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OS “SALMOS” – O LIVRO DA ORAÇÃO

De “La Bible du Peuple de Dieu”


Tradução das Monjas Beneditinas

Nossos sentimentos profundos e nossas atitudes espirituais, nossa ideia de Deus e nosso sentido da condição
humana não seriam o que são se não tivesse havido, desde séculos, um livro dos Salmos. Mais do que imaginamos, o
saltério plasmou algo de nossa alma. Desde há mais de 2000 anos não houve, hoje não há, amanhã não haverá, e
talvez nunca há de haver alegrias ou tristezas sem que um salmo venha a exprimi-lo. Para as festas públicas ou para os
dias penosos, é esse o grande repertório da oração. Judeus ou cristãos, gente do povo ou privilegiados da fortuna e da
cultura, todos nós não cantamos cântico, fúnebre ou glorioso, que não tenha encontrado inspiração nesse livro. Esses
poemas foram enraizados em nossas vidas, e isso há séculos; eles fazem parte de nossas raízes espirituais.
Mas, de onde nos vêm esses cânticos? Suas palavras e imagens, suas ideias e sua poesia são de outra
época. No entanto, quem não teria algum dia rezado um Miserere (Sl 50), um De profundis (Sl 129), quem não clamou
um dos grandes Aleluias (por ex. o Sl 150), sem profunda emoção? Cantos de ontem e de hoje! Devemos situá-los no
itinerário de Israel; com isso, melhor ainda hão de exprimir os caminhos de nossa própria vida.

Os dias e as horas de Israel


Um povo marcha no caminho de sua história, caminho hesitante, ora “via dos justos conhecida pelo Senhor”,
ora “via dos maus que leva à perdição” (Sl 1,6). Sempre se procurando recuperar por momentos de fidelidade o tempo
da infidelidade. Há dias em que se caminha com entusiasmo rumo ao santuário de Deus: “Eu estava alegre...” (Sl
121,1). Mas os trabalhos e dias dos homens têm em geral, a bruma do cotidiano, e, frequentemente, o peso da
desgraça. Israel é povo em festa? Certamente, ainda mais comumente, é ele uma comunidade a caminhar sem
esplendor através das vicissitudes que assinalam a história de todos os povos. Neste povo, como nos outros, dormem
criancinhas desmamadas, no seio das mães (Sl 130,2), os pedreiros se aplicam a difícil construção (Sl 126, 1), os
doentes passam por noites intermináveis de sofrimento (Sl 6,7), os reis partem para a guerra e voltam vencedores ou
vencidos (Sl 67,13), o povo canta as liberdades conquistadas à custa de muita luta ou se acha nas prisões ou no exílio.
Durante esse tempo, estranho à agitação dos homens, vê um dia suceder a outro dia, a noite a outra noite, e o sol se
erguer, radioso, para percorrer seu caminho (Sl 18,3-6).

Um povo que ora


Outros povos, outros homens gozam das mesmas alegrias, sofrem as mesmas desgraças - essa é a condição
humana. Mas, enquanto aqueles que, em poucas palavras são chamados de “pagãos”, “ímpios”, “maus”, ostentam
arrogantemente seus sucessos: “jamais nada me abalará” (Sl 29,7) ou carregam com estoicismo a adversidade da vida:
“porei na minha boca uma mordaça” (Sl 38,2-4), Israel não pode calar-se e a palavra prorrompe dos lábios do crente. O
que cada um ou cada comunidade, ou todo o povo vive ou sente, sofre ou curte dentro do coração, é dito a Deus (Sl 30,
15; 31,5; 38,4; 90,2), é gritado (Sl 60,2; 71,2; 87,2-14), é enfim cantado (Sl 12,7; 149,1). Esse povo, continuamente
interpelado por Deus ousa tomar o Eterno para testemunha de sua sorte. É que o Deus da Bíblia ligou sua causa à
causa dos homens.
Por que exprimir assim a própria vida, gritá-la, dirigindo-se a um Deus de quem os espíritos fortes estão
sempre repetindo: é um ausente ao encontro com os homens; “Deus? Ele esquece, encobre a face, nada vê (Sl 10,4-
11); Já não há Deus!” (Sl 13,1). Já havia o desprezo, e ressoa até nós, inquietante, o duro sarcasmo dos profetas da
morte de Deus; eles arrancam os pobres seu único Defensor. No meio desses “ímpios”, quando não há mais um
homem sensato que busque a Deus (Sl 13, 2) o crente, o povo de Israel, dá testemunho, no íntimo da alma e em praça
pública, de uma fé que nada mais conseguirá submergir.
No meio das alegrias e sofrimentos, basta parar, refletir, orar, para novamente encontrar a face de Deus. O
Senhor está presente nos mistérios da criação, no itinerário, na experiência íntima de cada um.
Isso é expresso com as imagens preferidas à cultura da época, apelando ora para os elementos
desencadeados, ora para a ordem serena do cosmos, para os prodígios das guerras ou o prestígio do Templo e da Lei,
para as experiências íntimas de conversão ou de felicidade reencontrada. Inventaríamos, talvez, outros símbolos, mas
aqueles nos falam espontaneamente. Citaríamos, talvez, outros acontecimentos, o do Cristo e os de nosso tempo, mas
estariam de acordo com a experiência expressa nesses poemas de ontem? Em todo caso, uma mesma certeza, uma
mesma descoberta se faz: despertando para o mistério das coisas e de si mesmo, é subitamente o inexprimível e o
inefável que irrompe, é a presença de Deus que se desvenda como força e fonte de vida. O Deus que chama, o Deus
que vem, o Deus que está aí conosco, no meio de nós! Como não lhe apresentar nossas alegrias e angústias? É esse
Deus que, de tantos modos diferentes, faz reconhecer sua presença misteriosa que Israel então se dirige, nesses
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admiráveis poemas dos salmos. Estão reunidos numa coleção, todos parecidos e todos variados. A existência que eles
repetem é sempre a mesma para todos os homens e todos os dias nova e inesperada, logo que se toma consciência
dela, logo que ela se torna itinerário de vida.
Certos salmos parecem orações individuais - aquele que ora diz “eu” - e talvez o tenham sido no início. Mas,
toda oração se exprime um dia na assembleia e, em breve, a pessoa que fala a Deus nesses salmos não é só este ou
aquele indivíduo tocado pelo sofrimento ou salvo miraculosamente; o destino de cada um é a imagem do destino do
povo. O homem que ora representa sempre uma humanidade mais extensa. Mesmo as súplicas e ações de graças
mais individuais se tornaram cantos litúrgicos da comunidade toda.

Uma coleção de cantos litúrgicos


Esparsos por toda a Bíblia, encontramos muitas orações e cantos litúrgicos. Entretanto, o essencial do louvor e
da súplica de Israel está contido nos 150 salmos. Sem dúvida, essa coleção já estava, mais ou menos em seu estado
atual, à disposição dos responsáveis pelo culto em Jerusalém, na época do segundo Templo, desde o século III (a.C.).
Analogamente à Lei, dividiram-na, aliás muito arbitrariamente, em cinco livros. De fato, antes já existiam certas coleções
menos importantes: umas pertenciam a um grupo de cantores, como os de Asaph ou de Coré, encarregados de
organizar a liturgia; outras coleções características foram inseridas igualmente: o saltério do peregrino, os cantos do
Reino, os cantos de Sião, os hinos de Hallel. Mais de um poema teve sua história e sua vida própria, antes de encontrar
seu texto definitivo e seu lugar no saltério.
Antes de cada salmo, o texto hebraico já dava algumas notas introdutórias, para nós muito misteriosas.
Chamamo-las “títulos”. Indicam a quem se atribuía o salmo, a ocasião histórica que se supunha tê-lo inspirado,
informações sobre as melodias e os instrumentos de música a usar, etc. Certos autores pensam que esses “títulos” são
antigos, e poderiam ser anteriores ao tempo do exílio; outros exegetas consideram que se trata de acréscimos mais
tardios, posteriores ao conjunto. Essas indicações nos informam menos sobre o sentido do salmo do que sobre o modo
como se compreendia e como era cantado num momento certamente já distanciado de sua origem.
Cabe aqui frisar que cada salmo tem sua história. Certos poemas muito antigos foram relidos, século após
século, adaptados a circunstâncias novas, frequentemente modificados. Seria fascinante descobrir o sentido e a função
de certos cantos, como por ex. o salmo 2 ou o 110, segundo as épocas.
Aliás, os “títulos” atribuem em geral os salmos individuais ao próprio Davi, e finalmente a tradição o considera
como sendo o autor do saltério em conjunto. O rei músico e poeta que dançou diante da arca (2Sam 6,14) e organizou
o culto, deu à liturgia e ao canto sacro um impulso decisivo. Ora, como chefe de Israel, Davi representa um povo inteiro.
Além disso, depois da queda da monarquia, Davi se torna, após o exílio, o modelo do crente e a figura de um Messias a
vida, que também haveria de falar em nome de todo o povo. Assim, ainda que o próprio Davi sem dúvida não tenha
composto os salmos, sua lembrança inspirou os cantores, os quais puseram suas peças litúrgicas sob seu patrocínio.

As atitudes diante de Deus


No modo como os salmos se sucedem em nosso saltério, é difícil distinguir uma ordem. Desde as antigas
coleções que se acham integradas no conjunto, as orações e súplica se acham ao lado das mais entusiastas ações de
graças... à imagem da própria vida. Notemos, talvez, que o peso da desgraça é maior na primeira metade do livro,
enquanto que o louvor de glória é mais constante no fim. Em nossos comentário, procuramos sugerir um pouco esse
ritmo.
No entanto, compreender-se-á melhor cada salmo se se descobre a que categoria, gênero, tipo de oração
litúrgica ele pertence. Com efeito, segundo os sentimentos e ideias que eles exprimem, segundo as necessidades do
culto a que correspondem, também segundo seu ritmo e estrutura, podem os salmos ser agrupados em alguns tipos
característicos; eles exprimem (esses tipos) as atitudes (diversas) do homem diante de Deus.
Em hebraico, o saltério se chama o livro dos louvores. De fato, são inúmeros os hinos nessa coleção. Esses
gritos de adoração entusiasta brotam no momento em que o homem se faz contemplativo. Ele admira ao mesmo tempo,
e sem dissociação, a obra de Deus que faz surgir os mundos (Sl 103; 148); sua poderosa intervenção na história do
povo (Sl 32), enfim, sua ação na vida do mais pobre dentre os seus. O Deus Criador, o Deus Salvador, ou Redentor, o
Deus misericordioso e próximo, esse é o Senhor que Israel aclama (Sl 18). Esses hinos têm um lugar no culto (Sl 8) e,
às vezes, evoca-se a entrada no Templo (Sl 95,8; 131,7), a procissão (Sl 47,13; 67,25-28), a dança (Sl 149,3), os
cantos, os coros e a música que continuam até pela noite (Sl 94,6; 95,8). Os salmos do Hallel se encontram aqui, na
maior parte.
Um grupo característico de poemas aclama o Senhor como rei do povo e do universo; são os salmos do reino,
hinos messiânicos (Sl 46; 92; 95; 96; 97; 98; 144).
Um outro grupo exprime o fervor do povo por Jerusalém, a montanha é a morada de Deus, em que se
perpetua a dinastia do rei, messias. Podemos chama-los de cânticos de Sião (Sl 23; 45; 47; 77; 83; 86; 121).
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Os cantos de ação de graças são poemas admirativos e de gratidão, longamente modulados; celebram os
benefícios de Deus, incontáveis, grandiosos ou modestos, de qualquer modo maravilhosos. A gratidão é de tal modo
fundamental na atitude religiosa que ela se introduz, aliás, até o íntimo dos salmos de angústia e súplica, como penhor
da esperança reencontrada. Essa ação de graças pode ser, de início, individual (Sl 17; 31; 33; 39); é também de todo o
povo (Sl 65; 123; 128).
As súplicas, queixas, orações de luto e penitência são, talvez, as mais numerosas no saltério. Vê-se desfilar o
cortejo dos miseráveis, oprimidos, perseguidos. São acusados que pedem justiça em processos sem esperança (por
exemplo: Sl 4; 5; 7 etc), inocentes perseguidos que têm em Deus o único recurso (Sl 27; 35; 39,4-18 etc). São ainda os
doentes apavorados pela morte bem próxima, quando a ressurreição ainda não é uma evidência para sua fé (Sl 6; 37;
38; 87 etc), são também os pequenos, os pobres, os esfolados vivos na existência, que transpiram sua angústia diante
de Deus. No entanto, cada encontro com o Senhor transforma aquele que a Ele se abandona; opera-se misteriosa
transformação, a convicção dos humildes se torna força, renasce a esperança e já no final de cada oração se esboça a
ação de graças. Assim, certos cantos dos pobres tornam-se salmos de confiança e de gratidão (Sl 12; 15; 21; 22; 30; 31
etc). Pode-se falar de um saltério dos pobres e dos enfermos. Mas se encontrará também, ao lado da descrição das
desgraças, o quadro desanimador da maldade humana: arrogância, violência, injustiça, blasfêmia, traição; é a face do
mal, de tudo que, em última análise, é negação tanto de Deus como do homem.
As orações mais verdadeiras do saltério são talvez as do pecador, sobretudo o Miserere (Sl 50) e o De
Profundis (Sl 129). E, de toda a experiência humana, resta-nos a esplêndida palavra de confiança que é o salmo 130.
De certo, todas as orações de súplica, esses gritos de homens de que acabamos de falar, aplicam-se cada vez
mais ao povo todo. É tal a solidariedade dos homens que a oração mais íntima se transforma em oração de assembleia.
Certos salmos, porém, partem diretamente da angústia de Israel em sua história. Surgiram nos momentos em que o
povo se sentia ameaçado de ser sufocado, em que era atingido pela provação do exílio, em que a perseguição se
desencadeara contra ele em Jerusalém e na diáspora. Nessa história singularmente atormentada, o recurso a Deus se
eleva como um protesto da fé (Sl 43; 59; 73; 78; 79; 82; 84). Mas, nos dias em que tudo parece desabar, é ainda a
confiança que renasce e já vem surgindo a ação de graças (Sl 45; 74; 123; 124; 128).
Os salmos sapienciais têm um tom mais professoral. Sábios se aplicaram a escrutar o enigma da vida,
procurando desvendar-lhe o sentido. Esbarram constantemente no problema crucial da recompensa: tudo se passa
como se os justos fossem desfavorecidos, enquanto os maus prosperam. Cada qual tenta, então, propor sua resposta,
sem sempre aceitar o drama de Jó; esses autores, no entanto, preconizam sobretudo uma conduta de vida que
conserva o justo em sua fé e esperança, mesmo se os problemas parecem insolúveis (Sl 36; 48; 51; 90; 111; 126; 127;
132).
Devem ainda ser mencionados outros tipos de oração, como os salmos reais. São cantos e orações referentes
ao rei, talvez utilizados pelo menos a princípio para a festa da sagração ou para o aniversário da entronização. Como os
salmos do reino, serão relidos progressivamente numa perspectiva messiânica; depois do fracasso da realeza, a
promessa de Natan a Davi não poderia ser revogada; um outro Ungido virá realizar definitivamente o projeto de Deus, o
Messias cuja fisionomia gloriosa é descrita nos salmos 2 e 109.
Entre os cantos de entronização estão os salmos: 2; 20; 88; 109; eles se tornam portadores da expectativa
messiânica. Encontrar-se-á também o espelho (o modelo) do príncipe no salmo 61, uma bela evocação do prestígio do
monarca (Sl 44), a oração pelo rei (Sl 19; 100), a oração do rei (Sl 143) e um “Te Deum” real (Sl 17).
Note-se também que certos salmos apresentam a ”história de Israel” à maneira de uma pregação profética que
propõe solenemente a lição do passado, por ocasião de alguma grande festa (Sl 77; 104; 105).
Todos os salmos poderiam, mais ou menos ser colocados em uma dessas categorias. Sugerem elas o que
podia ser a experiência do crente, mas também a liturgia de Israel.

Do passado à esperança
A história dos salmos não se acaba nunca. É, na verdade, a aventura espiritual do povo de Deus, com suas
luzes e sombras, o que o saltério refletia. Mas a tradição judaica bem cede recebeu este livro como presságio de uma
experiência religiosa única, a que seria feita pelo Messias, testemunha e beneficiado privilegiado da obra divina da
salvação. Assim, todo o saltério se torna oração messiânica. A tradição cristã, por sua vez, aí reconhece, anunciado e
prefigurado, o destino de Jesus Cristo, que sofreu a Paixão antes de entrarem sua glória (Sl 21,19 e Mc 15,24; Sl 2,2 e
Lc 3,22; etc). Rezando os salmos, a Igreja exprime nesses cantos de outrora, imperfeitos, mas indispensáveis, a
experiência que ela vive hoje. Ela é o novo povo de Deus em marcha para o final de sua história. “Sião, beleza perfeita,
onde Deus resplandece” (Sl 49,2 e Ap 21,2).

Tom de vingança
No entanto, muitos desses poemas são perpassados de imprecações e de pedidos de vingança, cuja
crueldade nós não podemos suportar (Sl 5,11; 30,18; 53,7; 82,14; 108; 138,19). Estremece-se ao ler: “Feliz quem tomar
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e esmagar teus filhos contra a rocha!” (Sl 136,9). Por que se surpreender com essa linguagem? Os salmos são obra de
um tempo que ainda não conhecia o Evangelho e na boca dos perseguidos, eles representam uma intimação dirigida à
justiça divina. Deus não pode deixar que seja escarnecido seu nome pela injustiça cometida contra os inocentes; Deus
não pode olhar indiferentemente o bem e o mal no mundo dos homens. Quanto a nós, reconheçamos que esses salmos
lembram também certos sentimentos obscuros que nascem em todo tempo em nossos corações devorados pelo ódio;
lembram-nos que mais de um recanto de nosso ser, no entanto, batizado, ficou impermeável aos sentimentos do Cristo.
Aliás, esses salmos de vingança têm um sentido mais profundo; outrora, visavam os inimigos do povo eleito, os
“pagãos”, isto é, os inimigos de Deus; agora, proclamam um outro ódio, o que o cristão deve alimentar contra o mal que
Jesus quis destruir por sua morte e que o apóstolo Paulo nos exorta a combater (Ef 6,11-13).

Para uma leitura orientada do Saltério


No decorrer das introduções procuraremos, para cada salmo, imaginar qual foi a situação de vida que suscitou,
a princípio, essa oração, a um homem ou a uma assembleia. Isto já seria suficiente para que cada uma dessas orações
se nos torne contemporânea, de tal modo o sofrimento e a felicidade por si mesmos são partilhados, quando
verdadeiros. Por vezes, ousamos descobrir, discretamente, a repercussão de um ou outro salmo nos lábios do Cristo
Jesus que sabia de cor todos esses poemas, rezava-os e citava-os em suas discussões, lia neles seu próprio destino.
Muitas vezes, indicamos também a importância que tomam certos cantos na oração da Igreja, porque são mais
característicos de determinado tempo ou circunstância litúrgica. Isso não quer dizer que os outros salmos sejam menos
aptos a exprimir hoje o sentimento das comunidades cristãs; já o sugerimos bastante nesta introdução. Nossos
comentários pretendem abrir um primeiro acesso; cabe a cada um tornar seu canto, segundo as inspirações interiores e
as circunstâncias de sua própria vida.
O saltério é um espelho que nos dá, de nós mesmos, um reflexo melhor do que nossos rostos iluminados ou
crispados. Ele é música que dá uma voz a nossa experiência revelando-nos sua misteriosa densidade. É nossa palavra
lançada à face de Deus, por vezes em áspera luta; e nada pode então destruir a confiança do crente ou abalar sua
esperança. Cada salmo é a vida de um homem, de uma comunidade, de um povo... é a vida como surge diante de
Deus, essa vida que descobre Deus já presente, misterioso, por vezes terrível, mas sempre Deus de reconciliação.

PREFÁCIO

Coleções de origem diferente foram, pouco a pouco, reunidas para compor o saltério atual; os salmos
chamados de Davi (3 a 40 e 40 a 71), os cânticos das Subidas (Sl 119 a 133) e os cantos de Hallel (Sl 104 a 106; 110 a
117; 134 a 150) constituem os mais notáveis dessas primeiras coleções. Mas tal como o temos na Bíblia, o livro dos
Salmos se acha dividido como o pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia, denominados a Lei), em cinco partes
desiguais, terminando cada uma delas por uma fórmula de aclamação. Os dois primeiros salmos servem de prefácio ao
livro que termina por um grande canto de louvor.

SALMO 1
FELIZ O HOMEM QUE OUVE A PALAVRA DE DEUS E A GUARDA! (Lc 11,28)

No início do Livro dos Salmos, somos colocados imediatamente diante de uma opção de vida: Deus ou o nada.
A alternativa se impõe a nós através de todas as páginas da Bíblia: nas narrações de histórias, nos códigos de lei, nas
profecias, orações e nos textos de reflexão, há uma linha de divisão contínua; ela separa a justiça e a impiedade, a
suficiência e a fé, o bem e o mal, a maldade e o amor. São variadas as palavras, numerosas as experiências para
atestarem esta ruptura. Ela marca uma divisão entre os povos, entre os homens, entre os atos e os projetos de nossas
vidas. As aparências podem enganar e contradizer diariamente os sonhos por demais ingênuos sobre a prosperidade
dos fiéis; um fato permanece; uma vida de justiça e de verdade é um caminho de felicidade, um caminho de Deus, mas
aquele que abafa a consciência em seu próprio proveito não tem outro futuro senão a ruína.
Cada vez que o leitor tentar rezar um salmo, ele será forçado a escolher entre esses “dois caminhos” (cf. Dt
30,15; Prov 4,18; Jer 21,8) cujo contraste será salientado por Cristo (Mt 7,13; 25).
“Murmurar” significa assimilar a lei de vida que encarna a presença de Deus e ensina ao fiel partilhar a alegre
intimidade do Senhor. Sim, há uma Lei e um juízo de Deus, há uma felicidade do homem.
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SALMO 2
TU ÉS MEU FILHO MUITO AMADO! (Mc 1,11)

Enquanto os povos vizinhos se sublevam, entroniza-se um novo rei: confiando na assistência de Deus, ele
esmaga a aliança dos inimigos. É o drama evocado neste salmo e ele volta mais de uma vez na história de Israel. Este
poema era usado primeiramente na liturgia para a sagração real, pois cada rei era um “messias”, isto é, um homem
“ungido” pela unção sagrada em nome de Deus. Mas os profetas e depois o Novo Testamento alargam estas
perspectivas. Então este antigo texto evoca a nossos olhos todo o drama do mundo. Ele proclama o Deus soberano no
meio do tumulto dos povos e de nossas rebeliões humanas. Por detrás da figura do “rei messias”, isto é, sagrado pelo
Senhor, entrevê-se o Ungido de Deus por excelência, o Cristo descendente de Davi e Filho de Deus que salva seu povo
(Is 9,11; At 4,25; 13,33; Hebr 1,5); presente-se o combate do fim dos tempos (Ez 38-39; Dan 12) já iniciado na paixão
de Jesus e nas perseguições da Igreja (At 4,25-28); espera-se também a conversão final de todas as nações que
reconhecem finalmente o Senhor (Is 45,14; Ap 19,15). O desígnio de Deus se realizará na glória do reino messiânico.

PRIMEIRO LIVRO

Encontramos primeiro uma compilação de Salmos atribuídos ao rei Davi. Sua vida cheia de dificuldades e de
confiança foi erigida em exemplo; inspirou aos cantores israelitas poemas que ele próprio não compôs. Um tema
domina na diversidade dos Salmos reunidos nesta primeira parte: o inocente se vê às voltas com o assalto do mal que
revela todas as suas faces; sem cessar renasce a esperança, sem cessar também o sofrimento. “Meu Deus, meu Deus”
(Sl 21). É a provação da noite; no entanto, uma certeza fica de pé: “diante de tua face plenitude de alegria” (Sl 16). Não
é este o diálogo da vida do crente?

SALMO 3
É DEUS QUE ME SUSTENTA.

Em sua angústia o justo se sente como que sitiado. Apresenta a Deus sua ansiedade; este encontro misterioso
transforma a situação. Desaparece o medo e a segurança torna-se audácia. Deus não deixa o campo livre para o mal.

SALMO 4
QUEM NOS FARÁ VER A FELICIDADE?

Bem estabelecidos na vida, nós nos enganamos a nós mesmos procurando a felicidade nas riquezas e
vaidades mundanas. Um homem cheio de confiança e alegria convida a descobrir o valor da amizade de Deus: “a luz
de sua face”.
Aqui temos uma oração da noite, cheia de um desejo de Deus que, para o cristão, ultrapassa as perspectivas
terrestres.
SALMO 5
É A TI, SENHOR, QUE IMPLORO!

Já de manhã, um levita dirige ao Deus de louvor uma oração premente. Esmagado pela provação, apela para
a justiça de Deus que deve tomar partido contra o mal e a maldade. Em sua fé ingênua e profunda, o perseguido
identifica sua causa à do Senhor cujo amor lhe é conhecido. Sem fazer seus todos estes apelos à vingança, o cristão
pedirá a coragem de se libertar de toda cumplicidade com a maldade: amar a Deus é escolher a causa da justiça e dar
provas de uma felicidade pura.

SALMO 6
A VOZ DE MEUS SOLUÇOS.

Esgotado pelo sofrimento e já preocupado com a morte próxima, e doente, sente como um insulto a suspeita
que o rodeia: não seria castigo do pecado o seu estado? Nessas queixas encontramos os acentos de Jeremias (Jer
8,22; 10,24) e de Jó.
O homem se afunda numa situação sem esperança; diante dele já se abre o sheol, triste habitação das
sombras reservada aos defuntos, como pensavam os antigos; aí não terá nem mesmo a possibilidade de se comunicar
com Deus. Como diante de tal perspectiva, o crente fervoroso não pediria um prolongamento de vida? Ser salvo, não é
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palavra vão para ele. Um verdadeiro encontro com Deus dá novamente a profunda certeza da fé; é o movimento de
toda oração.

SALMO 7
TU QUE SONDAS OS RINS E OS CORAÇÕES!

Falsamente acusado, um homem proclama sua inocência diante do Senhor; o juiz infalível que penetra nos
pensamentos mais secretos do homem é o último recurso. A certeza de viver sob o juízo de Deus, único justo, é a
grande segurança do crente. Que nessa época longínqua, fechada na lei do talião, se tenha prazer em imaginar a sorte
reservada ao acusador, será para nós coisa secundária.

SALMO 8
COMO É GRANDE O TEU NOME POR TODA A TERRA!

Hino que canta o esplendor de Deus. Mas o melhor reflexo da majestade divina não é a grandeza do homem?
Esse ser ínfimo perdido na imensidade do mundo, o Senhor faz rei da criação! No homem coroado de glória, Paulo e o
autor da Epístola aos Hebreus veem o Cristo triunfante e ressuscitado que, na terra, foi por um instante, colocado
abaixo dos anjos (1Cor 15, 25-27; Ef 1,22; Hebreus 2,5-9).

SALMO 9
A ESPERANÇA DOS INFELIZES NÃO PERECE PARA SEMPRE.

Estamos talvez na volta do exílio, pelo fim do século VI. Os ocupantes estrangeiros e as pessoas que ficaram
na Palestina olham como intrusos e aborrecem os deportados que voltam. Estes, na alegria de suas libertações (Sl 9) e
suplicantes em seu sofrimento (Sl 10) pedem ao Senhor que estabeleça seu reino e julgue os pagãos que os
perseguem. Eis o canto dos que voltaram: agora o triunfo de Deus é a libertação do pobre. Mas novamente se
angustiam diante do assalto do mal; sua sorte é evocada e é descrito o cinismo do ímpio: é o homem encerrado em seu
desejo e sua arrogância; a fé não influi mais sobre sua vida. Entretanto, ele não é mais do que carne humana; terá
razão contra Deus e contra os que nele põem sua esperança? Nesse momento da história de Israel afirma-se a grande
linhagem espiritual dos pobres, a elite do povo purificado pelo exílio.

SALMO 10 (9B)
DEUS AMA A JUSTIÇA.

A fé desaparece e os costumes se corrompem. Sente-se duramente o assalto de um mundo demasiado hostil.


O fiel afasta com veemência a tentação dos medrosos, a da fuga. Aquele que confia em Deus cura-se do medo. A
violência dos homens não poderia triunfar da justiça de Deus; é à sua medidade que se deve julgar o preço de nossas
vidas de homens.

SALMO 11 (10)
UM MUNDO FALSO.

Hipocrisia, duplicidade e mentira infestam o mundo dos homens: o pobre é quem paga. Diante de Deus que
fala, caem máscaras. Crer no Deus da verdade é encontrar a audácia de ser verdadeiro e justo.

SALMO 12 (11)
ATÉ QUANDO, SENHOR?

Um homem clama sua angústia em face de Deus; é um grito de desespero. De repente tudo muda; uma
confiança ilimitada invade o coração desse homem que canta sua alegria e gratidão. Um acontecimento imprevisto terá
mudado a situação? Uma palavra de Deus dita por um profeta ou um sacerdote pode talvez dissipar a angústia; mais
seguramente ainda, um encontro com Deus no segredo da oração, tenha transformado o coração.
Desespero e confiança é o duplo movimento dos salmos de súplica, dos quais este é o modelo. Uma
verdadeira oração arranca o homem de sua noite, faz descobrir o Senhor vivo e próximo.
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SALMO 13 (12)
QUEM AINDA BUSCA O SENHOR?

Este salmo não vida de modo algum a incredulidade leal. O mundo sem Deus que descreve é o mundo no qual
a justiça é desprezada, o direito pervertido. Ele já está marcado pela condenação, pois aí se explora o homem e se
oprime o pobre. Relendo este salmo, Paulo reconhecerá o quadro de nossa condição pecador; ninguém é justo diante
de Deus; todos precisamos ser salvos por Jesus Cristo (Rom 3,10-19; 23-25). O último versículo deseja a restauração
de Israel; foi provavelmente acrescentado para a utilização litúrgica depois do exílio.

SALMO 14 (13)
QUEM HABITARÁ, SENHOR, EM TUA CASA?

Uma liturgia de entrada no santuário: os peregrinos fazem a pergunta ritual para serem admitidos na
comunidade de oração; então os sacerdotes em coro lembravam as condições para se aproximar verdadeiramente de
Deus e prestar-lhe o culto que lhe é agradável: viver na verdade, praticar a justiça, amar o próximo. A Lei (Lev 19,11-
18), os profetas (Miq 6,6-8; Is 33,14-16); os Salmos (23, 50) são unânimes a respeito dessas exigências, de um culto
sincero. Jesus nos dá a mesma lição (Mt 5,23s); ninguém habita na casa do Pai, se não quer aceitar costumes
fraternos.

SALMO 15
TU ÉS, SENHOR, A MINHA HERANÇA.

Já é uma condição privilegiada chamar-se como Israel “a herança de Deus” (Sl 32,12; 67,10; 72,2 etc). Mas
poderia um homem considerar Deus como o quinhão de sua herança? (Sl 72,26; 141,6). É preciso uma vida totalmente
consagrada para ousar afirma-lo; ora, é a condição do Levita (Num 18,20; Dt 10,9; Jos 13,14). Escolher a Deus exige
uma ruptura radical, pois há sempre idolatrias sedutoras para o coração do homem; eram em Israel os cultos naturistas
que encontravam lugar até no Templo... Nossa idolatrias modernas mudaram provavelmente apenas de figura.
Raramente se exprimiu com tanto fervor a alegria de uma vida em presença de Deus. O deslumbramento se apodera
do fiel até o mais íntimo de seu ser (“os rins” são para os antigos o centro dos pensamentos, dos desejos, das afeições
secretas) e a felicidade de estar com Deus é afirmada com tal força que pouco a pouco, pressentiu-se que ela
ultrapassava os limites da condição terrestre, que não se podia perder nas portas do sheol, esta triste morada
subterrânea onde os mortos não são mais do que uma sombra de si próprios, de acordo com a ideia que os antigos
podiam ter do além-túmulo. Este salmo prepara a fé para uma vida sem fim junto de Deus. Compreende-se que a
primeira geração cristã se tenha apoderado deste belo texto para ler nos últimos versículos o anúncio da ressurreição
de Cristo (At 2,24-28; 13,35).
Homens e mulheres que consagram sua vida ao Senhor para um ministério espiritual ou pela profissão
religiosa cantam de bom grado estes versículos que traduzem sua esperança. Este salmo é uma joia entre as orações
humanas.

SALMO 16
GUARDA-ME COMO A PUPILA DOS OLHOS.

Ainda um retrato de gente poderosa e sem piedade; seu coração se fecha à palavra de Deus como ao apelo
do pobre. Eis igualmente o infeliz que sofre suas injustas acusações; ele pede a Deus que manifeste sua inocência e
castigue os acusadores maldosos. Ele lhes deixa, de bom grado, ao que parece, os bens terrestres (v.14), contanto que
possa alegrar-se com a presença de Deus; talvez já se deva ver neste desejo de um despertar iluminado pela face de
Deus, a esperança ainda incerta da Ressurreição (v.15).

SALMO 17
MARCHA TRIUNFAL PARA O REI.

Este prestigioso poema reúne um cântico de ação de graças (v.5-28) e um canto de vitória (32-49); quadros
grandiosos lembram a criação, a saída do Egito e a estada do povo eleito no Sinai, finalmente as vitórias de Israel.
Pode-se ler e meditar este longo poema com a ilustração do destino de Davi, rei modelo e servo fiel do Senhor. Deus o
fez triunfar em seus empreendimentos e vencer seus adversários a fim de garantir as promessas que havia feito em
favor de sua linhagem (v.51, cf.2Sam 17); já se esboçam os traços do Rei-Messias, Jesus, oriundo da casa de Davi e
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Filho bem-amado do Pai, que vencerá as forças do mal. Este poema continua a ser o canto das vindas de Deus na
história ou na vida dos homens, um canto de festa para proclamar a admiração, o reconhecimento e a glória de Deus.
1. “Deus é meu libertador”. Os símbolos de força e de defesa se acumulam para descrever o apoio de Deus; o fiel
encontra junto dele o refúgio inexpugnável.

5. “Cercado pela morte”. Belial, o demônio, personifica as forças hostis da morte. As águas devastadoras lembram o
caos desencadeado, o abismo primitivo que, segundo os mitos antigos, Deus domina no momento da criação (Gên 1,1-
18) ou depois do dilúvio (Gên 9,15; Sl 76,17; 88,10). Não se poderia exprimir melhor o medo diante de um perigo
mortal.

6. “A vinda de Deus”. O cosmos é abalado em seus fundamentos; a natureza é transformada por abalos gigantescos.
Por estas imagens surpreendentes, os antigos cantores cantam a presença e a glória de Deus na criação e nos
acontecimentos (cf. Ex 19,16-18; Jz 5,4; Sl 67,8s; 96,2-5; Is 30,27s; Hab 3,3-12); eles a veem como uma vitória sobre
os elementos desencadeados e os povos em rebelião. Esta descrição deixa pressentir o combate do fim dos tempos, o
triunfo de Deus.

“Salvou-me porque me ama”. Depois da descrição grandiosa, eis a convicção íntima: Deus vem por sua Lei. Ele é força
de vida para aquele que o acolhe com retidão e confiança.

“Canto real de vitória”. Como cenas para um arco de triunfo, aqui temos os altos efeitos da monarquia. Em Israel, o rei
jamais será divinizado como em outros povos, mas Deus age a seu lado. Nas horas de glória, o canto gosta dos
excessos, mas não conserva ele para o fiel a confiança e o estímulo de outro combate para Deus, a luta para dissipar
as desordens da injustiça e da opressão, para conquistar uma verdadeira liberdade dos homens?

SALMO 18 (17)
O CÂNTICO DA CRIAÇÃO E DA LEI.

O universo é um hino à glória do Senhor, porém a Lei o é mais ainda. A revelação silenciosa da criação é
oferecida a todos os homens, mas a Lei, privilégio de Israel, desvenda no coração do crente a perfeição de Deus, sua
retidão, sua justiça, sua verdade e sua bondade.
A Ode ao sol contida neste salmo parece imitar um fragmento poético assírio no qual o deus sol surge no
oceano e atravessa as porás do Oriente para ir ao encontro da deusa; a liturgia de Natal conservou a imagem desta
marcha do sol para evocar a vinda do Filho de Deus à terra.

SALMO 19 (18)
DEUS SALVE O REI!

Na festa da entronização ou no dia da guerra (2Cr 20,6), o povo de Israel reza por um rei; não é ele um
“messias”, um “ungido” do Senhor e o chefe do povo “eleito” desde Jacó? O coro canta a invocação (2-6), um solista
decerto responde (7-9); ele afirma que Israel não conta com as forças das armas como seus vizinhos pagãos, mas com
Deus, único Salvador. Já se canta o triunfo do Senhor.

SALMO 20 (19)
AÇÃO DE GRAÇAS PELO ANIVERSÁRIO DE COROAÇÃO.

Seria nada entender da festa, se proibíssemos que os cânticos confundissem um pouco os votos e a realidade.
Em tal dia, o rei aparece participando dos privilégios de Deus: autoridade, longo reinado e majestade, pois o Senhor
abençoou e estabeleceu para salvar seu povo de seus inimigos. A história de Israel desmentirá muitas vezes esta figura
ideal de monarca. A Igreja aí reconhece os traços de Jesus Cristo rei e salvador do povo de Deus; sobre ele repousa a
bênção para o mundo inteiro.

SALMO 21 (20)
MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTE?

A paixão dos justos regenera a humanidade; este salmo, inspirado nos “cantos do servo” (Is 52,13; 53,12) e
nas “confissões de Jeremias” (Jer 15,15; 17,15; 20,7) testemunha isso de maneira convincente. Seu movimento interior
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os conduz das angústias da morte à exultação da alegria; é uma passagem da noite sombria a uma luz inesperada,
uma páscoa.
Tal texto como preparado de antemão para se tornar a oração de Cristo (Mc 15,34) e os evangelistas notaram
no salmo o menor detalhe que parecia descrever de antemão a paixão de Jesus que renova o status da humanidade
diante de Deus.

2. “A intolerável contradição” – Por que? A pergunta brota do coração de um justo. Ontem ainda acumulado por Deus
como um filho, sente-se abandonado sem razão, presa de atrozes sofrimentos, o objeto de sarcasmo dos espíritos
fortes. Deus teria mudado?

13 a 22. “O fundo da angústia” – Em torno do infeliz sobe a onda da hostilidade; experimenta em sua carne toda a dor
humana. As imagens se tornam alucinantes, os acentos se fazem patéticos. Eis o homem a quem se arranca a vida.

23 a 30. “Um mundo regenerado” – a situação se transforma; o homem recobra a esperança. No Templo, ele celebra
sua libertação e oferece um sacrifício de comunhão no meio dos pobres que amam a Deus. Depois a perspectiva se
alarga mais. Talvez o salmo tenha sido ampliado progressivamente. A terra inteira dá graças ao Senhor que reina sobre
o mundo e faz justiça. Os pobres são convidados à mesa de Deus, a linhagem dos justos não se extinguirá mais do
meio dos homens. Sim, a paixão do justo mudou algo no mundo dos homens!

SALMO 22 (23)
O SENHOR É MEU PASTOR.

Uma ovelha bem cuidada, um hóspede bem tratado; estas duas realidades cotidianas fornecem ao poeta
imagens eloquentes para exprimir a felicidade de estar com o Senhor. A representação de Deus como Pastor é tirada
dos profetas (Is 40,11; Ez 14,11-16); Jesus se chamou a si mesmo de bom pastor (Jo 10,10) e os autores do Novo
Testamento lhe dão de bom grado este título (Heb 13,20; 1Pe 2,25; Ap 7,17).
A água, o óleo e a taça de vinho fazem pensar nos sacramentos da iniciação cristã; batismo, confirmação,
eucaristia; o Salmo era pois cantado na noite de Páscoa, pelos novos batizados, cheio da alegria de Deus.

SALMO 23
O REI DA GLÓRIA.

Uma procissão se dirige para o Templo; talvez conduza a Arca da aliança até o lugar santo. Os cânticos se
alternam, aclama-se o Criador, são também lembradas as condições de uma verdadeira participação no culto; um
coração reto e sincero (3-6). À entrada do santuário, o cortejo para e todos se admiram da presença de Deus. É preciso
celebrar o Deus vencedor que toma posse de sua morada santa; os títulos que lhe dão evocam o tempo em que,
representado pela Arca (8-10), o Senhor ia à frente dos exércitos de Israel, conduzindo-os à vitória (Num 10,35; Jos 6).
Um salmo brilhante para celebrar Deus presente entre os homens para pedir a vinda de seu reino; um salmo exigente
também, pois obriga-nos a aceitar em nossos corações e nossas vidas os imperativos do Reino de Deus.

SALMO 24
GUARDA-ME EM TUA VERDADE!

Admira-se a qualidade interior do justo que se dirige a Deus neste salmo alfabético. Ele não se julga livre de
tropeçar e se convence de ter merecido sua desgraça, seu isolamento, por causa de seus pecados. Sua confissão
testemunha muita retidão e honestidade. É a de um homem humilde que se sabe amado por Deus; sua confiança
continua plena; espera do Senhor perdão, conselho e ajuda. Esta bela oração termina em um frêmito de esperança que
a liturgia do Advento desejaria ainda provocar no cristão.

SALMO 25
ORAÇÃO DE UM HOMEM ÍNTEGRO.

Nos salmos de súplica, ouvimos muitas vezes este protesto dos acusados que tomam a Deus como
testemunha de sua inocência. A oração que agora lemos é talvez a de um levita, certamente de um homem que gosta
da vida do Templo. Não está ele por demais seguro de sua retidão em face do modo de agir dos outros? Talvez não
tenha bastante consciência das falhas que cada um tem na vida? Mas ele nos ensina uma grande certeza: é preferível
confiar no juízo de Deus do que se deixar abater pelo dos homens. Este fiel, à vontade no Templo para louvar o Senhor,
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gosta de uma fidelidade nítida e decidida. Quem não se deixaria atrair por tal desejo de retidão e de sinceridade diante
de Deus?

SALMO 26 (25)
BUSCO, SENHOR, A TUA FACE.

Multipliquem-se os inimigos ou as dificuldades da vida, o crente encontra um apoio seguro: Deus; é o cântico
da confiança que inicia este salmo. Depois o movimento se aprofunda, torna-se busca e desejo ávido de Deus. É no
Templo que se descobre a presença do Senhor no sacrifício, no canto, na súplica, na Lei. Se esta busca se torna
exigência de vida, Deus não estará presente junto de seu servo por mais abandonado e contestado que seja ele?
Uma oração de esperança para as horas em que a esperança humana nos abandona.

13. A terra dos vivos é o mundo presente por oposição ao sheol ou morada dos mortos; naquele momento a fé na
ressurreição ainda não se afirmou, porém mesmo em perspectiva de eternidade Deus merece ser amado por si mesmo;
é a verdadeira felicidade do homem.

SALMO 27
O SENHOR É MINHA ROCHA.

O suplicante interpela Deus e amaldiçoa seus perseguidores; tanta veemência supõe que esteja no fim de
suas forças. Por um instante surdo, o Senhor ouve finalmente seu servo; depois da angústia temos a oração de ação de
graças. A fórmula final transforma o salmo em oração por Israel, o “povo Messias”, isto é, consagrado (8) ao serviço de
Deus. Crentes recusarão um dia os sentimentos de vingança que brotam aqui da experiência da desgraça. Isto não
significa porém que Deus possa misturar indistintamente a honestidade e a maldade.

SALMO 28 (29)
HINO AO SENHOR DA TEMPESTADE.

Nos grandes órgãos da natureza, a voz aterradora do Senhor explode sete vezes como um trovão. O barulho
da tempestade proclama a onipotência de Deus, dono dos elementos, mas também da história. A tempestade que se
desencadeia no mar, na montanha e no deserto não se assemelha à intervenção do Senhor? Ao alarido que sacode os
clãs ou as nações sublevadas contra Israel, opõe-se a calma tranqüila na qual Deus estabelece seu povo. Esta poesia
perpassada por uma força primitiva, deixa-nos abalados por termos entrevisto um momento, algo de grandeza de Deus.

SALMO 29 (30)
CLAMEI E ME CURASTE.

Nesta súplica acentuam-se os contrastes. A humilhação de hoje sublinha a segurança presunçosa de ontem.
Um tal, que se julgava forte, cai no perigo de morte; fica desesperado – desespero tanto maior que nessa época não se
tinha atingido ainda a fé numa ressurreição. Vem, porém, a cura; eis agora o cântico de ação de graças. Temos que
passar pelo sofrimento e o abandono para avaliarmos o preço da felicidade e acolhe-la com gratidão?

SALMO 30 (29)
EM TUAS MÃOS ENTREGO O MEU ESPIRITO.

A fé, a angústia e a gratidão alternam nesta oração; ela evoca as “confissões” do profeta Jeremias, seu destino
doloroso e a sua intimidade com o senhor (Jer 17, 14-18; 20,7-18). No momento de expirar, Cristo toma deste salmo
seu grito de abandono confiante (Lc 23,46).
1-9. “Em ti me refúgio“. Seja qual for o conflito em que nos sintamos envolvidos, Deus continua uma certeza; as
imagens do rochedo e da cidadela atestam esta confiança serena e inabalável.
10-19 “Piedade para mim, Senhor “. A oração muda de tom; eis o grito desesperado dos dias em que tudo parece
abandonar-nos.
20-25 “Coragem, vos que esperais”. Chega a um momento em que o crente experimenta o novo a força de Deus
presente. Fica firme apesar das zombarias e acusações mentirosas, isto e, apesar da “guerra das línguas” uma das
grandes provações das relações humanas. Seguro de Deus o fiel não se deixa encerrar nesses conflitos.
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SALMO 31 (30)
A FELICIDADE DO HOMEM PERDOADO

Para que remoer seus erros, o seu pecado? O fiel reconhece diante de Deus sua angustia, aceita ser perdoado e
reconciliado. Liberto de seu tormento nasce um homem novo, invadido pela graça, a confiança, e a obediência.

SALMO 32 (31)
O PLANO DO SENHOR PERMANECE PARA SEMPRE.

Este hino segue um ritmo clássico. Primeiro apelo ao louvor de Deus. Proclama-se a seguir o louvor de seus
altos feitos; sua palavra que faz surgir o mundo (v.4-9), sua intervenção na historia na qual escolhe um povo no meio
das nações (10-12) enfim seu auxilio poderoso aos que os temem (13-19). Assim contempla-se a obra de Deus na
criação, na historia de Israel, enfim, na vida dos justos. O povo aclama a providencia cujo plano bem organizado tem
dimensões universal. Aos cristãos de Éfeso S. Paulo apresentará este plano secreto de Deus que se realiza na Páscoa
do Cristo para que os homens tenham a vida e o mundo consiga êxito. (Ef 1,15)

SALMO 33 (32)
PROVAI E VEDE COMO O SENHOR É BOM.

Este salmo alfabético divide-se em duas partes. Primeiro uma ação de graças descreve a solicitude de Deus em
relação ao justo e ao pobre para livrá-la da angustia.
O autor sem duvida experimentou na sua própria vida a entrega a seus discípulos do fruto de sua experiência.
Por isso a segunda parte assume o tom da instrução (12-22): um sábio convida seus ouvintes a descobrirem no temor
de Deus, o caminho da felicidade. Desde as origens cristãs, este salmo servia para ensinar os que se preparavam para
a vida cristã e batismo (1 Pe 2,3).

SALMO 34 (33)
TU VISTE, SENHOR, NÃO FIQUEIS MUDO.

Por três vezes sucessivas, a queixa viva e indignada do justo perseguido sobre a Deus; por três vezes também o
suplicante recobra a esperança. É um homem esmagado pela maldade fingida, a traição e as calúnias de seus amigos,
os planos sombrios de seus adversários. Evocamos uma vez mais as desgraças do profeta Jeremias (20, 10-13) e não
podemos deixar de pensar no processo de Jesus diante de um tribunal decidido ferozmente a perdê-lo (Mt 26,57 ss).

SALMO 35 (34)
EM TI ESTA A MINHA FONTE DA VIDA.

Dois quadros opostos acham-se reunidos neste salmo; talvez tenham existido primeiro separadamente. De um
lado, um homem destruído pelo pecado; nenhuma inspiração pode penetrar em seu coração, a não ser a do mal;
enganando-se a sim mesmo, obstina-se em sua depravação em face, as criaturas cumuladas por Deus, justas, serenas
e felizes. Encontraremos nos profetas estas mesmas imagens tradicionais da felicidade; elas surgem o tempo ideal que
o futuro messias deve instaurar (Is 12,2; 25,6; Jer 31,14; Ez 47). São João as aplica a Jesus, luz dos homens e fonte de
uma vida que não tem fim (Jo 7,37; 8,12; Ap 21,6).

SALMO 36
FELIZES OS MANSOS PORQUE POSSUIRÃO A TERRA.

Um velho pacífico encadeia numa ordem alfabética, boas sentenças sobre sorte comparada do justo e do ímpio.
É uma lição de sabedoria para quem se revolta contra o sucesso dos maus; seus êxitos duram pouco. A experiência e a
meditação da palavra de Deus revelaram a este sábio o feliz destino que Deus reserva seus amigos; cada justo e
chamado a gozar das promessas feitas ao povo de Israel em que recompensa de sua fidelidade habilitar na terra santa
na paz (3,11). O horizonte permanece limitado a este mundo. Felicidade modesta, por conseguinte, se não fosse
irradiada pela proximidade do senhor e não contivesse a promessa ainda oculta de um amor que não se pode extinguir,
de uma alegria de eternidade. Cristo revelara esta perspectiva de infinito, a felicidade sem fim do reino de Deus, a
verdadeira terra prometida, pertence aos pobres, aos que perdoam e tem sede de justiça e de paz. (Mt 5).
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SALMO 37
SOBRE MIM TUA MÃO SE ABATEU.

Um homem prostrado sob o peso da doença e das zombarias, um homem marcado pelo castigo de Deus. Ele
desfia sua queixa suplicante e monótona, interminável como seu sofrimento. Diante de Deus, mostra-se digno de pena,
abandonado, traído. Este novo Jó (6,4; 19,13-21) não se revolta. Sabe que e um pecador que merece sua sorte e sofre,
portanto em silêncio. Nada de recriminações, nada de imprecações contra adversários. Secretamente uma esperança
domina. Encontramos este abandono total a Deus na terceira Lamentação (3,26-29) e no Canto do Servo de Deus (Is
53,7). A liturgia cristã viu neste homem de dores a imagem do Cristo silencioso de sua paixão.

SALMO 38
ESTRANGEIRO E PEREGRINO SOBRE A TERRA.

O autor não e um sábio que reflete sobre a vida, mas um homem as voltas com Deus. Sob os golpes que o
atingem, compreende que tudo e caduco na existência e primeiramente a própria vida: queria afastar do coração toda a
revolta, mas não consegue calar por mais tempo a sua queixa. A fé na ressurreição permanece ainda ausente, e fora da
intervenção de Deus que concede um novo prazo de vida, tudo parece arruinar-se. A gente pensa nas lúcidas reflexões
de Ecl 1,2; o cristão também faz esta experiência nos dias de angustia total; fora da esfera do senhor, que valeria a
vida?!

SALMO 39
SENHOR, EIS-ME AQUI.

Este poema, um dos mais belos de todo o saltério, comporta primeiramente a ação de graças, em seguida, a
suplica.
“Espero o Senhor com grande esperança” – Ninguém conhece a benevolência de Deus se não passou pela noite
do abandono. Purificado pela provação, o crente acolhe Deus nas profundezas de seu ser, sua vida se testemunha com
alegria em redor dele o que são a justiça, o amor, a verdade de Deus.
Lendo este Salmo, temos a impressão de entrar na confidencia do próprio Cristo, de perceber sua paixão.
Algumas traduções gregas acentuaram ainda mais esta semelhança; por isso a epistola aos Hebreus cita este salmo
para nos fazer compreender a decisão profunda de Cristo (Heb 10,5-10). O melhor louvor de Deus, os melhores
sacrifícios são o dom do coração e da vida; ao formalismo ritual, os profetas apuseram com freqüência a verdadeira
religião que e interior (Am 5,22; Os 6,6: Is 1,11; Jer 6,20;31,33); e a experiência de que são testemunho os cantos do
servo (Is 50,10) já anunciado a do Cristo.
v.12. “Eu pobre e infeliz” – um sofrimento pode lembrar ao homem seu arraigamento no pecado. Será uma razão
para acabrunhar aquele que reconhece suas falhas? Sentindo esta inclinação incoercível para o mal que o crente clama
para Deus e o pobre recobra com surpresa a certeza de que Deus pensa nele.

SALMO 40
PIEDADE PARA MIM SENHOR!

A piedade dos homens e rara, o infeliz conhece seu valor; ela atrai a piedade de Deus. A sorte persegue um
doente; em vez de se apiedarem dele, esmagam-no com reflexões maldosas e seus amigos o abandonam. Quem não
guardaria rancor disso? Mas este sentimento cede lugar à esperança de uma vida rica das forças recuperadas para se
manter na presença de Deus.

SEGUNDO LIVRO

O drama do justo frente ao progresso do mal terminava a primeira parte do saltério. O conflito permanece, mas
de agora em diante ouvem-se com mais insistência outros acentos. Agora a oração atesta com freqüência o desejo de
Deus e o exílio do homem, e muitas vezes os momentos cruciais da historia virão alternadamente provocar o louvor e a
suplica; o drama do justo permanece e o do povo. Com efeito, nos salmos que se seguem, o aspecto coletivo será mais
salientado.
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SALMOS 41-42
MINHA ALMA TEM SEDE DO DEUS VIVO!

Este salmo que encanta por sua beleza literária, testemunha rara qualidade de emoção religiosa. É a cantilena
de um levita exilado, feita ora de nostalgia, ora de angústia, de desejo ardente. Em terra estranha, longe do Templo de
Jerusalém, único lugar em que se acreditava poder encontrar a Deus, os ministros sagrados sentem mais duramente o
exílio; o santuário é a única morada em que encontram a felicidade. São os primeiros a sofrerem a zombaria dos
pagãos, pois desconhecem a Deus a quem consagraram sua vida.
Por três vezes a queixa recomeça, por três vezes também soa o refrão que canta a esperança. Nenhum outro
salmo traduz de maneira tão viva o fervor pelo Templo ao qual o povo afluía e celebrava o amor e presença de Deus.
No íntimo desse fervor percebemos o mais profundo apelo dos homens, o desejo de Deus. Ele anima os
batizados que pedem para entrar na Igreja “Casa de Deus” entre os homens; nós o emprestamos aos defuntos que
esperam ser admitidos no seio da nova Jerusalém, a cidade de Deus. Paradoxalmente este salmo convém ao batismo e
aos funerais; mas os homens e as mulheres consagrados reconhecem aqui igualmente o movimento de sua alma. Este
grande desejo não é o que atravessa toda a inquietação dos homens? Ele é o coração da prece, a força de uma vida.

SALMO 43
RESGATA-NOS POR CAUSA DE TEU AMOR.

Na história de Israel os tempos se opõem. O contraste é cruel entre os triunfos de outrora e o esmagamento do
presente. Mas Deus poderia rejeitar para sempre os que ele ama? Esta lamentação nacional é uma oração para as
horas em que nós somos invadidos pela derrota, incerteza, desnorteamento.
Nossos pais nos contaram. A Liturgia transmite com gratidão a memória das grandes horas da conquista; não
era Deus que dava a vitória a este pequeno povo? Um hino evoca estes altos feitos. No entanto escarneceste de nós.
Somente uma lamentação pode evocar a situação do momento; estamos, provavelmente, no tempo do exílio, depois de
587 a.C. Esta oração pode servir e ser adaptada a outros momentos de desmoronamento nacional; assim os vv.18-23
fazem pensar na época macabena na qual Israel tem consciência de ser a comunidade que não mereceu a perseguição
(167-164 a.C.); o povo sofre por sua fé, antes que em castigo de seu pecado. Por que? Para São Paulo esta
lamentação descreve a condição do cristão (Rom 8,36).
“Levanta-te, Senhor” – Deus não pode rejeitar para sempre o povo que escolheu entre todos os demais; o
amor será o mais forte.

SALMO 44
O REI DESEJA TUA BELEZA!

Este salmo, único em seu gênero no saltério, foi provavelmente composto para núpcias reais. Ele se abre com
a dedicatória ao rei, em seguida o poeta deixa a cerimônia se desenrolar diante de nossos olhos. Em primeiro lugar
celebra o monarca: descreve-o sob os traços de um novo Davi, do Ungido, já cantado pelo profeta (Is 9,5-6; 11,3-5). É
um belo guerreiro, um tenente de Deus que avança num magnífico cortejo; sobre ele repousa a promessa feita à
realeza (2Sam 7). Depois volta-se para a rainha; o poeta canta a princesa eleita, uma estrangeira (vv.11-17), colocada à
direita de seu esposo real, ricamente ornada e coberta de jóias; é introduzida no palácio acompanhada por suas damas
de honra, enquanto lhe apresentam os votos de boas vindas. Para além do casamento principesco, este salmo evoca
para os fiéis outras alianças. Os profetas não falavam dos desponsórios de Deus com seu povo? (Os 3,16; Ez16,8s; Is
62,5): imagem ousada, mas muito rica. Relendo este belo texto lírico, o judaísmo pressentia a aliança que o Messias
futuro deveria restaurar e abrir aos povos pagãos.
A tradição cristão vê aí anunciadas e figuradas as núpcias do Cristo e da Igreja (Mt 9,15; 22,9; Jo 3,29; 2Cor
11,2 etc.), a nova e definitiva aliança na qual todos os homens são salvos.

SALMO 45
DEUS ESTÁ CONOSCO.

Três estrofes marcadas por um mesmo refrão exaltam o poder do Deus de Israel, dono da natureza, Senhor
dos exércitos, mas também da paz. Sobre um horizonte de guerras e de cataclismas, surge a cidade de Sião, tranqüila,
inabalável: Deus nela está, um refúgio que a protege de todas as agitações, um rio que lhe traz uma riqueza de vida.
O salmo faz reviver a explosão de alegria provocada pela desorientação dos exércitos assírios em 701 (cf 2Re
18,13-19,37). Este grande momento do passado permite aos profetas traçar de antemão o drama que se coloca no fim
dos tempos; no meio da agitação das nações, Deus intervém para salvar seu povo, o mundo é transtornado antes de
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conhecer a paz definitiva. É uma imagem de movimento da história com seus cataclismas e a esperança da salvação
universal.

v.4 – Imagina-se Deus conduzindo os exércitos à vitória, depois ele é visto como soberano dos astros, dos anjos e das
potências cósmicas; finalmente a expressão “Senhor dos Exércitos” não sugeriria mais do que o poder e a grandeza do
Senhor.

SALMO 46
É O REI DE TODA A TERRA.

Imaginemos nos tempos antigos uma festa de ano novo. Transporta-se a Arca: “Deus sobe”; durante a
procissão explode este canto do reino (cf. Salmo 92). Israel proclama a realeza de Deus que entregou aos seus a terra
de Canaã e a cidade de Jerusalém, que dominou também os povos dos arredores. O antigo cântico permanece, mas
aparece como o prelúdio do reino do Senhor sobre o Universo. Os pagãos vão se converter e se unir ao louvor do povo
de Deus para aclamar o único e verdadeiro rei. As liturgias romana e bizantina vêem neste salmo um canto de
Ascensão: Cristo subiu aos Céus e esta sentado à direita do Pai como Senhor. A salvação é então oferecida a todas as
nações (At 2,34 etc).

SALMO 47 (46)
SIÃO, A MONTANHA SANTA.

Com uma alegria majestosa este cântico celebra Deus e a Cidade Santa. Toda a glória de Jerusalém vem do
Senhor que reside, envolto de mistério, no Templo sobre a colina, no coração da cidade. Daí ele protege seu povo; ali;
livrou-o maravilhosamente do assalto dos inimigos. Aí Israel encontra seu Deus e lhe dá graças. E desta casa de Deus
a salvação, a alegria e o louvor se espalham em todo o povo e no universo. A visão é grandiosa, como não amar esta
pátria de Deus no meio dos homens?
Para o cristão Sião figura a Igreja de Jesus, alma do mundo e sinal dado aos homens para salvá-los até que
todos sejam reunidos no reino de Deus, a Jerusalém celeste (Heb 12,22; Ap 14,1; 21,10-26).

v.3 – É uma misteriosa montanha do Norte, no “coração do Aquilão” que os povos vizinhos de Israel colocavam
residência de seus deuses; Jerusalém é aqui vista como o centro.

v.8 – Os navios de Társis são navios sólidos, construídos para as longas travessias.

SALMO 48
O HOMEM EM SEU LUXO NÃO COMPREENDE.

Um provérbio popular (13,21) conduz a meditação do sábio sobre as vaidades das riquezas. O autor começa
seu discurso com uma solenidade um tanto pretensiosa; ele crê ter a resposta aos problemas que atormentam mais de
um e sem dúvida não teria atravessado a crise de Jó.
Na verdade, a fortuna é impotente para subtrair os ricos ao poder da morte e ninguém pode comprar sua
salvação; ao contrário, o pobre é cumulado, pois Deus paga por ele o que o rico não pode oferecer-lhe com todo o seu
dinheiro. O autor parece também estar persuadido de que a morte não poderia tirar-lhe definitivamente a amizade
divina; a sorte dos justos não poderia ser a mesma dos ímpios; não haveria para eles uma libertação de Deus?
Suspeita sem saber ainda como imaginá-la (v.16). O cristão crê que Jesus Cristo venceu a morte e que
ressuscitaremos com ele. (1Cor 15,54 s.).

SALMO 49
ADORAR, EM ESPÍRITO E VERDADE.

Este requisitório, contra uma religião sem alma evoca a veemência das invetivas proféticas. É um oráculo
solene.
Deus acusa. O autos sabe descrever todo o aparato de uma manifestação divina; solenemente Deus mesmo
entra em cena para interpelar os homens que criticam o culto e a lei e recorda as grandes exigências da Aliança – um
quadro de juízo final!
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v.8. “Não são teus sacrifícios”. Os pagãos puderam imaginar que deviam subvenções alimentares a seus deuses; o
todo-poderoso não precisa de nossos bens terrestres, tudo lhe pertence. Encontramos freqüentemente na Bíblia esta
crítica contra o culto exterior, especialmente nos profetas (1Sam 15,22; Is 1,10-16). Este salmo não condena os
sacrifícios nem o culto em geral; ele denuncia o formalismo que se contenta com executar ritos. Não se compra Deus, a
gente antes o reconhece pela oração e a ação de graças: tal foi a atitude constante de Jesus diante de seu Pai. O
homem verdadeiramente religioso conhece seus limites, ele espera tudo de Deus e sabe que tudo lhe deve. O
evangelho insistirá sobre este ensinamento (Mt 5,23; 12,7; Mc 12,33) que Paulo retomará por sua vez em sua doutrina
sobre o culto espiritual (Rom 12,7; Fil 2,17; 3,3).

v.16 “Não venhas enumerar meus mandamentos” – Outro formalismo é ter a religião ou a Lei nos lábios mais do
que no coração e na vida. Não há fé autêntica que não descubra uma exigência moral e especialmente a da justiça e do
respeito para com os outros: “Não são aqueles que dizem Senhor, Senhor, que entrarão no reino dos céus...”
acrescentará Jesus (Mt 7,21). Tomai cuidado – aos hipócritas a ameaça de Deus, aos justos a salvação.

SALMO 50 (49)
PIEDADE, SENHOR, PORQUE PECAMOS!

Este salmo, o Misere, continuará a mais verdadeira de nossas orações humanas. O tom é simples, sóbrio,
direto. Para encontrar tal sinceridade na confissão da falta, era necessária uma confiança ilimitada na compaixão de
Deus. Quer exprima o arrependimento do rei Davi depois de seu adultério (2Sam 12,13) ou o do povo judeu ao voltar do
exílio onde ele tomou consciência de sua infidelidade, esta súplica nos mostra a verdadeira face da penitência. O
homem avalia a dimensão do pecado que o afasta de Deus (Ez 2,3-7; 16,43); o mal mergulha suas raízes até o fundo
de seu ser (Jer 5,23; 7,24; 17,9; Ez 36,26). Não basta um perdão rápido, uma purificação exterior; o coração deve ser
transformado. Só Deus pode realizar esta nova criação e insuflar um espírito novo (cf. Ez 36,26) que permita voltar e
entregar-se humildemente a ele. Só ele pode responder ao desejo de renovação total que se inscreve em um
verdadeiro desejo de perdão.
Pensa-se já em São Paulo que descreve em termos comoventes a situação dramática do pecador (Rom 7,14-
25), depois lhe opõe a vida fascinante do cristão movido pelo Espírito Santo (Rom 8).
O v.7 surpreenderá especialmente: o homem – ou o povo – é concebido no pecado, gerado na culpa. O autor
não pensa de maneira alguma em um pecado da mãe que poderia manchar o filho. O Antigo Testamento não considera
a união conjugal como pecadora. O salmo quer antes fazer compreender, por esta imagem de rara violência, que o
homem nasce como que prisioneiro de um meio-ambiente, de um meio de pecado.

SALMO 51 (50)
O SENHOR TE ESMAGARÁ.

Ao cinismo arrogante, à língua pérfida, é reservado um fim trágico, enquanto o justo subsiste, pois apoia-se em
Deus; terá a alegria de viver com Deus no Templo, isto é, em presença do Senhor. Este salmo é um dos mais violentes
requisitórios dirigidos contra as más línguas; ele lembra os salmos e os escritos da Sabedoria (Sab 56,5; 59,8; Jó 20).

SALMO 52
NÃO HÁ MAIS DEUS.

Quando um homem bane Deus de seu coração ele é levado a renegar e a explorar seus irmãos. Uma geração
se afasta de Deus para erigir a injustiça como lei. Mas o Senhor dos pobres e oprimidos vela.

SALMO 53
SALVA-ME, POR TEU NOME!

O nome representa o próprio Deus, o Todo-poderoso. A ele se dirige a súplica, dele virá o auxílio, para ele
subirá a ação de graças.
Para o cristão este Nome será doravante o de Jesus Cristo que salvará os que o invocam (At 2,21; Rom 10,9;
1Cor 1,2; At 4,12; Mt 1,21).
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SALMO 54 (53)
SE PUDÉSSEMOS FUGIR.

Um levita sensível e piedoso repete interminavelmente essa queixa. Por três vezes ele descreve seu tormento
de homem caluniado, triste por ver corromper-se a Cidade Santa, abandonado por seu melhor amigo. Ah! Se pudesse
evadir-se desse sofrimento que o atormenta! Pensa-se na oração de um Jeremias (4,19; 5,1; 6,6; 9,1-3.7), no Cristo o
homem das dores traído por seu amigo (Mt 26,21-23). É a oração para os dias em que se sente esmagado pelos
conflitos da vida, a hostilidade dos homens e das coisas; gostaríamos de sair do aperto, fugir para algum lugar deserto,
não encontrar mais ninguém. Mas só a presença de Deus pode liberar o coração prisioneiro de seu sofrimento.

SALMO 55
BEM SEI, DEUS ESTÁ COMIGO.

Novamente um homem perseguido toma o Senhor como testemunha da injustiça que sofre. Apela para o
julgamento de Deus contra seus perseguidores, mas fato mais importante, um profundo senso religioso lhe permite
perceber que a oração e as lágrimas dos homens são preciosas aos olhos de Deus, que o atingem no coração. O
movimento dessa súplica termina no refrão: é um firme protesto de confiança da Palavra do Senhor para além de todos
os dizeres dos homens. A certeza é tão forte que termina em ação de graças.

SALMO 56
NO COVIL DAS FERAS.

Como leões os maldosos dilaceram suas vítimas; roubam sua reputação. Como o perseguido não desejaria
que Deus se manifestasse para castigar o inimigo e estabelecer seu reino na terra! Um segundo quadro termina o
salmo; o fiel canta a libertação de Deus que se levanta como uma aurora no meio da noite dos homens.

SALMO 57 (56)
SIM, HÁ UM DEUS QUE JULGA.

Como os príncipes, os juízes são seres divinos (Sl 82,5; Ex21,6; Dt 19,17; Sl 45,7) pois tanto quanto reinar,
julgar é um poder de Deus. Mas que se torna ele nas mãos dos homens? O salmo é contra os que pervertem o poder.
As diatribes e as maldições são expressas na linguagem colorida do Oriente. E a alegria da vingança nos parece feroz.
Mas o Salmo quer afirmar, sobretudo, que há uma justiça; ela não poderia ser vencida, nem zombada, pois é de Deus.

SALMO 58
Ó MINHA FORÇA, A TI ELEVO MEU OLHAR.

Imaginemos a situação mais provável desse salmo: um crente ou um grupo de judeus ou o povo todo está
exposto à perseguição: ela vem de forças que querem impor o paganismo aos judeus exilados ou talvez em Jerusalém
mesmo.
Ei-los em ação. São como esses cães a uivar que rondam à noite as cidades do Oriente em busca de uma
presa; pessoas mal intencionadas estraçalham a reputação de sua vítima inocente. A descrição é feroz, a imprecação
veemente e vingativa; mas Deus não poderia tolerar sem fim a mentira e a perfídia, o Todo-poderoso não pode deixar
que zombem dele, seu honra está em jogo.

SALMO 59
COM DEUS FAREMOS PROEZAS.

A súplica da nação judia na angústia por ter negligenciado a Aliança, Deus responde. Lança-se o grito da
guerra santa. Deus mobiliza Israel no país inteiro (8-9) para levar a vingança e a dominação em território inimigo, por
um momento crê-se haver voltado os mais belos dias do Êxodo, da conquista de Canaã. Depois do exílio este salmo
podia ser cantado durante uma liturgia de penitência; reencontrara-se assim a esperança de uma reestruturação
nacional e a certeza do auxílio de Deus.
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SALMO 60 (59)
ÀS ALTURAS DE SIÃO, CONDUZE-ME.

Um levita deportado em Babilônia com a elite do povo judeu deseja ardentemente voltar para a Cidade Santa e
retomar seu serviço no Templo, seu razão de viver.
À queixa do exilado acrescenta-se uma súplica pelo rei, sem dúvida, em favor de Sedecias, o último monarca
que ocupará o trono de Davi depois da primeira deportação de 598.
Esta oração implora também o Messias que deve sair da linhagem real (2Sam 7; 1Cr 17,4) para reinar para
sempre e cuja vinda Israel espera.

SALMO 61
CONTAR SÓ COM DEUS.

Ao coração ferido e decepcionado com a malícia dos homens, o Salmo traz uma lição de confiança e
sabedoria. Os homens procuram seu êxito na maldade, na mentira e na violência; o crente conhece a fragilidade disso;
ela não pesa no juízo de Deus. Outra é a força dos fiéis. O Senhor que dá a cada qual o que merece (Ez18; Jó 34,11;
Prov 24,12; Sir 16,14); somente Ele nunca lhes falta.

v.10 – A balança evoca a crença egípcia da pesagem das almas no dia do Juízo (Is 40,15; Jó 31,6; Prov 16,2 etc).

SALMO 62
MINHA ALMA TEM SEDE DE TI.

Um levita deportado pensa no tempo em que vivia na intimidade de Deus no Templo; no silêncio da noite ele
medita sobre essas horas felizes cuja lembrança é um conforto. E cresce o desejo e se torna cada vez mais intenso; ele
já se vê de volta ao santuário sem outra ocupação a não ser a de louvar sem cessar aquele cujo amor ultrapassa todo
bem. Nesse tempo da libertação, o rei será cumulado de bens por Deus enquanto os povos opressores o pior dos
tormentos.
Por seu movimento e seu estilo, esta oração encantadora está entre os mais belos salmos do desejo do
homem (Sl 41; 60; 72; 83); ela nos permite encontrar em meio às dificuldades cotidianas e a tudo o que distrai da vida
profunda a verdadeira linha da existência, a espera de Deus.

SALMO 63
TODO HOMEM ENTENDERÁ A AÇÃO DE DEUS.

Os homens retos se verão sempre desarmados diante do cinismo, das maquinações e das calúnias das quais
são objeto. Os que trama suas intrigas agem na sombra e se julgam seguros. Mas Deus vê no segredo das ações e dos
planos dos homens. Seu julgamento atinge os que deturpam a justiça. Inspirando-se na lei de Talião, o autor imagina
que desde esta terra, Deus fará voltar contra eles sua maldade enquanto publicará a inocência do justo. Cada vida se
defronta com o juízo de Deus; o justo encontrará sua alegria junto do Senhor; é a lição desse salmo, mesmo se os
caminhos de Deus seguem um curso mais misterioso do que o supõe ainda o autor desta oração.

SALMO 64 (65)
CUMULAS A TERRA DE RIQUEZAS.

Para Israel a festa das colheitas (Lev 13,33) vinha logo após o dia do grande perdão (ao qual alude o v.4, cf.
Lev 16).
Esta vez o povo festeja uma estação de abundância. A felicidade e a gratidão enchem este poema. Eis
primeiramente uma aclamação ao Senhor que reside em Sião; neste lugar privilegiado Deus recebe o culto e derrama
seu perdão; aqui os levitas encontram a alegria e se sabem cumulados de graças. Depois o horizonte se alarga até os
confins da terra; canta-se o Senhor do mundo cujos feitos a criação e a história proclamam. Finalmente vem a gratidão
pela boa colheita; o poeta evoca o milagre que a chuva constitui para estas regiões sempre ameaçadas de seca; a
primavera da Judéia explode, o país renasce, opulento. Temos, é certo, um conhecimento mais científico das leis que
presidem às estações e à cultura; mas acharemos sempre prazer em evocar a suntuosidade da natureza e de seus
mistérios para cantar o esplendor e a bondade de Deus.
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v.9 – as portas; os países longínquos nos quais o sol entre de manhã e parte à noite, segundo a imaginação dos
antigos.

v.10 – a fonte de Deus; reservatórios do céu onde estavam acumuladas – segundo a opinião dos antigos – reservas de
água que se derramam em forma de chuva.

SALMO 65
TERRA INTEIRA, CANTA TUA ALEGRIA AO SENHOR.

v.1 – Aclamar a Deus – Em sua liturgia, Israel volta sempre às grandes horas do passado; a saída do Egito e a
passagem do Jordão (v.6). Não se trata de nostalgia de um prestígio perdido; o acontecimento de ontem quer ser o
sinal da presença de Deus hoje. Sempre ele se manifesta como Salvador de seu povo; arranca-o agora à angústia de
uma invasão – ou talvez da grande provação do exílio (9-12). Um sopro de universalismo perpassa a primeira parte
deste canto: toda a terra é convidada a proclamar as libertações de Deus.

v.12 – O que o Senhor fez por mim – uma oração pessoal de gratidão foi acrescentada a este salmo. Um homem livre
de grande provação vem dar graças, por oferendas, e o proclama no meio de seus irmãos. Aquele que anuncia uma
libertação de Deus, faz-se porta-voz da comunidade dos crentes.

SALMO 66
DEUS, NOSSO DEUS, NOS ABENÇOA.

Um povo se reúne para a festa das colheitas (Ex 23,16; Lev 26,4). O louvor eleva-se a Deus; o povo lembra
primeiro de tudo o que ele fez em Israel; a abundância dos frutos da terra é como um novo sinal de seu poder e de sua
bondade. E cada vez mais intensamente, esse povo por muito tempo fechado sobre si mesmo, deseja que o mundo
inteiro partilhe seu canto de ação de graças: Javé não é apenas o Deus de Israel, aclamam- no Senhor e Juiz do mundo
e de todos os povos.

SALMO 67
A EPOPÉIA TRIUNFAL DO POVO DE DEUS.

“Deus se levante...”, assim o poeta dá início à procissão da Arca, como no tempo em que ela precedia às
arrancadas do povo (v.2) (cf. Num 10,35). E ele deixa desenrolar-se diante de nosso olhar toda a história de Israel como
uma grande marcha de Deus, como uma procissão até o centro de Jerusalém.
Deus surge, as trevas fogem; ele toma a direção de seu povo, os adversários se dispersam. Este poema
acumula uma serie de imagens sugestivas; elas continuarão muitas vezes obscuras para nós. Nesta vinda de Deus
reconheceremos no entanto, momentos marcantes do destino de Israel; a saída do Egito e a manifestação divina no
Sinai (8-9) (cf. Ex 19,16); os prodígios do Êxodo (10-11); as proezas dos juízes (12,15) (cf. Jz), a conquista de
Jerusalém (15-19), a triste sorte de Acab (24; 1Rs 21,19), a Páscoa solene de Ezequias que havia reunido todas as
tribos de Israel (25-38; 2Cr 30) e pressagiava a reunião na Cidade Santa dos pagãos que finalmente virão adorar o
Senhor de todas as nações. Para uma primeira leitura, pouco importa a significação dos detalhes; deixemos aos
especialistas a explicação das inúmeras alusões. Em vez de procurarmos resolver o enigma do texto, deixemo-nos
embalar pelo ritmo do canto; ouçamo-lo como uma marcha heroica, como a gloriosa epopeia que arranca Israel à
banalidade cotidiana. É o salmo ideal das procissões ao Templo.
Na subida de Deus que toma posse da colina sagrada de Jerusalém, Paulo descobre a Ascensão de Cristo
que arrasta consigo o povo dos resgatados, a Igreja cumulada dos dons do Espírito Santo (v.19); (cf. Ef 4,8-11).
Cantando este hino, o cristão evoca a presença de Deus no destino do mundo e a marcha da humanidade chamada por
Deus até sua reunião na glória.

SALMO 68
DERAM-ME A BEBER VINAGRE.

Nesta lamentação misturam-se provavelmente a queixa e a oração de dois homens aflitos, um acusado talvez
de roubo (5) e o outro atormentado por causa de sua piedade e cuja fé é ridicularizada. A lama na qual alguém se
afunda, as águas que submergem são imagem do desespero do homem reduzido à morte. A situação trágica dos
suplicantes se assemelha à do justo que encontramos no Salmo 21 e que nos faz pensar no profeta Jeremias e no
servo sofredor (Is 53). Sua oração que apela para a justiça mas também para a ternura de Deus, termina numa grande
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ação de graças a salvação que eles esperam deve estender-se a todos os pequeninos que, como eles, só contam com
Deus. Em seu sofrimento, Jesus reconhece o seu próprio (Jo 15,25) e os evangelistas se aplicaram em salientar a
semelhança (Mt 27,46; jo 2,17; 19,28 etc).

SALMO 69
DEPRESSA, EM MEU SOCORRO!

O apelo do suplicante é o de todos que estão no auge do sofrimento e só esperam em Deus. Já encontramos
este apelo no Salmo 39 (14-18).

SALMO 70
ALIMENTARÁS MINHA IDADE AVANÇADA.

Gasto, exposto às críticas, um velho, provavelmente cantor, a serviço do Templo, contempla seu passado
desde a infância e durante sua longa vida, cada dia quis permanecer fiel ao Senhor e viver em sua intimidade; fez do
louvor divino o companheiro de sua vida. Profundamente confiante, suplica a Deus que venha em seu auxílio, decidido
a celebrá-lo ainda com todas as suas forças. Sua queixa se assemelha às confissões do profeta Jeremias (17,14-18).
Esta súplica pessoal pode ter sido aplicada mais tarde ao próprio Israel. Nós a consideramos sobretudo como a oração
da fidelidade no momento das dificuldades da velhice, a bela oração para a tarde da vida.

SALMO 71
ORAÇÃO PELO REI.

Somente o Salvador esperado realizará todas as esperanças colocadas neste princípio ideal, evocado também
pelos profetas (cf. Is11,1-9; Zac 9,9-17); o retrato tira muitos traços do rei Salomão, o Sábio, mas ele é messiânico, isto
é, descreve um rei misterioso que deve vir; seu reino não terá fim (5); ele socorre os pobres oprimidos e os restabelece
em seus direitos (12-14); instaura a paz definitiva (7); as nações pagãs submetidas por ele, mesmo as mais longínquas,
vêm prestar-lhe homenagem; finalmente ele reina na Terra Prometida ideal (8) e a transforma em novo paraíso terrestre
(6-16). Israel nunca cedeu à tentação de divinizar seus reis; não se diviniza o rei, reza-se por ele.
Este salmo é como uma carta magna, um espelho para um verdadeiro reinado em nome de Deus. Ele será
marcado pela obra da Justiça e de paz, pelo esforço em prol da libertação dos pobres e dos oprimidos.
Proclamando as bem-aventuranças (Mt 5,1-11), Jesus devia dar a esta perfeita felicidade prometida do reinado
do Messias seu verdadeiro conteúdo.
Na adoração dos magos no presépio, Mateus reconhece a visita dos reis pagãos prostrados aos pés do
Salvador anunciado (10,11); é uma razão a mais para se reler este poema no tempo de Natal e da Epifania.
Deus seja bendito. Esta aclamação termina o 2º Livro do Saltério.
Louvar o Senhor é a atitude religiosa mais profunda, a que termina toda oração autêntica.

TERCEIRO LIVRO

Nesta terceira parte acha-se reunida a coletânea dos Salmos de Asaf, provavelmente no Templo de
Jerusalém, e o fim do saltério dos filhos de Coré, cujo início encontramos mais acima (Salmo 40 a 49). As orações
continuam variadas como a esperança do crente; passa-se da queixa do inocente à exultação da vitória. Leremos ora
Cânticos de Sião, ora cânticos de alegria e de esperança, retrospectos sobre a história que assumirão muitas vezes o
tom da grande lamentação nacional. Cada oração exprime, com um acerto novo, a espera de Deus e de sua salvação.

SALMO 72
MEU QUINHÃO, DEUS PARA SEMPRE.

Os que desprezam a Deus parecem mais bem sucedidos do que os outros e seu exemplo se torna um
escândalo para os melhores e mais sábios: para que ficar fiel? Mas não renega a Deus. Triturado pela dúvida o fiel
reflete e procura a luz em face de Deus; numa tal meditação sua fé se aprofunda e uma convicção se impõe com uma
nova força: a glória humana não tem futuro, a amizade de Deus permanece sempre preciosa; não poderia acabar num
decepcionar. O sábio começa a suspeitar que a alegria de estar com o Senhor poderia tornar-se alegria eterna (v.24).
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Nas horas de incerteza, nas horas em que estamos cansados da fidelidade este salmo traz a graça de uma novidade
interior.

SALMO 73
LEMBRA-TE, SENHOR!

Nesta lamentação, exprima-se a alma de um povo ferido que se sente rejeitado pelo próprio Deus. Os
deportados que voltaram do exílio (538-520 a.C.) ou os judeus perseguidos por Antíoco Epifânio (167-164) choram
sobre o seu santuário profanado pelos pagãos. Teria o Senhor esquecido a Aliança e os feitos que realizou outrora para
libertar seu povo (13-14), sustentar sua marcha no deserto e abrir-lhe a Terra prometida (15)? Não é ele o Senhor que
preside a vida do universo (16-17)? Justamente o passado impede de perder a esperança e permite crer num futuro
melhor. Israel agora perdeu toda pretensão ao poder; quer ser a comunidade de pobres (19-21) consciente de sua
pequenez: é como a tímida rolinha que Deus não poderia abandonar à ferocidade das feras (19).

SALMO 74
FAREI JUSTIÇA!

Libertada do exílio, mas sempre dependente e atormentada pelos que haviam tomado seu lugar no país, a
comunidade judia dá graças ao Senhor. Sabe que no fim Deus fará triunfar o direito sobre toda a terra: aos justos a
glória, aos ímpios o castigo que merecem. Estes oráculos proclamam uma vez mais a mudança que a verdadeira justiça
opera; os orgulhosos serão abaixados, os humildes elevados.

SALMO 75
QUEM SE MANTERÁ DIANTE DE TUA FACE?

Em 701 o poderoso exército de Senaqueribe sitiara Jerusalém. De repente, numa noite, o assaltante levanta o
cerco. Foi a vitória de Deus em Jerusalém; e na cidade santa Deus se revela por seus triunfos (2Rs 9,35). Esta
lembrança ficou gravada na memória do povo. Este hino à glória de Sião aí se inspira provavelmente como os salmos
46 e 48. Ele reanima a coragem e a esperança dos judeus repatriados de Babilônia depois de 538. O Deus terrível
vence os poderosos do mundo e salva os humildes. Esta confiança dos pobres subirá sempre do seio da humanidade
como protesto contra o orgulho dominador, como um anúncio do juízo de Deus.

SALMO 76
DEUS ESQUECE DE TER PIEDADE?

No período difícil que vivem depois da volta do exílio, mais de um Israelita fervoroso pode crer que Deus
abandona os seus. Mas o Senhor não age como os homens; do Egito a Canaã, pelos prodígios do Êxodo (15-21), de
um rebanho de escravos não fez ele o povo eleito? A impressionante evocação da passagem do Mar Vermelho e da
vinda de Deus ao Sinai faz recobrar a grande certeza: Deus guia seu povo. Esta certeza mantém-se mesmo que se
deva aprender que seus caminhos se tornaram misteriosos. A esperança renasce mais inquebrantável, porém
purificada pela provação.

SALMO 77 (76)
NÓS O NARRAREMOS À GERAÇÃO FUTURA.

Este longo sermão nos é dado como uma lição de sabedoria: se o povo de Deus quer compreender seu
destino, deve refletir em suas origens e meditar o Êxodo: uma história da graça divina e da infidelidade dos homens.
Com efeito, seus pais sempre responderam pela ingratidão aos milagres que Deus multiplicava para eles; ele faz recuar
o mar e tira a água do rochedo; e já se reclama um outro prodígio (12-20). Saciado pelo maná e pelas codornizes, ainda
o povo murmura (23-30). Então o Senhor se encoleriza e castiga, mas bem depressa ele perdoa tendo piedade da
fraqueza dos homens (31-39). Em favor dos seus ele havia provocado também as pragas do Egito (43-51), guiado seus
filhos no deserto e os conduzido à Terra Prometida (52-56). No entanto, a ofensa se multiplica de novo e de novo
também ele castiga. Mas finalmente a seu povo reserva Sião, lugar santo, privilegiado, e Davi pastor segundo seu
coração (59-78). Apesar das reviravoltas sucessivas do povo inconstante, Deus realiza seu plano. Eis a lição da
história. Não é também a nossa história?
Reconhecer o amor de Deus não nos preserva das infidelidades; a Palavra de Deus então nos interpela, mas
trás também o perdão e a Eucaristia nos é dada para susténs nossos passos. Em Jesus, novo Davi, o bom pastor, o
21

povo de Deus encontra um modelo e um guia perfeito para a nova Terra Prometida, a Jerusalém celeste, onde o Pai
espera todos os homens.

SALMO 78
POR QUE SE DIRÁ: ONDE ESTÁ SEU DEUS?

Estamos nos dias mais sombrios da história de Israel; em 587 os Caldeus tomaram e saquearam Jerusalém e
os vizinhos Moab e Edom já se lançam também sobre ele para aproveitar dos despojos. Israel mereceu ser punido por
suas infidelidades, agora o sabe e apela para a piedade de Deus. Nessa lamentação a angústia dos oprimidos clama
vingança diante do Eterno. Os pagãos insultam o nome divino: é o fracasso de Deus. Vingando os seus, Deus deve
salvar primeiro sua honra diante do mundo e seu povo lhe agradecerá. É este o tema da lamentação nacional. A
vingança deve-se fazer por sete vezes numa medida plena?

v.12 – o Cristo nos diz dever perdoar setenta vezes sete (Mt 18,22) para que possamos compreender o salmo. Mas fica
ainda um apelo pungente à piedade de Deus, um ato de fé no Senhor quanto tudo parece desmoronar.

SALMO 79
Ó DEUS, FAZE-NOS VOLTAR.

O reino do Norte, depois o de Judá caíram um após outro (721-587 a.C.). No momento, Israel não é mais um
rebanho disperso, uma vinha devastada. De onde poderia vir uma mudança senão do próprio Deus? Esta súplica
nacional exprime tal confiança. Adapta-se bem à nossa oração no tempo do Advento; tal é nossa indigência que
esperamos a vinda de Deus, só ele pode fazer voltar a ele por sua presença, converter-nos.

- Pastor de Israel, escuta – Deus é o pastor de Israel (Ez 34,31; Is 40,11; Jer 31,10) e Jesus se chamará o Bom Pastor
(Jo 10). A imagem lembra os laços profundos entre Israel e Deus, a solicitude afetuosa de um lado, a pertença confiante
do outro. Na angústia a gente não se dirige a uma divindade longínqua e anônima.

- Havia uma vinha – Israel é o magnífico jardim de Deus cujos limites ideais vão até o Eufrates (é o rio do v.12). Deus é
conhecido como o vinhateiro que ama sua vinha e aí encontra suas delícias. Como não sofreria ele em vê-la
devastada? (cf. Is 5,1-7; 27,2-5; Jer 2,21; 12,10).

A imagem passará para o Novo Testamento (Mt 20,21; 33-41; Jo 15,1-5).

SALMO 80
ISRAEL, SE PUDESSES ESCUTAR-ME!

O toque da trombeta convoca a assembleia de Israel: é a Lua Nova de setembro, a festa dos Tabernáculos (cf.
Num 10,16; Lev 23,24.39-43). Renova-se a Aliança. Nesse momento é preciso redescobrir também as exigências de
fidelidade. O salmo, impregnado do espírito do Deuteronômio, toma consciência disso: que o povo evite fechar o
coração a Deus. Hoje, como ontem, a fidelidade a Deus é posta em xeque pela infidelidade dos homens.

v.6 – a palavra divina surpreende sempre o profeta a quem é comunicada, é uma linguagem desconhecida.

SALMO 81
LEVANTA-TE, Ó DEUS, E JULGA A TERRA.

Acaso, príncipes e magistrados não são, na terra, membros do tribunal de Deus, associados ao governo do
mundo e, por este motivo, “divinos” também eles?

v.6 – Infelizmente, quem tornas a causa dos pobres em suas mãos? Instaurando a injustiça em lugar do direito, os
grandes perturbam a ordem do mundo.

v.5 – Eles serão julgados e perderão seu lugar. Perceber o que é a justiça para Deus, transtorna nossos juízos
demasiado humanos.
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SALMO 82
A CONSPIRAÇÃO DAS NAÇÕES.

Desde a deportação de 587 o povo perdeu sua existência política. A comunidade restabelecida em Jerusalém
no retorno do exílio sujeita à tutela das grandes potências e ao vexame dos vizinhos; as comunidades dispersas no
meio das nações estrangeiras já sofreram mais de uma perseguição. Em luta com as religiões e culturas pagãs, os
crentes se sentem ameaçados em sua fé. Todas as forças parecem ligar-se para destruir Israel, porque ele quer
permanecer fiel à sua vocação, ser o povo de Deus. É ao Senhor que se dirige este desafio. Que ele se faça
reconhecer então, esmagando o orgulho das nações; deseja-se a estas a sorte dos reizinhos (cf. Jz 4,4-8) que
quiseram sufocar Israel no tempo dos Juízes. A oração é um apelo à vingança, certamente, porém mais ainda à
salvação. Ela quer provocar o céu; como poderia o mundo politeísta e idólatra adorar um Deus único e todo-poderoso
que abandona os seus? O povo eleito não se pode resignar com este desmoronamento, seria aceitar a derrota do
próprio Senhor.

SALMO 83
MEU CORAÇÃO E MINHA CARNE EXULTAM DE ALEGRIA PARA O DEUS VIVO!

No decorrer de uma peregrinação como prescrevia a lei de Moisés (Ex 23,17; 1Sam 1,3; Lc 2,42), talvez na
festa das colheitas, um dos numerosos peregrinos deixa explodir sua alegria de ter ido ao templo, junto de Deus. Já na
última etapa, o Senhor manifestou seu favor aos fiéis peregrinos (6-7). Ele reserva uma felicidade melhor aos que
seguem sua lei. Este canto peregrino, que transborda do desejo e da alegria de Deus, torna-se cântico de esperança e
de confiança para todos os cristãos a caminho da Casa do Pai onde cantarão um aleluia sem fim.
Aqueles e aquelas que consagraram de maneira mais completa sua vida ao Senhor encontrarão aqui palavras
para exprimir suas mais profundas aspirações.

SALMO 84
FAZE-NOS VER, SENHOR, O TEU AMOR!

Deus mostrou-se cheio de benevolência para com os seus trazendo-os do exílio (538 a.C.); mas os repatriados
têm dificuldade em se instalar de novo na Judéia; “Tu nos fizeste voltar do exílio, faze-nos voltar à vida”. A queixa torna-
se esperança; os profetas haviam anunciado um tempo melhor (Is 58,8; Zac 8,12); o Templo de Jerusalém será
reconstruído (620-545), ele será um sinal da presença de Deus, da “Glória” (v.40 cf. Ez 43,2); a felicidade é prometida
aos que guardam a fidelidade. Em Jesus, o Filho de Deus, a promessa torna-se realidade (Jo 14,27; Col 1,20), quando
o amor e a verdade, a justiça e a paz habitam nossa terra, nasce um mundo novo; Deus ali está.

SALMO 85
DEUS DE TERNURA E DE PIEDADE.

Passamos alternativamente da súplica ao ato de confiança e à gratidão para com Deus. Este poema,
provavelmente composto depois do exílio, é a oração dos judeus fervorosos que creem por experiência na bondade do
Senhor; não ressuscitou ele Israel no momento mais sombrio de sua história? O Senhor parece de tal modo próximo
para ouvir, perdoar, salvar; medita-se a experiência de Moisés encontrando Deus (Ex 34,6). A convicção da bondade de
Deus nos seduz por sua evidência e a expressão muito simples que dela se dá. Esta expressão já sugere uma
sensibilidade “missionária”; as imprecações contra os pagãos perdem sua veemência e entrevê-se o dia em que,
tocados pelo Senhor, darão glória ao Deus único.

SALMO 86
JERUSALÉM, PÁTRIA ESPIRITUAL DOS POVOS.

Nenhum outro cântico soube como este exaltar a Cidade Santa. Sião, a cidade escolhida de Deus. Ela está no
coração de Israel; mais ainda, nela Deus lavra o atestado de nascimento de todos os povos, mesmo dos inimigos
irreconciliáveis de Israel, como o Egito e a Caldéia. Todos serão admitidos em seu seio, Deus a declara Mãe de todos
os homens. Depois de termos descoberto em tantos salmos os conflitos dos povos e a perseguição de Israel, eis aqui
uma sinfonia cujos acentos não podemos esquecer. Deixamo-nos encantar por este sopro universalista e pela
perspectiva de uma humanidade reunida por Deus, em sua presença. Não é esta a vocação da Igreja, nova Jerusalém,
ser um fermento de união para todos os homens?
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SALMO 87
RELEGADO ENTRE OS MORTOS.

A angústia da morte foi raramente expressa com imagens tão patéticas: prisão, naufrágios, solidão, noite. O
suplicante chegou ao auge do sofrimento. Acaso Deus o teria abandonado? Por maior que seja uma desgraça, o crente
recusa admiti-lo; sufoca em si toda revolta. Este salmo ilustra bem a imagem que os antigos podiam ter de uma
sobrevivência antes de acenderem à fé na ressurreição; no sheol, na fossa subterrânea, os mortos não têm mais
comunicação com Deus, não são mais do que tristes sombras deles mesmos, é o país do esquecimento.
Oração de um homem que experimenta o fundo da miséria humana, oração de Israel à beira do
desmoronamento, este salmo é também o grito de todo coração desertado pela esperança.

SALMO 88
ONDE ESTÃO AS PRIMÍCIAS DO TEU AMOR, SENHOR?

É belo o hino ao Deus criador, a aclamação ao Senhor que deu sua palavra e sua promessa a Israel.
Mas os fatos não desmentem essas visões tão maravilhosas? O crente se recusa a ficar nas aparências; a
palavra e a promessa de Deus permanecem para além do fracasso do presente, uma longa história pode dar
testemunho disso. E descobrem-se maravilhosas ocorrências na obra de Deus; as origens do mundo e a eleição de
Davi, a ordem do cosmos e a estabilidade no trono real, o céu e a terra, o presente, o passado e o futuro. Nos dias de
incerteza é preciso ousar esta alta contemplação e crer na fidelidade de Deus. Então renova-se a esperança
messiânica; ela é espera de vinda do Senhor por seu “Ungido”, o Cristo (2-5).

“Deus diz a verdade” – se há algo de sólido é o amor e a verdade de Deus; permanecem sem falha na criação, e são o
essencial na aliança com Davi; essa promessa feita ao rei (cf. 2Sam 7 e 1 Cr 17) é o fundamento da expectativa
messiânica de Israel.

6-19 – “Teus são os céus, tua também é a terra”. O hino canta a grandeza de Deus no segredo do céu onde o cercam
os anjos (os santos, os filhos de Deus de que falam os vv. 6 e 7); ele canta o poder daquele que cria a terra e domina o
caos primitivo cujo símbolo é Raab, o monstro mitológico. Quanto mais o crente percebe o mistério de Deus, tanto
maior é a sua alegria.

28-30 – “Hino ao Deus que promete”. Esse Deus poderoso e verdadeiro revelou a seus amigos, os profetas Samuel e
Natan, seu projeto em relação a Davi e sua linhagem; é uma palavra que não poderia ser destruída; é uma aliança que
não poderia ser revogada; ela tem a garantia do amor e da verdade de Deus.

39-46 – “Renegaste tua aliança”. O Templo saqueado, a cidade destruída, a realeza derrubada, apesar da palavra dada
a Davi. Pouco importa porque aconteceu esta desgraça; acaso o amor e a verdade de Deus não teriam consciência?

47-49 – “Até quando?” Como aceitar uma provação tão longa em vidas humanas curtas? Seria por demais doloroso
morrer sem ter assistido à restauração da Aliança, sem ter visto o novo testemunho do amor e da fidelidade de Deus.

50-62 – “Lembra-te, Senhor!” Que o Deus que fez a promessa a Davi não seja insensível ao rei destronado e ao povo
exilado do seu reino e tornado alvo dos pagãos. No sofrimento o fiel espera uma nova descoberta de Deus, como a de
outrora nas primícias de seu amor.

“Assim, amém”. A aclamação termina o Terceiro Livro do Saltério.

QUARTO LIVRO

Os salmos bastante diferentes, dos quais muitos não trazem indicação de título de origem, junta-se um grupo
bem característico: os Salmos do Reino de Deus (93-96-99). Nessa parte de nosso saltério, domina o louvor; aclama-se
o Criador que fez surgir o mundo, o Senhor que intervém na história; espera-se o Deus que vem renovar todas as
coisas.
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SALMO 89
COMO CONTAR OS NOSSOS DIAS?

Só deus permanece; o homem passa, criatura derrisória e minada pelo pecado, sua vida por mais longa que
seja é precária. O antigo relato da queda e da maldição de Adão (Gên 3,19) quer ilustrar a origem da nossa condição
mortal; os antigos o aceitam com certa tristeza e resignação (cf. Ecle). O tempo do homem é contado; é prova de
sabedoria pensar nisso. Mas esta lucidez não exclui a alegria quando a presença de Deus ilumina os dias concedidos
por ele a cada um e os tempos que prepara para seu povo. Esta meditação de sabedoria se torna oração de conversão.

SALMO 90
QUEM HABITARÁ À SOMBRA DO ALTÍSSIMO?

Um cântico de peregrinação; ele louva a segurança que Deus dá àquele que vai ao Templo colocar-se sob sua
proteção. Ela não lhe faltará no caminho da vida no qual o autor vê acumularem-se os perigos e as ciladas: o caçador, a
flecha, a peste, o leão, a víbora, a insolação do meio dia e os terrores da noite... é um caminho frequentado pelos
demônios, uma estrada assombrada. Mas a própria morte parece recuar e percebe-se já a paz e a alegria da era
messiânica. Em caminho para Jerusalém, ou para Deus, todo fiel é peregrino. Seu itinerário anda tem de um sonho
idílico, mas no meio dos riscos e perigos, o Senhor o livra do medo para conduzi-lo à salvação, à vida em sua presença.
Este salmo de tranquilidade (pacificação) convém particularmente como oração do fim do dia.

SALMO 91
TU ME ALEGRASTE, SENHOR, COM TUAS OBRAS.

Este hino é didático, isto é, ao mesmo tempo louvor ao Senhor e ensinamento para os fiéis. Medita-se sobre a
maneira de agir de Deus. Seu amor e sua justiça transparecem em tudo o que ele faz, mas é preciso compreendê-lo.
Finalmente a felicidade dos maus passa como a erva de uma estação, a sorte dos justos se assemelha a
grandes árvores cuja raiz está plantada em terra firme; novas estações lhes são prometidas nos átrios de Deus. A
alegria do Senhor não é como uma nova primavera na vida dos fiéis?

OS SALMOS DO REINO

Javé reina! Esta aclamação litúrgica, na qual se concentra toda a fé de Israel, jorra nos salmos do reino do
Senhor. Todos esses hinos (46, 92, 95 a 98) exaltam o reino de Deus que se estende ao universo inteiro e domina o
curso dos tempos. Deus se revela rei quando faz surgir os mundos; é rei mais ainda quando escolhe Israel. No entanto
a criação e história são ainda início e promessa, o reino de Deus será manifestado em todo o seu brilho no fim dos
tempos (Ap 4,11; 11,15-17). Novos céus, nova terra, uma Jerusalém nova, tais são as imagens que nos permitem
entrever a alegria de uma humanidade reunida na glória de Deus. (Ap 21,1-22,5). A aclamação dos Salmos do Reino já
vibra desta indizível esperança.

SALMO 92
DEUS REINA VESTIDO DE MAJESTADE.

Ele afirma sua grandeza pelas forças da criação que domina, pela Lei ou “testemunho” – que deu a seu povo e
pelo Templo de Jerusalém que consagra por sua misteriosa presença. Em sua experiência terrestre o fiel já aclama o
esplendor de um reino que não pode terminar.

SALMO 93
LEVANTA-TE, JUIZ DA TERRA.

Um fiel, inquieto com a lentidão da justiça divina, lança este grito de impaciência. Por que Deus não intervém
logo contra a maldade que esmaga os fracos? O sábio reflete: está convencido, apesar das aparências, que a sorte dos
justos é a única que compensa. Há certamente uma hora de Deus e o Senhor vingará sua “herança”, o verdadeiro
Israel, isto é, o povo dos pobres. Ele não pode ficar indiferente aos males e prejuízos que o inocente sofre, nem
suportar o desprezo dos espíritos fortes e dos corações maus. “Deus das vinganças” ele não autoriza ninguém a
recorrer às represálias individuais; cabe-lhe restabelecer a justiça perturbada pela arrogância dos homens em prejuízo
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dos pobres. Estes quadros comparados do orgulho e da inocência têm o poder surpreendente de nos interrogar: nossa
vida é marcada pelo senso da justiça?

SALMO 94
VINDE, ADOREMOS O SENHOR!

A procissão entra no templo: “Vinde, exultemos de alegria...” Todos são convidados ao louvor, todos aclamam
o Deus da Aliança; ele é o Criador e soberano Senhor do mundo; é o pastor que ama e salva Israel, seu rebanho (Ez
34,11-31; Jo 10). “Hoje se escutásseis...” Os profetas dirigem à multidão seu oráculo; é uma exortação à fidelidade, eles
põem em guarda contra as faltas de outrora; o espírito de revolta não tem lugar na terra de Deus (cf. Ex 17, 1-7). A
Epístola aos Hebreus comenta esta exortação (3, 4-7.11); como o Israel do deserto, a Igreja caminha sobre a terra; os
cristãos conhecem a promessa de Deus, mas também a tentação. Se querem entrar na nova terra prometida, isto é,
partilhar a vida de Deus, eles devem perseverar na luta pela fidelidade, cada dia é este hoje, no qual é preciso escutar a
voz de Deus.

SALMO 95
IDE DIZER ENTRE AS NAÇÕES: REINA O SENHOR.

Os pagãos ou as nações foram inicialmente os povos vizinhos que tentaram impedir Israel de se implantar em
Canaã; são mais tarde todas as potências do mundo que não reconhecem o Deus único e verdadeiro. Salvo no tempo
dos juízes, reconduzido do exílio onde foi como que aniquilado, Israel fez mais de uma vez a experiência da salvação;
pode dar testemunho diante do mundo inteiro do poder e da superioridade do único Deus: o Senhor criou o mundo,
restitui seu povo à vida. Todos os povos são convidados a reconhecê-lo como soberano senhor; todos são convidados
à Liturgia, à adoração; a emoção dominará todo o universo, pois, vindo como juiz, o Deus que fixou o mundo inabalável
estabelecerá todos os homens na justiça e na retidão. Este canto de júbilo universal sempre novo, na própria novidade
de Deus; o Novo Testamento se compraz em citar seus últimos versículos para anunciar a vinda definitiva de Cristo no
dia do juízo e da renovação de todas as coisas.

SALMO 96
REINA O SENHOR! EXULTE A TERRA!

Ainda um hino a Javé-rei, único Deus, único Senhor. Descreve-se sua vinda com as imagens grandiosas já
tradicionais das manifestações divinas (cf. Ex 19,16-20); elas causam terror aos idólatras, alegria a Israel. Quando este
canto se impôs, já se perdeu todo medo diante das divindades estrangeiras; os deuses pagãos, ou pelo menos seus
cultos, são talvez convidados a prostrar-se diante do Único. A fé no único Senhor é doravante inabalável. O Deus de
majestade é também o Senhor que vem, aquele que ama todo coração reto e justo. Não se canta mais o Deus do
Universo sem pensar sempre no Senhor próximo de nossos caminhos de homens.

SALMO 97
ALEGRIA DIANTE DO SENHOR PORQUE ELE VEM JULGAR A TERRA.

Israel voltou do exílio; Deus o salvou e o mundo inteiro é testemunha disto. O Senhor continua, pois, seu
projeto de salvação. Que todos os povos o aclamem como seu soberano, haja uma explosão de alegria em toda a terra,
pois Deus vem, ele inaugura para a humanidade um reinado de paz e de justiça. A mesma perspectiva mundial se
manifesta na segunda parte do livro de Isaías (40,55) com a qual os salmos do reino apresentam várias ligações. A
liturgia cristã gosta de cantar este salmo no tempo do Natal e da Epifania, pois ele está impregnado da alegria da vinda
de Deus, Salvador de todos os homens.

SALMO 98
DEUS REINA: ELE É SANTO.

No Templo de Jerusalém, sobre a Arca, animais alados, os “querubins” sustentam o trono de Deus: fraca
imagem de grandeza do Todo-poderoso, do qual o monte Sião é apenas o “escabelo”. Deus é tão santo, ele ultrapassa
infinitamente toda a realidade de nosso universo. Mas sua santidade não é uma grandeza orgulhosa, indiferente à vida
dos homens: adorando-a somos colocados junto a exigências terríveis que se chama: justiça, retidão, fé. Admirável
santidade, no entanto, esta de um Deus acessível à intercessão dos homens, apesar de seus pecados; ela é afinal e de
modo definitivo, para nós, presença de vida.
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SALMO 99 (100)
IDE AO SENHOR COM CANTOS DE ALEGRIA.

Dentro de alguns instantes, vai ser oferecido o sacrifício pelo qual se entra em comunhão com a divindade (Lev
7,11-15); a multidão é convidada a celebrar o Deus único, providência do povo que criou e escolheu. O canto é curto,
mas que deslumbramento enchia o coração dos crentes que se sabiam nas mãos de Deus!
A terra inteira é convidada a partilhar desta alegria sem fim de Israel. O cristão deseja que todos os homens
sejam invadidos pela felicidade desta última liturgia, quando Deus estiver presente para sempre entre os salvos.

SALMO 100
CAMINHAREI NO CAMINHO DOS PERFEITOS.

A Aliança de Deus comporta uma regra de vida para todo israelita, ainda que seja rei. Este salmo constitui o
espelho do príncipe ao qual inculca resoluções essenciais: a integridade pessoal, a escolha de conselheiros leais, a
caça aos hipócritas, aos orgulhosos e aos mentirosos que enchem as cortes, a luta contra a injustiça. O ensinamento é
clássico na Bíblia, a aplicação mais rara nos fatos. Deste quadro da justiça do rei, guardaremos as ideias mestras; elas
conservam sua mais viva atualidade.

SALMO 101
MAS VÓS, SOIS SOBERANO PARA SEMPRE.

O Salmo 101 reúne a queixa do infeliz que se afoga em sua dor e a oração da comunidade dos pobres judeus
repatriados que esperam poder reconstruir as muralhas de Jerusalém, sua cidade santa. O home e o universo passam,
Deus permanece (12.23.26.28); eis porque de uma existência destruída ou de uma cidade saqueada, ele pode fazer
surgir a vida. Não é a prova do poder do Senhor e a razão da esperança dos judeus?... E também dos cristãos, pois
sabemos que em Jesus e em sua Igreja Deus construiu para ser povo uma morada que não perece, como o salienta a
epístola aos Hebreus (1,10-12), comentando os vv. 26 a 29 deste salmo.

1-12. “Como a sombra que declina” – um dia, na doença, talvez, o homem faz a experiência amarga da inconsistência
da vida humana. Ultraje supremo, os que o cercam, julgam-no castigado por Deus; sua oração e sua penitência
permanecem sem resposta. O homem conhece abismos de agonia onde tudo desmorona; nada pode, nada, senão
clamar a Deus.

13-23. “É chegada a hora da piedade” – o povo também conhece o tempo do desprezo. Arrancado de seu Templo e de
sua terra, está por demais atingido naquilo que lhe é mais caro para pedir vingança. É à ternura, à piedade de Deus que
se entrega. Na desgraça, ele se deixa invadir pela única certeza, a da bondade do Senhor. E já brilha a esperança da
restauração; o salmista já não se contenta em imaginar só o restabelecimento de Israel; a sorte de toda a humanidade é
arrastada nessa perspectiva da felicidade reencontrada.

24-29. “Tu permaneces” – a queixa pessoal e a súplica nacional se mesclam. Ao meditar a precariedade da existência
diante de Deus que permanece para sempre, uma esperança vai crescendo, a de não poder ser abandonado. A
epístola aos Hebreus (13,8) proclamará: Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje, ele o será para sempre.

SALMO 102
A TERNURA DE DEUS.

Este salmo é por excelência o canto do amor de Deus. As palavras e as imagens se multiplicam para nos
sugerir sua riqueza e sua imensidão. Ele é profundo como a ternura de um pai, fonte de perdão, de cura, de renovação.
Para além de todos os pecados o povo e o fiel podem contar com a fidelíssima bondade do Senhor. Eis o amor do Deus
infinito cujo nome é santo, o trono celeste, o reino universal. Ele é o pai que Jesus revelará e cuja bondade São Paulo
proclamará (1Cor 2,9). Compreende-se que nosso salmista convoque finalmente o próprio céu a celebrar este Deus.

v.5 - Imaginava-se que águia vivia muito e recuperava em cada muda uma nova juventude.
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SALMO 103
ESPLENDORES DAS OBRAS DE DEUS.

Este hino evoca o majestoso poema que abre o livro do Gên 1,1; mais antigo, talvez, celebra como ele os
esplendores e a disposição maravilhosa da criação; ele o faz com mais calor e entusiasmo e com mais colorido
também. Este texto parece ter sofrido a influência de um hino egípcio ao sol. Fato excepcional para a época, o autor já
lança sobre o mundo o olhar curioso do cientista que procura a razão das coisas e das leis que as governam. Mas
percebe, sobretudo, o universo como um canto ao Deus que dá a vida. O poder do gosto criador faz surgir o mundo;
perfeitamente dominados, a natureza e os seres se animam. A providência divina previu tudo e tudo organizou; as
estações, o ritmo da existência, o alimento e o abrigo dos animais e dos homens. Animados pelo espírito, isto é, pelo
sopro divino, as criaturas cantam a glória daquele que as criou. Única sombra no quadro, o pecado ameaça destruir tão
bela harmonia; por isso o autor suplica que seja afastado. No sopro criador, a Igreja reconhece o espírito de
Pentecostes que restaura a harmonia comprometida e faz surgir a nova criação “o homem novo” regenerado em Cristo
(1Cor 5,17).

SALMO 104
OS EFEITOS DE DEUS NAS ORIGENS DE ISRAEL.

O canto suntuoso da criação (cf. Sl 103) não basta ao crente; Deus é aquele que vem no meio dos homens;
ele proclama sua grandeza na história arrancando o homem da escravidão para conduzi-lo à salvação. Para cantar sua
alegria e seu agradecimento, Israel gosta de se lembrar dos acontecimentos que marcaram os inícios de sua aventura:
a promessa feita a Abraão e renovada aos patriarcas (8-15); a aventura de José (16-23; cf Gên 37,50); de Moisés e as
pragas do Egito (24-36; Ex 1,13); o êxodo e os milagres do deserto (37-45; cf Êx 14-15) e finalmente a entrada em
Canaã, a terra prometida em herança (44). Contrariamente ao salmo seguinte (105) o autor passa “ sub silentio” os
pecados de Israel; ele só quer cantar os efeitos de Deus. Sempre o Senhor manteve sua palavra; multiplicou os
prodígios em favor dos seus e sua providência guiou seus passos; tem direitos de esperar a fidelidade deles (45). Aqui
temos, pois, os tempos essenciais da história da salvação: a eleição e a Páscoa. Este salmo torna-se o canto da Igreja,
povo eleito em Cristo e salvo por sua Páscoa (cf. 1). E toda a vida humana conhece as horas de apelo e as da
libertação, as horas de Deus que são fontes de alegria e exigência de felicidade.

SALMO 105
O SENHOR NOS AMOU COMO JAMAIS ALGUÉM AMOU.

Uma bela aclamação inicia o salmo, mas desde o v.6 o tom muda; entramos numa liturgia de luto, participamos
de uma confissão nacional; é, sobretudo depois do exílio, a oração das épocas de sofrimento (cf. Is 63,7-64,11; Ne 9,5-
37; Dan 9) Israel arrependido evoca a falta de seus pais, mas é para professar seu próprio pecado, o povo continua a
longa série das infelicidades de outrora. A meditação sobre a história contrasta com o belo hino do Salmo 104. Do
passado só se retém a sequência dos pecados; os pais duvidaram de Deus (v.7; cf. Êx 14,12); murmuraram no deserto
(v.14; cf. Êx 15,94; 16,3 e 17,2), adoraram o bezerro de ouro, relutaram em conquistar a terra prometida, adotaram as
práticas pagãs (v.28-35) e sacrificaram aos ídolos (v.36-38; cf. 1Rs 16,34). São Paulo evocará mais tarde como a maré
do pecado submerge a humanidade: “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rom 3,23). Mas a história do
pecado opõe-se à do amor de Deus. O Senhor sempre perdoou e libertou seu povo. À lembrança de tanta bondade, a
comunidade judaica reunida pôde reconhecer-se culpada e suplica a Deus que a salve. “onde abundou o pecado,
superabundou a graça” (Rom 5,20). O reconhecimento do pecado não leva ao desespero, abre ao conhecimento do
amor.

v.48. “E todo o povo dirá: Amém”. Que a oração nos faça passar do canto de alegria ao grito de angústia, ela só pode
terminar na certeza de um amém: sim, Deus é grande, sem fim e sem amor!

QUINTO LIVRO

Duas coletâneas estão inseridas nesta última parte do saltério; os cânticos de peregrinação ou “os cânticos
graduais” (119-133) e o Hallel ou louvor (112-117; 135; 145-150); veremos ainda um grupo de salmos atribuídos a Davi
(137-144).
Clamores de súplica surgem ainda na oração, mas a alegria já resplandece no rosto do peregrino que se
aproxima do Senhor; a aclamação ardente em presença de Deus fará do saltério uma prodigiosa sinfonia da felicidade.
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SALMO 106
ELES CLAMARAM... O SENHOR OS LIBERTOU.

O salmo 106 é de ação de graças pela “libertação de Deus”. Homens na angústia clamaram por ele e
obtiveram auxílio; viajantes perdidos (4-9), presos (10-16), doentes (17-22) e náufragos (23-32). O Senhor muda a seu
bel prazer as situações (33-41), mas somente o fiel percebe a ação divina. Por trás da vida concreta do tempo, evocada
às vezes com humor (vv. 26-27) mostram que os israelitas não eram bons marinheiros; entrevê-se também a história do
povo eleito; a viagem do êxodo e o exílio, as tentações e as falhas. Visivelmente o autor se inspira no livro da
Consolação (Is 40-55) e nos escritos dos sábios (Jó; Sab 16).
Agradecimentos, de início particulares, exprimem finalmente a ação de graças de todo um povo. Para o crente
os acontecimentos se tornam sinais; convidam a descobrir em sua vida e na comunidade dos homens uma secreta
presença de Deus.

SALMO 107
SOBRE TODA A TERRA, TUA GLÓRIA!

Dois trechos de salmos serviram para compor este louvor (Sl 56, 8-12 e Sl 60, 7-14) que Israel clama à espera
de ser libertado; já se vê o Senhor reunir todos os seus filhos e pôr-se à frente de seu combate, como no passado, para
vinga-los de seus vizinhos. Este canto de esperança guerreira tornar-se-á cântico de esperança: alegria e louvor, pois a
glória de Deus encherá toda a humanidade.

SALMO 108
IMPRECAÇÕES DE UMA VÍTIMA INOCENTE.

O saltério contém outros gritos de ódio e vingança (Sl 15,34; 136; 138); nenhum é mais duro do que este. Por
certo no Oriente há muito exagero nas palavras e a fé ainda não mudou a dura lei da vingança, o talião. Mas o
Evangelho também encerra maldições (Mt 23,13-36). Se Jesus e seus apóstolos sabem perdoar a seus inimigos, eles
no entanto, vêm em ação para além dos homens e a fim de os perverter, “o antigo inimigo” (Ap 12,9), as forças do mal.
A estas forças eles se opõe com violência. Retomando os salmos de maldição, a Igreja convida o cristão a engajar
contra o espírito do mal (Ef 6,12) uma luta que cada um deve começar em seu próprio coração.

v.6. “Sem piedade” – são implacáveis as palavras dos que amaldiçoam o inocente; gravaram-se em seu coração; não
esquecem nenhuma de suas palavras.

v.5. “Contra mim colocam a desgraça” – este homem nunca disse e fez senão o bem; traição, ódio e mentira seriam
acaso a sua recompensa? Dura é a calúnia que esmaga o justo.

v.17. “Amava a maldição” – de todo o seu coração ferido, o inocente deseja que, segundo a lei do talião, seus
acusadores sofram a sorte que invocaram sobre ele; que suas maldições se voltem contra eles.

v.28. “Eles maldizem, mas tu abençoarás” – o poema parece recomeçar. O pobre invoca novamente a Deus, expõe seu
sofrimento, pede a salvação, clama suas imprecações, promete sua gratidão. É o ritmo da oração do perseguido. Ele
manifesta uma convicção: no juízo de Deus, o mal voltará vencido para o mundo tenebroso no qual queria tudo devorar,
mas o justo acenderá à glória do Senhor.

SALMO 109
REI E SACERDOTE PARA SEMPRE.

Estes poucos versículos surpreendentes tornaram-se, na tradição judaica e cristã, o salmo messiânico por
excelência. Foi tão utilizado e adaptado no decorrer dos séculos que é difícil restituir perfeitamente seu texto original.
Em sua forma mais antiga, este canto nos vem certamente dos primeiros tempos da monarquia. Seu lugar era, como o
Salmo 2, na liturgia para a entronização do rei. Enquanto se consagra o chefe do povo pela unção, fazendo-o “Ungido”
de Deus (em hebraico “Messias”, em grego, “Cristo”) – um duplo oráculo divino proclama a glória do monarca (v.1) e
sua função de mediador que lhe confere um sacerdócio à parte (v.4). Já se celebram de antemão suas vitórias sobre os
turbulentos pequenos povos vizinhos.
Em seguida este salmo foi modificado, talvez por várias vezes: o canto não se dirige mais aos reis que
passam, mas ao futuro Messias que virá no fim dos tempos terrestres e restabelecerá todas as coisas em nome de
29

Deus. Ele será de estirpe real (cf. 2Sam 7,16), chamado a julgar as nações e a reinar sobre o mundo inteiro. Não se
sentará entre os príncipes dos povos que recebem seu poder dos homens, pois o próprio Deus o investirá rei e
sacerdote eterno; assim o exprime a comparação com o misterioso Melquisedec, sacerdote e rei de Salém, cujas
origens terrestres não são mencionadas por ninguém (Gên 14,18).
Jesus, que se diz Cristo, isto é, Messias e Filho de Deus, realiza a promessa deste salmo, como ele próprio
sugere aos Fariseus (Mt 22,41-45; 26,64); os apóstolos se inspiram neste texto para proclamar a glória do Cristo
ressuscitado, Senhor do Universo (Mc 16,19; At 2,33-35; Rom 8,34; Ef 1,20; Col 3,1; Pe 3,22; 1Cor 15,25-28; Heb
10,12-13). O autor da Epístola aos Hebreus nela encontra a prova de que Cristo é superior aos sacerdotes do Antigo
Testamento, só ele salvador dos homens (Heb 7). Este salmo acompanha também o progresso das ideias messiânicas.
Velhos acentos guerreiros e sonho de conquista torna-se a aclamação jubilosa e pacífica das últimas vitórias de Deus e
de seu Messias.

v.1 – “Senhor” é o título real (2Sam 9,11; 1Rs 1,13).

v.7 – “Beberá da torrente” – gesto misterioso que pode evocar um rito da fonte real onde se praticava a coroação, ou o
gesto do guerreiro perseguindo os inimigos, ou uma série de provas das quais o rei triunfará, ou ainda os favores de
que Deus o cumulará.

SALMO 110
DEUS SE LEMBRA DE SUA ALIANÇA PARA SEMPRE.

Nesse salmo alfabético, um sábio quer propor, em algumas palavras, o essencial da religião de Israel; o
Senhor libertou seu povo para concluir com ele uma aliança e dar-lhe a conhecer sua vontade. O autor contempla a
“justiça” divina (v.3), isto é, tudo que o Senhor realizou em favor dos seus, as maravilhas que se renovam de algum
modo quando a liturgia faz sua memória (v.4); o milagre do maná e das codornizes (v.5), o dom da terra prometida (v.6),
a estabilidade das leis do mundo e da vida moral (v.7). Aos sábios que se entregam a esta meditação e observam a Lei,
é dado compreender quem é Deus; santo e temível, clemente e terno, a fim de lhe dar graças.

SALMO 111
FELIZ O HOMEM QUE TEME A DEUS!

A quem observa fielmente a Lei e se preocupa com o próximo são asseguradas prosperidade, descendência e
fama; tal era a convicção dos antigos. Nestes termos ainda, um sábio faz aqui o elogio do justo; no entanto, ele já
exprime outro sentimento religioso mais místico. De fato, aplicando aos justos as qualidades que o salmo precedente
atribui a Deus, ele que mostrar que à força de colocar seu prazer na vontade do Senhor, o justo acaba por se
assemelhar a ele. A Lei não é pois, um juízo imposto de fora, mas uma força que transforma o coração; obedecer é
deixar-se invadir pelos sentimentos de Deus; a piedade, a ternura e a justiça. Haveria outra fonte de felicidade?

SALMO 112
A GLÓRIA E A BONDADE DE DEUS!

Surpreendente contraste dos louvores de Israel: a aclamação da glória de todo-poderoso atinge seu cume,
então cresce mais a certeza de que Deus está perto dos humilhados; sua ternura é pelos que os poderosos da terra
desprezam. O Deus de justiça inverte as situações de estabelecidas, o cântico de Ana (cf. 1Sam 2,4-8) e o Magnificat
de Maria (Lc 1, 46-55) o atestam com a mesma veemência. Celebrando a salvação do pobre humilhado e da mulher
abandonada, Israel conserva a viva esperança de uma renovação maravilhosa dos tempos messiânicos (cf. Sls 75 e 86;
Is 49,21; 54,1-8).

SALMO 113 A
QUANDO ISRAEL SAIU DO EGITO.

Israel pertence de tal modo a Deus que ele é como seu santuário e seu domínio (v.2). Num tom épico e triunfal,
o povo sublinha o tempo extraordinário em que Deus lhe fixou o destino; é a aventura de sua libertação. Quando o
Senhor passa com o seu povo, o mar e o rio fogem (Ex 14,15-31; Jos 3,7-17), o Sinai troveja e fumega (Ex 19,16-18); a
fonte brota nas rochas desérticas (Ex 17,1-7). Essas lembranças do Êxodo são como um prelúdio do abalo do universo
anunciando a vinda de Deus no fim das épocas terrestres. Como Israel, a Igreja medita e celebra constantemente a
hora privilegiada de suas origens: a Páscoa de Cristo que abre para a humanidade um destino de salvação.
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v.1 – é bárbaro um povo cuja língua é desconhecida.

SALMO 113 B
NOS CÉUS ESTÁ O NOSSO DEUS.

Provavelmente, no decorrer de uma celebração da Aliança, coro e solistas, alternadamente, clamam sua
confiança no Senhor. Desprezando os deuses sem valor, venerados pelos pagãos, a comunidade professa seu amor ao
único verdadeiro Deus, do qual deseja receber a prosperidade.
As fórmulas são breves e bem cunhadas, seu ritmo arrasta; a sátira contra os ídolos têm o sabor de uma
caricatura popular. Esta oração simples está a serviço de um pensamento religioso e exigente e desabrocha em louvor.
Depois do exílio era preciso um credo assim bem claro para a comunidade de Jerusalém e para as da dispersão que se
achavam todas ao lado de uma civilização pagã pronta a acolher as inumeráveis divindades. Não temos cada um de
nós que fazer a opção entre os ídolos à medida de nossos gostos e desejos e o verdadeiro Deus?

v.9 – Israel, Aarão e os tementes a Deus, isto é, leigos, sacerdotes e prosélitos, numa palavra é o povo todo que é
exortado a confiar em Deus.

SALMO 114-115
TOMANDO O CÁLICE, ELE DEU GRAÇAS (Mt 26,27)

São muitos os sofrimentos dos homens, muitas também as libertações de Deus. O salmo se adapta a
situações diversas; cada fiel sabe os perigos mortais dos quais o Senhor o livrou para conduzi-lo à alegria de sua
presença. Na comunidade que reza, todos podem dar graças. Para agradecer a divindade, costumava-se, no Antigo
Oriente, derramar uma taça, a taça da salvação; os judeus praticavam provavelmente um rito semelhante no decorrer
de um sacrifício de comunhão (Lev 7,11s).
Pela ação de graças, Israel atesta publicamente que Deus o salvou; é a expressão mais elevada de sua
religião como da religião cristã. Tal foi o sentimento de Jesus Cristo recitando este salmo com os seus, após haver
instituído a Eucaristia. Que outro homem poderia contar mais com Deus, até na própria morte? Por se ter tornado
oração de Cristo na noite em que foi entregue, este salmo anuncia agora uma esperança de vida e alegria nas
dimensões da eternidade.

SALMO 116
FORTE É O SEU AMOR POR NÓS.

Amor e verdade, ou ainda; misericórdia e fidelidade, estas palavras voltam constantemente no saltério, pois é
assim que Israel conhece a Deus. E este pequeno salmo preludia a um louvor universal do povo judeu, a misericórdia
de Deus se estenderá, por Cristo, a todos os homens; o louvor deve ser unânime (Rom 15,11).

SALMO 117
BENDITO SEJA O QUE VEM EM NOME DO SENHOR!

Enquanto a procissão dos peregrinos sobe para Jerusalém para a festa dos Tabernáculos (vv. 15-27; cf. Lev
23,39-44), o clero e o povo dialogam, ao ritmo das etapas do percurso; o cortejo se movimenta com um refrão
conhecido (vv. 1-4); e avança cantando o hino de ação de graças (5-8); ele chega às portas do templo reconstruído
(v.19) e tornado sinal da renovação de Israel à volta do exílio (22-24); os sacerdotes respondem às aclamações do povo
abençoando-o (25-27); finalmente, ramos em mão, a procissão penetra no santuário; ilumina-se o átrio; a liturgia
termina na ação de graças mais solene (28-29). É toda a história de Israel em seu conjunto, o passado misturado ao
presente, que estes cânticos de agradecimento evocam. Constantemente provado, humilhado, depois libertado, Israel
descobre nesta própria existência sua vocação de povo-testemunha de Deus entre as nações, de pedra angular do
muno (22). Jesus a fez sua (Mt 21,42) e os apóstolos o confirmam em suas pregações (At 4,11; 1Pe 2,4-7); para eles
este salmo exprime de antemão o mistério do Cristo rejeitado, depois exaltado, pedra angular do novo povo de Deus
(1Cor 3,11; Ef 2,20).
Este canto de festa tornou-se logo muito popular; no dia de Ramos a multidão canta espontaneamente para
saudar em Jesus o enviado que Deus prometeu (v.26; cf. Mt 21,9...); encontramos novamente estas aclamações no
“Sanctus” da Missa. Em todas as liturgias cristãs este salmo se tornou o cântico da Páscoa.
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SALMO 118
AS LADAINHAS DA LEI.

Por sua amplidão e seu conteúdo, este salmo revela bem o lugar que a Torá ou a Lei ocupava na vida pública
e privada de Israel, o povo de Deus. Vinte e duas estrofes e 16 versos, das quais cada uma corresponde a uma letra do
alfabeto hebraico, repetida no início de cada grupo de dois versos, compõem este monumento literário. Cada estrofe
constitui uma unidade, mas sem nexo estrito com a seguinte ou precedente. O conjunto representa uma meditação
libre, ora queixosa, ora alegre, ora serena, ora ardente, uma reflexão e uma oração em que o autor, um sábio e um
místico, inspirado nos profetas e no Deuteronômio, dialoga com Deus e exprime seus sentimentos profundos; amor da
verdadeira sabedoria, apego e fidelidade à palavra de Deus apesar das fraquezas e obstáculos, desejo de melhor
conhecer e viver a verdade, alegria de se expandir seguindo a vontade de Deus manifestada na Lei.
Em cada versículo volta a palavra “Lei” ou alguns termos equivalente – encontramos oito – de nunca jurídica
(Testemunho, preceito, mandamento, vontade) ou de tom mais religioso (promessa, palavra, julgamento, fé) estas
palavras nos introduzem no âmago do salmo, pois significam menos um conjunto de regras obscuras do que a palavra
de Deus que ora ordena e julga, ora revela e promete. É o salmo da intimidade espiritual. Meditando a Lei o crente
contempla, sobretudo, a face de Deus e se deixa assim transformar até o mais profundo de seu ser; tal observância
torna-se liberdade; assim compreendida, a Lei nos anuncia Jesus Cristo, revelação viva de Deus, dada aos homens
para os conduzir ao Pai. “Sou o caminho, a verdade, a vida” (Jo 14,6).

CÂNTICOS DE PEREGRINAÇÃO

O homem nasceu peregrino, em busca de um absoluto, a caminho para Deus. Avançamos por etapas, das
dificuldades da vida às certezas da esperança, da dispersão das preocupações ao alegre encontro de Deus, da
diversão cotidiana ao recolhimento interior. É por patamares sucessivos que o místico avança no “castelo da alma”, por
degraus que o santo tenta subir a “escada da perfeição”. Os “Cânticos graduais” são a oração de nosso caminho de
homens.
Este grupo de cânticos (Sl 119-133) constituía provavelmente uma espécie de manual a uso dos peregrinos;
visara inspirar-lhes os sentimentos e a oração que deviam animá-los ao subirem à Cidade Santa e durante os ritos que
marcavam a peregrinação. Estes salmos se caracterizam quase todos pelo ritmo “gradual” que consiste em retomar em
um novo verso uma expressão do precedente.

SALMO 119
AI DE MIM PORQUE HABITO AO LONGE!

Pouco à vontade num meio hostil, frequentemente detestado e caluniado, porque sua fé e sua lei o colocam à
parte, tal é o judeu piedoso estabelecido longe da Palestina; ele tem às vezes a impressão de viver com as populações
selvagens do Cáucaso e do deserto sírio (v.5 – Mosec e Cedar); compreende-se seu desejo de se evadir, ainda que por
um instante, para rever Jerusalém, a cidade de seu Deus. O cristão conserva viva esta nostalgia de estar junto do
Senhor (cf. 2Cor 5).

SALMO 120
O SENHOR É TEU GUARDA.

O relevo da Palestina é acidentado e o trajeto comporta coisas desagradáveis; pedras, calor e noites ao
relento; mas o peregrino não desfalece; o Senhor protege cada um dos seus. Uma oração para o cristão em tempo de
incerteza.

SALMO 121
VAMOS À CASA DO SENHOR.

Os peregrinos chegam à vista de Jerusalém e os rostos se iluminam de alegria. Fazem uma parada para
admirar a Cidade Santa restaurada por Neemias; as lembranças cantam em seus corações a da reunião das tribos na
Tenda de reunião (Num 2,2), e da época feliz em que Davi e Salomão reinavam em sua capital. Estas lhes aparece
como símbolo de unidade e de paz – “shalom” significa paz. Em seus votos de felicidade, eles já sonham com a reunião
dos tempos futuros (cf. Is 33,20; Zac 9,9s), Um dia São Paulo falará de Cristo presente em sua Igreja para restabelecer
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os laços da família humana (Ef 2,19-22) e o vidente de Patmos celebrará a unidade definitivamente recuperada na
maravilhosa descrição de uma Jerusalém celeste (Ap 21).

SALMO 122
OS OLHOS ERGUIDOS PARA O SENHOR.

Depois da volta do exílio, Israel conhece humilhações prolongadas e duras; aborrecimentos dos vizinhos, da
administração persa e mais tarde, a perseguição. Os peregrinos não sentem a necessidade de receitar longamente a
lista de seus males, são conhecias demais. A oração se exprime numa simples atitude; olhos humildes e
obstinadamente erguidos para o Senhor esperam um sinal de esperança. Homens poderiam ser mais verdadeiros
diante do Senhor?

SALMO 123
SE DEUS NÃO ESTIVESSE CONOSCO.

É o grito de reconhecimento do povo eleito que Deus salva porque fez sua aliança com ele.
Três imagens clássicas: a fera, o touro, o passarinho preso, evocam as provações sofridas por Israel, o perigo
repentino em que cada um pode achar-se.

SALMO 124
FIRME COMO A MONTANHA DE SIÃO.

Cercada de montanhas e construída sobre uma colina escarpada, Jerusalém parece inexpugnável; aos olhos
do peregrino ela se ergue como símbolo da segurança do crente. Apesar das ameaças e contra todas as aparências,
Deus é a única força certa de uma existência humana.

SALMO 125
OS QUE SEMEIAM NAS LÁGRIMAS.

A comunidade judia trabalha penosamente para se reinstalar. Mas a alegria enche os corações; ressoam ainda
a alegria e a esperança das caravanas que voltam do exílio e toda peregrinação se realiza como um novo êxodo (1-3;
cf. Is 48,21) um retorno do exílio. Ela é também fé num futuro mais maravilhoso ainda, a reunião de todos ao lado do
Messias. Esta felicidade se prepara no sofrimento do presente como a messe germina do grão semeado a terra onde
vai apodrecer.

SALMO 126
SE O SENHOR NÃO CONSTRÓI A CASA.

Sem Deus os empreendimentos humanos dirigem-se ao fracasso; para que agitar-se demais? Sua providência
nos cumula (Mt 6,25-34; Jo 15,5). Tal é o ensinamento constante do Antigo e do Novo Testamento. Hoje sabemos
melhor que leis naturais seguem um curso determinado que se deve aproveitar na invenção, na técnica, nas ciências
humanas; mas com que sucessos sonhamos? E se nossos trabalhos sem fim viessem a nos tirar o tempo e o gosto das
verdadeiras alegrias, por exemplo, o do pão partilhado e da casa fraterna?

SALMO 127
COMO MUDAS DE OLIVEIRA.

Uma casa próspera, tal é a felicidade que Deus reserva ao justo; assim pensavam os sábios de Israel (Prov
3,33). Cedo se compreenderá que a recompensa de Deus é mais misteriosa. Mas a alegria e a intimidade do lar,
delicadamente evocada no salmo ou a reunião de todos numa Jerusalém irradiante de paz, continuam a ser as imagens
mais sugestivas com que Deus cumulará os salvos.
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SALMO 128
SOBRE MINHAS COSTAS TRABALHARAM.

Desde a escravidão do Egito, o povo eleito sofre a opressão (1-2), mas o Senhor sempre o livrou de seus
inimigos. O poeta trata seu tema utilizando saborosas imagens rurais. Deixa-nos uma oração de recurso a Deus, não de
resignação, quando nos obceca a lembrança do temor ou da angústia demasiada.

SALMO 129
DOS PROFUNDOS ABISMOS CLAMO A TI.

Oração de sofrimento e hino de esperança, eis aqui provavelmente o salmo mais cantado. Nenhum outro
compreendeu tão bem o homem no abismo de seu pecado; na inquebrantável força de seus espera. Nenhum outro
revela tão maravilhosamente o mistério de Deus; para além de tudo ele é aquele que perdoa, reconcilia e resgata
mesmo os que o abandonam. Que audácia também da parte do crente pecador! Ele não pode contentar-se com o
temor, mas reclama a graça, a palavra viva, a luz. Este cântico... no paroxismo da dor sugere, como uma autora, a
esperança.

SALMO 130
COMO UMA CRIANÇA NO SEIO MATERNO.

Certamente os profetas ousaram afirmar que Deus era como uma mãe para o seu povo (Os 11,4; Is 62,12-13).
Mas eis aqui um homem que não se furtou à experiência da vida; ele abre o fundo de seu coração: uma alma de criança
diante de Deus. Tanta frescura e simplicidade nos comovem e certamente é o salmo mais emocionante e mais
evangélico, gostaríamos de acrescentar. Um crente já descobriu o caminha da infância espiritual. “Se não tiverdes uma
alma de criança não entrareis no reino dos céus” dirá o Cristo (Mt 18,3).

SALMO 131
POR CAUSA DE DAVI, TEU SERVIDOR.

Reunidos para a procissão, os peregrinos cantam a glória de Sião, a casa de Deus e a residência de seu
Messias, isto é, do rei descendente de Davi, o consagrado como ele, pelo óleo santo. Provavelmente, festeja-se o
aniversário da entrada da Arca da Aliança em Jerusalém no tempo do rei Davi (cf. 2Sam 6,1; 1Cr 13,16). Faz-se reviver
o passado, as etapas da Arca, sua entrada em Jerusalém onde Deus se estabelece pelo culto e a realeza. A ocasião é
propicia para lembrar a Deus o compromisso que fez em favor de seu povo: Davi jurara construir uma morada para
abrigar a arca, sinal da presença divina; foi o Senhor que lhe prometeu assegurar sua linhagem no trono real (2Sam 7;
1Cr 17) em Jerusalém mesmo onde o rei projetava construir a residência de Deus. Em cada novo reinado nasce nova
esperança, pois cada descendente de Davi é “Ungido”, isto é, em hebraico “Messias”; “Cristo” em grego. Quando a
ruína da monarquia se tornou flagrante, a esperança continuou mais intensa. Todo Israel espera um último descendente
de Davi, um verdadeiro Messias que restabelecerá o reinado de Deus o seu culto para sempre. É o tempo da glória de
Deus e da salvação, será o advento de Jesus Cristo, filho de Davi e que Lucas (1,69) nos apresenta citando o v.17
deste salmo.

v.6 – “Dela”, isto é, da Arca, o escabelo de Deus, o sinal de sua presença. Efrata é o distrito em nasceu Davi, e os
“campos do bosque” fazem parte dele.

v.17 – o “chifre” significa o poder e a “lâmpada” simboliza a permanência da dinastia de Davi.

SALMO 132
HABITAM JUNTOS OS IRMÃOS.

O óleo perfumado da unção, o orvalho benfazejo: estas imagens falam, por si mesmas, para um palestinense;
elas evocam para o poeta o encanto de uma comunidade reunida em torno dos sacerdotes e dos Levitas na Cidade
Santa por ocasião da peregrinação. A cidade santa (v.3), o sacerdócio (v.2), a comunhão dos irmãos, tudo é novidade
de graça nesse momento.
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SALMO 133
DEUS VOS ABENÇOE!

Enquanto os peregrinos deixam o Templo e convidam os sacerdotes a continuarem ali durante a noite como
permanentes do louvor, estes lhes dão a última bênção que encerra o saltério do peregrino.
“Jesus foi à montanha para rezar e passou toda a noite em oração” (Lc 6,12). “Orai sem cessar, em todas as
circunstâncias rendei graças” (1Tes 5,17-18); desde sua primeira carta, Paulo faz esta recomendação aos cristãos.

SALMO 134
O SENHOR É MAIOR QUE OS DEUSES TODOS.

Composto de fragmentos tirados de diversos salmos (112; 114; 133; 135), este hino canta o verdadeiro Deus;
aclama-se também aquele que tem nas mãos todo o universo, glorifica-se aquele que escolheu Israel e o dirigiu para
seu destino desde a libertação do Egito até a instalação em Canaã. Todo o povo, sacerdotes, Levitas, fiéis e tementes a
Deus (vs. 19 e 20) é convidado a este louvor que celebra ao mesmo tempo o criador dos mundos e o redentor de Israel.
Diante desta fé tão sólida, toda menção dos falsos deuses se torna caricatura. Será que nossos hinos a Deus são
bastante verdadeiros para lançar o descrédito sobre todos os nossos ídolos que criamos sem cessar?

SALMO 135
POIS ETERNO É SEU AMOR!

Para Israel este salmo é o “grande hallel”, o grande louvor. Entusiasta, a multidão aplaude a proclamação das
graças de Deus. Anuncia-se uma maravilha depois da outra, seu encadeamento atesta um mesmo amor sem fim de
Deus pelos homens, de um grande projeto de salvação que se desenrola das origens ao fim do mundo.
Nesta lista prodigiosa das bondades de Deus, há três momentos, nunca separados em Israel. A primeira
grande obra permanece a criação e a vida do mundo (5-9); vem depois das libertações de Deus em favor de Israel:
saída do Egito (10-12) e passagem do Mar Vermelho (13-15), marcha e vitórias no deserto (16-2), conquista da Terra
prometida (21-24). Finalmente, como esquecer a solicitude de Deus por todo ser vivo, a graça do pão cotidiano (v.25)?
Enumerando esta lista das graças, Israel canta o amor de Deus que mantém hoje a esperança de uma
salvação que o cumulará de plenitude.
Como não se tornaria este salmo um canto privilegiado da Igreja para a noite de Páscoa? Por sua morte e sua
ressurreição, Cristo faz surgir um mundo novo, os homens são arrancados à escravidão do pecado, avançam em sua
peregrinação terrestre para se tornarem o povo reunido em torno de Deus na nova Terra Prometida, o Reino dos céus.
Com os acentos do grande hallel, o cristão canta a Páscoa do mundo.

SALMO 136
O CANTO DOS EXILADOS.

Nesta obra prima de poesia, a emoção nos ganha desde o primeiro versículo. Imaginemos o quadro em que foi
cantado pela primeira vez este salmo. Repatriados do exílio, alguns levitas estão reunidos para uma liturgia de
penitência. Eles não podem apagar a lembrança das humilhações sofridas às margens do Eufrates; suprema tristeza,
era-lhes necessário calar os cânticos que amavam, pois cantá-los em terra pagã para o prazer dos idólatras teria sido
profaná-los. Que veemência agora para proclamarem o seu amor a Jerusalém. Seu canto termina numa explosão de
cólera vingadora – de acordo com os costumes da época, mas que a nós parece excessivamente cruel. De fato, como
os acontecimentos já estão distante, eles adquirem antes valor de símbolo; fala-se de Edom mas pensa-se em todas as
forças unidas para o extermínio do povo de Deus e dos justo; cita-se Babilônia, mas evoca-se a irreligião mais odiosa
que o Apocalipse descreverá sob os traços de uma monstruosa “Babilônia, a grande”, Mãe da Blasfêmia (Ap 17,5).
Jerusalém de um lado, Babilônia de outro: já aparece o tema das duas cidades posto em relevo pelo
Apocalipse (11,2-8; 18,2; 19,2; 21,2s); ele marcará o pensamento cristão do ocidente, sobretudo depois de Santo
Agostinho: “Dois amores construíram duas cidades”. Não é antes o afrontamento da fé e da recusa no segredo de cada
vida?
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ALGUNS SALMOS ATRIBUÍDOS AO REI DAVI

SALMO 137
O SENHOR TERÁ FEITO TUDO EM MEU FAVOR.

O crente, o povo de Israel conhece por experiência o Deus que salva o homem de sua angústia. Ele não quer
guardar só para si esta convicção, mas partilhá-la com todos os povos, todos os homens. Uma fé profunda num plano
universal do Senhor ilumina esta bela ação de graças.

SALMO 138
SENHOR, TU ME SONDAS E ME CONHECES.

Um sábio medita sobre o mistério de Deus e de nossa vida. Seu poema é escrito em homenagem daquele que
tudo sabe. Faz-nos descobrir num instante as profundezas de nosso ser. Eis o coração humano transparente ao olhar
de Deus; diante do Eterno estão a nu os movimentos mais secretos, mais ignorados de nossa alma, nosso passado
esquecido, nosso presente complexo, nosso futuro indeciso, nada tem de oculto para Ele. Sentir sobre sai mão de Deus
(Jer 15,7; Jó 23,24) provocava a interrogação inquieta e dolorosa de Jó (7,17-30). Aqui esta consciência de uma ação
divina torna-se serenidade e abandono. O crente já não pede a Deus que afaste o seu olhar, mas que o conduza no
caminha da fidelidade. Despertando para o mistério profundo de si mesmo, o homem desperta para Deus, aquele que
julgava dever procurar, já está presente como sua fonte de vida. Os místicos do Oriente e do Ocidente vivem dessa
admiração: Deus mais íntimo a meu ser do que eu mesmo o sou (v.24). O caminho da eternidade é primeiramente o da
fidelidade à lei dada por Deus aos antigos; este caminho de outrora e de sempre tornar-se-á para as gerações ulteriores
o de uma vida sem fim cumulada da presença de Deus.

SALMO 139
SEI QUE DEUS FARÁ JUSTIÇA AOS POBRES.

Mais uma vez ouvimos a oração do justo infeliz; é um perseguido, vítima dos maus, dos hipócritas, dos
caluniadores. Ele invoca a vingança de Deus sobre os inimigos, mas no que se refere a ele, confia em Deus. A
condição do pobre e a dureza dos maus se exprimem em imagens muitas vezes utilizadas. Nunca se pode escapar a
esta oposição que a oração bíblica coloca entre a pobreza e a violência, a humildade e a arrogância, a simplicidade e a
mentira. Retomar esta oração é carregar o sofrimento dos homens, tornar-se pobre.

SALMO 140
NÃO INCLINES O MEU CORAÇÃO A FALAR O MAL.

Um mundo de suficiência e de facilidade exerce sua pressão e sua sedução; o crente receia sua cilada. Como
resistir? Ele procura a força na oração: “Não nos deixeis cair em tentação” (Mt 6,13). “Vigiai e orai para não cairdes em
tentação” é a recomendação de Jesus a seus discípulos (Mt 26,41).

v.5 – A unção de óleo perfumado era um gesto da acolhida e de hospitalidade; o crente não quer pois partilhar a
sociedade dos ímpios.

SALMO 141
CLAMO A TI, SENHOR.

Quer se trate de Davi (cf. 1Sam 22,10) ou de um desconhecido, este personagem perseguido que todo mundo
abandona na hora da desgraça vive a agonia e a paixão de muitos homens. Por trás dele transparece a face de Cristo
isolado e sofrendo sem protestar.

SALMO 142
VIVENTE ALGUM É JUSTIFICADO DIANTE DE TI.

Ao longo do saltério, entre o louvor e a alegria, voltava a queixa do pobre que espera tudo de Deus. Eis a
última premente do infeliz que não pode desesperar de Deus, de seu amor e de sua justiça. O verdadeiro Israel, a
comunidade dos pobres do Senhor o aprendeu até no sofrimento. Ninguém merece ser libertado do mal, nem mesmo
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aquele que observa a Lei, dirá São Paulo (Rom 3,20ss); só se pode contar com o amor fiel do Senhor pelos homens.
Aquele que reza verdadeiramente conhecerá a libertação de Deus.

SALMO 143
FELIZ DO POVO CUJO DEUS É O SENHOR.

Dois poemas de ritmo e de tom bem diferentes estão reunidos neste salmo. O primeiro convém a uma liturgia
real e toma de empréstimo várias passagens do salmo 17, o cântico das vitórias do rei. O segundo se apresenta como
uma bela pintura para ilustrar uma era de prosperidade. No momento da composição final do salmo, a monarquia já
desaparecera e os poemas se ajuntam como hino de expectativa messiânica. Um novo Davi virá, verdadeiro Messias,
sobre o qual repousará a bênção de Deus em proveito de toda a comunidade; ele deve instaurar uma era de felicidade
e de paz. As antigas imagens não são mais que pontos de partida, eles dão colorido e vida a esta oração de espera, o
essencial é conservar a esperança de uma humanidade enfim cumulada da paz de Deus.

SALMO 144
O SENHOR É AMOR EM TODAS AS SUAS OBRAS.

Os judeus recitam de bom grado este hino ao Deus-rei. Sua inspiração tem pouca originalidade, pois o artista encadeia
seus versos em ordem alfabética e toma empréstimo várias passagens a outros salmos. Os cantores de Israel não
temiam haurir no tesouro comum do canto sagrado para celebrarem, muitas vezes com as mesmas palavras e as
mesmas frases, o louvor divino. Mas a repetição ou a aclamação de certos termos permitem também traduzir o ardor de
uma convicção, é o caso aqui. Reinado, poder, glória, nome, obra, proezas, justiça, fidelidade, bondade, ternura, ,amor,
verdade... com estas palavras o salmista exalta primeiramente o Deus da Aliança, convidando todas as gerações a
cantar o reino eterno do Senhor; proclama depois sua benevolência que se manifesta no sustento, na subsistência, na
salvação concedidas de algum modo a todos que o invocam. Assim no mundo, na história e na vida, o cantor reconhece
a presença de Deus.

ÚLTIMOS SALMOS DE LOUVOR (Hallel)

Depois de todas as orações e louvores do saltério, eis o último movimento, o final suntuoso. Todos os
instrumentos da criação, todas as vozes dos homens entram neste grande coro, nesta sinfonia que não pode se acabar:
já é o antegozo e o prelúdio das aclamações eternas.

SALMO 145
FELIZ DO QUE CONFIA NO SENHOR.

A longa série dos infelizes e dos perseguidos caminhou através de todo o saltério, retomando continuamente
suas súplicas. Desta vez, sua oração é hino de felicidade e de certeza. Como é precário o auxílio dos grandes! Só Deus
livra verdadeiramente de toda angústia. O hino canta o que prometem os profetas (Is 29,18; 49,9; 61,1) e cuja
realização Cristo proclama (Lc 4,16-21). “Os cegos veem, os coxos andam, os mortos ressuscitam, a boa nova é
anunciada aos pobres” (Mt 11,5), eis o reino que vem; ele inaugura um tempo novo, o da justiça.

SALMO 146 E 147


LOUVA O TEU DEUS, JERUSALÉM!

Por três vezes clama-se o convite ao louvor, por três vezes aclama-se a Deus todo-poderoso. Imensa é sua
força manifestada no universo, sem medida sua benevolência para com seu povo; ele reconstrói Jerusalém, reconduz
os cativos (de Israel), revela sua Lei.
E, no entanto, o autor das maravilhas da natureza, o libertador do povo, é um Deus que se compraz com os
humildes. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos” (Ap 21,4); tal será a graça do Todo-poderoso na Jerusalém nova
(cf. Is 60 e 62).

SALMO 148
A SINFONIA DO UNIVERSO.

Os exilados voltaram, o Templo está restaurado, as muralhas reconstruídas. Deus restabeleceu o povo que ele
ama. – Que testemunho de sua glória! (13-13). A alegria invade todos os corações, alarga-se nas dimensões do mundo.
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Todo o universo e todas as criaturas da terra são convidadas ao louvor de Deus. Que canto poderoso! Quem poderia
furtar-se a seu apelo?

SALMO 149
GLÓRIA AO POVO DE DEUS.

A elite do povo judeu reconstruiu as muralhas de Jerusalém, com armas na mão (Ne 4,11); à perseguição de
Antíoco IV Epifânio ela opôs uma resistência feroz (1Mac e 2Mac).
Ela sabe que defende os direitos de Deus, o direito da adoração. Nas horas de grande coragem, o canto toma
acentos de vingança – Israel não é por acaso a espada de Deus quando avançam as forças da blasfêmia e da
impiedade? (cf. Zac 9,13-16). As imagens permanecem guerreiras; elas anunciam outras vitórias, as dos eleitos de
Deus sobre as forças do mal; o vidente do Apocalipse evocará também grandes batalhas no céu (Ap 11,14).

SALMO 150
O ALELUIA SEM FIM!

Treze vezes ressoa o aleluia; Louvai a Deus, louvai-o!... O Saltério só pode terminar pelos acentos mais ricos e
mais fortes. Sem fim respondem-se os ecos do amor da terra; eles preludiam ao hino celeste. Tudo se realiza na
imensidão da glória de Deus (cf. Ap 15,3-4; 19,4-8). “E todas as criaturas que estão no céu, na terra, debaixo da terra e
no mar, e tudo que contêm, eu as ouço clamar; Aquele que se assenta no trono do Cordeiro, o louvor, a honra, a glória
e o poder pelos séculos dos séculos!... Amém!” (Ap 5,13-14).

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