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Um dos exercícios que gosto de fazer quando estou fora do meu país
é perguntar a colegas estrangeiros o que eles sabem do Brasil. As res-
postas não variam muito. Entre a curiosidade e a falta de total conhe-
cimento, é comum escutar: “O Brasil é a terra do samba, do futebol e
da liberdade sexual”.
Mesmo entre meus colegas professores universitários, são os este-
reótipos os mapas que lhes possibilitam dissertar dois ou três minutos
sobre o país do carnaval. Acredito que os estereótipos sempre têm uma
conexão com a realidade que se propõem a revelar. No entanto, concor-
do com Stephen Worchel quando ressalta a força que os estereótipos
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Conferência na City University of New York (CUNY), maio de 2014.
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têm na seleção que nossa memória de fatos envolvendo outras culturas
e o que o nosso olhar é conduzido a enxergar. Eu diria que os estereó-
tipos não são totalmente desconectados da realidade. O problema está
em tomar uma pequena parte de contexto nacional como a verdade
total, única, produzindo uma naturalização das múltiplas, conflitantes
e hierarquizadas diferenças que habitam o mesmo espaço imaginário
chamado nação.
Gostaria de comentar rapidamente um efeito prático das repre-
sentações da ausência de conflitos no contexto brasileiro. Como vocês
sabem, a questão racial marcou profundamente a humanidade na Se-
gunda Guerra Mundial. “Raça superior”, “limpeza racial” e “eugenia”
foram termos que passaram a compor uma linguagem universal em
torno das questões raciais e étnicas como nunca antes visto. O Brasil
era tido como um exemplo bem sucedido de convivência entre as di-
versas “raças”, haja vista a miscigenação estampada em nossas peles,
cabelos, narizes... E foi com o objetivo de encontrar explicações mais
detalhadas para a “democracia racial” brasileira, que serviria de mode-
lo para outras culturas, que a Organização das Nações Unidas (ONU)
contratou uma equipe de alto nível para fazer estas pesquisas, coorde-
nadas pelo sociólogo Florestan Fernandes e Roger Bastite.
O resultado da pesquisa não poderia ser mais desastroso para as
intenções dos financiadores: não existe democracia racial no Brasil, os
negros estão excluídos do mercado de trabalho, a noção de democracia
racial foi uma invenção da elite branca e não passa de uma ideologia.
Recentemente, tive uma interessante conversa sobre a representa-
ção do Brasil LGBTT com um colega de uma prestigiosa universidade
americana. A ideia de que vivemos em um país que tem o dom de con-
viver com as diferenças de forma harmoniosa descolou-se da questão
racial para outras questões, a exemplo dos LGBTT. Uma suposta cor-
dialidade parece caracterizar as representações hegemônicas em torno
das relações sociais brasileiras.
Esse colega escutava-me com olhos de profunda surpresa quando
comentei que o Brasil é considerado um dos países mais perigosos do
mundo para um LGBTT viver. E se um dos critérios para os Estados
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jetiva que torna difícil o combate político, pois o excluído interiorizou
essa diferenciação hierarquizada como natural.
Outro efeito desse dispositivo do medo e da vergonha seria a pró-
pria vítima, quando consegue sobreviver aos atos de violência, não de-
nunciar o agressor, seja porque naturaliza a violência contra si (como
se ela merecesse a punição, por não agir de acordo com o esperado) ou
mesmo porque sabe que não adianta nada acionar o Estado, deman-
dando justiça, via uma ação criminal.
No âmbito das vidas LGBTTs, é recorrente encontrarmos narrativas
de pessoas que se sentem blindadas da violência por se comportarem
de acordo com as expectativas sociais: “Sou gay, sou homem e me com-
porto como homem”. Ou: “Sou lésbica e não abro mão do meu lugar de
mulher”.
O “reconhecimento”, tanto na questão racial quanto na dimensão
das homossexualidades e dos gêneros dissidentes (transexuais e tra-
vestis), dá-se por mecanismos de apagamento das diferenças, e não
pelo reconhecimento da diferença. Ou seja, acontece via assimilação.
O sujeito queer, no Brasil, não se restringe exclusivamente aos LGBTT.
São os que não conseguem se inserir completamente na categoria hu-
manidade, tampouco usufruem da condição de cidadania plena esta-
belecida na lei.
Nos marcos das contradições que marcam o meu país, diria que
sofremos de um racismo cordial e de uma LGBTTfobia cordial, na me-
dida em que não há uma segregação legal e o “outro”, os queer que
constituem a nossa nação (a população negra e os LGBTT) têm o mes-
mo estatuto legal que os não queer.
Talvez seja uma impossibilidade unir dois termos que não pode-
riam ser postos juntos: cordialidade & racismo e cordialidade & LGB-
TTfobia, uma vez que o racismo e a LBGTTfobia são expressões da
impossibilidade de se conviver com outro. Essa impossibilidade, no
entanto, se realiza no contexto brasileiro e talvez seja uma singularidade
nacional em relação às outras experiências na questão racial, das
homossexualidades e dos gêneros dissidentes.
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E por que as leis não são efetivamente executadas? Acho que valeria
a pena pensarmos em termos de uma sociogênese do corpo jurídico
nacional. Como nascem as leis? Supõe-se que a lei será um instrumen-
to para ajudar a transformar mentalidades, quando, na verdade, a lei
deveria nascer por um caminho oposto: ser a expressão de um acordo
(ou contrato social), a partir de acúmulos de debate e enfrentamentos
realizados na sociedade, construindo-se, assim, determinada correla-
ção de forças favorável à aprovação e, o mais importante, à efetiva im-
plementação da mesma. Podemos retomar aqui a ideia de consciência
coletiva de Durkheim. As leis só se tornam realidade quando estão
conectadas com a consciência coletiva que lhes daria sustentação. O
que se acredita, no Brasil, é que as leis irão ajudar ou impulsionar
a transformação de uma determinada consciência coletiva. É possível
pensarmos que a aprovação de leis que criminalizam, por exemplo, o
racismo, a violência contra as mulheres e a homofobia pode contribuir
(talvez palidamente) para a transformação das mentalidades. Mas a lei
não tem dons mágicos de produzir relações sociais baseadas no res-
peito e no reconhecimento das diferenças. Acredito que a sociedade
brasileira tem muita fé na força transformativa das leis e tem fome de
punição. O direito criminal é robusto e pune com grande rigor crimes
contra as mulheres e os negros. As mulheres continuam morrendo.
Os negros continuam sendo a maioria dos excluídos na estratificação
social. E há uma forte pressão para a criminalização da homofobia.
2) A segunda dimensão de análise é pensarmos como se efetivam
as relações entre LGBTT nas múltiplas esferas sociais. Atualmente, a
sociedade brasileira vive dias de intenso debate e disputa em torno das
homossexualidades, seja pelo avanço da presença de lideranças religio-
sas LGBTTfóbicas em instâncias de poder, seja pela presença reiterada
de personagens gays nas telenovelas, nos espaços públicos, ou pelas
paradas do orgulho que reúnem milhões de LGBTTs em diversas cida-
des brasileiras. Ou seja, o debate público sobre as homossexualidades
saiu definitivamente do armário. No entanto, com essa afirmação não
se pode concluir que há uma visibilidade de toda população LGBTT de
forma isonômica. A população trans continua padecendo de uma invi-
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natos dessa população são contabilizados (equivocadamente, ao meu
ver) e classificados como assassinatos contra lésbicas e gays. O que su-
giro nomear como transfeminicídio tem um campo de intersecção com
o assassinato de lésbicas e gays, mas tem diferenças consideráveis.
As pessoas trans assassinadas passam a somar a retórica de ati-
vistas gays para denunciar a violência contra os gays. E aí produz-se a
ideia de que o Brasil é um dos países mais perigosos para os gays vive-
rem. Essa é uma meia verdade, conforme disse anteriormente. Se você
é gay, rico, branco e, principalmente, não é feminino, certamente você
será assimilado como quase heterossexual. Se você é gay e é feminino
(nesse caso, você pode ser negro ou branco, rico ou pobre), a possibili-
dade de violência contra você crescerá consideravelmente. No entanto,
as vidas das pessoas trans, principalmente das mulheres trans, valem
muito pouco. A violência, nesse caso, deve ser caracterizada como vio-
lência de gênero.
Explico melhor. Se as mulheres não trans são identificadas como o
gênero vulnerável, inferiorizado, quando os sujeitos negam o gênero de
origem e passam a demandar o reconhecimento social como membro
do gênero desqualificado, desvalorizado (o gênero feminino), teremos
como resultado uma repulsa total às suas existências. Dessa forma, um
homem que nega sua origem de gênero e identifica-se como mulher
estará quebrando a coluna dorsal das normas de gênero, porque:
1. nega a determinação biológica das identidades de gênero;
2. identifica-se com o desvalorizado socialmente. O feminino que
seus corpos encarnam é uma impossibilidade existencial e a
relação que se estabelece com eles é de abjeção.
Se é verdade que há muitas formas de performatizar o feminino (e
o masculino), também é verdade que a violência contra os femininos
não se dá igualmente. A abjeção, o nojo, aquilo que a linguagem jurí-
dica e o mundo não alcançam, não está nos corpos das mulheres não
trans, mas na existência trans.
Utilizamos o termo “homofobia” para significar a violência contra
todos os LGBTTs, uma vez que são considerados como marginalizados
e excluídos. O que estou propondo é pensar as hierarquias dentro deste
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