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Resumo
Generalizado como “calendário maia”, o ciclo ritual de 260 dias é, na verdade, uma
forma elementar da vida religiosa, que constitui a base da história social e cultural
mesoamericana e tem origem anterior aos próprios maias. Fenômeno não noticiado em
nenhum outro lugar ou época, a base calendárica ritual é retrato da Mesoamérica. Tal
calendário, cuja concepção remete à expressão das dinâmicas sociais, culturais,
religiosas e astronômicas, ocupa posteriormente a função de regularização ou
normatização das mesmas, determinando a periodicidade dos ritos e as datas ideais para
eventos sócio-políticos. Nosso objetivo é analisar a amplitude do ciclo ritual no
cotidiano social mesoamericano e na constituição da identidade, além de introduzir a
base matemática e calendárica.
Abstract
Generalized as “Maya calendar”, the ritual cycle of 260 days is, in fact, a elementary
form of the religious life that constitutes the basis of the mesoamerican social and
cultural history, whose roots are older then the maya. This phenomenon was never seen
in any other place or time, and the common ritual calendric system is a portrait of
Mesoamerica. These calendar, whose design refers to the expression of social, cultural,
religious and astronomical dynamics, then takes the role of regularization or
normalization of the same dynamics, determining the frequency of the rites and the ideal
dates for social and political events. Our purpose is to analyze the ritual cycle amplitude
in Mesoamerican daily life and identity constitution, and introduce the mathematical
and calendrical system.
Introdução
A região da Mesoamérica, que compreende a totalidade das atuais Guatemala e
Belize, além de grande parte de México, Honduras e El Salvador, revelou ao mundo
uma série de culturas. O que elas tinham em comum, a despeito de tantas divergências e
conflitos observados ao longo da história? A utilização do mesmo calendário ritual de
260 dias. Isto, junto a outras características culturais compartilhadas, tais como a ênfase
na agricultura do milho, o sacrifício como um dos fundamentos da tradição religiosa e a
construção de pirâmides de pedra, fez com que Paul Kirchkoff, propositor do termo
“Mesoamérica”, chegasse à conclusão de que tais sociedades eram essencialmente
variações de um tema cultural afim, todas relacionadas ou até mesmo derivadas de uma
cultura ancestral comum que remonta a um passado bastante antigo (STUART, 2011:
32-33). Assim sendo, podemos considerar o uso desses dois calendários como algo que
constitui a história social e a identidade 1 mesoamericanas, não se tratando de um uso
restrito ou controlado por uma determinada cultura, mas, ao contrário, disseminando-se
entre as mais diferentes sociedades da Mesoamérica.
Ainda que os primeiros registros calendáricos mesoamericanos conhecidos
sejam provenientes do Vale do Oaxaca, do Istmo de Tehuantepec e da parte central do
estado de Chiapas (regiões Olmecas e Zapotecas, no México) e remontem
aproximadamente ao meio do primeiro milênio AEC 2 (MARCUS, 1992: 33, 95;
STUART, 2011: 173), a origem dessa base calendárica permanece como uma questão
não solucionada, uma vez que é provável que haja um hiato considerável entre a
idealização dos calendários e seus primeiros registros em pedra e outros materiais. A
situação se agrava quando ressaltamos que muitos registros foram perdidos e tantos
outros ainda precisam ser descobertos e/ou restaurados.
1
A partir da emergência do processo de globalização marcante após a década de 1980, o debate em torno
do conceito de identidade tornou-se latente. Os trabalhos do inglês Stuart Hall são referência e trouxeram
grandes contribuições para enriquecimento deste debate. Hall afirma que as identidades não são imutáveis
e nem estáveis e que um mesmo indivíduo pode possuir diversas identidades, precisando sempre do outro
para se estabelecer, pois as identidades são sempre relacionais (HALL, 2000: 109).
2
No presente artigo, preferimos usar as siglas AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum), visando a
adoção de uma alternativa laica em detrimento às tradicionais siglas a.C. (antes de Cristo) e d.C. (depois
de Cristo), cujo uso remete à parcialidade religiosa cristã.
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Base etnomatemática
Conforme dito anteriormente, todas as culturas mesoamericanas utilizaram um
sistema matemático de base vigesimal, aplicado também à contagem de tempo
(STUART, 2011: 107). Para melhor compreensão de seu funcionamento, faremos uso
do sistema maia, composto por vinte dígitos, zero a dezenove. Os maias representavam
a unidade com um ponto e cinco unidades com uma barra. O número quatro, por
exemplo, era representado como quatro pontos, enquanto o número sete era
representado como dois pontos e uma barra (aritmeticamente, dois mais cinco). O zero é
um caso especial: geralmente representado como uma concha, simboliza a ausência de
valor numérico, mas sua função de “ocupação dos lugares” é o que possibilita a notação
de números de “ordem superior” na contagem maia (MONTGOMERY, 2003: 9), ou
seja, numerais acima do dezenove.
Havendo apenas a possibilidade dos vinte dígitos, de zero a dezenove,
concluímos que o valor máximo em cada ordem ou nível é dezenove. A representação
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do número vinte inaugura o sistema de ordens ou níveis, nos quais as unidades, que na
base tem seu valor original, passam a ter seus valores padrão modificados de acordo
com o seu posicionamento. Na passagem do dezenove para o vinte, por exemplo, cria-se
um nível superior ou uma ordem de conversão em que um ponto, em vez de equivaler
ao número, deve ser multiplicado por vinte. Dessa maneira, vinte na aritmética é (1×20)
+ (0×0). No novo nível, dois pontos equivalem a quarenta e três barras equivalem a
trezentos. Da mesma maneira, quanto maior for um número, mais ordens ou níveis ele
terá de preencher, na medida em que cada ordem possui valor de partida vinte vezes
superior ao anterior: se na base cada dígito representará seu valor unitário, acima dela
representará seu valor multiplicado por vinte, na próxima representará seu valor
multiplicado por quatrocentos (vinte vezes vinte) e assim por diante.
Figura 1
Vinte dígitos maias com seus nomes em língua Yukateka (MONTGOMERY, 2000).
Figura 2
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3
O prefixo “epi” tem o significado de “pós”.
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‚ K’in: 1 dia
‚ Winal: 20 dias
‚ Tun: 360 dias
‚ K’atun: 7.200 dias
‚ Pik (B’aktun): 144.000 dias
Num registro do Choltun, cada ciclo é designado por um hieróglifo (vide figura
3), que por sua vez é acompanhado por um coeficiente numérico de zero a dezenove,
salvo no caso do Winal, que é acompanhado por um coeficiente numérico de zero a
dezessete. É no Winal que reside a modificação que confere o valor de 360 dias ao ciclo
Tun.
Figura 3
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O ciclo de 20 dias corre em perfeição junto aos 20 dias que se contam no ciclo
K’in do Choltun. Isto significa que, quando houver coeficiente zero nele, será um dia
Ajaw no Tzolk’in, quando houver coeficiente um será um dia Imix no Tzolk’in e assim
por diante. Consequentemente, toda abertura de ciclo no Choltun será um dia Ajaw no
Tzolk’in, ilustrando a importância que tal dia tinha dentro do Choltun para os antigos
maias.
Os ciclos de 13 e 20 dias correm paralelamente, combinando-se. Os vinte dias
correm até que todos eles tenham sido numerados de 1 a 13, o que só ocorre após 260
dias. Esta é, portanto, a razão da duração do ciclo ritual mesoamericano.
Figura 4
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Figura 5
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Os vinte dias de cada ciclo são também contados de zero a dezenove (ou de
zero a quatro, no caso do Wayeb’). O Ja’ab’, diferente do calendário gregoriano, não
possuía qualquer sistema semelhante ao “ano bissexto” (MONTGOMERY, 2003: 26),
mas cada um de seus ciclos era também relacionado a rituais e festivais.
Ja’ab’ e Tzolk’in, quando combinados, resultam na Roda Calendárica, um ciclo
de 52 anos (18.980 dias) que engloba todas as combinações possíveis entre o ciclo de
260 e o ciclo de 365 dias. Isto significa que uma data composta pela combinação entre
um determinado dia do ciclo de 260 dias e um determinado dia do ciclo de 365 dias só
volta a ocorrer a cada 18.980 dias. Tal ciclo tem o simbolismo similar a uma era ou
geração, e seu reinício demanda um grande ritual, como a Cerimônia Ritual do Fogo
Novo dos mexicas. 4
4
Para mais sobre o ciclo de 52 anos, ver PHARO, Lars Kirkhusmo. The Spatio-Temporal Ritual Practice
of the Fifty-Two-Year Calendar in Mesoamerica. Journal of Religious History. Sydney, V.34(4), p. 446–
458, 2010. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9809.2010.00906.x/full.
Acessado em: 04/07/2011.
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5
Tradução nossa, elaborada a partir da tradução para o inglês feita por David Stuart (2011: 125).
6
Tradução nossa, a partir do original.
7
O Popol Wuj, cujo nome significa literalmente “o livro do comum; o livro do povo; o livro do
conselho”, é considerado o livro sagrado e histórico da etnia maia K’iche’ e sua versão original em língua
homônima foi produzida entre os anos 1.554 e 1.558 EC, estando hoje desaparecida. A primeira tradução
para o espanhol foi feita pelo frei Francisco Ximénez entre 1.701 e 1.703 EC. (COLOP, 2008: 13-20). No
presente artigo faremos uso da versão em espanhol de Luis Enrique Sam Colop, k’iche’, advogado e
linguista, defensor da educação bilíngue e do direito consuetudinário maia na Guatemala.
8
Tradução nossa a partir da tradução para o espanhol de Colop (2008: 61).
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Neste trecho do Popol Wuj, Sam Colop (2008: 61) destaca em notas que
“Junajpu ou ajpu é um dia no calendário maia” e que “Batz’ é também um dia do
calendário e Chuwen é seu equivalente em maia Yukateko”, mais especificamente dias
do ciclo ritual. Trata-se, claramente, de um caso que ilustra o quanto o ciclo ritual está
impregnado na própria identidade maia e mesoamericana, a ponto de vários indivíduos
terem seus nomes determinados pelo ciclo ritual. Nesse caso, divindades, precursores do
povo maia K’iche’.
Assim como Jun Junajpu (Popol Wuj, p. 68-71), Junajpu segue o caminho
negro a Xibalba (o inframundo maia) em companhia de seu irmão (Popol Wuj, p. 99),
desafiados pelos senhores daquele lugar, tendo em vista que seu jogo de bola os
incomodava. Lá, diferente de seu irmão, Junajpu é decapitado (Popol Wuj, p. 110),
como Jun Junajpu também havia sido. Assim, Junajpu comunga também do destino do
pai, entretanto saindo-se melhor que ele no fim das contas. Um nome, sendo equivalente
a um dos dias do ciclo ritual, atrela a identidade a um destino e alma específicos.
Mais do que uma mera figura passiva cuja identidade é influenciada pelo
calendário, Junajpu é uma divindade cuja importância transcende o ciclo ritual. Isto
quer dizer que o dia Jun Ajpu é enriquecido em significado graças à figura da divindade
Junajpu, e por sua vez esse significado passa a constituir a bagagem identitária daquele
dia, inseparável do mesmo.
Junajpu torna-se o Sol (e Xbalamke, a Lua) após vencer Xibalba, vingando Jun
Junajpu e Wuqub Junajpu (Popol Wuj, p. 126), ao passo que o glifo calendárico Ajaw
ou Ajpu é descrito também como o Avô-Sol (TORRES, 2009). Isto revela a impressão
da identidade de Junajpu no ciclo ritual, exemplo de divindade que determina o signo
de um dia.
Sendo assim, o ciclo ritual pode ser observado não apenas como algo que
confere identidade aos mesoamericanos, mas também o contrário: os mesoamericanos
imprimem sua identidade no ciclo ritual. Isto explica a razão pela qual um mesmo dia é
chamado por nomes diferentes, possuindo significados diferentes e sendo influenciado
por divindades diferentes. Cada etnia reconstrói de tal forma a significação de cada dia
do ciclo ritual que alcançar o que este teria sido em sua primeira forma parece
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simboliza o encontro apenas entre o ciclo ritual e o ciclo Pik do Choltun, excluindo o
Ja’ab’ e muitos outros ciclos. 9
Em As formas elementares da vida religiosa, Émile Durkheim aborda a
questão da aplicação religiosa do tempo:
(...) a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir nas mesmas
unidades de tempo. É, pois, necessário destinar à primeira dias ou períodos
determinados dos quais todas as ocupações profanas sejam eliminadas. Foi
assim que surgiram as festas. Não existe religião nem, por conseguinte,
sociedade que não tenha conhecido e praticado essa divisão do tempo em
duas partes estanques, alternando uma com a outra conforme uma lei variável
de acordo com os povos e civilizações; é até muito provável, como dissemos,
que tenha sido a necessidade dessa alternância que levou os homens a
introduzirem, na continuidade e na homogeneidade da duração, distinções e
diferenciações que ela não comporta naturalmente. (...) Há sempre coisas
sagradas fora dos santuários; há ritos que podem ser celebrados nos dias
úteis. Trata-se de coisas sagradas de ordem secundária e de ritos de menor
importância. A concentração continua sendo a característica dominante dessa
organização. Ela é geralmente completa para tudo que diz respeito ao culto
público, que só pode ser celebrado em comum. O culto privado, individual, é
o único que se relaciona bastante de perto com a vida temporal.
Não por acaso consideramos o ciclo ritual de 260 dias como “forma elementar
da vida religiosa” mesoamericana, categoria inaugurada por Durkheim. O ciclo ritual
institui o culto realizado na vida cotidiana e de caráter privado que ao mesmo tempo
ampara-se no culto público. Pharo (2010b: 446-447) concorda e vai além, introduzindo
uma categoria teórica no estudo da religião, “prática ritual do tempo”, inspirada nos
ciclos mesoamericanos:
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A prática ritual do tempo determinada pelo ciclo ritual de 260 dias é, portanto,
constituinte da ethno mesoamericana. O principal símbolo para a plenitude cerimonial
do fim de um ciclo é o zero, que nesse caso representa não ausência, mas sim o ciclo
que está completo. Consideramos a “prática ritual do tempo”, nova categoria de Pharo,
um desdobramento da categoria de Durkheim com foco no estudo da Mesoamérica.
No ciclo ritual também está impresso o meio, a fauna e a flora com a qual o
mesoamericano interagiu. Como exemplos podemos citar o jaguar e o milho, que
aparecem como signos entre os vinte glifos do ciclo ritual. Ambos são associados aos
quatro primeiros homens no Popol Wuj, que são moldados a partir do milho moído e da
água; os dois primeiros – Balam Ki’tze’ e Balam Aq’ab – e o último – Ik’i Balam,
carregam o nome Balam (jaguar), enquanto que o terceiro é chamado de Majuk’utaj
(Popol Wuj, p. 130), cujo nome deriva, segundo Colop, da expressão “quem não
10
Pharo tem o cuidado de lembrar que rituais individuais de figuras públicas são um caso específico e não
necessariamente privados.
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Considerações finais
Como bem observamos ao longo de nossa análise, o ciclo de 260 dias confere
identidade aos mesoamericanos, determina sua vida cotidiana e seu ritual diário, a nível
social e individual. O significado passado e presente de cada dia e seus respectivos
rituais está impresso na história de cada etnia, abrangendo todos os contextos relevantes
a qualquer sociedade mesoamericana. No encontro dos ciclos é que se revive o passado
nos rituais mais importantes, que são marcações no tempo cujas funções são as de
relembrar, manter e acrescentar à identidade de seus ancestrais, cujo poder reside no
Tempo e cuja manutenção se projeta no futuro.
Para além da clássica definição geográfica, o conceito de Mesoamérica deve
ser pautado por aquilo que constitui a ethno mesoamericana, e sem dúvida o ciclo ritual
de 260 dias é parte basilar dela. Considerando as dúvidas acerca da origem do ciclo
ritual e sua amplitude geográfica, podemos nos amparar apenas na etnologia e na
arqueologia, que por sua vez têm na Mesoamérica grandes e constantes desafios:
11
Versão organizada por Gordon Brotherston e Sérgio Medeiros. No presente artigo, preferimos a versão
de Colop, por tratar-se de um autor acadêmico de origem K’iche’, entretanto o glossário da versão em
português nos foi útil ao longo da pesquisa.
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BIBLIOGRAFIA
Documentação Textual
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