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DÉCIO FREITAS

HISTORIADOR

A crise da democracia

Mais ou menos 20 anos atrás, aconteceu que num domingo se achasse o autor deste artigo na cidade de
Amsterdã. Como fazia um belo dia, pôde flanar pelas ruas e pelos parques: um domingo pacato, como a
maioria dos domingos em todas as cidades. Sucedera, no entanto, uma coisa momentosa. Segunda-feira pela
manhã, a manchete de Le Monde era sobre eleições gerais realizadas aquele domingo na Holanda. Os social-
democratas, no poder por mais de quarto de século, haviam perdido as eleições. O mais notável era que o
autor não vira, em ponto algum da cidade, nada que remotamente indicasse a realização de eleições.
Desinteresse dos holandeses pelas eleições? Nada disso: segundo Le Monde, mais de 90% dos eleitores
compareceram às urnas. A eleição constituía um fato corriqueiro, destituído de qualquer dramaticidade.

O Estado ainda reina, mas quase


já não governa. Uma soberania ficta
substitui a soberania real
Não há notícia de que o cenário das eleições deste ano na Holanda tenha sido menos pacato. O que
houve de diferente foi uma altíssima taxa de abstenção. Como se sabe, em toda Europa, de eleição para
eleição, cresce a abstenção eleitoral. Nos EUA, mais antiga democracia moderna, metade do eleitorado se
abstém de votar para presidente. No Brasil não temos como saber qual a taxa real de abstenção, visto haver
um comparecimento compulsório decorrente da obrigatoriedade do voto. O voto é um direito do cidadão. Ora,
como se pode converter um direito em obrigação? Pode-se também indagar se esta visível apatia face às
próximas eleições gerais não traduz um desinteresse que será mascarado pela obrigatoriedade do voto.

Desinteresse pelas eleições significa, é óbvio, desinteresse pela política. Modernamente viu-se na
democracia política o meio de impor ao Estado governos que promovessem os interesses da maioria da
população. O Estado assumiu assim amplos poderes: regulava, protegia e promovia a economia do país;
controlava o comércio internacional; bancava a distribuição da renda mediante políticas sociais; mantinha
sistemas de previdência; determinava a moeda e o câmbio; sustentava a educação e patrocinava a cultura.
Encarnava a nação, chamando-se por isso Estado-nação e Estado soberano. O apaixonado interesse pela
política advinha da real possibilidade de mudar para melhor a vida da maioria das pessoas através da
democracia.

Esse Estado está sendo desconstruído e sofre de progressiva impotência. Seu poder efetivo e autônomo
para resolver aquelas questões mingua rapidamente em função de forças e interesses supranacionais mais e
mais dominantes. Um mercado global governa o governo nacional. O Estado passa a ser linha auxiliar do
mercado, através da imposição e cobrança de impostos, da organização e mobilização de forças militares, da
promoção dos interesses globais. O Estado ainda reina, mas quase já não governa. Uma soberania ficta
substitui a soberania real. E assim a política - conquista do poder do Estado - torna-se irrelevante. Para que
votar se afinal das contas é o mercado que tudo decide soberanamente? Afora a abstenção eleitoral,
escasseiam em todo o mundo lideranças políticas capazes.

Frente a esta gradual rendição do Estado ao assalto do mercado, tenta-se defender e promover os
interesses da maioria fora da órbita política ou estatal, através de organizações não-governamentais (ONGs).
Para muitos dos seus militantes, trata-se de alternativa a um Estado que na verdade não tinha apenas aquelas
apregoadas virtudes, mas igualmente graves taras, como propensão ao totalitarismo, à guerra, à destruição. As
ONGs expressam uma reciclada revivescência do ideal anarquista-libertário do século 20, que via no Estado a
fonte de todas as abominações. Não mais transformação social e igualdade de direitos via conquista do poder
estatal (a revolução em que o Estado devorava os revolucionários) ou a gestão do sistema pela representação
parlamentar (cada vez mais redundante), mas ação direta da sociedade civil. Este neo-anarquismo assenta
numa idealização ingênua da sociedade civil, que não seria suja e má como a sociedade política. Suposição
desmentida, entre outras coisas, pela proliferação de ONGs duvidosas, às vezes mafiosas, à margem das
ONGs sérias de inestimáveis serviços à coletividade. A realidade atesta também a superestimação da eficácia
transformadora deste neo-anarquismo. Lembram o auge do movimento antiglobalização que parecia
avassalador? Ganhou manchetes globais, mas hoje patina esmorecido, enquanto a besta-fera da globalização
prossegue, indene e pimpona, no exercício do seu ofício predatório. Veja-se o amargo fracasso da Rio+10 em
Johannesburgo.

Não é que sejam irrelevantes tais movimentos não-políticos. O problema consiste em que eles não
possuem capacidade e força para repelir as hordas predatórias. Temos de reinventar a política porque só o
Estado reúne as condições para uma resistência eficaz. Votar é preciso, não como obrigação
desenganadamente antidemocrática, mas como direito potencialmente eficaz para mudar as coisas em
benefício da maioria.

SÉRGIO DA COSTA FRANCO


PROCURADOR DE JUSTIÇA APOSENTADO E HISTORIADOR

Adesão inesperada

Embora tenha havido grandes patriotas entre os militares, como um Caxias, um Rondon ou um
Setembrino de Carvalho, a contribuição política das instituições castrenses ao Brasil poucas vezes foi
positiva. O grande serviço prestado pelo Exército ao país foi a substituição da monarquia pela república, ainda
assim com a contestação militante da Armada. O tenentismo caracterizou-se por um longo período de
agitações improfícuas e insubordinação mal dirigida. Depois disso, os sucessivos golpes “salvadores”
empreendidos por grupos militares só tiveram o efeito de retardar os progressos da democracia e de
estabelecer regimes autoritários e despóticos como foram a ditadura estado-novista e o hiper presidencialismo
de 1964-84. Costuma-se dizer que esses regimes tiveram efeito modernizante sobre as estruturas econômicas
e sociais do país. Mas a verdade é que essa modernização foi de superfície, epidérmica, alcançando apenas
limitados setores, sem alterar ou sequer reformar aspectos básicos da vida nacional. O sistema tributário
continuou anacrônico, com impostos cumulativos, exação fiscal exacerbada em detrimento da produção e do
consumo. Nada se fez para desviar o país do rodoviarismo que vicia e encarece a circulação. Embora se
multiplicassem unidades de ensino médio e superior, a qualidade da instrução sofreu danos irreparáveis e as
pretensas reformas só fizeram abastardar sobretudo o ensino médio. No plano das instituições políticas, o
poder discricionário dos presidentes militares dirigiu-se precipuamente para soluções casuístas que lhes
garantissem a tranqüilidade do mando. E só fizeram piorar e sufocar a estrutura partidária e o regime eleitoral.
Clama-se hoje, aqui e ali, por alterações legislativas de difícil equação, como é o caso da introdução do voto
distrital, puro ou misto; os “reformadores” que governavam através de atos institucionais arbitrários,
poderiam tê-lo adotado e não o fizeram.

A crédito dos governos militares de 1964 a 1984 resta afinal o ciclo de crescimento econômico acelerado
que mediou de 1967 a 1973 – seis anos de altas taxas de aumento do PIB, que assinalaram o tão falado
“milagre brasileiro”. Mas a verdade é que esse curto ciclo de crescimento deveu-se muito menos à visão de
planejadores milagrosos que à conjuntura internacional favorável, com crédito externo barato e ampla
valorização de nossos produtos agrícolas exportáveis. A época foi de expansão da economia mundial, não
apenas do Brasil.

E inflação sempre foi instrumento


de espoliação dos mais pobres,
modo hábil de depreciar os
valores do trabalho
Soam muito estranhas, por isso mesmo, as declarações do candidato presidenciável Luíz Inácio Lula da
Silva, no sentido de elogiar e valorizar o planejamento econômico dos governos militares, especialmente da
presidência do general Emílio Médici. E, mais ainda, quando menosprezou a capacidade de planificação dos
regimes democráticos, necessariamente limitados à renovação quadrienal dos mandatos. Realmente, em
quatro anos, os presidentes democraticamente eleitos não podem fixar metas estratégicas ambiciosas, mas
preferimos que assim seja, para não nos submetermos ao desgraçado continuísmo de Havana, de Pequim ou
de Pyongyang.
Mas, nessa inesperada adesão de Lula às glórias do “milagre brasileiro”, certamente concebida para
agradar possíveis eleitores de farda, esqueceu-se o líder petista de que todo o ciclo de presidências militares,
mesmo no período Médici, foi marcado por altas taxas de inflação. E inflação sempre foi instrumento de
espoliação dos mais pobres, modo hábil de depreciar os valores do trabalho.

Cabe aqui recapitular os índices oficiais de inflação de 1965 a 1984 (desprezando as frações, para não
embaraçar a exposição). O governo Castelo Branco conseguiu reduzir o alto índice de 87%, do ano de 1964,
para 38% em 1966. Até certo ponto uma boa “performance”. Mas nos três anos subseqüentes, apesar da
conjuntura econômica favorável, as taxas inflacionárias não baixaram de 20% ao ano, um número que hoje
consideraríamos insuportável. De 1970 a 1973, auge do “milagre brasileiro” e sob a batuta dos planejadores
de Médici, o índice mais baixo foi o de 15% que predominou em 1972 e 1973. Daí em diante, alterado o
quadro mundial em função da crise do petróleo, já o processo inflacionário começou a disparar, encerrando-se
o governo Geisel, em 1978, com 40%. Por seu turno, o general Figueiredo encerrou seu mandato legando-nos
uma inflação anual de 223% em 1984.

Mesmo as taxas inferiores a 16%, verificadas nos anos de 1972 e 1973, podem ser consideradas muito
altas, embora numa economia em bom ritmo de crescimento. E hoje que nos preocupamos com os 7% dos
últimos 12 meses, sobram-nos motivos para temer o recrudescimento de um processo que só fazia a alegria do
capital financeiro e da especulação parasitária.

Devia lembrar-se, o senhor Lula da Silva, de que já em 1979 se obrigava a desencadear vigorosas greves
de metalúrgicos na região do ABC paulista, para defender o poder aquisitivo dos salários corroídos pela
depreciação da moeda. Já em 1979 o sonho do “milagre” se esfumara, estávamos freados pela disparada dos
preços do petróleo, e só a contenção forçada dos protestos sociais e das liberdades da oposição política
assegurava uma falsa tranqüilidade.

É lamentável que a campanha eleitoral possa ter esse efeito de desinformar e deseducar as novas
gerações, realimentando-as com as balelas propaladas num execrável momento de passado.

VOLTAIRE SCHILLING
HISTORIADOR

O dólar e o voto

" – Palavra, Gregório, não carregaremos desaforos! Quero dizer que, se nos zangarmos, puxaremos a espada.

– Sim, porém, procura, enquanto viveres, puxares teu pescoço para fora do nó da forca."
Shakespeare – Romeu e Julieta, Ato I, Cena I

Em Nápoles, no final da guerra, em meio àquelas antigas vielas sórdidas – é Curzio Malaparte quem
relata – mães famintas se esgueiravam com seus filhos para ir alugá-los aos mouros. A cidade estava ocupada
por soldados marroquinos trazidos pelos aliados da África e que, pederastas quase todos, só gostavam de
meninos. Haviam um verdadeiro mercado de carnes vivas por lá, onde o povo, na falta de ter que defender a
bandeira nacional, desmoralizada pela derrota, tratou de salvar a própria pele (título da novela de Malaparte).
Desde o desembarque de Patton e Montgomery na Sicília em 1943 – ocasião em que o antigo país virou um
ferocíssimo campo de batalha entre os anglo-americanos e os nazistas em recuada – pouca coisa sobrara da
bela Itália. A miséria se democratizara. Os cineastas do neo-realismo, Rosselini, Visconti, De Sica, De Santis,
e outros, ainda tentaram extrair sentimentos de dignidade em meio àquele mar de ruínas e desespero, tendo
Anna Magnani como a musa dos esfarrapados e estropiados.

O país, politicamente, dividira-se entre os partisans comunistas, os guerrilheiros do PC que pegaram em


armas para lutar contra os alemães ocupantes e os grupos sobrantes do fascismo, e os moderados da
Democracia Cristã, renascida com o fim de Mussolini. Ainda conseguiram marchar juntos no referendo de 2
de junho de 1946, o que repudiou a monarquia, instaurando a república italiana, mas, em seguida, as relações
se deterioraram. Nas eleições para a formação da constituinte, a Democracia Cristã fez 35% dos votos
enquanto a esquerda atingiu 39,7%: divididos, porém, entre o Partido Socialista (com 20,7%) e o Partido
Comunista (com 19%). Todavia, um governo de conciliação liderado por Alcide De Gasperi, da DC, foi
levado adiante pelos menos até 1947.

De um lado, com a Democracia Cristã, estavam a Igreja e os filoamericanos, do outro, com os


esquerdistas, alinhavam-se os pró-soviéticos (situação de enfrentamento que foi satirizada na hilariante série
cinematográfica de Don Camilo e o Camarada Peppone, na qual um pároco do vilarejo de Bassa, interpretado
pelo cômico Fernandel, num momento impagável, mete-se em conspirações sem fim contra o prefeito
comunista local, representado por Gino Cervi, ao tempo em que fazem alianças secretas, o padre e o
comunista, para o bem-estar de todos, especialmente no que toca às coisas do amor – era a versão italiana da
Guerra Fria). Americanos e soviéticos, os aliados de ontem, rosnavam um para o outro. Stalin, de defensor da
liberdade, tornou-se o seu ogre. Não demorou para que a corrida nuclear se acelerasse. Na Itália, como em
boa parte do mundo, a aliança de centro-esquerda soçobrou. Atrás dos milhões de dólares do Plano Marshall,
anunciado em 5 de junho daquele ano de 1947, Alcide De Gasperi rompeu com a esquerda. Palmiro Togliatti,
o líder dos comunistas, que até ali fora o primeiro ministro da Justiça da república italiana (aliás,
extremamente tolerante, um pacificador nato), renunciou. Foi um pandemônio. Greves e tumultos cobriram a
Itália da Calábria à Lombardia. Entrementes, a constituição, democrática e antifascista, ficou pronta. Era, bem
ao gosto nacional, um monumento à confusão, mas como disse o jurista Piero Calamandrei, em certa ocasião:
“Quanto sangue, quanta dor para chegar até ela, jovens que caíram em combate, os enforcados, os torturados,
os mortos de fome nos campos de concentração na Rússia, na África, os mortos na estrada de Milão... os que
deram a vida pela liberdade.”

Vieram então as históricas eleições de 18 de abril de 1948, as primeiras sob a égide da nova constituição.
Um rumor cada vez mais audível circulou pela Itália inteira. Os americanos haviam avisado: se votarem na
esquerda nada de dólares. Esta ainda tentou compor-se no antigo modelo dos Frontes Populares dos anos 30.
Não adiantou. A Democracia Cristã arrasou, arrebanhando 48% das urnas. Alcançando folgadíssima maioria
no parlamento, orientou o país, fugindo dos extremismos, no rumo ao europeísmo sob hegemonia norte-
americana. Consta que, como cúmulo do pragmatismo, o próprio Togliatti teria – à voz pequena, escutando o
ronco dos famintos –, desestimulado o voto nos vermelhos pois sabia que a URSS, destroçada pela guerra,
jamais poderia mandar um centavo sequer para fazer a sua pátria “tirar o nó da forca”, erguendo-se dos
devastamentos de 1945. Sem outros impedimentos, o voto casou-se com o dólar, e a Itália voltou a rir de suas
boas comédias – deu-se então o Reino de Totó.

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