena a recompensa aos eleitos
de Tlaloc. Pode-se perceber aí um esforço de síntese na visão asteca de vida após a morte, a qual fez
coexistirem mitos e ritos dos povos camponeses do centro do México (o antigo e venerável deus agrícola
da chuva), com os dos povos guerreiros do norte, o povo do insaciável Uitzilopochtli, o disco solar. Por
outro lado, coexistindo com esta concepção de vida sustentada pela morte na pedra dos sacrifícios, existiu
uma outra, a qual mereceu menor atenção dos espanhóis, e que nos chega através de poemas e discursos
perenizados em textos antigos. No “sentido nahuatl para a vida” (LEON-PORTILLA, 1999, p. 173)
encontramos uma reflexão centrada especialmente em torno de dois temas. Os sábios nahuas
ponderavam sobre tudo o que rodeia o homem, particularmente o que é bom e formoso - as flores, as
plumas de quetzal, as douradas espigas de milho, a face dos amigos –, e sobre as transformações a que
todas as coisas estão sujeitas. Estes dois temas, a instabilidade de tudo que existe e o seu fim (a morte
pessoal e a morte do mundo e do tempo) alimentam as práticas sacrificiais, mas também o campo das
idéias, em especulações pessimistas e fatalistas, expressas em versos melancólicos:

31 Cujo nome significa “o senhor da terra dos mortos”.


!Águilas y tigres32! Uno por uno iremos pereciendo, ninguno quedará.
Meditalo, Oh príncipes de Huexotzinco, aunque sea jade, aunque sea
oro, también tendrá que ir al lugar de los descarnados (In: LEÓN-
PORTILLA, 1999, p. 174).

Contudo, a “reforma das tradições” do Conselheiro Tlacaélel (1428) tenha imposto uma visão calcada na
noção de um povo com o dever da guerra - condição indispensável para obter-se o “líquido precioso” -,
conviveu com outra, orientada por um “profundo sentido filosófico”33. Suas reflexões discutem acerca da
fugacidade da vida e inquietam-se com a transitoriedade da existência de todas as coisas.

Acaso de verdad se vive en la tierra?


No para siempre en la tierra: sólo un poco aquí.
Aunque sea jade se quiebra,
aunque sea oro se rompe,
aunque sea plumaje de quetzal se desgarra, no para siempre en la
tierra: sólo un poco aquí (In: LEÓN-PORTILLA, 1999, p. 120).

Coexistindo com a visão da vida como uma dívida de sangue para com os deuses, introduzida por
Tlacaéletl durante os reinados de Itzcoátl e Motecuhzoma Ilhuiocamina, que ajudou a construir a imagem
de Estado poderoso, eleito pelo Sol-Huitzilopoochtli para preservar a vida e a ordem cósmica com o
sangue dos sacrificados, há outra, que nos chega pelo rico simbolismo das artes plásticas e de poemas e
discursos de um povo que louvava a “linguagem nobre e cultivada”. Nela, a preocupação em
compreender a transformação e, desta forma, a própria vida e a morte (pessoal e do mundo), se traduz
em expressões melancólicas de um povo permanentemente afligido pela espera de uma destruição da
qual não pode escapar.

Referências

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32 As duas ordens militares mais prestigiadas entre os astecas: os “cavaleiros águia” e os “cavaleiros jaguar”.
33 Miguel Leon-Portillaafirma tratar-se de um pensamento vigoroso “que reflexiona sobre las cosas y sobre el hombre
mismo, hasta llegar a contemplarlos como problema”. Daí acreditar que pode-se afirmar sobre a existência de “una
cierta forma de pensamiento filosófico em el antiguo mundo nahuatl”. (LEÓN-PORTILLA, 1999, p. 124)
LUCENA SALMORAL, Manoel. Historia de Iberoamerica. Prehistoria e historia antigua. Madrid: Cátedra,
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O IMPÉRIO INCAICO

No século XIII, quando os Chimus começavam a conquista da costa norte do Peru, uma pequena tribo fazia
seu ingresso no Vale de Cuzco, nos Andes. Eles encontraram muitas tribos já fixadas na região, como os
Sawariray, os Allkawisa e os Maira e inserção neste cenário deu-se certamente numa posição subordinada.
Segundo seus mitos, eram conduzidos por Manco Capac.

De seus predecessores adotaram traços culturais como a língua quéchua, cuja difusão iriam posteriormente
assegurar através de sua conquista dos Andes. A primitiva organização desta “Confederação” de etnias
repousava sobre sua racionalização em torno de duas metades que mantinham entre si relações de
oposição complementar: Hanan a metade de cima, era a metade “forte”, constituída pelos ocupantes
iniciais da área. Hurin, a metade “fraca”, de baixo, era constituída pelos incas. Os de Hanan detinham as
funções políticas e religiosas nesta organização, aos incas coube uma função militar. Assim, os primeiros
chefes incas utilizaram o título de Sinchi: chefes de guerra.

No curso do século XIV, Sinchi Roca, que a tradição apresenta como filho e sucessor de Manco Capac, o
fundador mítico da linhagem, desempenhou este cargo; depois foi a vez de Lloki Yupanqui, Mayta Kapac e
Kapac Yupanki que empreenderam inúmeros ataques contra tribos vizinhas. Seus sucessos militares não só
reforçaram a posição da Confederação Cuzquenha, como também o papel da tribo inca dentro deste
sistema.

Com a morte de Kapac Yupanki, seu sucessor Inka Roca, à frente de seus guerreiros, viu-se em condições
de derrubar as autoridades de Hanan acumulando as funções políticas e religiosas que até então era dos
líderes desta metade. A estátua de Manko Kapac foi transportada solenemente para a área da metade do
alto, e o culto do sol, ligado ao ancestral tribal, foi imposto a todos os aliados que, agora eram
subordinados, foram perdendo sua autonomia para fundir-se num Estado de pretensões unitárias.

Em 1438 os incas venceram os Chancas que ameaçavam as fronteiras do jovem Império. A vitória deu-se
no reinado de Wiraqocha Inca, tendo sido obra de seu filho Pachakuti. Com os Chancas desaparecia o único
obstáculo que ainda se impunha à hegemonia inca sobre o conjunto dos povos dos Andes, sendo sinal para
a definitiva expansão do grupo.
Em menos de um século os incas conquistaram o mais vasto império da América pré-colombiana. Seus
territórios, tomados por meio de guerras incessantes, cobriam uma superfície de 950.000 quilômetros
quadrados (equivalendo à França, Itália, Suíça e Benelux reunidos). Ele se estendia seguindo o eixo da
cordilheira, por mais de 4 mil km, desde o vale do Ancasmayo ao norte, ao vale do Maule ao sul. A leste,
uma linha de fortificações defendia o Império do ataque das tribos da região de florestas.

As estimativas para o conjunto da sua população variam de 10 a 40 milhões de habitantes, composta de


uma centena de grupos étnicos de importância desigual, que se diferenciavam uns dos outros pela língua
e pela cultura. Estas etnias, mesmo ligadas tradições antigas compartilhadas, foram reagrupadas pelos
Incas.

O expansionismo consolidado a partir de guerras, foi justificado pelos próprios incas como sendo uma
“missão civilizadora” em relação às populações andinas a quem eles ensinaram a paz e a civilização. Não
houve aí, como aconteceu entre os astecas, seus contemporâneos no México Central, uma exaltação da
guerra e das funções militares. Segundo as informações recolhidas pelos cronistas, a paz é um bem
supremo concedido pelos deuses e a guerra um mal por vezes necessário.

A vocação imperialista surgiu com sua vitória sobre os Chancas que rompeu o equilíbrio político andino.
Isto colocou Cuzco em uma posição hegemônica que despertava a hostilidade das demais etnias que se
sentiam ameaçadas. As vitórias sobre elas ampliavam o poder cuzquenho e cada conquista provocava
novas guerras e novas conquistas. Assim, à medida que o Estado inca se expandia, a guerra externa se fazia
mais necessária à estabilidade da ordem interna: ela se tornaria, de fato, a mola propulsora do regime34.

Muitas campanhas militares eram uma luta contra as forças centrífugas que operavam entre as etnias que
os incas já controlavam e cuja atuação colocava em constante perigo o edifício político pluriétnico e
pluricultural que compunha o Império. A guerra representava era um fator essencial de integração e
mobilidade social dentro do Império. Representava o projeto coletivo que confederava todos os povos,
sendo que os benefícios materiais decorrentes eram suficientes para mostrar a estas populações as
vantagens de se colocar sob a esfera de dominação inca35.

De outro lado, as transferências de riqueza geradas pela expansão incaica motivavam grande número de
pequenas etnias, conscientes da sua fragilidade, a buscarem deliberadamente a órbita de Cuzco.

A população andina vivia em uma multiplicidade de pequenas coletividades agropastoris, em aldeias que
se estendiam até altitudes muito elevadas, oscilando entre 3.600 e 3.800 m de altitude, no limite entre as
terras cultiváveis e as altas estepes (puna). Se numerosas delas podiam aparecer acima deste limite,
chegando até a 4.200 m, raras eram as que estavam abaixo destes marcos. Cada aldeia era habitada por
um conjunto de famílias unidas por laços de parentesco ou aliança, configurando um ayllu. A unidade de
produção e consumo era a família nuclear, o casal e filhos solteiros. A poligamia era basicamente restrita
aos homens de condição social superior, sendo a regra o casamento monogâmico a regra. Era o vínculo
matrimonial que conferia ao indivíduo a condição de membro integral do ayllu.

As células domésticas constitutivas do ayllu reconheciam um chefe ou kuraca, a quem cabia distribuir as
terras, organizar os trabalhos coletivos e regular os conflitos. O ayllu reconhecia também a existência de
uma divindade tutelar, a waka, em geral um ancestral do kuraca, em em que ele se apoiava para exercer
sua autoridade. As wakas costumavam estar ligadas a uma montanha próxima onde era cultuada.

34 FAVRE, Henri. A Civilização Inca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990, p. 25.
35 Idem, p. 27
Os ayllus possuíam um território ou marka. Suas pastagens, formadas por extensas áreas de que chegavam
até o limite das montanhas nevadas, permaneciam indivisas. Cada família podia dispor livremente delas.
No altiplano se desenvolveu a atividade pastoril em rebanhos de camelídeos, que eram importantes pela
possibilidade de obtenção de lã, carne e transporte. Mesmo seus excrementos eram aproveitados como
combustível, em substituição da madeira, numa área em que ela era escassa.

De acordo com Henri Favre, “o Império Inca se apresentava fundamentalmente como integrador da ordem
social tradicional. Ele operava uma síntese da organização piramidal e segmentária das etnias andinas sobre
as quais repousava; ele prolongava e coroava os escalonamentos das chefias, a mesma maneira que estas
prolongavam e coroavam os escalonamentos dos ayllu”36.

Assim, as relações que uniam o Imperador e a divindade solar à chefias do Império, eram semelhantes às
que ligavam o kuraka e a waka aos ayllus constitutivos de quaisquer chefias. Em cada uma delas o
imperador e o Sol, Inti, deus oficial do Tawantisuyu, dispunham de rebanhos cuja guarda cabia à população
e de terras que eram cultivadas pelas comunidades locais. Nem sempre o Estado se apropriava-se das
melhores terras, ocupando muitas vezes as encostas que eram trabalhadas na forma de terraços para se
tornarem produtivas.

O Imperador e o Sol velavam para que as obrigações que exigiam, bem como os deveres que, em
contrapartida, estas obrigações exigiam, fossem devidamente cumpridos. O primeiro destes deveres era o
de sustentar todos os que trabalhavam para o Império, distribuindo víveres, vestimentas e outros produtos,
os quais eram armazenados nos entrepostos públicos (kolka). “Sua inserção na trama das velhas
reciprocidades levava-os a doar bens para obter energia humana e a estender assim o velho princípio
redistributivo ao conjunto dos territórios submetidos ao seu poder. O Império não reproduzia a chefia
apenas na sua estrutura; ele a repetia também em seu funcionamento”37.

36 Idem, p. 43
37 Idem, p. 43
Os tributos eram cobrados em trabalho; eram chamados mita. Todos os homens adultos, isto é, casados,
estavam sujeitos à ela, daí o matrimônio ser uma cerimônia pública, controlada pelo Estado, e não de
caráter religioso.

Neste Estado em que o recurso mais valioso era a força de trabalho da população, o controle burocrático
da demografia era indispensável, requerendo o poder de conhecer prontamente a quantidade de energia
humana de que poderia dispor de forma a distribuí-la racionalmente. Os recenseamentos minuciosos da
população tinham este fim e eram realizados por especialistas a base de um sistema numérico decimal,
com os resultados registrados nos kipus.

A população recenseada como sujeita à mita, era empregada pelo Estado em tarefas agropastoris e,
também, em outros tipos de atividades públicas como a construção e a guerra. Ergueram-se assim as
cidades que funcionavam como centros administrativos, as pontes e um gigantesco sistema de estradas.
Elas eram percorridas por homens (chaskis38), especializados em transmitir mensagens. A certas distâncias,
havia postos (tampu) que serviam como hospedaria.

A rede viária e os correios contribuíram para a difusão da língua e cultura incaica, e também para
fiscalização das províncias e deslocamento dos Exércitos. Elas consolidaram consideravelmente o poder do
Estado, permitindo a centralização e intervenção em todo o território.

A ação do Estado foi ainda exercida mediante uma política de migrações forçadas que transplantava povos
de lealdade pouco firmada para regiões plenamente substituídas e coloca populações já bastante
incaizadas em seu território ou em pontos estratégicos. Teoricamente estas populações deslocadas
forçadamente (mitmaq) permaneciam atados à autoridade do kuraca da sua chefia, mas o distanciamento
imposto não favorecia a permanência do vínculo de lealdade étnica.

38 Lembremos que a sociedade inca era ágrafa e desenvolveu forte tradição oral.
As estradas incas e a expansão do Império
Ao mesmo tempo em que provocava a emergência desta nova categoria social (os mitimae), o Estado
promovia a expansão de grupos servis, os yana ou “dependentes perpétuos”. Por toda parte os kuraka
tinham já o costume de recrutar em suas chefias certo números de “dependentes perpétuos” e, como eles,
os soberanos incas tomaram também para si “dependentes” nas etnias que formavam o Tawantinsuyu.
Eles estavam ligados exclusivamente ao Imperados ou a pessoas de nível elevado, como chefes de guerra,
altos funcionários, ou para quem o soberano quisesse recompensar. Não eram propriamente escravos mas
estavam desligados de qualquer laço étnico, conservando o direito de reter suas próprias terras e gado.
Sua condição era perpétua e hereditária a um de seus filhos.
Da mesma forma como recrutava homens, o poder também recrutava mulheres de tenra idade: as
“mulheres escolhidas” ou aqqla, encerradas em “monastérios do sol” sob a tutela de mulheres mais velhas
pertencentes a etnia incaica. Algumas acabavam tomadas como esposas pelos soberanos, outras eram
dadas em casamento a personalidades a quem o imperador queria presentear. A maioria porém,
permanecia a vida inteira nos monastérios a serviço do culto solar. Ao lado da função religiosa, eram
também responsáveis por um papel econômico de singular importância na fiação e tecelagem em
verdadeiras oficinas têxteis.

Ao final do governo de Wayna Kapaq, mitmaq, yana e aqlla constituíam já uma força de trabalho que
assegurava ao poder a produção massiva em certos setores da atividade econômica, com a velha orem
tribal cedendo espaço para uma nova sociedade engendrada pela ação do Estado.

A ordem social era claramente estratificada. Sobre esta estrutura reinava o imperador, um waqcha pois
que não reconhecia seus progenitores. O casamento com a irmã ou koia, significava renegar a filiação
terrena e rompimento com qualquer rede de lealdade familiar. Ao tomar a “makapaicha”, a franja
vermelha que simbolizava o poder, ele se excluía de seu grupo de parentesco, dando início a uma nova
linhagem, uma panaca. Renunciava aos bens que lhe cabia herdar e devia formar seu próprio domínio que
passaria a formar patrimônio e sua própria linhagem cujos membros, depois da sua morte, deveriam
preservar celebrando a glória do seu reinado e prestando culto a sua múmia.

É verdade que este casamento incestuoso teve início tardiamente, após Pachakuti, quando a prática
tradicional de se casar o soberano com a filha de um kuraka vizinho a fim de estabelecer alianças, já não se
fazia mais necessário.

O imperador, portanto, não tinha predecessores e, se tivesse descendentes, não tinha sucessores. Ele
detinha poder exclusivamente pelo seu valor, daí as regras de sucessão ao trono não estarem muito bem
definidas. Ao final de cada reinado o poder era disputado e tomado pela força numa luta que podia
envolver irmãos, filhos, sobrinhos e todos que dispusessem de uma posição de autoridade que lhes
permitisse reivindicar o poder com alguma chance de sucesso.

As linhagens imperiais que sustentavam a ambições dos concorrentes entravam em luta, as etnias
periféricas aproveitavam-se para manter rebeliões autonomistas. O mundo organizado só retornava do
caos pela ação do novo imperador.

Nascido da violência, o poder só se mantinha através dela, violência sustentada pelo Exército. Mas ao poder
militar agregava-se o poder religioso. Com a investidura o Inca se transformava em “filho do sol”, mediador
nas relações entre os homens comuns e a divindade. O reinado de Wayna Kapac no entanto, cujo término
coincide, justamente com a chegada de Pizarro e seus homens, assinalava graves problemas na
manutenção da ordem imperial devido a tenaz resistência das etnias do extremo norte e as insurreições
de caráter autonomista que se desencadeavam no interior do Estado.

Incas: estado, governo e ideologia

Os incas impuseram-se às demais etnias andinas, organizando o maior Império da América antiga.
Para justificar a conveniência da sua dominação, auto identificaram-se como o povo predestinado e eleito
pelos deuses para uma “missão civilizadora”. Assim, proclamaram-se filhos do deus Sol, Inti, e enviados de
Viracocha, como casta escolhida para esta missão.
Para reforçar sua visão de mundo, esforçaram-se em apagar referências ao passado dos grupos
submetidos, fazendo crer que os demais povos andinos tinham vivido em um estado de selvageria do qual
a “pax incaica” os retirou. Tratava-se de grupos antropófagos, adoradores de imundícies, incestuosos, em
estado permanente de guerra, desconhecedores da agricultura, pastoreio, tecelagem ou cerâmica, a quem
os incas, enviados dos deuses beneficiaram com sua civilização superior, pautada em relações de
parentesco, agricultura, pastoreio, tecelagem e cerâmica e paz. Como depositários da civilização, os incas
justificavam seu domínio como paternal, exaltando a tradicional generosidade e hospitalidade dos
senhores incas. As práticas ancestrais dos povos andinos de reciprocidade foram apresentadas como sendo
generosidade dos incas. Eles se diziam responsáveis pela paz, considerando a guerra como um flagelo. Suas
próprias guerras de conquista são apresentadas como uma resposta necessária e involuntária.
Esta é uma visão idealizada, pois este povo que se considerava eleito e superior, era herdeiro de
uma larga tradição cultural, de uma longa história anterior do mundo andino.
A vocação expansionista levou-os a conquistar um enorme território. A conquista de certos
territórios levava, de imediato, ao choque com outros. Assim, entre as razões desta expansão estava o
imperativo de não deixar livres povos que ameaçassem a estabilidade do Império. Também a necessidade
crescente - que acompanha o crescimento do Império - de mais trabalhadores (mitayos) recrutados entre
gente jovem e adulta.
Nem todas as regiões foram agregadas pela guerra: vários reinos, conscientes da sua fragilidade e
isolamento, colocaram-se, deliberadamente, ou mediante ameaça, sob a órbita cuzquenha.
A história tradicional do Império é contada a partir da sucessão dos treze imperadores
conhecidos: Manco Capac: (c. d 1200 d.C., personagem mitológico, fundador da dinastia); Sinchi Roca
, Lloque Yupanqui, Maita Capac, Capac Yupanqui, Inca Roca, Yahuar Huac, Viracocha Inca, Pachacuti
Inca Yupanqui (1438-1471), com quem se iniciou a expansão do Império. Durante os 8 reinados anteriores,
a influência inca não deveria ultrapassar os arredores de Cuzco. Com Pachacuti (cujo nome significa “o que
incia uma nova era”) o império estende-se do Norte do Equador ao centro do Chile. Foi provavelmente aí
que se adotou a mitimae: transferência em massa de populações segundo conveniência do Estado. Os
territórios incorporados eram imediatamente reorganizados no padrão inca: templos, fortalezas, palácios,
estradas eram construídas e os filhos dos chefes vencidos eram levados para Cuzco para receberem uma
educação dirigida pelo Estado.
Topa Inca Yupanqui: (14571-1493) levou a fronteira meridional ao seu limite máximo, o norte do
Chile, onde ela foi detida pela resistência araucana, as dificuldades de conduzir campanhas militares em
distâncias tão longas, assim como manter uma administração organizada. Aparentemente foi no seu
reinado que ocorreu o primeiro recenseamento de todo o Império e o estabelecimento do sistema
piramidal de todos os funcionários. Foram introduzidas estatísticas populacionais, o recrutamento de
mulheres escolhidas (acclahuasy) e a deposição dos velhos curacas (chefes locais) que foram substituídos
por outros, nomeados.
Com Huayna Capac (1493-1525) o império atingiu o limite máximo, delimitando-se a fronteira norte
(Rio Ancosmayo, Quito), e obtendo-se a conquista de tribos do litoral ainda independentes (extensão
máxima: 380.000 milhas quadradas/ Norte-sul: 4.000 km quadrados). Após a sua morte, o poder imperial
passou a ser disputado entre vários pretendentes para, depois, se concentrar entre dois contendores
irmãos: Huascar (1525-1532) e Atahualpa (1532-1533). Sabemos, de fato, que o direito de mando entre os
incas não obedecia aos princípios de hereditariedade dos reinos europeus. Dentro da nobreza, os que se
mostravam aptos e dignos podiam surgir como candidatos ao poder, e os grupos familiares entravam em
disputas. Esta situação que estava em curso com a morte de Huayna Capac, seguia um costume tradicional.

O Império inca não desorganizava as comunidades tradicionais (o ayllu) sobre as quais se expandia. Ao
contrário, buscava mantê-las até para não fragilizar a sua maior riqueza: a capacidade de trabalho
organizado em torno de práticas ancestrais de colaboração. Mas o Estado as colocava como parte de uma
estrutura maior. Elas perdiam autonomia e passavam a ser o menor núcleo organizacional do Império.
Eram agrupadas em seções (Saya) que formavam uma província (Guamán). Cada província tinha sua
capital, sede da administração político-religiosa (seus habitantes usavam sinais distintivos no cabelo). As
províncias, por sua vez, estavam agrupadas nas quatro partes (Suyu) que formavam o Império, tendo Cuzco
como centro radial de onde partiam as linhas divisórias. Daí vinha o nome quéchua do Império Inca:
Tawantinsuyu, Império das quatro partes.

Duas linhas imaginárias, que se cruzavam no centro da capital, dividiam o Império em quatro seções que
formavam o Tawantinsuyu: o Império dos quatro quartos. Elas constituíam o Chincasuyu, ao norte, o
Kollasuyu, ao sul, o Antisuyu, a leste e o Kuntisuyu, a oeste. De acordo com as informações da época
colonial, cada uma destas sessões era dividida em unidades de 10.000 famílias, que por sua vez
subdividiam-se em unidades de mil, 100 e 10 famílias, cada uma delas sob a responsabilidade de um
funcionário, de quem dependiam os demais funcionários responsáveis pelas unidades imediatamente
inferiores.

Um nobre inca residia em cada capital provincial, e os governadores das “Quatro partes” formavam
o Grande Conselho de Estado em Cuzco. Eram parentes do Imperador. Abaixo deles estavam os curacas:
posto hereditário, sujeito à aprovação imperial. Seu grau de importância variava conforme o número de
tributários de seu grupo.
O governo esteve baseado numa diarquia, em cujo cimo estavam o Sapa inca (Filho do Sol) e o Uillac
umu (Sumo sacerdote, “Escravo do Sol”), com dignidades e riquezas comparáveis, embora suas atribuições
e responsabilidades fossem diferentes. Seu poder procedia diretamente do Sol, Inti, divindade da qual
descendia o Sapa Inca. Daí a magnificência e o aparato ritual que rodeavam sua pessoa. Cada novo inca, ao
ser entronizado, renegava seus laços de parentesco e bens e dava origem a um novo ayllu real (panaca) a
qual, após a sua morte, era responsável pelo cuidado da múmia real e de seus tesouros.
O complexo e extenso sistema administrativo do Império implicou no surgimento de uma vasta
burocracia, cujos postos eram cobertos principalmente pelos membros da aristocracia: membros das
panacas (as famílias dos imperadores mortos) e orejones, sem, contudo, dispensar o apoio das elites locais
(curacas e suas parentelas). Gozavam estes de privilégios como servidores, esposas, uso de roupas e
enfeites especiais, etc. Se os curacas eram, contudo, os representantes dos grupos locais dentro do
Império, na prática constituíram-se em quem arregimentava e organizava o trabalho das comunidades
frente ao Estado. O sistema combinou a concessão de privilégios e honrarias, com o controle e a ameaça
de punição.
A habilidade dos incas em colocar a seu favor as realidades econômicas e sociais locais dos grupos
anexados foi um fator importante para a estabilidade do Império. Eles aproveitaram a vitalidade das
comunidades tradicionais (ayllus), sem alterar substancialmente o seu modo de vida. Tratava-se de
organizar e ajustar as afinidades que os próprios incas compartilhavam com eles. Para os povos andinos, o
domínio incaico era mais um momento de uma longa história de invasões e conquistas anteriores.

Segundo a ideologia oficial o império foi marcado por uma unidade cultural imposta pelo Estado a
partir da língua quéchua que passava a ser obrigatória, da adoração aos deuses incaicos, de celebrações e
outros elementos simbólicos, além da presença física do Estado. Entretanto, ele era composto por mais de
uma centena de grupos nem sempre absorvidos pela cultura inca. Mas tampouco se pode falar em uma
Confederação: os reinos e senhorios submetidos não tinham os mesmos direitos da etnia vencedora. As
aristocracias locais foram decapitadas em seus poderes e colocadas em uma situação subalterna e
dependente. O Estado reconhecia as chefias tradicionais de cada região, mas sobrepunha a elas uma
pirâmide de funcionários e poderes cuja base era o ayllu e cujo cume era o imperador. Além do censo
permanente, o sistema amparava-se na proibição de mobilidade geográfica e em indumentárias
obrigatórias que identificavam o pertencimento a determinado grupo étnico. A imposição da cultura inca
às elites locais e a prática dos transplantes forçados de população imposta aos rebeldes (mitima) serviam
também para garantir o sistema.

A população do Império (sujeita a constantes recenseamentos) estava dividida em um sistema


decimal: grupos de 10, 50, 100, 500, 1000, 5000 e 10000 famílias e sobre cada grupo velavam funcionários
de distinto prestígio. Cada curaca (chefe local) relacionava-se diretamente com seus subordinados ou
superiores, mas escassamente com os de mesma categoria, constituindo-se, a administração, portanto,
numa organização de tipo piramidal. Sobre eles pesava a vigilância dos tucuiricuc (“os que vêem tudo”),
que vigiavam o funcionamento da engrenagem. Acima deles estavam os responsáveis pelos suyus, as
quatro partes em que estava dividido o Império. Os chefes de cada suyu (capac) formavam o conselho de
governo

Entre os mecanismos de dominação e neutralização da resistência estavam as alianças matrimoniais,


os presentes com objetos de valor ritual e social para as elites dos grupos submetidos, a concessão de
terras, mitayos e yanas, a tomada dos filhos das elites locais como reféns em Cuzco onde recebiam uma
educação incaica, a prática da mitima (colonização e desterro), a ação dos espias
(tucuiricuts) e especialmente o aparato propagandístico em que os incas aparecem como povo
organizador do mundo andino que, graças a sua influência, se manteria em paz e ordem.

A classe dominante do Império exaltava a conduta paternalista com a finalidade de minimizar o


descontentamento dos grupos submetidos aos incas, reforçando as práticas redistributivas. O trabalho
entregue como tributo fornecia alimentos, bens diversos e presentes que eram acumulados nos celeiros
imperiais para serem redistribuídos aos chefes locais e às comunidades. Trava-se, afinal de uma reprodução
ampliada de costumes que existentes em nível local e regional nas comunidades andinas desde tempos
imemoriais, e que eram apresentados como mostra da generosidade dos incas.

Criticando interpretações que definiram o Estado incaico como “comunista” ou “despótico”, Alfred
Métraux chamou a atenção para a necessidade de considerar “especificidade incaica”, cuja base residia
justamente na preservação e ampliação do sistema andino de produção, baseado no coletivismo, e que
tinha como base a comunidade rural (ayllu).

Reagrupadas em unidades mais amplas, estas comunidades foram absorvidas pela organização política
imposta pela conquista incaica. Se existiu uma organização racional e consciente da sociedade – um
“modelo incaico” - ele foi inspirado nos princípios de cooperação vigentes ancestralmente, e existiu mais
num plano ideal do que real. Tal "modelo" combinou duas instituições: a reciprocidade (vigente nas
relações entre indivíduos e grupos simétricos) em que há um intercâmbio mútuo de dons e contra dons,
e a redistribuição que supõe uma hierarquia, um centro coordenador que armazena e redistribui.
TENOCHTITLÁN E CUZCO

No século XVI, Tenochtitlán e Cuzco eram centros importantes, capitais dos dois mais poderosos
Estados do continente americano. Ambas cidades impressionaram vivamente aos conquistadores
espanhóis pelo seu tamanho, higiene e organização.

Em seu desenvolvimento, ambas apresentaram uma série de similitudes. Assim em meados do


século XV eram povoados em que viviam pequenas tribos sem influência maior na região mesoamericana
ou andina respectivamente. Mas, no transcurso de menos de um século, conquistaram extensos
territórios e as duas cidades converteram-se em capitais de impérios. Este processo foi acompanhado da
realização de grandes obras públicas e trabalhos urbanos. Em Cuzco erigiram-se palácios, o suntuoso
templo do sol - Coricancha -, a fortaleza de Sacsahuamán e, ao redor da cidade, um amplo conjunto de
terraços para a agricultura. Também em Tenochtitlán ergueram-se templos e palácios, além de um
sistema de diques para controlar as águas do lago em meio do qual estava a capital azteca. Tanto em
Tenochtitlán como em Cuzco o crescimento urbano esteve vinculado a um notável incremento
demográfico.

Apesar destas similitudes, a evolução das duas cidades conheceu diferenças importantes quanto a
forma e a história do seu crescimento, assim como quanto as suas funções administrativas, econômicas,
políticas e religiosas.

Tenochtitlán foi construída em uma área muito mais densamente povoada e urbanizada que Cuzco
e contava com uma população maior. Em Cuzco, o crescimento demográfico foi planejado e
supervisionado pelo Estado. Ele derivou de ações diferentes.

a) medidas para impulsionar o crescimento demográfico da população original de fala quéchua da


cidade:

Pouco depois de começarem as conquistas incaicas, a população de Cuzco foi elevada ao status de
nobreza39, assim como a das regiões vizinhas de fala quéchua. A este aumento da aristocracia,
correspondeu a extensão da poligamia, um dos privilégios da nobreza, e a importação de mulheres de
todo Império para Cuzco como esposas e concubinas. Tais medidas contribuíram para o grande
incremento da população da cidade.

A melhor alimentação devido a grande quantidade de força de trabalho advinda do tributo dos
povos conquistados, também colaborou para o crescimento da população original. Tantos os habitantes
das regiões vizinhas quanto as mulheres “importadas” foram absorvidos pela população original da
cidade.

b) estabelecimento de importantes núcleos de povos conquistados em Cuzco e arredores:

Também foi importante para este crescimento demográfico o translado para a cidade de grandes
núcleos de população de todas as partes do império. Estes grupos chegavam como residentes
permanentes ou temporários. Permanentes eram os artesãos selecionados em todo o Império e retirados
de suas comunidades para trabalharem para o Estado e a nobreza (yanaconas). Neste grupo estavam
também as comunidades trazidas de regiões distantes para colonizar a área e que não poderiam voltar
para suas regiões de origem. Temporários eram os milhares de tributários que participavam dos serviços
públicos periódicos, a mita (mitayos). Havia, também os filhos de nobres e curacas das regiões

39 Os espanhóis chamaram os nobres incas de orejones devido aos adornos de orelhas que usavam.
conquistadas que eram obrigados a residir Cuzco, tanto para assimilar o idioma, religião e cultura incaicas,
e servirem de reféns dos conquistadores.

Havia no entanto, importantes tendências contrárias, no sentido de emigração da capital incaica:


a) colonização de regiões distantes e recém conquistadas a partir de elementos incaicos;
b) habitantes de Cuzco enviados como administradores, burocratas e soldados às mais diferentes
partes do Império.

A característica mais importante destes movimentos de população está no seu rígido controle
estatal sobre eles.

Em Tenochtitlán existiram tendências em parte similares para aumentar a população, porém com
uma intervenção estatal menos acentuada. Nela também o houve o objetivo de incrementar a população
mediante a absorção de outros grupos e importação de mulheres, mas foi mais limitada. Enquanto que
toda a população de fala quéchua circunvizinha à Cuzco foi incluída na população da cidade e elevada ao
status de nobreza, no caso dos mexicas a absorção foi apenas de uma cidade - Tlatelolco - vizinha de
Tenochtitlán . O vale do México estava muito mais densamente povoado que a região cuzquenha e teria
sido impossível para Tenochtitlán absorver a toda sua população.

A elevação de uma grande parte da população ao status de nobreza, como no caso peruano, dava
o direito à poligamia. Em contraste com o dos incas, porém, o Estado Asteca intervinha apenas
parcialmente para prover mulheres para a aristocracia. Em uma série de casos, obrigava-se os reis
subjugados a mandar membros de suas famílias para Tenochtitlán como esposas ou concubinas de astecas
nobres. Em muitos casos os Estados subjugados esperavam assim, melhorar suas relações com vitoriosos.
Ocorria também de terem de mandar mulheres como tributo. Porém, em grande parte, a importação de
mulheres para Tenochtitlán fazia-se por comerciantes de escravos que as haviam comprado ou raptado
em regiões distantes para serem vendidas nos mercados do vale do México.

Assim, como no caso de Cuzco, muitos habitantes das regiões conquistadas estavam obrigados a
trabalhar temporariamente em Tenochtitlán. Havia, porém uma diferença essencial. Os mitayos peruanos
que iam trabalhar em Cuzco, geralmente viviam em regiões distantes da capital e tinham que residir na
cidade ou arredores durante seu tempo de trabalho. Em contraste com isto, muitos tributários de
Tenochtitlán eram oriundos de povoados e cidades vizinhas da capital; trabalhavam durante o dia e
regressavam a suas casas pela noite.

A maior diferença essencial entre o povoamento das duas cidades reside no papel dos imigrantes:
em Cuzco, depois de a população original ter ganho status nobiliário, a população “plebeia” estava
constituída de elementos trazidos de outras partes do Império. Assim, a divisão em classes, correspondia
a uma divisão étnica na capital incaica. Ou seja, os membros da etnia inca eram a aristocracia. Isto não
ocorria no caso asteca. Apenas uma parte dos mexicas havia sido elevada à aristocracia e a maior parte
da população seguia sendo plebeia. Aqui não coincidem a divisão de status e étnica.

Havia também imigrantes permanentes em Tenochtitlán, porém seu papel diferia quanto aos de
Cuzco. Eram uma parte muito mais reduzida da população que no caso andino, e eram essencialmente
mercadores, artesãos e escravos. Enquanto em Cuzco toda a população não incaica integrava um grupo
subordinado que não era absorvido pela aristocracia, em Tenochtitlán, os mercadores e artesãos, apesar
de estrangeiros, chegaram a compor grupos privilegiados na cidade.

Em contraste com Cuzco, existia pouca emigração de Tenochtitlán: mandavam-se alguns


administradores (especialmente coletores de impostos), guarnições e colonos astecas à diferentes partes
do império, porém seu número era muito reduzido, situação que refletia a integração muito limitada do
Império. Tenochtitlán não necessitava de burocratas para administrar os territórios conquistados, mas
essencialmente coletores de impostos. As poucas guarnições e colonos que havia limitavam-se a guardar
as vias comerciais entre Tabasco e Yucatán, e a fronteira com os tarascos, povo que os astecas não
conquistaram
Há, no entanto, em Tenochtitlán, um outro tipo de perda de população maior que em Cuzco,
composta pelos soldados mortos. Enquanto os soldados incaicos eram recrutados entre todos os povos
conquistados (era um exército multiétnico), no México a maioria dos guerreiros provinha das cidades da
Tríplice Aliança (Tenochtitlán - Texcoco e Tlacopán).

O fato de que a população original de Cuzco tenha sido elevada massivamente a situação de
nobreza e que as diferenças de hierarquia tenham coincido com as de etnia, contribuiu para que sua
organização comunitária não tenha sido alterada, o que teve grande impacto para a organização social
inca. Como a população plebeia não era inca, e estava dominada pelo Estado, ela não participava da vida
política da cidade. Os conflitos políticos, assim, ocorriam dentro do seio da minoria incaica de Cuzco. A
coincidência de diferenças étnicos e de grupo social determinou que o setor dominante e o dominado
estivessem socialmente isolados e que fosse extremamente difícil ingressar no grupo privilegiado.

Em Tenochtitlán a situação era outra, pois apenas uma parte da população asteca pode ascender
à nobreza, permanecendo a maior parte como camponeses (macehuales). Em resultado há uma
desagregação mais acentuada das organizações comunais, os calpullis. Os nobres tendiam a abandonar
suas comunidades tradicionais para ingressar em outro tipo de associações como as ordens militares.

Como em Tenochtitlán a aristocracia e plebeus tenham uma origem étnica comum, a passagem de
uma categoria social a outra era mais viável que em Cuzco, sendo a guerra o meio mais comum para tanto.
A identidade étnica comum também contribuiu para que os plebeus não estivessem totalmente isolados
da administração da cidade como em Cuzco.

Uma das maiores diferenças entre o Império Incaico e o asteca está no grau de integração e
controle estatal, muito maior no primeiro. Isto se manifesta também na economia. Tanto o Império
Incaico quanto o Asteca contavam com grandes recursos vindos das regiões conquistadas. No Peru,
apenas uma parte disto chegava a Cuzco, sendo destinados a manter o Sapa Inca, sua corte, a burocracia
e a nobreza de origem incaica. A maior parte das riquezas, no entanto, era transferida para o resto do
Império. Construíram-se vias de comunicação, depósitos de armas e víveres para transferir os bens e
alimentos aos soldados vindos das áreas conquistadas, às guarnições incaicas, aos burocratas e colonos.
Mas parte importante tinha como destino a redistribuição.

De acordo com John Murra (1972), o Estado incaico atuava como um “mercado”, que absorvia os
excedentes produzidos pelas comunidades campones (ayllus) que eram autossuficientes. Depois de
retirar a parte necessária para abastecer os setores não produtores diretos (administradores, soldados,
artesãos, sacerdotes, nobreza), redistribuía estes excedentes sob a forma de presentes, ajuda e
recompensas.

Desta forma, s atividade comercial era muito reduzida em Cuzco, como em todo o Império. E isto
deveu-se não apenas ao fato de que o Estado monopolizava a distribuição dos bens agrícolas e artesanais,
com também por aquilo que Murra chamou de “integração vertical”, o controle dos diversos “pisos
ecológicos” pelos ayllus, de forma a obter autossuficiência e anular a necessidade do comércio.

Cuzco não era um centro comercial, e sim manufatureiro. Parte importante dos melhores artesãos
do Império e das tecelãs (acllahuasi), se concentravam na cidade, onde eram elaborados produtos cujo
destino era o consumo de luxo e distribuição cerimonial pelo Estado. A função econômica e social de
Tenochtitlán era diferente. Em contraste com o império incaico, uma grande proporção das riquezas
conquistadas tinha a cidade como destino, e apenas uma parte mínima ficava nas zonas conquistadas
para abastecer as pequenas guarnições e os recoletores de impostos. Grande parte dos tributos
destinava-se a manter o Imperador e a aristocracia e burocracia astecas, assim como também a uma parte
da população “plebeia”. Outra era reexportada, parcialmente em forma de matérias-primas e, a maior
parte, na forma de produtos trabalhados por artesãos astecas. Diferentemente do que ocorria no caso
incaico, estes bens não eram redistribuídos, mas vendidos pelas caravanas de mercadores em regiões
distantes, dentro e fora da área de dominação asteca. Desta forma, a cidade converteu-se em um
importante centro comercial.

As diferenças no grau de integração imperial que se manifestam tão claramente na composição


demográfica das duas cidades, no seu papel administrativo e comercial, estão também evidentes no seu
papel militar.

O exército incaico era recrutado em todas as áreas do Império: oficiais e algumas tropas de choque
eram incas, mas os soldados vinham de todos territórios conquistados. Fazia parte dos tributos cobrados
aos povos conquistados, a mita, participar durante certos períodos do Exérecito. As forças de combate da
Tríplice Aliança vinham essencialmente de Tenochtitlán, Texcoco e Tlacopán, com a contribuição de alguns
aliados do Vale do México e poucos elementos recrutados de outras partes do Império. Desta forma,
Tenochtitlán era muito mais afetada pelas guerras que Cuzco: em certas épocas a cidade ficava ocupada
praticamente por mulheres, velhos e crianças. De outro lado, os depósitos para a guerra e as reservas
militares centralizavam-se também nela.

Algumas conclusões:

1 - Cuzco era a capital de um Império muito mais integrado que o asteca, e o caráter da cidade
refletia esta integração. Seu papel administrativo era mais importante e a população tinha um caráter
pan-andino, refletindo, em parte, a própria composição social do Império. Em contraste, Tenochtitlán
compartilhava suas atribuições de capital com duas cidades aliadas, Texcoco e Tlacopán. Mas, nos inícios
do XVI tinha se iniciado uma tendência inversa: enquanto Huayna Capac criou uma segunda capital em
Tomebamba (Quito), no México, Tenochtitlán consolidava um predomínio cada vez maior sobre as
aliadas.

2 - A composição social de Tenochtitlán era muito mais homogênea que a de Cuzco, com uma
porcentagem muito menor de habitantes de outras áreas do Império.

3 - No México, quase todos os tributos se destinavam às três capitais, o que levou a um


desenvolvimento e crescimento muito superior delas em relação aos demais centros urbanos, com uma
concentração de população que não se verifica em Cuzco.

4 - Cuzco era essencialmente um centro administrativo e religioso e, em menor escala,


manufatureiro. Tenochtitlán, além de ter estas mesmas funções, era um importante centro comercial,
destacando-se seu grande mercado de Tlatelolco40. Este fato, junto com o grande afluxo de riquezas - que
não eram redistribuídas - contribuiu para dar a ela um caráter urbanístico e metropolitano de relevo
maior.

40Embora originalmente dispusesse de autonomia, a cidade de Tlatelolco acabou absorvida pela capital asteca,
Tenochtitlan e, desde então, passou a funcionar como mercado. Segundo o conquistador Bernal Díaz del Castillo, era
maior que a cidade espanhola de Sevilha, Veneza e Constantinopla, com cerca de 20.000 a 40.000 mercadores.
Quando Tenochtitlán foi ocupada e arrasada pelas tropas de Hernán Cortés, e as restantes cidades astecas depunham
as suas armas e reconheceram a derrota, os Tlatelolcas resistiram aliando-se aos astecas. Estes, por sua vez, e
comandados por Cuauhtémoc, ficaram confinados a Tlatelolco onde, no seu último período de existência, foram
derrotados e dizimados pelos conquistadores. Aí morreram, a 13 de agosto de 1521, cerca de 40.000 homens,
mulheres e crianças astecas.
O acesso a Cuzco era limitado: guardas controlavam as entradas e saídas da cidade e,
aparentemente, todas as viagens requeriam permissões especiais, enquanto Tenochtitlán era uma cidade
aberta, em uma área densamente povoada e altamente urbanizada. Milhares de pessoas dirigiam-se a ela
sem passar por qualquer controle.

Representação do Mercado de Tlatelolco, Diego Rivera,

5 - As lutas sociais nas duas metrópoles eram de índole muito diferente. Em Cuzco se tratava de
lutas dentro da aristocracia pela sucessão imperial. A população plebeia, de origem étnica diferente, não
tinha direitos e estava tão firmemente dominada que não se tem notícias de casos de lutas entre ela e a
aristocracia incaica. As lutas sociais em Tenochtitlán tinham outra característica: a população comum era
da mesma origem étnica da aristocracia, tradicionalmente havia gozado de direitos como na escolha do
governante, situação que foi mudando. Havia chance de acesso à nobreza por vias de façanhas militares.
Os plebeus parecem ter lutado para manter estes direitos e, quando em princípios do século XVI,
Montezuma decidiu limitar as possibilidades de ascensão social, ele encontrou forte oposição.

6 - As diferenças entre ambas capitais ficou clara nas lutas com os espanhóis. O Império Incaico
mostrou uma coesão muito mais forte. Quando Manco Inca determinou uma luta geral contra os
invasores, milhares de guerreiros, de todas as partes do Império atenderam ao seu chamado. Quando
iniciou o sítio a Tenochtitlán, ao contrário, uma grande parte dos aliados dos astecas colocou-se ao lado
dos espanhóis e muitos povos conquistados aproveitaram a oportunidade para se rebelar. Com poucas
exceções, os astecas lutaram sós.

7 - Realmente, não apenas existiam diferenças marcantes no grau de integração entre os Impérios,
quanto também no que se relaciona à noção de reciprocidade, tão marcante entre os povos andinos. Pela
dominação que exercia, pelas terras e tributos que tomava, o Império incaico oferecia compensações:
proteção aos povos subjugados (a pax incaica), redistribuição de bens provenientes de outras zonas
ecológicas, ajuda em épocas de fome ou penúria, construções públicas, participação em campanhas
militares vitoriosas. O Império Asteca oferecia muito pouco em contrapartida às suas exigências para as
populações que tributava, apenas ficarem livres de sua violência: muito pouca defesa militar, nenhuma
redistribuição. Não construíram nada nos territórios dominados, nem implantaram novas técnicas.
Poucos aliados fora do altiplano participavam das campanhas militares. Por isto não espanta a adesão que
fizeram às forças dos espanhóis, o que não ocorreu no Peru.

Mas no que se refere a conquista das duas cidades a situação é oposta. Se no âmbito do Império
os incas tiveram mais apoio, quando sua capital foi sitiada, uma parte da população não incaica e as
guardas cañari, assim como os servos yanaconas, somaram-se aos espanhóis. Em Tenochtitlán a
população lutou até a rendição de Cuauhtemóc. Estas reações expressam o caráter étnico muito mais
homogêneo da cidade de Tenochtitlán frente ao aspecto multiétnico de Cuzco.

8 - O contraste entre as duas cidades aparece também no aspecto militar. No período das
conquistas incaicas, sua política ofensiva foi mais complexa que a dos astecas. Os caminhos incaicos, os
centros de armazenamento de provisões ao longo das estradas, o fato de mobilizar tropas de regiões
adjacentes àquelas que queria conquistar, contribuíram para dar ao Tahuantinsuyu grande força
ofensiva. Os astecas, por sua vez, tinham que enviar quase o total de soldados desde o Vale do México,
pois sua força militar era essencialmente da própria etnia. Eles não dispunham de estradas nem depósitos,
daí que tivessem dificuldades para ganhar territórios maiores e mais distantes.

Mas situação era diferente quando o combate era dentro ou nos arredores das duas cidades. A
maior parte dos habitantes de Cuzco era de burocratas e servidores. Em Tenochtitlán todo asteca deveria
ser um soldado. Durante o sítio de Cuzco pelos homens de Francisco Pizarro, seus habitantes não puderam
desalojar algumas centenas de espanhóis com um reduzido número de soldados índios aliados. Já os
mexicas expulsaram uma quantidade muito maior de espanhóis de sua capital: apesar da desvantagem
técnica, numérica (pelo grande número de aliados índios dos europeus) e de uma epidemia de varíola,
resistiram muito mais tempo.

Quando Tenochtitlán caiu, o Império asteca foi derrotado tanto física quanto simbolicamente. Era
a derrota dos guerreiros do Sol, fim da Era Asteca. Entre os incas, uma resitência “oficial” persistiu até
1572, com parte da sua aristocracia refugiada em Vilcabamba e mantendo oposição aos espanhóis
radicados em Cusco. Mesmo depois, ela seguiu sendo uma lembrança poderosa na mente de milhares de
habitantes da região andina, alimentando até o século XVIII, mitos em volta do “retorno” do inca para
libertar e redimir seu povo.

REFERÊNCIAS:

KATZ, Friederich Katz. Comparación de algunos aspectos de la evolución de Cuzco y de Tenochtitlán. In: HARDOY,
Jorge. Las ciudades de América Latina y sus areas de influencia. Buenos Aires: SIAP, 1975, p.27-40.
MURRA, John. El mundo andino: población, medio ambiente y economía. Lima: IEP, 2002.
MURRA, John. Nueva visión del Peru. Lima: IEP, 1980.

ASTECAS E INCAS: COSMOLOGIA E COSMOVISÃO

Todas as sociedades humanas buscam explicações sobre a origem do mundo e desenvolvem modos
particulares de entendê-lo. Elas constroem um “imaginário social”, uma produção coletiva, que formula
modelos de conduta, busca dar sentido à existência, e promover a coesão do corpo social. Fenômeno
humano e cultural, este imaginário social, como um conjunto ordenado de valores, crenças, sentimentos
e concepções a respeito da época ou do mundo em que se vive, é inerente ao funcionamento e
reprodução, simbólica e material, de qualquer sociedade. Muitas vezes este imaginário exerce, ainda, a
função de modelo, de paradigma de todos os atos humanos significativos.

Como em outras sociedades, entre os povos pré-colombianos os mitos que fazem parte do imaginário
social tiveram papel da maior importância. Os astecas, por exemplo, criaram uma mitologia que não
negava sua origem humilde, nômade, que recolheu influências de outras culturas anteriores ou
contemporâneas e mais sofisticadas que a sua. Destas culturas anteriores especialmente Teotihuacan e
Tula, capital dos Toltecas, tiveram grande peso em suas explicações sobre a origem da civilização, do
conhecimento existente e do aparato sobrenatural.

Em sua concepção, o tempo se movia de forma cíclica, e não linear, como uma linha contínua de
acontecimentos sucessivos, tal como nós concebemos. Acreditavam que teria havido quatro Eras
anteriores (que eles chamavam de “Sóis”), e quatro humanidades que viveram em cada uma e
desapareceram ao fim dos ciclos aos quais estavam ligadas. Tais Eras acabaram em meio a cataclismos,
por fogo, enchente, terremoto e vendavais. O tempo em que os astecas viviam seria uma quinta Era, uma
quinta humanidade, o “Quinto Sol”. Os anteriores foram Sol da Terra, do Vento, do Fogo e da Água.

O Quinto Sol, o Sol Asteca, iniciara-se quando, ao final da Era anterior, os deuses se compadeceram do
desaparecimento da humanidade e a recriaram. Em uma das narrativas sobre este evento, eles
escolherem um mortal de nome Nahuatl, deformado e purulento, para se transformar no Quinto Sol
depois de realizar duros exercícios. Ele é a representação da etnia asteca. Suas deficiências físicas
simbolizam a posição de subordinação inicial dos mexicas perante outras etnias do Vale do México, e as
provas físicas que os deuses lhe impuseram, a luta asteca pela supremacia bélica.

Neste universo frágil e a mercê de catástrofes, não existia confiança no futuro. A cada 52 anos o calendário
asteca anunciava um ano ce-actl que trazia o perigo do fim do Quinto Sol. Quando este ano chegava, a
população era tomada de terror coletivo e do receio de que o Sol não nascesse. Uma série de ritos em
que os sacerdotes instalavam um “fogo novo”, buscava anular este perigo.

Os astecas conheceram a antiga cidade de Teotihuacán quando da migração que os trouxe de seu
território de origem (que os mitos situam em um lugar ao Norte chamado Aztlán) para aquele em que
ergueram sua nova cidade, Tenochtitlán. Teotihuacán já não era nem sombra da importante cidade que
fora séculos antes. Ainda assim, suas ruínas monumentais impressionaram tão vivamente os astecas, que
eles entenderam ser este o lugar em que os deuses deram origem ao Quinto Sol, o Sol dos astecas.
Também conheceram Tula, a antiga e também abandonada capital dos toltecas, que igualmente os
impressionou. Atribuíram, assim, a este lugar, a condição de berço de todo o conhecimento herdado, das
artes e ciências, e o lugar de nascimento de Quetzalcoatl, deus e herói civilizador para o povo de
Tenochtitlán.

A “Tira de la Peregrinación” apresenta a rota seguida pelos mexicas de sua saída de Aztlan, até o seu
estabelecimento em uma bacia lacustre no centro do México. Vemos aqui os sacerdotes da tribo levando
cada um o deus à que servia, sendo o primeiro deles, Huitzilopochtli, divindade tutelar do grupo.
O Pós-Clássico, quando os astecas se constituíam em grupo dominante na Mesoamérica, é caracterizado
por importantes movimentos de povos em toda esta área. E, como resultado, pelo encontro de tribos
guerreiras, nômades, caçadoras e coletoras, com culturas urbanas com as quais se mesclam. Foi o caso
dos astecas ao final de sua migração que durou mais de um século. Ele é um período de fortalecimento
do militarismo e do prestígio das camadas guerreiras, principal virtude dos astecas.

No mais importante espaço cerimonial da sua capital estava o Templo Mayor, com os santuários de Tlaloc
e Huitzilopochtli representando as mais influentes vertentes ideológicas da Mesomérica. Tlaloc era uma
divindade antiga e tradicional junto aos povos sedentários das aldeias agrícolas; ligado à chuva, era o deus
que afastava a seca e a fome. Huitzilopochtl, “deus colibri”, era a divindade suprema dos povos nahuatl e
ingressou com eles na Mesoamérica. Guiou a migração dos astecas e ganhou prestígio com a expansão e
o domínio que eles exerceram. Era o “senhor solar da guerra”, parente das divindades caçadoras e modelo
de combatente.

Os diversos cultos e cerimônias religiosas eram um elemento importantíssimo na vida dos astecas. No seu
imaginário o mundo era instável e estava permanentemente ameaçado de destruição. Tal como havia
ocorrido com os Sóis anteriores; o Sol asteca também estada fadado a terminar em um grande cataclismo,
sendo que a sua manutenção caberia aos deuses, mas também aos homens. Eles eram responsáveis por
manter a ordem do cosmos satisfazendo aos deuses. Assim, o movimento do disco solar no firmamento
era sustentado por meio de sacrifícios que envolviam o “líquido precioso” (sangue). Havia uma ameaça
permanente sobre o mundo, o que gerava a necessidade dos sacrifícios humanos e justificava o
militarismo e a guerra feita pelos astecas, o “povo eleito”. A oferta de sangue era um dever sagrado para
com o Sol , os deuses e o universo; era uma resposta para a instabilidade de um mundo constantemente
ameaçado de destruição. Embora em boa medida as vítimas sacrificiais fossem prisioneiros de guerra, no
momento em que o rito se processava já não era o inimigo que estava ali, mas o emissário enviado pelo
Sol. A imolação honrava os deuses e permitia que o Sol continuasse seu movimento no céu e os dias e
noites se sucedessem no seu movimento necessário para manter o mundo.

As vítimas se constituíam em um presente aos deuses. Eles eram 'nutridos' com sangue e carne
sacrificados que garantiam a continuidade do equilíbrio e da prosperidade na sociedade asteca. Em
nahuatl, a palavra para sacrifício é vemana, que deriva de ventli (oferta/oferenda) e mana (espalhar),
representando a crença de que sacrifícios contribuíam no ciclo de crescimento e perecimento do
alimento, da vida e da energia. Assim, a carne era queimada e o sangue derramado sobre as estátuas de
divindades, para que os deuses pudessem dele se servir. Talvez o principal exemplo de 'alimentar' os
deuses fossem as cerimônias para garantir que o deus-sol, estivesse bem-nutrido de tal forma que tivesse
força para amanhecer toda manhã.

Os astecas praticavam sacrifícios pela oferta de corações extraídos das vítimas pelos sacerdotes, por
afogamento, decapitação , esfolamento e esquartejamento, mas os números provenientes dos cronistas
espanhóis devem ser vistos com muita cautela e provavelmente sejam superestimados, até mesmo para
justificar seu direito de conquista e o próprio tratamento selvagem que os europeus dispensaram aos
nativos. É importante lembrar que para os astecas, o ato de sacrificar - do qual o sacrifício humano era
apenas uma parcela - era um processo estritamente ritualístico digno da mais elevada honra possível aos
deuses, e também considerado uma necessidade de garantir a prosperidade contínua da humanidade.
Contudo, não se pode negar que isso teria desencadeado um efeito secundário útil de intimidação sobre
os embaixadores de outros reinos visitantes, e a população em geral.

Por vezes a guerra atendia ao propósito de obter vítimas sacrificiais. Era a chamada "guerra florida"
(xochiyaoyotl), em que o propósito era levar apenas um número considerável de detidos para o sacrifício.
Nestas guerras, Tlaxcala, um reino inimigo, era o alvo preferido dos astecas. Aqueles que lutavam com
mais coragem ou que eram mais belos, eram tidos como as melhores oferendas aos deuses. Outro ritual
que envolvia sacrifícios humanos era o “jogo da pelota”, como já vimos. Crianças também poderiam ser
sacrificadas, essencialmente para honrar o deus da chuva Tlaloc em cerimônias realizadas em montanhas
sagradas. Acreditava-se que as próprias lágrimas das crianças sacrificadas propiciariam a chuva. O
sacrifício humano era particularmente reservado para aquelas vítimas mais dignas e era considerado uma
honra elevada, uma comunhão direta com um deus, mas indivíduos escravizados também podiam ser
escolhidos, podiam acompanhar seu soberano na hora da morte ou serem oferecidos por comerciantes
para garantir o progresso do negócio e angariar prestígio.

Na cultura mesoamericana, a imolação humana era vista como uma forma de restituir os sacrifícios que
os próprios deuses teriam realizado na criação do mundo e do Sol. Assim, os guerreiros, por exemplo, e
os governantes, ofereciam seu sangue o qual recolhiam por meio de escarificações produzidas com
espinhos, esporões de arraia, ou outros objetos afiados, em diversas partes do corpo. A queima de tiras
de papéis banhados em sangue era uma forma comum de sacrifício, bem como de tabaco e incenso.
Outros tipos de sacrifício implicavam a oferenda de animais vivos como veados, borboletas e cobras. No
sacrifício era oferendado o que se tinha de mais precioso. Nesta categoria estavam alimentos e objetos
de metal, jade e conchas que poderiam ser ritualmente enterrados. Uma das oferendas mais interessantes
eram as imagens de massa dos deuses (tzoalli). Elas eram feitas de amaranto moído misturado com
sangue humano e mel, com a efígie sendo queimada ou comida depois do ritual.

Assim como entre os astecas, o mundo simbólico dos incas era rico e complexo. Ao lado dos registros
arqueológicos, temos as fontes coloniais europeias, em especial as crônicas, como principais recursos para
tentar compreendê-lo. E, quanto a estas especialmente, é preciso, tal qual com os documentos europeus
para estudar outros povos americanos, realizar o procedimento de crítica da fonte. Isto é, lembrar de que
eles foram produzidos por ocidentais que olhavam com espanto e condenação práticas religiosas que lhes
pareciam erradas e ofensivas até. Isto é, não são fontes despidas de forte subjetividade.

Também os incas entendiam que o tempo transcorria de forma cíclica, se desenrolando partir de várias
humanidades que surgiram e desapareceram junto com sua própria Era. Igualmente acreditavam que o
tempo dos incas havia sido precedido por quatro anteriores. A primeira Era havia sido a dos “Homens de
Viracocha”, que teve seu fim com guerras, pestes e rebelião dos objetos contra seus senhores. A segunda,
a dos “Homens Sagrados”; cujo fim foi arder com o Sol. A terceira idade, a dos “Homens Selvagens” chegou
ao fim com uma inundação. A quarta – a dos “Homens Guerreiros” - terminaria com a decadência
completa. A Quinta Idade, a “Idade dos Incas”, seria o tempo desta etnia que viera para regenerar os
homens e ser o corolário das quatro idades precedentes.

O panteão inca também tinha um rico conjunto de divindades, entre os quais Viracocha e Inti ocupavam
posição de destaque. Viracocha era o deus criador e civilizador do universo. O Sol, Inti, personagem
sagrado, deus principal e fonte de vida, teve seu culto difundido e imposto a todas as comunidades
conquistadas. Efetivamente, os incas formularam um projeto de dominação que, como no caso dos
astecas, também recorria com frequência às construções religiosas. Mas a imposição do culto oficial do
Estado para todas as comunidades conquistadas, como fizeram os incas, é algo que nunca foi pretendido
pelos mexicanos.

Segundo Nathan Wachtel, Viracocha e Inti são divindades complementares: Inti se refere ao céu e ao fogo,
à serra e o alto; Viracocha aponta para a terra, para água, para a costa e para baixo. Refletiam assim,
culturas e modos diferentes de vida, segundo as variáveis geográficas e ecológicas do mundo andino (a
costa e as montanhas). Esta dualidade deve ser entendida no âmbito de uma cultura que entendia haver
uma organização dual do espaço, baseado numa concepção de verticalidade que dividia o mundo entre o
acima e o abaixo, o que se relaciona com geografia e os contrastes entre a costa e a montanha.

A correlação Sol-serra, Viracocha-costa não é mero determinismo geográfico. As diferenças costa e serra
são tão fortes, que as culturas destas regiões agiam sobre o espaço geográfico, mas também sofriam
influência dele. Assim, uma das penalidades que o império impunha para as comunidades rebeladas, era
o seu deslocamento para uma zona, longe da sua área de origem, impondo forte desestruturação material
e mental a elas. A prática chamada de mitimaq.

A relação Sol-Viracocha entre os incas, lembra Tlaloc-Huitzilopochtli entre os astecas, mas também aponta
uma diferença. Ao contrário dos mexicanos que colocavam as duas entidades em posição igual e não
procuraram unificar o mosaico étnico meoamericano por meio de um projeto religioso homogêneo, os
incas defenderam a imposição do culto solar.

A necessidade de recorrer às explicações baseadas no aparato religioso fica clara na forma como era
legitimado o poder do Inca. Os soberanos incas sempre foram membros da etnia. Todo novo soberano
apresentava-se como pobre e órfão, uma vez que, assumindo o poder renunciava aos laços de parentesco
e a herança familiar. Casava-se com sua própria irmã, reatualizando e tornando presente o mito de origem
da tribo [Manco Capac e Mama Occlo], ao mesmo tempo em que fechava a possibilidade de estranhos
penetrarem na dinastia reinante. Não tendo antecessores ou sucessores, cada final de reinado era
marcado por violentas disputas entre facções. O Exército ficava dividido e o Império acéfalo, mergulhado
no caos com a falta da figura unificadora e centralizadora do Inca. Esta era a oportunidade para várias
comunidades entrarem em luta pela sua independência. Com a vitória de um dos pretendentes, a ordem
voltava a se impor (reforçando a aura civilizadora e pacificadora com a qual o mito cercava a figura do
Imperador), como se o Império renascesse a cada Inca.

Se a ascensão de um novo Inca era marcada guerras civis, e o controle das tropas do exército era
fundamental, sua legitimação com a vitória circulava na esfera do sobrenatural. Cada novo inca era
investido pelo Sacerdote Supremo como “Filho do Sol”, mediador privilegiado entre mundo terreno e o
além. O Inca era o vínculo entre a ordem natural e social, entre o mundo dos homens e o divino. Assim,
após a investidura, sua figura era superior àquela, na Mesoamérica, do Tlatoani (o senhor da palavra).

O Tlatoani asteca era eleito por um grupo de representantes das classes dominantes, seu papel era o da
chefia da Confederação e comando das tropas guerreiras, tendo- se desvencilhado de ser um de guia
espiritual. No caso inca não havia dissociação entre divindade e chefia espiritual. O Inca, Filho do Sol, era
o elo entre o mundo material e espiritual, a ligação entre a natureza e a cultura e o ponto de encontro
entre os deuses e os homens: era o centro carnal do universo.

A legitimidade do corpo governante teve um forte apoio no esquema cósmico dos dois impérios. O mando
supremo entre os astecas, devia ser uma projeção da ordem divina que dividia o mundo em duas metades:
céu/terra, luz/escuridão, masculino/feminino, etc. Assim como a divindade suprema era a união das
metades, em México-Tenochtitlan havia dois governantes: o tlatoani e o cihuacoatl, representando,
respectivamente, os poderes do céu e da terra. O tlatoani era um personagem semidivino, representante
de Tezcatlipoca, eleito entre um grupo seleto por um conselho de nobres. Era o máximo dirigente militar,
sumo sacerdote e juiz supremo de seu povo. O cihuacoatl era seu auxiliar mais próximo: substituía-o em
suas ausências e tinha ingerência direta nos assuntos administrativos, fazendários e judiciais da cidade.

No Peru, também encontramos dois incas governando simultaneamente: um era o inca de Anan e outro
de Urin, as duas “metades” que compunham a cidade de Cuzco. O Sapa Inca, “Filho do Sol”, era o Inca de
Anan. Ele manejava a vida cívica, política, econômica, social e militar. O Inca de Urin, “escravo do Sol”
dirigia o culto solar e podia substituir o outro em caso de necessidade. Ambos tinham bens e tesouros
comparáveis, mas a autoridade do Sapa Inca era superior. Ele era “Filho do Sol” e participava da divindade
de Inti, o Sol. Ao assumir o trono renunciava ao seu nome e a todo parentesco terreno que tivera; ao
morrer, sua múmia passava a ser objeto de culto e veneração.

Adorado como um deus, como “Filho do Sol”, seu desaparecimento com a conquista espanhola, lançou o
povo em desolação, angústia e dor. Para seu povo, a morte do Inca e a dominação espanhola são
processos organicamente ligados, pois, com a sua ausência desaparece a proteção social e divina. Privado
do seu guia, o povo inca perde suas referências e fica condenado a uma vida

Referências e sugestões bibliográficas

DUVERGER, Christian. La flor letal economía del sacrificio azteca. México: Fondo de Cultura Económica,
1993.

BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. De la idolatria. Una arqueologia de las ciencias religiosas. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1992.

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