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O ônibus partiu. São vinte e quatro lugares, mas apenas nove estão ocupados.

O
destino? A lado algum ou a qualquer lado que o leitor imaginar. Uma cidade, uma
área florestal, um acampamento, “um sei lá”. A hora? Nenhuma, ou todas,
dependendo do momento da leitura. Pode ser manhã, pode ser noite,
madrugada. A imaginação é livre, gratuita, basta soltá-la sem pensar. Não lhe
prendas, nem tenta fazer dela um tabu. Caso for, procure destabua-la, porque a
mente agradece.
Dante Tchini. Assim se chama o motorista, solitário, que vai conduzindo o ônibus
numa velocidade demasiado perto da moderação, na estrada “qualqueríssima”,
com o seu olhar penetrante, que firmemente vai olhando em frente, como se não
houvesse os lados e as retaguardas. Absorto nos seus pensamentos conscientes,
confiando o comando do volante para os, - por vezes -, enganadores pensares
inconscientes, estranhamente programados para guiá-lo nesta viagem, de
maneira mais calma, entre muitíssimas possibilidades que a calma tem. Ainda
bem que assim é, pois, já imaginaram se essas inconscienticidades fossem
revoltosas e suicidas? Elas poderiam causar um acidente e culpabilizar as células
conscientes de todo o mal catastrófico, caso catastroficamente acontecesse.
Afinal, é nesses instantes que a culpa recaí sobre os mais frágeis, que
aparentemente são os “donos” do cérebro. Dante Tchini deseja escrever um livro,
com os conscientes, os concubinos prediletos da fragilidade cerebral. Neste
preciso momento, todas as suas consciências estavam trabalhando na construção
de um enredo, daí que o trabalho artístico da condução sobrou para as
inconsciências. Talvez furibundas por estarem a assumir um papel de
subalternidade e tamanha insignificância perante o protagonismo das eternas
rivais. Os arrogantes têm receio de viver pequenez nos atos por eles praticados, a
não ser que eles recebam alguma coisa em troca. Eles tri-adoram recompensas. E
a verdade é que as pretenciosas inconsciências iam representar um papel
fundamental na decisão final do livro. Seriam recompensadas. Dante Tchini sabia
disso, desde o início.
O romance ia basear-se numa estrela que, numa bela noite, decidiu ser cantora.
Mas deparava-se com uma colossal dificuldade de descer á terra, e realizar seu
sonho. Não conseguia deixar de flutuar no céu, não conseguia ser cadente. Havia
um aprisionamento desgraçado, governador das luzes que a faziam brilhar
tristonha, como se tivesse fadada a permanecer longe da música que tanto deseja
cantar. O sistema ideológico pairado no espaço é do tipo que oprime, inventado
obstáculos cuja promoção é a acomodação e o medo. Lá no céu não se canta.
Uma frase absoravidamente reproduzida pelas estrelas mais velhas, mal
agourentas, deterioradas por um passado repleto de buracos negros submissos e
sensações homicidas que esquartejaram seus legítimos sonhos, pensamentos. Só
porque nenhuma estrela jamais caiu no planeta, não significa que esta
eventualidade estivesse longe de se verificar num inócuo anoitecer. A jovem
estrela pretende desgovernar paradigmas. Ela quer ser a primeira a entrar na
terra, e ornamentar um show musical por excelência para todas e todos os
terráqueos disponíveis a ouvir sua voz gostosa. Gostosa? Pois, de certeza que isso
dependerá do referencial auditivo de cada ser ouvinte. Mas o facto, é que a
estrela daria um espetáculo. Desta perspetiva ia pensando o cônscio do Dante
Tchini, enquanto os inconscientes encaminhavam o ônibus para o inominável
sítio.

Nome de um dos passageiros: Mercedes Benção. Moça-mulher lindona com a sua


negrura na pele, com os cabelos alegres por serem escassos e semicurtos,
enaltecendo a desenvoltura capilar afro, como uma identidade que a torna bela
diante dos seus próprios olhos. Por isso, ela é bela aos olhos dos outros. Pelo
menos, daqueles que militam pelo entendimento da subjetividade e não
mesmicidade de imagens embranquecidas idealizadas na cabeça, se bem que
muitos outros apenas desejam esse tipo de beleza para um uso seguido de
desuso. Equivalente a um objeto descartável.
A variedade é uma construção que compõe este Mundo de coisas e pessoas
demasiado parecidas. No entanto, uma discussão decorria. Os desânimos
exaltados se encontravam na berlinda, por causa das conversas que
desmanchavam dos lábios do seu companheiro e namorado, materializado do
lado esquerdo do seu assento. /Quero pedir desculpas pra você, meu bombom.
Ultimamente tô ocupado por causa do trabalho, e tô sem tempo pra me
dedicar...ao relacionamento da gente/. Cada palavra foi vista de uma forma
carinhosa, mas Mercedes Benção sabia que o termo “carinhosa” apenas era um
revestimento encobridor do descarinho por ele transmitido. /Piá móço sca fla
mintilá fa. Vencimento, voçê é muito mentiroso. Fica a falar essas coisas, mas no
fundo ê sei qual ê teu problema: você tem medo de mi apresentá pa tua família
porque ê sou preta!/. Misturadamente, um efeito parecido a de um som muito
desejável e indesejável, entrou pelos ouvidos desse jovem branco. Esta afirmação
mostrou-lhe que estava no saco certo. Naquele exato momento, tentou puxar
pela memória, e parou depois de ter achado o puxamento das recomendações
dos seus pais, em relação ás suas potenciais namoradas. Eles desejavam uma nora
dentro dos moldes das princesas da Walt Disney, uma jovenzinha prendada com
pensamentos cor de rosa, a estrela submissa presa no céu e encantadora para os
grupos sociais que eles faziam parte. Pois, os outros continuam sendo os
espetadores que possuem o poder de interferir na vida particular dos atores e
casais, que tentavam interpretar sozinhos os seus papeis de busca duma vida a
dois. Tem alguns que até desejam ser os encenadores, quando nem sequer
espetadores deviam ser. O Vencimento aceita a reprodução disso tudo com
bastante atenção e subserviência, pois nos seus ideais, mulheres como Mercedes
Benção não foram feitas para o matrimónio, só para enfiar o caralho. Entre todas
essas nuances, ele já estava farto dessa ninfeta gostosa que conheceu no
restaurante universitário, e agora estava tentando cinicamente cair para fora da
relação sem ela perceber o toque maldoso da sua forma de pensentir. Ia fazê-la
desistir. Apenas tinha que ser inteligente, usar a paciência para causar na vítima
uma vontade de abandoná-lo.
Por sua vez, Mercedes Benção pensava que, Vencimento, encontrava-se com
tanto excesso de esperteza, ao ponto de nem sequer notar os poderes telepáticos
que exalavam de dentro dela. Estava tudo ficando escuro, lúcido. Cada
movimento que ele fazia, cada palavra não expressa, despertava sensações de
certeza. Também apareciam entristecimentos, pois preferia mil vezes que as suas
abençoadas leituras de pensamentos fossem enganadoras. Ela estava amando
esse moço desgraçado. Naquela descida, não sabia decisões decisivas tomar, só
descia sem vontade de travar. Nasciam contradições no seu interior em relação ao
que devia ser feito, questionava-se sem saber descortinar uma lógica capaz de
abrir novas trilhas e desvendar encruzilhadas. Sempre foi boa em construir trilhas,
são duas décadas e seis anos dando voltas á vida, possuindo um dom
extraordinário que foi adquirido na terra onde o ver para crer é um lema cheio de
fama. A unidade, disciplina e trabalho são palavras descumpridas ao pé da letra,
mas a vontade de mudança não pode se perder jamais. Eram três da manhã, do
dia três de março e um conjunto de coincidências de horário que não cabem dizer
aqui. Mercedes Benção veio misticamente ao mundo na copa duma árvore
chamada ocá, sem pai e sem mãe, apenas enviada por um Deus pertencente à
república dos falcões e papagaios, com o objetivo de fazer a diferença,
perspetivando uma transformação social que só ela poderia doutrinar, segundo a
profecia desprovida de um real profeta. Todavia, a profecia também dizia que um
amor não correspondido tenderia a proporcionar desorientação na vontade
orientada da Mercedes Benção. É nisso que estava pensando a mocinha bonita de
cabelo afro, enquanto enveredava por uma revolta intrínseca imensa cuja
dimensão a tornava numa pessoa extremamente instável, imprevisível. /Oce mi
ama, Vencimento?/. Ele olhou-a diretamente nos olhos, aparentando emoção e
disse: /Claro que sim meu bem...com toda a minha pele branca eu te amo!/
Mercedes Benção sabia dessa falácia mesmo antes de perguntar, não era intuição,
era certeza mesmo. Seguiram calados, fixos nos dois primeiros assentos do lado
esquerdo do ônibus.

A terra arde. Duas prostitutas em cima do leito tocavam-se e usavam os dedos,


como facilitadores de uma oficina que balbuciava proxenetismo. Ele apenas
observava, amofinado por aquelas imagens ardentes, que proporcionavam um
aumento desregrado da sua mangueira humana. Estava no pico alto, querendo
arrebentar as proteções cuecais. Naqueles precisos movimentos, elas
enlouqueciam os olhos do rapaz com sorrisinhos contendo extrema volúpia, os
quais denunciavam espasmos de perícia nata. Uma delas levantou-se num strip-
tease em andamento, aproximando lentamente do seu objeto de prazer. Não
recuou, o inocente, permaneceu ansioso na espera, mas atento a cada
movimentar lascivo que precipitava na sua direção. Quando chegou perto, ela o
empurrou para cima de um sofá vermelho, repleto de preservativos usados e um
cheiro horribilíssimo que conforme o presente estava sendo ignorado em nome
do sexo iminente.
Já quedado naquela realidade mal cheirosa tão sexualmente apetecível, ele
procura a outra prostituta, que parece ter desaparecido do seu campo de visão
que soslaiava a cama onde ela estava. Onde terá ido parar? A resposta não
demorou muito, nem dois segundos, porque a garota apareceu por trás e
agarrou-lhe o pescoço com os braços, envolvendo-o de forma brusca, mal o
fazendo respirar. Enquanto a outra acelerava a abertura do fecho éclair das
bermudas, e colocava pra rua toda a mangueira feita de carne. Tocou-a em
seguida, iniciando uma chupeta com a língua, porém, tragou os seus dentes
meretrizados na glande do seu quase todo poderoso. Dado este complicado
sonolento instante, Ardeterra rápido acordou. Lembrando que se espreguiçava
sentado no quinto assento, do lado direito do ônibus, e agradecendo á realidade
por acordá-lo num minuto precioso, pois não queria perder a pila nem nos
pesadelos. Sonhos eróticos deste tipo devem ser esquecidos embora eles
pronunciem alguns laivos de precisão realista. Então, foi em busca do seu
telemóvel, queria se atualizar no mundo cibernético, observar as novidades dos
seus amigos no whatsaap e não passar por altas crises de abstinência. Desejava
conversar e aproximar-se das pessoas que mais gosta, por intermédio dessa
caixinha pequenina, capaz de englobar o mundo inteiro. Ou parte dele. 453
mensagens não visualizadas, a maioria pertencente aos grupos que ele faz parte,
mas regularmente só participa em dois. Um intitula-se “Não vale a pena ser
correto”, e o outro “Mais vale ser Lebre do que Tartaruga”. Tanto o primeiro
como o segundo estão repletas de sacanagem, seriedades, piadas e comentários
diários sob os mais variados assuntos. No “Não vale a pena ser correto” a
conversa está girando em torno de uma jovem que tem poderes telepáticos e
descobriu no seu namorado uma incapacidade tremenda em gostar dela, por isso
matou o fulano de ira irada; um tema lançado por uma amiga que é fã de
romances trágicos. Ardeterra procurou refletir sobre o caso estoríficado, mas sem
achar uma opinião bem formulada decidiu digitar: /Hum, não sei o que dizer
acerca disso! Mais tarde dou o meu parecer, kkkkkkk/, e zarpou para o segundo
grupo que parecia estar menos romantizado e mais piaditizado, enfatizando sobre
a quantidade de peidos que todos os participantes acham tirar por dia: /kkkkkkkk,
devo tirar uns mil. Ainda agora tirei um bem barulhento, pena que vcs não podem
ouvir!/ Esta declaração causou um estardalhaço no grupo, os integrantes
puseram-se a imaginar os peidos uns dos outros, e também, como é óbvio, as
gargalhadas.

Tanta instabilidade na cabeça. Um erro foi cometido? Mas tem algo estranho
dizendo que não. Será paranoia? Porque tomar uma decisão brusca sem pedir o
consentimento dos outros, ainda mais quando esta decisão também depende
deles, é no mínimo paranoica. Só que, Mister-Quase-Desorientado não quer
continuar perto de insetos falsos, quer libertar-se deles. Fugir da pressão de ter
que fingir ser um inseto que se encontra confortável com a situação falseante,
quando na sinceridade sente-se muito pressionado, desejoso de mandar tudo á
merda. Cansado de conviver com aqueles que outrora foram seus grandes
amigos, admiradores, e que na atualidade, ao esbarrarem-se nas curvas da vida,
fingem que não se viram, colocando a ignorância como uma demonstração da
insignificância do outrem na sociedade das centopeias, baratas e por aí em diante.
Antes paranoico do que viver numa rede social de insetos hipócritas. Por isso, cá
está ele, enfiado no vigésimo sexto assento do ônibus na parte direita, totalmente
pelado, sem roupa e com a cabeça a latejar de dúvidas e vontades de enlouquecer
para esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se do inseto em que tornou. Mas não
consegue, a inteligência impede-o de virar um completo louco, e por outro lado
sufoca-o com lembranças boas daquelas individualidades inséticas, que tanto
almeja nunca mais ouvir falar, ou pôr as falas em cima. Elas servem de anticorpos
em forma de “cometeste um grande erro”, contra a decisão do afastamento “para
todo sempre: amem” que ele preconizou seguir. Esta inteligência é muito
contraditória; ora ativa essas lembranças, ora desativa-as num passo de magia
branca. Embranquecendo o cérebro. Para a satisfação da desorientação que se
limita a ser parcial, em vez de total.
Mister-Quase-Desorientado passou a mão esquerda no rosto repleto de barba
bem feitinha, e coçou preguiçosamente a nádega direita com a mão direita,
suspendendo-a um pouquinho e refletindo sobre o verdadeiro sentido da fuga do
anus, em que ele saiu revoltosamente. Valeu ou não valeu a pena? Se calhar
melhor seria permanecer lá dentro, misturado naquela podridão de bichos
desalmados, porém, a sensação de estar fora e respirando um ar tão suave, fez-
lhe descobrir-se de uma maneira que nunca tinha descoberto antes. Mesmo com
as indecisões, com o complexo de sentir-se um inseto, ele acha que valeu a pena.
Há uns dias, pela primeira vez, fez sexo com duas meretrizes – por acaso elas já
foram insetas, mas devido aos altos patrocínios, deixaram de ser -, uma delas fez
um oral deveras enlouquecedor como ele gostaria que a sua loucura fosse. Um ar
refrescador, capaz de refrescar a dor sentida pela perda e o abandono da sua
antiga metodologia de inseto embutido no grosso e delgado intestino. O Mister-
Quase-Desorientado está ambientado nesta nova fase, errante ou não, mas está.
Encostou a cabeça careca na parte superior do assento, procurando esquecer as
suas confusões por um tempinho. Enquanto isso, ele estava sendo observado de
perto por uma espécie de fantasma fêmea alienígena.
A política é limpa. Coisa dos limpadeiros limpos, adoradores da transformação
social que pode ser promovida pela sua característica limpíssima. /O meu foco é
focalizar tudo o que não tem foco. Dar água, onde não tem água. Dar luz, onde
não tem luz. Dar limpeza, onde não tem limpeza. Dar pancada, a quem merece
pancada. Os meus ideais de justiça são universais./Deste pomposo jeito
discursava o Cornelius Curruptus, futuro candidato á presidência do Mundo
Idealizado, aquele que suporta o verdadeiro real, e insuporta tudo o resto que é
considerado ilusório. Soltando palavreados mediante gesticulações das suas mãos
ossudas e compostas por dedos muito compridos. Deu uma pausa, para limpar o
suor que escorria da testa, uma estranhice que acontecia com ele, mesmo nos
locais mais friorentos do planeta. E persistiu na sua lábia, com a sua voz seca, mas
molhada por fortes tons graves. /Não temo a concorrência. Ela é que deve temer-
me. Sei do meu valor, por isso concorro comigo mesmo. Estás a ouvir?!/ Pergunta
feita num contexto repentinado, brusco, para que a pessoa que o estava
escutando, avivasse os seus sentidos auditivos. /Desculpa Cornelius...distraí-me
aqui com os meus botões. O que estavas a dizer?/ Sussurrou tristemente, pois por
dentro se encontrava de rastos, por causa da terrível notícia recebida minutos
antes de entrar no ônibus. O falecimento da sua única filha. Vítima de um
acidente de carro. Não houve oportunidade de dizer um “tchau”, e a última vez
em que eles se viram foi há quatro anos, no aeroporto, enquanto se despediam
perante promessas de um reencontro feliz entre ambos, todavia, a sina
estabeleceu-se maléfica. O futuro em que eles se beijariam e abraçariam, sofreu
um desmoronamento sem volta. A morte escolhe seus mortos,
independentemente disto ou aquilo. Daí que ele tinha poucas forças para ouvir os
discursos políticos, do político achado á esquerda da sua poltrona número cinco,
parte esquerda do ônibus. A única coisa desejada era o abraço da Analú, sua filha
pra sempre desaparecida. Ela tinha no seu semblante as marcas da alegria,
mesmo quando chateada, a sua beleza fazia dança-kizomba. Dói saber que jamais
verá isso de novo, e por dentro vai nascendo uma revolta enorme contra a
irregularidade da Natureza, cuja ordem natural nada obedece, porque o natural
seria levá-lo primeiro em vez dela. /Pois é...e jamais usurparei os cofres do estado
máximo. Tentarei desviar meu egoísmo, e embater no altruísmo. Pensarei em
todos, primeiramente. Antes de pensar em mim, segundamente. Todos os meus
projetos serão confeccionados de maneira a serem realizados com sagacidade e
humildade!/ Prosseguiu suas retóricas, com largos sorrisos, ignorando o estado
tristíssimo do seu grande parceiro dessas andanças infinitas pelos mais diversos
países, procurando votos com a sua campanha de primeira categoria. Cornelius
Curruptus, não aceita nem segundas e terceiras categorias, consideradas baixas
demais para um aristocrata de status elevado como ele./Com certeza, tenho
certeza que a tua honestidade será o baluarte de uma governação exemplar no
Mundo Idealizado. Podes contar com todo o meu apoio./ Apesar do sentimento
despedaçador, ainda conseguia arranjar coragem para deixar o seu companheiro
feliz. Não quer confrontar-lhe com o que sente, pelo menos por enquanto.
Quando se idolatra alguém em demasia, ele se torna o centro de tudo. O Sol
gigante, que faz cada planeta girar em seu torno, atraídos por uma colossal
gravidade. Um dos nomes que pode ser atribuído a ele, que sempre gira ao redor
do Sol é: Mercúrio. O próximo mais próximo que se posiciona como um inseto
insignificante, enfiado no cu do Cornelius Curruptus.
Ele é um Mercúrio artista, do tipo que faz pinturas extraordinárias, mas que
preferiu vender todas as obras, afastar-se da família e abdicar do seu talento, para
metamorfosear-se em seguidor de um politicão, detentor das possíveis dinamites
capazes de explodir as portas da glória do Mundo Idealizado. O arrependimento
não deve estar assim demasiado distante de esquartejá-lo, embora persista em
pensar ceticamente nesta hipótese. Quando uma deliberação é escolhida, ela
deve ser levada até ao final, se não acontecer nada que mude a direção desta
ação deliberativa. Há muita cacharamba por beber.

Perto da janela, na lateral direita do transporte em voga, de cara chapadamente


maconhada, ar entediado e carregado de raiva. Pois, estava se sentindo obrigada
a fazer algo que nunca pensaria; estudar numa escola que não fosse aquela onde
está concentrada a maior parte das suas amigas e amigos. Os pais acreditam ser
esta a melhor ideia para o seu futuro, só que o palpite da Cruelda é outro. Isso
provocou-lhe uma raiva nuclear. A vontade de aniquilar tudo e todos, inclusive os
progenitores, era gigante. Uma espada á laser seria ótimo. No entanto, Cruelda
sabia que esse era o seu flanco malvado expressando, porque bem no fundíssimo,
o amor sentido por esse casal que a colocou na existência, superava qualquer
problemática existencial dentro dela.
A maconha é deliciosa. Das mais deliciosas entre várias coisas deliciosas da face
da terra. Uma sensação do escondido, fomentadora de risos e liberdade
momentânea. Mas nesse instantâneo estar, ela estava muito chateada para se
deixar levar pelo efeito maconhador, e também assustada por ter que encontrar
aquela pessoa de novo. Quando permanecia na escola, em todos os instantes,
essa personalidade desaprovável aparecia para incomodá-la. O tempo vai se
aglutinando, parece aumentar a sede de incomodo em relação a ele, e
consequentemente, aquela escola não foge a regra. Tudo nela parece nocivo á
sua espiritualidade, um ambiente depressivo que sufocava os seus neurónios.
Infeliz. O sentimento de infelicidade acompanhava os seus passos, fazia dela uma
maconheira infeliz, adolescente desembaraçada que se embaraça numa
integração projetada pelos outros, não por ela. Porquê conviver com indivíduos
das mais diversas identidades, com desvontade de se integrar? Presa.
Programava-se prisioneira daquele sítio desencorajador. Não existe pior coisa que
estar numa materialidade desprovida de coisa provida do que amar. Cruelda é
maravilhosa, no entanto, perante essas ambientações o seu ímpeto rebelde e
cruel estavam sendo empoleirados. Ainda mais com as perseguições daquele ser
desprezível, enigmático, promotor “dum não sei lá o quê” por viabilizar. Tem que
botar a ingenuidade em alerta máximo, senão algo ruim poderá arruinar-se.
/Eu não sou uma pessoa má. Apesar de pensar coisas maldosas quase sempre. Ou
serei má? Só não descobri que fiz um pacto com o demónio. Ah, que porra. Nem
sei quem eu sou. Todas as minhas descobertas parecem ser esquecidas minutos
depois, como se houvesse uma guerra infinita entre os meus vários modos de ser.
Se fiz ou não uma pacto com o capeta, ainda não sou capaz de responder./
Conversava consigo mesma, num tom não tão alto e nem tão baixo, numa
tentativa de aliviar o stress e a pressão que estava sentindo ultimamente. Sentia-
se a queimar por dentro, não tinha ninguém em quem confiar os desabafos, os
pais não querem ouvir suas reclamações porque pensam que são apenas
queixinhas duma menina irreverente. Queria ser igual a esses políticos que se vê
na televisão. Ter o talento de conter as suas emoções, e usar o racional como luva
para entrar no ringue da vida. /Quando eu crescer quero ser uma politiqueira do
caralho!/ Depois de ter dito isso, sorriu pela primeira vez desde que entrou no
ônibus. Então, Cruelda de catorze anos de idade, reparou numa menininha
sentada no seu lado esquerdo. Por mais incrível que pareça, ela não tinha notado
a sua presença até agora. Uma garota super estranha, apesar de ser normal, pois,
todos os estranhos possuem uma normalidade. Cabeça, tronco e membros faziam
dela uma percursora da norma natural humana. O que a tornava esquisita é a fala
e a audição, as quais ela não continha. Simplesmente, muda e surda. Cruelda,
estigmatizando-se preocupada por estar parecendo a “louca que fala sozinha na
frente da criancinha”, chegou a essa conclusão após ter-lhe perguntado por mais
de cinco vezes: /Olá...como é que te chamas?/ Sem obter quaisquer respostas e
movimentos de percepção corporal. No começo, pensou que a garota estava
morta ou dormindo, mas assim que a tocou, ela se virou com um meio sorriso
permanecendo assim por largos segundos, pegou numa caneta e num papelinho
no bolso da mochila que estava por cima das pernas. Pôs-se a desenhar umas
letras e frases. Assim ficou desenhadamente escrito: “sou muda e surda...mas
vejo e também já sei escrever, só posso me comunicar desta maneira”. Para
Cruelda, aquela passou a ser a caligrafia mais linda que alguma vez viu.

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