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Fundamentos de Psicologia (1897)1

Wilhelm Wundt

Tradução de José Antônio Damásio Abib


Carlos Eduardo Lopes2

Introdução

§ 1. O Problema3 da Psicologia

1. Há duas definições de psicologia que são as mais proeminentes na história desta


ciência. De acordo com uma delas, psicologia é a “ciência da mente”. Nessa perspectiva
considera-se que os processos psíquicos são fenômenos que servem de base para se inferir a
natureza de uma mente-substância: subjacente e metafísica. De acordo com a outra,
psicologia é a “ciência da experiência interna”. Nesse caso considera-se que os processos
psíquicos pertencem a uma forma específica de experiência que é imediatamente
caracterizada com base no fato de que seus conteúdos são conhecidos através da
“introspecção”4, ou do “sentido interno”, como é chamada quando essa expressão é usada
para diferenciá-la da percepção sensorial, realizada através dos sentidos externos.
Nenhuma dessas definições satisfaz a psicologia atual. A primeira, a definição
metafísica, pertence a um período de desenvolvimento que foi mais longo nessa ciência do

1
O título original do livro de Wundt é Grundriss der Psychologie. A palavra Grundriss significa projeto,
delineamento, fundamento (Wahrig: Deutsches Wörterbuch); na versão em inglês a palavra foi traduzida por
outlines, que significa “as feições essenciais ou os aspectos principais de alguma coisa sob discussão”
(Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary of the English Language).
2
Esta tradução, feita para uso exclusivo no âmbito da disciplina Epistemologia e História da Psicologia, da
Universidade Estadual de Maringá, baseia-se primordialmente na tradução para o inglês de C. H. Judd,
disponível em Classics in the History of Psychology, um recurso da internet desenvolvido por Christopher D.
Green, da York University, Toronto (Canadá)
http://www.yorku.ca/dept/psych/classics/Wundt/Outilines/sec2.htm (Acessado em 01/03/99).
Quando o texto dava margem a dúvidas, recorremos ao Grundriss der Psychologie (décima quinta edição
alemã, publicada em 1922) para dirimi-las. Agradecemos à professora Miryam Mager pela gentileza com que
atendeu aos nossos pedidos para reproduzir, não a literalidade, mas o sentido dos trechos do texto alemão de
Wundt - o que foi crucial para solucionar as dúvidas com as quais nos defrontamos.
3
Aufgabe: Tarefa, problema
4
Selbstbeobachtung: Observação de si

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que nas outras. Mas, desde que a psicologia se desenvolveu como uma disciplina empírica
(operando com métodos próprios) e desde que as “ciências do espírito” 5 foram
reconhecidas como uma grande área de investigação científica, distinta da esfera das
ciências naturais, exigindo, como um fundamento geral, uma psicologia independente, livre
de todas as teorias metafísicas, essa concepção tradicional foi abandonada para sempre.
A segunda – a definição empírica, que vê a psicologia como uma “ciência da
experiência interna” – é inadequada. Pois pode dar origem ao mal-entendido de que ela se
refere a objetos totalmente diferentes dos objetos da “experiência externa”. É verdade que
há certos conteúdos da experiência que pertencem à esfera da investigação psicológica e
que não se encontram entre os objetos e processos estudados pela ciência natural: nossos
sentimentos, emoções, e decisões. Por outro lado, não há um único fenômeno natural que,
de um ponto de vista diferente, não possa se tornar um objeto da psicologia. Uma pedra,
uma planta, um som, um raio de luz, quando tratados como fenômenos naturais, são objetos
da mineralogia, da botânica, da física, etc. Contudo, na medida em que são ao mesmo
tempo representações6, são objetos da psicologia. Pois a psicologia investiga não só a
gênese dessas representações, mas também suas relações com outras representações e com
os processos psíquicos, tais como sentimentos, volições, etc., que não se referem a objetos
externos. Não há, então, uma coisa como um “sentido interno” que possa ser considerado
como um órgão de introspecção, distinto dos sentidos externos, ou órgãos de percepção
objetiva. As representações cujos atributos são investigados pela psicologia são idênticas
àquelas nas quais a ciência natural está baseada; ao passo que as atividades subjetivas de
sentimento, emoção, e volição - negligenciadas na ciência natural - não são conhecidas
através de órgãos especiais. Trata-se, na verdade, de atividades que são direta e
inseparavelmente relacionadas com as representações que se referem a objetos externos.
2. Segue-se que, no exame científico de uma experiência unitária, as expressões
‘experiência externa e interna’ não se referem a objetos diferentes, mas a diferentes pontos
de vista. Naturalmente chegamos a esses pontos de vista porque cada uma de nossas
experiências unitárias pode ser dividida em dois fatores: um conteúdo que nos é
apresentado e nossa apreensão desse conteúdo. Chamamos de objetos de experiência o
5
Geisteswissenchaften: Ciências do espírito
6
A palavra em alemão é Vorstellung, que foi traduzida para o inglês por idea. No entanto, como no alemão há
uma diferença entre Vorstellung e Idee, e em Wundt esses conceitos são completamente diferentes,
preferimos traduzir Vorstellung por representação. (Nota de C. E. Lopes)

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primeiro desses fatores, e o segundo, o sujeito da experiência. Essa divisão aponta duas
direções no tratamento da experiência. Uma é a das ciências naturais, que trata com os
objetos da experiência sem levar o sujeito em consideração. A outra é a da psicologia, que
investiga o conteúdo total da experiência relacionando-o com o sujeito e com os atributos
desse conteúdo que são derivados diretamente do sujeito. O ponto de vista da ciência
natural pode ser designado como experiência mediata. Pois é possível somente após a
abstração do fator subjetivo que está presente em toda experiência real.7 Por outro lado, o
ponto de vista da psicologia pode ser designado como experiência imediata. Pois
propositalmente ela suprime essa abstração bem como todas as suas consequências.
3. É a atribuição desse problema à psicologia que a transforma em uma ciência
empírica geral, coordenada e suplementar às ciências naturais, que pode ser justificada pelo
método de todas as ciências do espírito – as ciências que encontram seu fundamento na
psicologia. Todas elas – filologia, história, ciência política e ciência social – tratam com a
experiência imediata determinada pela interação de objetos com sujeitos de conhecimento e
ação. Nenhuma das ciências do espírito emprega as abstrações e conceitos hipotéticos
suplementares da ciência natural. Inteiramente ao contrário, todas aceitam, como realidade
imediata, as representações e atividades subjetivas que as acompanham. Faz-se, então, o
esforço para explicar os componentes discretos dessa realidade através de suas mútuas
interconexões. O método de interpretação psicológica que é empregado em cada uma das
ciências do espírito especiais deve ser, também, o modo de proceder na própria psicologia,
sendo que o método é exigido por seu assunto: a realidade da experiência imediata.
3a. Desde que a ciência natural investiga o conteúdo da experiência depois de
abstrair o sujeito da experiência, se diz, usualmente, que seu problema se refere à aquisição
de “conhecimento do mundo externo”. Entende-se que a expressão ‘mundo externo’
refere-se à soma total de todos os objetos que são apresentados na experiência.
Analogamente o problema da psicologia tem sido definido algumas vezes como o
“autoconhecimento do sujeito”. Essa definição é, contudo, inadequada, porque a interação
do sujeito com o mundo externo e com outros sujeitos similares é tão parte do problema da
psicologia quanto os atributos do sujeito singular. Além disso, a expressão pode facilmente
7
wirklichen Erfahrung. O termo inglês ‘Actual’ foi usado para traduzir o termo alemão ‘wirklichen’. Actual
significa “existing in fact or reality (actual, not ideal, conditions). Existing or acting at the present moment:
current” (Webster’s New Riverside Dictionary). O termo alemão ‘wirklich’ (wirklichen é forma plural)
significa “real, efetivo, verdadeiro, de fato, deveras” (Langenscheidts Taschen-wörterbuch).

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ser interpretada no sentido em que o mundo externo e o sujeito são componentes separados
da experiência; ou, ao menos, componentes que podem ser diferenciados como conteúdos
independentes da experiência, quando, na verdade, a experiência externa está sempre
conectada com as funções de apreensão e conhecimento do sujeito, e a experiência interna
sempre contém, como componentes indispensáveis, representações do mundo externo. Essa
interconexão é o resultado necessário do fato de que na realidade a experiência não é uma
mera justaposição de elementos diferentes, mas um todo único e organizado que, em cada
um de seus componentes, requer o sujeito que apreende não só o conteúdo, mas também os
objetos que são apresentados como conteúdo. Por essa razão a ciência natural não pode
abstrair completamente o sujeito do conhecimento. Realmente só abstrai aqueles atributos
do sujeito que desaparecem completamente – quando os removemos em pensamento, por
exemplo, os sentimentos. Ou, ainda, aqueles atributos que, na base de experiências físicas,
devem ser considerados como pertencentes ao sujeito (por exemplo, as qualidades das
sensações). A psicologia, ao contrário, tem como seu objeto o conteúdo total da experiência
em seu caráter imediato.
O único fundamento, então, para dividir a ciência, de um lado, como ciência natural,
de outro, como psicologia e ciências do espírito, encontra-se no fato de que toda
experiência inclui como fatores um conteúdo que é objetivamente apresentado e um sujeito
da experiência. Ainda, de modo algum é necessário que definições lógicas desses dois
fatores precedam a separação das ciências, pois é óbvio que tais definições somente são
possíveis após encontrarem uma base nas investigações das ciências naturais e da
psicologia. Tudo o que é necessário pressupor de início é a consciência que acompanha
toda a experiência – a consciência de que nessa experiência objetos estão sendo
apresentados a um sujeito. Não é necessário supor qualquer conhecimento das condições
nas quais a distinção se baseia ou características definidas que possam distinguir um fator
do outro. Mesmo o uso dos termos ‘objeto’ e ‘sujeito’ deve ser visto, ou como atenção ao
primeiro estágio de experiência, ou como distinções que somente são alcançadas através de
reflexões lógicas desenvolvidas.
As formas de interpretação na ciência natural e na psicologia são suplementares no
sentido em que a primeira considera os objetos depois de (na medida do possível) abstrair o
sujeito e a segunda estima precisamente o papel que o sujeito desempenha no aparecimento

4
da experiência. São suplementares ainda no sentido em que cada uma adota um ponto de
vista diferente na consideração de qualquer conteúdo de experiência. A ciência natural
procura descobrir a natureza dos objetos sem referência ao sujeito. O conhecimento que
produz é por isso mediato ou conceitual: em vez de objetos imediatos da experiência,
estabelece conceitos obtidos desses objetos abstraindo os componentes subjetivos de nossas
representações. Essa abstração obriga-a a suplementar continuamente a realidade com
elementos hipotéticos. A análise científica mostra que muitos componentes da experiência
– como, por exemplo, sensações – são efeitos subjetivos de processos objetivos. Esses
processos objetivos – em seu caráter objetivo, de ser independente do sujeito – jamais
podem, por isso, ser uma parte da experiência. A ciência compensa essa falta de contato
direto com processos objetivos formando conceitos hipotéticos suplementares das
propriedades objetivas da matéria. A psicologia, por outro lado, investiga os conteúdos da
experiência em sua forma completa e real, com relação, não só às representações que se
referem aos objetos, mas também aos processos subjetivos que se aglomeram em torno
delas. Por isso o conhecimento que se alcança na psicologia é imediato e perceptual –
perceptual no amplo sentido do termo em que as percepções sensoriais e toda a realidade
concreta são diferenciadas de tudo o que é abstrato e conceitual. A psicologia só pode
apresentar as inter-relações dos conteúdos da experiência – como são realmente
apresentadas ao sujeito – se evitar completamente as abstrações e conceitos suplementares
da ciência natural. Assim, enquanto a ciência natural e a psicologia são ciências empíricas,
no sentido em que (embora de diferentes pontos de vista) procuram explicar os conteúdos
da experiência, é óbvio que, em consequência do caráter especial de seu problema, a
psicologia deve ser reconhecida como a ciência mais rigorosamente empírica.

§ 2. – Teorias Gerais da Psicologia

1. O ponto de vista de que a psicologia é uma ciência empírica – que trata, não com
um grupo limitado de conteúdos específicos da experiência, mas com os conteúdos
imediatos de toda experiência – é de origem recente. Mesmo na ciência atual esse ponto de
vista se depara com opiniões hostis que podem ser compreendidas, em geral, como a
sobrevivência de estágios iniciais de desenvolvimento e que se chocam conforme as

5
atitudes que assumem acerca das relações da psicologia com a filosofia e com as outras
ciências. Tomando-se por base as duas definições mencionadas anteriormente (§ 1, 1), que
são as que têm uma aceitação mais ampla, podem-se distinguir duas formas principais de
psicologia: a psicologia metafísica e a psicologia empírica. Cada uma é posteriormente
dividida em tendências especiais.
A psicologia metafísica valoriza muito pouco a análise empírica e a interpretação
causal de processos psíquicos. Considerando a psicologia como parte da metafísica
filosófica, o principal esforço dessa psicologia se dirige à descoberta de uma definição da
“natureza da mente” que esteja de acordo com o sistema metafísico ao qual pertence a
forma particular de psicologia. Após ser estabelecido um conceito metafísico de mente, faz-
se o esforço para daí deduzir o conteúdo real da experiência psíquica. A característica que
distingue a psicologia metafísica da psicologia empírica, então, é seu esforço para deduzir
processos psíquicos, não de outros processos psíquicos, mas de algum substrato
inteiramente diferente desses processos: seja da manifestação de uma mente-substância ou
dos atributos e processos da matéria. Nesse ponto a psicologia metafísica ramifica-se em
duas direções. De um lado, a psicologia espiritualista considera que o psíquico se refere às
manifestações de uma mente-substância específica que é essencialmente diferente da
matéria (dualismo) ou relacionada com ela por natureza (monismo ou monadologia). A
doutrina metafísica fundamental da psicologia espiritualista é a suposição, não só da
natureza supersensível da mente, mas também, em conexão com isso, de sua imortalidade.
(Algumas vezes se adiciona a noção ulterior de pré-existência.) De outro lado, a psicologia
materialista atribui os processos psíquicos ao mesmo substrato material que a ciência
natural emprega para a explicação hipotética de fenômenos naturais. De acordo com esse
ponto de vista, os processos psíquicos, como os processos físicos vitais, conectam-se com
certas organizações das partículas materiais que são formadas durante a vida do indivíduo e
destruídas no fim da vida. O caráter metafísico dessa forma de psicologia é determinado
por sua negação de que a mente seja supersensível por natureza, o que é afirmado pela
psicologia espiritualista. Ambas as teorias têm isto em comum: não procuram interpretar a
experiência psíquica a partir da própria experiência, mas a derivam de pressuposições de
processos hipotéticos que estariam ocorrendo em um substrato metafísico.

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2. A psicologia empírica surgiu da discussão que se desenvolveu a partir dessas
tentativas de explicação metafísica. Sempre que a psicologia empírica é conduzida
consistentemente, ela se empenha em organizar os processos psíquicos sob conceitos gerais
derivados diretamente da interconexão desses mesmos processos. Ou, então, começa com
certos processos que são usualmente mais simples, e explica os mais complicados como
resultado da interação desses processos iniciais. Há vários princípios fundamentais que
servem a uma interpretação empírica desse gênero, o que torna possível distinguir diversas
variedades de psicologia empírica. Em geral, essas psicologias podem ser classificadas de
acordo com dois princípios de divisão. O primeiro refere-se não só à relação da experiência
interna e externa, mas também à atitude que as duas ciências empíricas – a ciência natural e
a psicologia – adotam nas relações entre si. O segundo refere-se aos fatos, ou conceitos
derivados desses fatos, que são usados para interpretar processos psíquicos. Cada sistema
de psicologia empírica pode ser classificado de acordo com esses princípios.
3. Sobre a questão geral relativa à natureza da experiência psíquica, os dois pontos
de vista já mencionados (§ 1) têm um significado decisivo na determinação do problema da
psicologia. A primeira, a psicologia do sentido interno, concebe os processos psíquicos
como conteúdos de uma esfera de experiência que é derivada dos sentidos externos. Ela
defende que essa experiência é uma província das ciências naturais – coordenada com elas,
mas totalmente diferente. A segunda, a psicologia como ciência da experiência imediata,
reconhece que não há uma diferença real entre a experiência interna e externa. Afirma que
há uma distinção somente nos diferentes pontos de vista, mas considera que, em ambos os
casos, a experiência é unitária.
A primeira dessas duas variedades de psicologia empírica é a mais velha. Ela surgiu
originalmente com o esforço de estabelecer a independência da observação psíquica em
oposição às intromissões da filosofia natural. Ao coordenar a ciência natural e a psicologia,
ela justifica o reconhecimento de ambas as esferas de ciência no fato que elas têm objetos e
modos de percebê-los inteiramente diferentes. Esse ponto de vista tem influenciado a
psicologia empírica de duas formas. Primeiro favoreceu a opinião de que a psicologia
deveria empregar métodos empíricos, mas que esses métodos, como a experiência
psicológica, deveriam ser fundamentalmente diferentes dos métodos da ciência natural.
Segundo deu origem à necessidade de mostrar alguma forma de conexão entre esses dois

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tipos, supostamente diferentes, de experiência. Com relação à primeira exigência, foi
principalmente a psicologia do sentido interno que desenvolveu os métodos da
introspecção pura. Ao tentar resolver o segundo problema, ela retrocedeu necessariamente
a uma base metafísica, por causa de sua suposição de uma diferença entre os conteúdos
psíquicos e físicos da experiência. Pois, devido à própria natureza do caso, é impossível, a
partir da posição que é assumida aqui, explicar as relações da experiência interna com a
externa, ou a assim chamada “interação entre corpo e mente”, exceto através de
pressuposições metafísicas. Essas pressuposições devem, então, por sua vez, afetar a
própria investigação psicológica, de tal modo que o resultado é a importação de hipóteses
metafísicas para o seu interior.
4. A psicologia que se define como “ciência da experiência imediata” é
essencialmente distinta da psicologia do sentido interno. Considerando, do modo como o
faz, que as experiências interna e externa não são partes diferentes da experiência, mas
maneiras diferentes de vê-la, ela não pode admitir qualquer diferença fundamental entre os
métodos da psicologia e os da ciência natural. Ela tem, por isso, procurado acima de tudo
cultivar métodos experimentais que levem a uma análise tão exata de processos psíquicos
quanto aquela que as ciências naturais explicativas empreendem no caso de fenômenos
naturais, sendo que as únicas diferenças são aquelas que surgem dos diferentes pontos de
vista. Ela afirma, também, que as ciências do espírito especiais que tratam com processos e
criações mentais concretos baseiam-se em uma consideração científica de conteúdos
imediatos da experiência e de suas relações com os sujeitos da ação. Segue-se, então, que a
análise dos produtos mentais mais gerais, tais como a linguagem, as representações
mitológicas, as leis dos costumes, deve ser considerada como um subsídio para a
compreensão de todos os processos psíquicos mais complicados. Consequentemente, em
seus métodos, a psicologia como ciência da experiência imediata compartilha uma relação
estreita com as outras ciências: de um lado, a psicologia experimental com as ciências
naturais; de outro, a psicologia dos povos8 com as ciências mentais especiais.

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A palavra Völkerpsychologie pode ser traduzida literalmente por Psicologia dos povos. Preferimos manter
essa tradução literal, mesmo que atípica, por conta de problemas mais ou menos evidentes trazido por outras
propostas como psicologia social, psicologia étnica, psicologia racial, psicologia popular (para uma
discussão mais detalhada sobre as dificuldades de tradução de Völkerpsychologie, ver Araujo, 2010, p. 38).
(Nota de C. E. Lopes)

8
Finalmente, desse ponto de vista, a questão da relação dos objetos físicos com os
psíquicos desaparece completamente. Eles não são, em absoluto, objetos diferentes, mas
um e o mesmo conteúdo da experiência – visto em um caso, o das ciências naturais, após a
abstração do sujeito, no outro, o da psicologia, em seu caráter imediato e em relação
integral com o sujeito. Todas as hipóteses metafísicas, como a relação dos objetos físicos e
psíquicos, são, quando consideradas dessa posição, tentativas de resolver um problema que
nunca teria existido se o caso tivesse sido formulado corretamente. Embora a psicologia
deva abandonar hipóteses metafísicas suplementares com relação à interconexão de
processos psíquicos (pois esses processos são conteúdos imediatos da experiência), há
ainda, desde que as experiências interna e externa são pontos de vista suplementares, outro
método. Onde quer que apareçam interrupções na interconexão de processos psíquicos, é
admissível prosseguir a investigação de acordo com os métodos físicos de exame desses
mesmos processos, a fim de descobrir se o elo ausente pode ser suplementado desse modo.
Defende-se o mesmo no caso do método reverso de preencher as interrupções na
continuidade de nosso conhecimento fisiológico por meio de elementos derivados da
investigação psicológica. Somente um ponto de vista assim, que erige as duas formas de
conhecimento em sua relação verdadeira, pode transformar a psicologia em uma ciência
empírica no mais amplo sentido do termo. Também, somente desse modo, a fisiologia e a
psicologia podem se tornar ciências suplementares uma à outra.
5. Sob o segundo princípio de classificação mencionado anteriormente – aquele que
se refere aos fatos e conceitos com os quais se inicia a investigação dos processos
psíquicos – pode-se distinguir duas variedades de psicologia empírica. Tais variedades
representam estágios diferentes no desenvolvimento da interpretação psicológica. A
primeira corresponde ao estágio descritivo e a segunda ao estágio explicativo. O esforço
para apresentar uma descrição minuciosa dos diferentes processos psíquicos criou a
necessidade de uma classificação original. Formaram-se vários conceitos de classe que
serviram para agrupar vários processos. Houve ainda o esforço relacionado com a
interpretação de cada caso particular no qual os componentes de um dado processo
composto foram assumidos sob seus conceitos apropriados de classe. Tais conceitos são,
por exemplo, sensação, conhecimento, atenção, memória, imaginação, compreensão e
vontade. Eles correspondem aos conceitos gerais da física que são derivados da percepção

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imediata de fenômenos naturais, tais como peso, calor, som e luz. Como esses conceitos da
física, os conceitos psíquicos podem servir para fazer um primeiro agrupamento de fatos,
mas, quaisquer que sejam os resultados, em nada contribuem para a explicação desses fatos.
A psicologia empírica tem sido, contudo, frequentemente acusada de confundir essa
descrição com a explicação. Assim, a psicologia das faculdades considerou esses conceitos
de classe como faculdades ou forças psíquicas, e referiu os processos psíquicos à sua
atividade alternada ou unida.
6. A psicologia explicativa se opõe a esse método de tratamento da psicologia
descritiva das faculdades. A psicologia explicativa, quando é consistentemente empírica,
deve basear suas interpretações em fatos que pertencem à experiência psíquica. Esses fatos,
no entanto, podem ser tomados de diferentes esferas da atividade psíquica. Ocorre, desse
modo, que, posteriormente, se pode dividir o tratamento explicativo em duas variedades
que correspondem respectivamente aos dois fatores, objetos e sujeitos, que compõem a
experiência imediata. Primeiro, a psicologia intelectualista, quando se coloca a ênfase nos
objetos da experiência imediata. Esse tipo de psicologia se esforça para derivar todos os
processos psíquicos – especialmente os sentimentos, impulsos e volições subjetivas - de
representações (ou de processos intelectuais, como se pode denominá-las, quando se avalia
sua importância para o conhecimento do mundo objetivo). Se, ao contrário, se coloca a
ênfase principalmente na maneira pela qual a experiência imediata surge no sujeito, tem-se
uma variedade de psicologia explicativa que atribui às atividades subjetivas relacionadas
com objetos externos uma posição tão independente quanto aquela atribuída a
representações. Por causa da importância que, em comparação com outros processos
subjetivos, se deve conceder aos processos volitivos, essa variedade tem sido chamada de
psicologia voluntarista.
Das duas variedades de psicologia relacionada com a natureza da experiência
interna, a psicologia do sentido interno tende comumente para o intelectualismo. Isso se
deve ao fato de que, quando o sentido interno é coordenado com os sentidos externos, os
conteúdos da experiência psíquica que primeiro chamam a atenção, de uma maneira
análoga àquela em que os objetos naturais são apresentados aos sentidos externos, são
aqueles que são apresentados como objetos ao sentido interno. Assume-se que o caráter dos
objetos pode ser atribuído a representações isoladas de todos os conteúdos da experiência

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psíquica, porque são consideradas como imagens dos objetos externos apresentados aos
sentidos externos. Consequentemente, considera-se que as representações são os únicos
objetos reais do sentido interno, enquanto todos os processos que não são referidos aos
objetos externos, como, por exemplo, os sentimentos, são interpretados como
representações obscuras ou como representações relacionadas com o próprio corpo ou,
finalmente, como efeitos que surgem da combinação de representações.
A psicologia da experiência imediata, por outro lado, tende ao voluntarismo. É
óbvio que, aqui, onde se sustenta que o principal problema da psicologia é a investigação
da origem subjetiva de toda a experiência, será dedicada atenção especial aos fatores que
são abstraídos pela ciência natural.
7. No curso de seu desenvolvimento a psicologia intelectualista separou-se em duas
tendências. Em uma considera-se que os processos lógicos de discernimento e raciocínio
são as formas típicas de todas as psicoses9; na outra, admite-se que essas formas referem-se
à associação de representações: a certas combinações sucessivas de imagens-memórias que
são diferenciadas por sua frequência. A teoria lógica é mais visivelmente relacionada com o
método popular de interpretação psicológica e é, por isso, mais velha. Ainda encontra,
contudo, alguma aceitação mesmo nos tempos modernos. A teoria associacionista surgiu do
empirismo filosófico do último século. Em certa medida as duas teorias são antitéticas,
porquanto a primeira tenta reduzir a totalidade dos processos psíquicos ao superior,
enquanto a última procura reduzi-los ao mais baixo e, como se admite, a formas mais
simples de atividade intelectual. Ambas são unilaterais e, não somente são falhas para
explicar os processos afetivos e volitivos com base em suas suposições, mas também não
são capazes nem mesmo de oferecer uma interpretação completa dos processos intelectuais.
8. A união da psicologia do sentido interno com o ponto de vista intelectualista tem
conduzido a uma suposição peculiar que, em muitos casos, tem sido fatal para a teoria
psicológica. Podemos defini-la brevemente como a errônea atribuição da natureza das
coisas a representações. Não somente se assumiu uma analogia entre os objetos do assim
chamado sentido interno e aqueles dos sentidos externos, mas os anteriores foram

9
Wundt está usando o termo ‘psicose’ em seu sentido histórico. O verbete ‘psicose’ no Diccionário de
Psicologia editado por Howard C. Warren (1934/1956) diz o seguinte: “1. Qualquer estado psíquico anormal
ou patológico que tende a constituir uma entidade morbosa. 2. (histórico). Qualquer estado psíquico ou
experiência específicos ou a experiência consciente total em um momento determinado” (nota de J. A. D.
Abib)

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considerados como imagens dos últimos; o resultado foi que os atributos que a ciência
natural imputa aos objetos externos foram também transferidos aos objetos imediatos do
“sentido interno”: as representações. Fez-se a suposição de que as representações são coisas
elas mesmas, exatamente como os objetos externos aos quais as referimos; e que
desaparecem da consciência e a ela retornam; e que podem, na verdade, ser mais ou menos
intensa e claramente percebidas, conforme o sentido interno seja ou não estimulado através
dos sentidos externos; e conforme o grau de atenção concentrada nelas, mas que
permanecem inalteradas no seu caráter qualitativo, por causa do próprio caráter dos
fenômenos psíquicos.
9. A psicologia voluntarista se opõe à psicologia intelectualista em todos esses
aspectos. Enquanto a última supõe um sentido interno e objetos específicos da experiência
interna, o voluntarismo é rigorosamente relacionado com o ponto de vista de que a
experiência interna é idêntica à experiência imediata. De acordo com essa doutrina, o
conteúdo da experiência psicológica não consiste de uma soma de objetos, mas de tudo
aquilo que compõe o processo da experiência em geral, isto é, de todas as experiências do
sujeito em seu caráter imediato, não-modificado pela abstração ou reflexão. Segue-se
necessariamente que os conteúdos da experiência psicológica são considerados, aqui, como
um processo de interconexão.
O conceito de processo exclui a atribuição de um caráter objetivo e relativamente
permanente aos conteúdos da experiência psíquica. Fatos psíquicos são ocorrências, não
objetos. Eles ocorrem, como todas as ocorrências, no tempo, e nunca são os mesmos, em
um dado ponto do tempo, como eram durante o momento precedente. Nesse sentido, o tipo
de todos os processos psíquicos são as volições. A psicologia voluntarista de modo algum
afirma que a volição é a única forma real de psicose, mas meramente que, com seus
sentimentos e emoções estreitamente relacionados, é um componente tão essencial da
experiência psicológica como as sensações e representações. Ela sustenta ainda que se
deve pensar todos os outros processos psíquicos de acordo com a analogia da volição.
(Deve-se também observar que esses processos consistem em uma série de mudanças
contínuas no tempo, e não em uma soma de objetos permanentes, como geralmente é
assumido pelo intelectualismo, em virtude de sua atribuição errônea a representações das
propriedades que atribuímos aos objetos externos.) O reconhecimento da realidade

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imediata da experiência psicológica exclui a possibilidade de derivar os componentes dos
fenômenos psíquicos de quaisquer outros que sejam especificamente diferentes. Os
esforços análogos da psicologia metafísica para reduzir toda a experiência psicológica aos
processos heterogêneos e imaginários de um substrato hipotético são, pela mesma razão,
inconsistentes com o problema real da psicologia. Mas enquanto se relaciona com a
experiência imediata, a psicologia assume de início que todos os conteúdos psíquicos
contêm fatores objetivos e subjetivos que devem ser diferenciados apenas através de
abstração deliberada e que jamais podem surgir como processos realmente separados.
Realmente a experiência imediata mostra que não há representações que não excitem
sentimentos e impulsos de diferentes intensidades, e, de outro lado, que é impossível a um
sentimento ou volição não se referir a algum objeto representado.
10. Os princípios que governam a posição psicológica sustentada nos capítulos
seguintes podem ser resumidos em três afirmações gerais.
A experiência psicológica (ou interna) não é uma esfera especial de experiência
separada das outras: é, em sua totalidade, experiência imediata.
A experiência imediata não é composta de conteúdos inalteráveis, mas de uma
interconexão de processos, não de objetos, mas de ocorrências, de experiências humanas
universais e de suas relações conforme certas leis.
Cada um desses processos contém um conteúdo objetivo e um processo subjetivo,
incluindo assim as condições gerais de todo o conhecimento e de toda atividade humana
prática.
Corresponde a esses três princípios gerais uma relação tríplice da psicologia com as
outras ciências.
Como ciência da experiência imediata, ela é suplementar às ciências naturais, que,
em consequência de sua abstração do sujeito, tem a ver somente com os conteúdos
objetivos mediatos da experiência. Rigorosamente falando, o significado completo de
qualquer fato particular só pode ser compreendido após ser submetido à análise da ciência
natural e da psicologia. Nesse sentido, a física e a fisiologia são auxiliares da psicologia.
Por sua vez, a psicologia é suplementar às ciências naturais.
Como ciência das formas universais da experiência humana imediata e de suas
combinações de acordo com certas leis, a psicologia é o fundamento das ciências do

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espírito. O assunto dessas ciências está presente em todos os casos de atividades que se
originam de experiências humanas imediatas e seus efeitos. Desde que a psicologia toma
como seu problema a investigação das formas e leis dessas atividades, ela é imediatamente
a ciência do espírito mais geral, e o fundamento de todas as outras, tais como a filologia,
história, economia política, jurisprudência etc.
Desde que a psicologia presta atenção igualmente às condições objetivas e
subjetivas que fundamentam não só o conhecimento teórico, mas também a atividade
prática, e desde que procura determinar suas inter-relações, ela é a ciência empírica cujos
resultados são mais imediatamente úteis na invenção dos problemas gerais da teoria do
conhecimento, e da ética, os dois fundamentos da filosofia. Desse modo, a psicologia é, em
relação às ciências naturais, o suplemento; e, em relação às ciências do espírito, o
fundamento; e, em relação à filosofia, a ciência empírica propedêutica.
10a. O ponto de vista de que não é uma diferença nos objetos da experiência, mas
no modo de tratá-la, que distingue a psicologia da ciência natural, está sendo reconhecido
cada vez mais na psicologia moderna. Uma compreensão clara do caráter essencial dessa
posição em relação aos problemas científicos da psicologia ainda é impedida pela
persistência de tendências mais antigas derivadas da metafísica e da filosofia natural. Em
vez de iniciar com o fato de que a possibilidade das ciências naturais depende da abstração
dos fatores subjetivos da experiência, atribui-se, algumas vezes, à ciência natural o
problema mais geral de tratar dos conteúdos de toda a experiência. Nesse caso,
naturalmente, a psicologia não é mais coordenada com as ciências naturais, mas
subordinada a elas. Seu problema não é mais remover a abstração empregada pelas ciências
naturais e adquirir com elas desse modo uma visão completa da experiência, mas tem de
usar o conceito de “sujeito” fornecido pelas ciências naturais e de oferecer uma
consideração da influência desse sujeito nos conteúdos dessa experiência. Em vez de
reconhecer que uma definição adequada de “sujeito” só é possível como um resultado da
investigação psicológica, um conceito acabado, formado exclusivamente pelas ciências
naturais, é introduzido sub-repticiamente na psicologia. Agora, para as ciências naturais o
sujeito é idêntico ao corpo. A psicologia é, consequentemente, definida como a ciência que
deve determinar a dependência da experiência imediata com relação ao corpo. Essa
posição, que pode ser denominada de “materialismo psicofísico”, é epistemologicamente

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insustentável e psicologicamente improdutiva. A ciência natural, que abstrai
propositalmente o componente subjetivo de toda experiência, estaria, dessa perspectiva, em
condições de propiciar uma definição final do sujeito. Uma psicologia que se inicia com
uma definição puramente fisiológica depende, por isso, não da experiência, mas, do mesmo
modo que a psicologia materialista mais antiga, de uma pressuposição metafísica. Tal
posição é psicologicamente improdutiva, pois, desde o início, ela entrega a interpretação
causal de processos psíquicos à fisiologia. Mas a fisiologia não tem fornecido uma
interpretação desse gênero e nunca será capaz de fazê-lo, por causa da diferença na maneira
de se considerar os fenômenos na ciência natural e na psicologia. É óbvio, também, que
uma forma de psicologia que se converteu em mecanismos cerebrais hipotéticos nunca
poderá ser de qualquer utilidade como fundamento para as ciências mentais.
A tendência rigorosamente empírica da psicologia, definida nos princípios que
foram formulados anteriormente, se opõe a esses esforços que visam a renovar doutrinas
metafísicas. Ao chamá-la de “voluntarista”, não devemos esquecer o fato de que, em si
mesma, ela não tem absolutamente qualquer conexão com as doutrinas metafísicas da
vontade. Na verdade, opõe-se, não só ao voluntarismo metafísico unilateral de
Schopenhauer, que derivou tudo de uma vontade transcendental original, mas também aos
sistemas metafísicos de um Spinoza ou de um Herbart, que surgiram do intelectualismo. A
característica do voluntarismo psicológico (no sentido em que foi definido anteriormente)
em sua relação com a metafísica é a exclusão de toda a metafísica da psicologia. Em sua
relação com as outras formas de psicologia, não aceita nenhum dos esforços que visam a
reduzir as volições a meras representações, e ao mesmo tempo enfatiza o caráter modelar
da volição com relação a toda experiência psicológica. Atos volitivos são reconhecidos
universalmente como ocorrências, compostos por uma série de modificações contínuas em
qualidade e intensidade. Eles são típicos no sentido em que sua característica de ser
ocorrência é verdadeira para todos os conteúdos da experiência psíquica.

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