Você está na página 1de 5

O ser humano preguiçoso

Comunicar é fácil, quando a questão se reduz a colocar em conexão máquinas, a


estabelecer uma relação através das máquinas. Quando se quiser parar de comunicar, e
reencontrar a si mesmo, é fácil: coloca-se o fone no gancho e apaga-se a tela
Lucien Sfez*

Apresentadas como a oitava maravilha do mundo, as infovias


são apenas o cruzamento do telefone, do audiovisual e do
computador. É como aqueles brindes que nos oferecem nas lojas
-- ou os que imaginam, para o futuro, os técnicos das
telecomunicações. É sempre a mesma coisa: uma pilha de
telefones celulares, que se podem ligar à Internet em postos
fixos, vídeofones, telas em relevo, luvas táteis, computadores,
modems, bancos de dados, comerciantes, administradores e
técnicos. Essas pilhas de celulares também estão articuladas com
redes técnicas, sociais e profissionais.

O ser humano Neste mundo tão cheio, não há vazio, buraco negro, negação,
que se serve inversão. Tudo é plano e funciona na maneira silenciosa das
dessas
máquinas tem
conexões eletrônicas. Apenas uma campainha de vez em
metas de quando, e ainda assim pode ser suprimida. Comunicar é fácil
rentabilidade a quando a questão se reduz a colocar em conexão máquinas, a
curto prazo, estabelecer uma relação através das máquinas. Quando se quiser
pois, neste parar de comunicar e reencontrar a si mesmo, é fácil: coloca-se o
sistema, não há
longo prazo
fone no gancho e apaga-se a tela.

Tudo positivo, tudo certo

O ser humano que se serve dessas máquinas é livre e alegre.


Nunca pensa mal dos outros, nem de si próprio, pois está sempre
instalado na eficácia do momento comunicante. Ele tem metas
de rentabilidade a curto prazo, pois, neste sistema, não há longo
prazo. Produtividade, utilidade, gestão, tais são as palavras-
chaves do homo communicans com que sonham os tecnólogos e
os industriais da comunicação.

Produtividade, Sem dúvida este ser humano é indissociável das máquinas de


utilidade, comunicar. Ele vive de suas qualidades. Ele se reveste das suas
gestão, tais são
as palavras-
características. De certa forma, ele é servido da mesma forma
chaves do homo que serve a elas. Mas, não tem conhecimento deste sistema
communicans circular que o encerra e o comprime, pois ele se sente poderoso,
com que poderoso como as próprias máquinas, tão à vontade quanto elas.
sonham os
tecnólogos e os
Para ele, tudo é positivo, tudo está no lugar certo. É o mundo
industriais da sem o outro lado da tela. Não há preço a pagar. "Flatland" da
comunicação cibercultura , diz Douglas Coupland no romance Microserfs. 1

O significado da pane

Não há preço a pagar: fala-se de clã, de tribo, de comunidades.


Metáforas sem qualquer relação com a realidade da cibercultura:
para ter acesso ao clã é preciso fazer sacrifícios. E nesta lisa
flatland, sem preço a pagar e sem nada contra, o único temor
possível é a ausência das máquinas: a pane.

Entrevistado, em Berkeley, sobre comunicação, Martin Landau,


eminente pesquisador em ciência das comunicações me deu esta
resposta: "Você sabe por que o 747 é o avião mais confiável do
mundo? É porque seus quatro sistemas de comandos e de
regulagem -- um para cada motor -- são independentes uns dos
outros. E, além disso, o piloto dispõe de um sistema de
regulagem manual, independente daqueles quatro." 2 Estranha
resposta a uma pergunta sobre as teorias da comunicação. A
pane, na aviação, significa morte. Será que ela não tem o mesmo
sentido na comunicação? Morte da relação, morte do
posicionamento, morte da existência comunicativa para o homo
communicans que se define unicamente pela sua ligação
maquínica com outros humanos-máquinas?

Consolidando a cibercultura

Este ser É bom lembrar, para quem finge se espantar, o pânico de quem
humano é usa o computador quando ele não funciona, do telespectador
indissociável
das máquinas:
quando o aparelho não liga ou do usuário quando o telefone
vive de suas quebra. A falta se torna gritante -- e mesmo angustiante. Não
qualidades e saberíamos dizer de outra forma: essas máquinas fazem parte de
tem suas nós, ou melhor, nós fazemos parte dessas máquinas. A pane é
características. um sofrimento. O temor da pane, um pesadelo.
Ele é servido, da
mesma forma
que serve a elas Ela é a única contradição possível do sistema, o único mal
concebível. O temor da pane substituiu o medo do diabo no
apocalipse. 3 Concluindo, só a ameaça de pane dá ao sistema a
vida e a emoção de que ele é desprovido. Ë a última
oportunidade vital do sistema de comunicação. Northrop Frye,
em sua Anatomie de la critique, 4 mostra que o apocalipse faz
parte de um conjunto de textos que prioriza a unidade desejada
da Cidade, do ser humano e de Deus. De onde se conclui que,
assim como o medo do apocalipse existe para servir a crença, o
medo da pane existe para consolidar a cibercultura.

Tudo isso, porém, é desconhecido do ser humano completo e


positivo, sem as asperezas nem os sacrifícios da comunicação.
Ele acredita estar ganhando em todas as frentes. E não sabe que,
para ganhar, é preciso perder. E nem sabe o que perde.

Uma indolência sonolenta

Fala-se de Feitas para garantir produtividade e eficiência, as máquinas


metáforas sem acabam levando a conseqüências paradoxais: ao ser humano
qualquer
relação com a
preguiçoso e inútil. Um ser humano que não faz quase nada por
realidade: sem sua própria escolha. Que é socorrido ao menor de seus gestos.
preço a pagar, Quer ir ao escritório? Um carro auto-guiado está à sua
sem nada disposição, basta sonhar ao volante e esperar que o piloto-
contra, o único automático sinalize " ponto final".
temor possível é
a ausência das
máquinas: a Curiosamente, um antigo slogan de caminhoneiros, "Rodando
pane por você", vale para todos. Na continuidade desses
desenvolvimentos tecnológicos, o futuro do homo communicans
é a preguiça. Uma total e profunda preguiça da qual já podemos
ver as premissas em nossos comportamentos cotidianos.

Temos uma forte tendência em deixar para as máquinas a tarefa


de memorizar, de gravar, de falar por nós. Isto vai da agenda de
endereços com números de telefones e endereços eletrônicos até
a busca de bibliografias, textos, encontros de negócios, contas e
planejamento. Uma vez registrada, nossa voz -- ou melhor, uma
voz sintética -- responde por nós. Abrimos portas à distância e
usamos controle remoto com o maior descaso. Não falta muito
para que caiamos numa espécie de indolência sonolenta.

O sentimento da inutilidade

É bom lembrar o Indolência, aliás, que é cultivada pelo sentimento de grande


pânico de quem segurança que transmitem as máquinas de vigilância, de
usa o
computador
controle, de super-vigilância ao quadrado. A preguiça
quando ele dá acompanha a ausência de medo, o ser humano preguiçoso sente-
pau, do se cercado por todos os lados, bem acalentado, protegido. Não
telespectador precisa se preocupar com inimigos, dispositivos sofisticados
quando o velam por ele. Reconhecimento da voz e do olhar, impressão
aparelho não
liga ou do
digital, câmaras com código de acesso: não há porque temer a
usuário quando presença de intrusos.
o telefone
quebra
Sem ser obrigado a se defender a si próprio, o ser humano parece
inútil. Parece um bibelô a mais, colocado ali por acaso e que
poderia muito bem não existir... Na verdade, aquilo que as
máquinas fazem perfeitamente, ele faz de maneira canhestra, em
meio a hesitações e erros, como se estivesse imitando, e mal, um
modelo. Visto que, segundo uma idéia já antiga, o cérebro não
passa de um programa pobre de um computador onipotente, o
ser humano toma consciência da sua impotência, e se deixa
invadir pelo sentimento de sua inutilidade.

Sua própria memória, que se tornou preguiçosa, está cheia de


buracos, porosa, mas não toma cuidado com ela, pois o
dispositivo mnemônico está -- se é que se pode dizer assim -- em
boas mãos. Quanto ao que se refere à vida de todos os dias, sem
sua intervenção, as coisas andam melhor. Portanto, só resta
deixar rolar e... sonhar ou se divertir.

A sociedade da lentidão

Essas máquinas Na verdade, ao contrário do que se repete por aí como uma


fazem parte de evidência, o homo communicans do futuro não é o ser humano
nós -- ou
melhor, nós
apressado e estressado. E por que o seria? Seus erros serão
fazemos parte corrigidos pelas máquinas, assim como os de toda a sociedade,
dessas com seus defeitos mais visíveis, como a desigualdade, a pobreza,
máquinas. A a guerra e a morte. Tudo será curado pela tecnologia.
pane é um
sofrimento. O
temor da pane, Esta sociedade da comunicação total não é uma sociedade da
um pesadelo velocidade, mas da lentidão, do "nada fazer", da contemplação e
do prazer. Não se trata, evidentemente, da lentidão que prega
Pierre Sansot, 5 a lentidão de gozar o tempo que passa e provar
com prazer os frutos, o bom ar e os sonhos. É uma lentidão
necessária, envolvida pela euforia e a segurança, sem
imprevistos nem surpresas.

A prova da escravidão

Sonhar? Contemplar? Talvez seja para isso que ele é mais


capacitado. E, sem dúvida, será nesses sonhos que se forjarão
novas idéias... sobre máquinas de comunicação; que a invenção,
ou a inovação, colocarão para funcionar. Talvez seja esse o
trabalho real que o futuro da comunicação destina ao humano. O
resto -- engenharia e realização -- será responsabilidade das
máquinas.
Continuando Platão alertava os jovens filósofos contra a escrita e o livro, que
essas inovações substituem a memória viva por outra, morta, sob pretexto da
tecnológicas, o
futuro do homo
comodidade. Textos e livros que provocam a preguiça tornam os
communicans é leitores passivos. Conselhos e recomendações que parecem
a preguiça. Uma pertencer a um passado pré-histórico (o que não dariam os
total e profunda educadores para que as pessoas lessem!...). Mas, se o enunciado
preguiça da qual mudou de forma, não mudou de conteúdo. É sempre a relação de
já podemos ver
os contornos
suas obrigações com um mecanismo exterior que está sendo
visada. A preguiça, longe de ser o resultado de uma liberação do
trabalho que realizam as máquinas, seria, na ótica de Platão, a
prova de uma escravidão indigna do ser humano.

Traduzido por Maria Regina Pilla.

 
* Professor na Universidade de Paris I - Sorbonne.  [voltar]

1   Editado, em francês, por Jean-Claude Lattès, em 1996, e por


Christian Bourgeois, 1997.  [voltar]

2   Critique de la communication, ed. Seuil, 1988.  [voltar]

3   Ler, de Ted Byfield, "Le bogue, petite peur de l'an 2000", Le Monde
Diplomatique, agosto de 1999.  [voltar]

4   Edições Gallimard, 1969.  [voltar]

5   Ler, de Pierre Sansot, Du bon usage de la lenteur, ed. Payot, 1998.


[voltar]

Você também pode gostar