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RESUMO
Os estudos antropológicos utilizados por Hans Kelsen na construção de seu livro
“Society and Nature: a Sociological Inquiry” demonstram que nas sociedades
primitivas prevaleciam os interesses do grupo. A noção de indivíduo desenvolveu-se
ao longo do tempo, influenciando e sendo influenciada por transformações nas visões
de mundo, na organização social e no Direito. A moderna noção de direitos individuais
só é possível a partir do desenvolvimento de uma noção de indivíduo existindo por si e
para si e não como uma célula de um organismo social. A contraposição entre a visão
de mundo individualista e a visão de mundo coletivista ainda é relevante para o
mundo atual e lança luz sobre aspectos importantes da própria noção de direitos
fundamentais.
Abstract
The anthropologial studies used by Hans Kelsen as basis for “Society and Nature: a
Sociological Inquiry” show that, in primitive societies, the interests of the group were
paramount. The very idea of individual developed through time, influencing and being
*
Doutoranda pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – Fadisp. Mestre em Direito pela Fadisp.
Graduada em Direito pela Fadisp. Mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas
– FGV/SP. Graduada em Administração de Empresas pela Universidade de São Paulo – USP. Advogada
em São Paulo. patigralmeida@gmail.com
†
Mestrando pela Escola Paulista de Direito - EPD. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo
– USP. Graduado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP. Agente Fiscal de Rendas na
Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo. frtalmeida@gmail.com
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influenced by the transformations in worldview, in social organization and in Law. The
modern notion of individual rights is possible only after the development of the notion
of an individual who exists by himself and for himself and not as cell in a social
organism. The counterpoint between the individualistic worldview and the collectivist
worldview is still relevant for today’s world and sheds some light on significant aspects
of the very notion of fundamental rights.
1 Introdução
Direitos do homem são aqueles que correspondem aos valores naturais não
positivados atribuídos a todo ser humano (são considerados inerentes à condição
humana). Direitos Humanos são valores ligados a dignidade humana positivados em
Tratados Internacionais.
Direitos Fundamentais são valores vinculados a dignidade da pessoa humana e
a limitação do poder do Estado que são positivados nas Constituições de cada Estado.
Há uma celeuma na doutrina se estes direitos individuais do homem são naturais ou
sociais.
Para aqueles que acreditam nos direitos individuais do homem como naturais
tem-se o seguinte entendimento: o homem é livre por natureza, independente, titular
de direitos individuais inalienáveis e imprescritíveis, de direitos chamados naturais
indissoluvelmente unidos a sua qualidade de homem. As sociedades se formaram pela
união voluntária e consciente dos indivíduos, com a finalidade de assegurar a proteção
aos direitos individuais naturais.
Por isso os indivíduos impuseram limitações aos seus próprios direitos, mas
somente na medida do necessário para assegurar o livre exercício dos direitos de
todos. A coletividade organizada, o Estado, tem como fim proteger e sancionar os
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direitos individuais de cada um. A regra de direito, ou o direito objetivo, tem por
fundamento o direito subjetivo do indivíduo. Para José Joaquim Gomes Canotilho, a
relação entre direito subjetivo e direito objetivo “se localiza no terreno da história
política, isto é, no lócus globalizante onde procuram captar as idéias, as mentalidades,
o imaginário, a ideologia dominante a consciência coletiva, a ordem simbólica e a
cultura política.” (CANOTILHO, 2004, p.9).
Por outro lado, aqueles que, como Leon Duguit, não acreditam que os direitos
individuais do homem sejam naturais entendem que os que defendem a primeira
corrente possuem uma concepção individualista do direito que é insustentável por si
só porque o homem natural é isolado e por isso não pode trazer direitos anteriores à
vida em sociedade para conviver no grupo social. E, por considerar este homem
natural isolado, Duguit afirma que ele não tem direito. Isto porque todo direito implica
em uma relação entre dois sujeitos e que o indivíduo só pode ter direito quando vive
em sociedade. (DUGUIT, 1920, p.18).
O presente artigo utiliza como referência a obra de Hans Kelsen Society and
Nature – A sociological inquiry, a qual se fundamenta em farto material de pesquisas
etnográfico e antropológicas, para analisar o surgimento e a evolução do conceito de
indivíduo e as implicações dessa ideia para o moderno Direito. Em outras palavras,
com base nas evidências empíricas sistematizadas por Kelsen e nos comentários por
ele elaborados, este artigo pretende traçar um esboço de uma concepção de direitos
individuais que não resulta de uma visão apriorística como o jusnaturalismo nem
tampouco enxerga a sociedade como o organismo superior, do qual o indivíduo seria
tão somente uma célula.
Nas descrições das sociedades primitivas apresentadas por Hans Kelsen em
nenhum momento o ser humano foi retratado como um ser isolado que vivia sozinho.
Os humanos primitivos sempre conviverem em grupos que, com o tempo, evoluíram
para tribos e nações. Então, falar que o homem natural é um ser isolado não retrata a
realidade apontada pela antropologia social. O que existiu na história deste mundo foi
um grande número de grupos de pessoas, cada um com sua dinâmica própria, que se
desenvolveram de maneira a permitir o surgimento dos indivíduos.
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2 Sociedade e Natureza
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Eles eram marcados pelo medo de tudo o que é novo. O que acaba levando a
característica comportamental de ausência de curiosidade (não o incomoda a
contradição lógica).
Segundo Hans Kelsen, a necessidade de explicação não resulta
necessariamente em um raciocínio causal. O homem primitivo, de acordo com o
autor, tem uma necessidade de explicação em grau limitado (KELSEN, 1943, p.12):
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importantes foram: Schlesinger – o homem é o resultado de um sistema de essências;
Platão – o self imutável e transcendental; Descartes – dualismo entre corpo físico e
espiritual; Immanuel Kant – o ser equipado com categorias universais na mente. O que
existe em comum é o entendimento de que o fundamental no “self” é o duradouro e
permanete. (CHANDLER, 2000).
Na psicologia, uma das acepções mais aceitas descreve o “self” como o senso
de identidade de cada pessoa que envolve as representações mentais de experiências
individuais. De acordo com GAZZANIGA et all., essas representações mentais incluem
as memórias e as percepções do que acontece durante a vida de uma pessoa. Nas
palavras dos autores, “o eu também engloba os processos de pensamento da pessoa, o
corpo físico e a percepção consciente de estar separado dos outros e único. Esse senso
de eu é uma experiência integrada, contínua no tempo e no espaço”. (tradução nossa).
(GAZZANIGA et all., 2015).
Para a psicologia, o “self” é o próprio ser individualmente considerado, ou seja,
a tomada de consciência do ser como um entidade autônoma e independente do
outro.
O homem primitivo não apresentava qualquer experiência desenvolvida do seu
“self”. O “self” subliminar da sua tribo é muito superior a qualquer consciência
individual do eu de cada pessoa. O que é explicado pelo medo do ambiente que o
homem primitivo sentia. Ele acreditava que tudo ao seu redor, o que incluía seus
companheiros de tribo, os animais, os vegetais e os seres inanimados, poderia ser
habitados por espíritos ancestrais com poderes sobre-humanos.
Este episódio destacado por Hans Kelsen é bastante ilustrativo (KELSEN, 1943,
p.14):
Quando questionado a respeito das crenças de seu povo, um
esquimó respondeu ao explorador Rasmussen: 'Nós não
acreditamos, nós tememos. Nós tememos tudo o que não seja
familiar. Nós tememos tudo o que vemos ao nosso redor e todas as
coisas invisíveis também ao nosso redor, tudo o que ouvimos nas
histórias e mitos de nossos ancestrais. Por esse motivo temos nossos
costumes. (tradução nossa)
O medo das almas dos mortos, isto é, medo da vingança que eles podem
exercer sobre aqueles que ofendem a ordem social, assim como a esperança de
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proteção e apoio no caso de comportamento adequado – em suma, a crença na
função retribuitória das almas dos mortos é a base para a tão difundida prática de
veneração dos ancestrais entre os povos primitivos. Os ancestrais mortos são tudo e
fizeram tudo.
O homem primitivo travava uma batalha diária contra os perigos da natureza e
se sentia ameaçado por todos os lados. Os eventos naturais eram atribuídos às
punições aplicadas pelos seres sobre-humanos que agiam pelo princípio da
retribuição. Geralmente, quem interpretava os desejos dos ancestrais poderosos que
habitavam todo o meio ambiente ameaçador era o líder da tribo (que era seguido sem
questionamentos).
Neste contexto, não há como surgir a consciência egóica, a consciência do
“self”, que separa o homem civilizado da natureza e entrega o domínio desta a ele.
Para os primitivos, o ser humano, uma pedra, um animal, um vegetal – todos são
habitados pelos espíritos ancestrais poderosos. Não consegue separar o seu ego do
seu id porque não se sente sujeito separado do objeto e, por isso, identifica-se tão
facilmente com outros seres.
A falta de consciência egóica é somente o aspecto negativo de uma
mentalidade completamente determinada pela vida social. Por exemplo, em algumas
culturas, se determinada pessoa ficasse doente, todos os membros da sua família
deveriam ser submetidos ao tratamento. Ou se um membro da tribo fosse assassinado
por pessoa de outra tribo, o morto deveria ser reposto, ou seja, a tribo do assassino
teria que ceder um de seus membros para ser adotado pela tribo da vítima.
Essa consciência coletiva somada à tendência à substancialização do homem
primitivo explica a sua atitude coletivista. De acordo com Kelsen, o homem primitivo
não faz distinção “entre o corpo e suas condições, suas qualidades, as forças que o
movem, ou a maneira com que tal corpo se coloca em relação a outros corpos; ele
antes imagina essas qualidades, condições, forças e relações como substâncias”
(KELSEN, 1943, p.11). Ele prossegue afirmando que, para o pensamento coletivista do
homem primitivo, é de fundamental importância quais qualidades mentais e
“especialmente as morais, como o bem e o mal, e até mesmo atos moralmente
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qualificados, como o pecado, sejam considerados substâncias que, de alguma
maneira, se liguem ao corpo da pessoa, ou seja, a ele inerentes” (tradução nossa).
O homem primitivo imagina os valores resultantes de sua ordem social como
substância. Isso não significa que ele seja moralmente indiferente uma vez que é
limitado pelos laços sociais, sua moralidade equivale a seus laços sociais.
A ideia de que qualidades morais e legais são substâncias leva à crença de que
o mal, assim como a doença, é contagioso – a transgressão cometida por um membro
do grupo assume um caráter coletivo porque ela necessariamente contamina os
demais membros do grupo. Essa é a razão para a responsabilidade coletiva, tão
significativa para a ordem legal primitiva. Era plenamente justificável, por exemplo,
que os filhos expiassem os pecados cometidos pelo pai.
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reforço; psicólogos cognitivos estudam a maneira como os processos de pensamento
afetam a personalidade; e os humanistas dão maior atenção ao crescimento pessoal e
ao autoconhecimento. Ainda de acordo com os autores, “os psicólogos
contemporâneos estão interessados principalmente nas abordagens de traços e na
base biológica dos traços de personalidade” (tradução nossa). (GAZZANIGA et all.,
2015).
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5 A personalidade social do homem
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Segundo Hans kelsen, “uma consciência egóica fraca ligada a uma consciência
coletivista forte leva a uma sensibilidade exacerbada no que diz respeito ao
julgamento social, especialmente a um grande medo da desaprovação pública”.
A tendência do homem é direcionar as suas atitudes para os costumes bem
aceitos no grupo social, mesmo sendo diferentes de suas crenças, valores e desejos
pessoais. E o faz porque tem medo das pressões antagônicas e de ser marginalizado
do convívio social.
Os costumes do grupo social podem ser benéficos ou prejudiciais. Cabe à
pessoa fazer um juízo de valor e ponderar quais ela deve desafiar por ir de encontro
com a sua individualidade. Para tanto, a pessoa precisa ser dotada de força e poder de
perseverar em si mesma, ou seja, é necessário possuir uma consciência egóica forte.
Isso possibilita ao indivíduo viver em função de si mesmo e não em função das
expectativas do momento, que são as opiniões dos outros, as pressões da família, do
emprego, dos colegas e do patrão.
Atualmente, o ambiente ameaçador que consome o “self” do homem civilizado
é o medo da opinião e do julgamento negativo pelos seus pares. E para que tal mal
não lhe suceda é preciso seguir os costumes do seu grupo social.
Interessante observar que antes o “self” deixava de ser formado em razão da
ausência de consciência egóica e da tendência à substancialização e, agora, no mundo
atual, ele pode ser enfraquecido pelo medo do isolamento, do afastamento do grupo
social.
O homem atual possui autonomia para pensar e, supostamente, possui poder
para conhecer todas as coisas e a si mesmo.
O desenvolvimento das ciências ajudou o ser humano a entender como o
mundo externo funciona. Os eventos naturais que nas sociedades primitivas eram
vistos como sobrenaturais e formas de recompensas e punições agora, em sua
maioria, são explicados pela ciência.
Imaginou-se que com o fim do medo, da substancialização e das punições por
entidades sobrenaturais e com o desenvolvimento do racionalismo moderno, o
homem se voltaria para seu interior e desenvolveria uma forte consciência egoica.
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Entretanto, a racionalidade conquistada pelo ser humano foi usá-la para
aumentar o conhecimento sobre fenômenos e fatos exteriores. O olhar para si
mesmo, o conhecimento interior, o estabelecimento de valores pessoais e a busca por
respostas a perguntas como “quem sou eu no mundo” foram relegado para o segundo
plano.
O homem médio tem a preocupação fundamental que é a sobrevivência. Esta,
em regra, é assegurada pela aquisição de um trabalho. Por isso, o ser humano focou
sua atenção em desenvolver as habilidades necessárias para que conseguisse um bom
emprego. Depois é necessário manter esse trabalho. E, para tanto, adota para si os
costumes dos seus superiores e colegas de trabalho. De forma que não corre o risco
de ser excluído do grupo social.
O conhecimento de si mesmo e o desenvolvimento da consciência egóica forte
também não parecem ser prioridades para o homem da sociedade da era da
informação. Pelo contrário, parece que agora, pelo excesso de informações externas
com que é preciso lidar todos os dias não sobra tempo para a busca pelo
conhecimento de si.
De forma que a personalidade social do homem atual pode ser descrita de
maneira dual: externamente – com desenvolvimento das ciências e da tecnologia as
explicações aos fenômenos externos são acessíveis e o medo da punição pela
entidade sobrenatural não existe mais; internamente – continua não conhecendo a si
mesmo, não construindo uma consciência egóica forte, não traçando valores pessoais.
Para este homem dual não há mais o receio de ser punido por um ente
sobrenatural por suas transgressões à ordem social. Então, foi preciso criar um
arcabouço jurídico com normas claras que devem ser obedecidas e fixar as sanções
pelo seu descumprimento. E, neste conjunto de normas criadas para a vida do homem
em sociedade nos tempos atuais destacam-se os direitos individuais.
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6 Conclusão
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conceito de direitos fundamentais e os direitos subjetivos (atrelados à autonomia do
indivíduo).
Nesse sentido, conforme assinala SANTOS AMARAL NETO (1989), a autonomia
privada
problematiza as relações entre a vontade e a norma, levando as
concepções doutrinárias diversas, conforme se polarize sobre a
primeira, de natureza subjetiva, em que se dá a proeminência dos
interesses do agente, ou sobre a segunda, em que se visam os
interesses da comunidade, realçados pelo caráter objetivo da
declaração normativa.
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BIBLIOGRAFIA:
CHANDLER, Michael. Surviving time: The Persistence of identity in This Culture and
That. Culture & Psychology, 6 (2), 2000, pp.209-231. <
https://doi.org/10.1177/1354067X0062009>. Acesso em 02.04.2019.
DUGUIT, Leon. Las transformaciones generales del derecho privado desde el Código de
Napoleón. Segunda edición corregida y aumentada, Madrid, España, Francisco Beltrán,
Librería española y extranjera, 1920.
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