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DA MENTALIDADE PRIMITIVA AOS DIREITOS INDIVIDUAIS: UMA LEITURA DE “SOCIETY

AND NATURE, A SOCIOLOGICAL INQUIRY”, DE HANS KELSEN

Patrícia De Battisti Almeida*


Fabio Rodrigues Teixeira de Almeida†

RESUMO
Os estudos antropológicos utilizados por Hans Kelsen na construção de seu livro
“Society and Nature: a Sociological Inquiry” demonstram que nas sociedades
primitivas prevaleciam os interesses do grupo. A noção de indivíduo desenvolveu-se
ao longo do tempo, influenciando e sendo influenciada por transformações nas visões
de mundo, na organização social e no Direito. A moderna noção de direitos individuais
só é possível a partir do desenvolvimento de uma noção de indivíduo existindo por si e
para si e não como uma célula de um organismo social. A contraposição entre a visão
de mundo individualista e a visão de mundo coletivista ainda é relevante para o
mundo atual e lança luz sobre aspectos importantes da própria noção de direitos
fundamentais.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Direitos Humanos; Antropologia; Psicologia;


Hans Kelsen; Coletivismo; Individualismo.

Abstract
The anthropologial studies used by Hans Kelsen as basis for “Society and Nature: a
Sociological Inquiry” show that, in primitive societies, the interests of the group were
paramount. The very idea of individual developed through time, influencing and being

*
Doutoranda pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – Fadisp. Mestre em Direito pela Fadisp.
Graduada em Direito pela Fadisp. Mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas
– FGV/SP. Graduada em Administração de Empresas pela Universidade de São Paulo – USP. Advogada
em São Paulo. patigralmeida@gmail.com

Mestrando pela Escola Paulista de Direito - EPD. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo
– USP. Graduado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo – USP. Agente Fiscal de Rendas na
Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo. frtalmeida@gmail.com

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influenced by the transformations in worldview, in social organization and in Law. The
modern notion of individual rights is possible only after the development of the notion
of an individual who exists by himself and for himself and not as cell in a social
organism. The counterpoint between the individualistic worldview and the collectivist
worldview is still relevant for today’s world and sheds some light on significant aspects
of the very notion of fundamental rights.

Keywords: Fundamental Rights; Human Rights; Anthropology; Psychology; Hans


Kelsen; Collectivism; Individualism.

1 Introdução

Direitos do homem são aqueles que correspondem aos valores naturais não
positivados atribuídos a todo ser humano (são considerados inerentes à condição
humana). Direitos Humanos são valores ligados a dignidade humana positivados em
Tratados Internacionais.
Direitos Fundamentais são valores vinculados a dignidade da pessoa humana e
a limitação do poder do Estado que são positivados nas Constituições de cada Estado.
Há uma celeuma na doutrina se estes direitos individuais do homem são naturais ou
sociais.
Para aqueles que acreditam nos direitos individuais do homem como naturais
tem-se o seguinte entendimento: o homem é livre por natureza, independente, titular
de direitos individuais inalienáveis e imprescritíveis, de direitos chamados naturais
indissoluvelmente unidos a sua qualidade de homem. As sociedades se formaram pela
união voluntária e consciente dos indivíduos, com a finalidade de assegurar a proteção
aos direitos individuais naturais.
Por isso os indivíduos impuseram limitações aos seus próprios direitos, mas
somente na medida do necessário para assegurar o livre exercício dos direitos de
todos. A coletividade organizada, o Estado, tem como fim proteger e sancionar os

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direitos individuais de cada um. A regra de direito, ou o direito objetivo, tem por
fundamento o direito subjetivo do indivíduo. Para José Joaquim Gomes Canotilho, a
relação entre direito subjetivo e direito objetivo “se localiza no terreno da história
política, isto é, no lócus globalizante onde procuram captar as idéias, as mentalidades,
o imaginário, a ideologia dominante a consciência coletiva, a ordem simbólica e a
cultura política.” (CANOTILHO, 2004, p.9).
Por outro lado, aqueles que, como Leon Duguit, não acreditam que os direitos
individuais do homem sejam naturais entendem que os que defendem a primeira
corrente possuem uma concepção individualista do direito que é insustentável por si
só porque o homem natural é isolado e por isso não pode trazer direitos anteriores à
vida em sociedade para conviver no grupo social. E, por considerar este homem
natural isolado, Duguit afirma que ele não tem direito. Isto porque todo direito implica
em uma relação entre dois sujeitos e que o indivíduo só pode ter direito quando vive
em sociedade. (DUGUIT, 1920, p.18).
O presente artigo utiliza como referência a obra de Hans Kelsen Society and
Nature – A sociological inquiry, a qual se fundamenta em farto material de pesquisas
etnográfico e antropológicas, para analisar o surgimento e a evolução do conceito de
indivíduo e as implicações dessa ideia para o moderno Direito. Em outras palavras,
com base nas evidências empíricas sistematizadas por Kelsen e nos comentários por
ele elaborados, este artigo pretende traçar um esboço de uma concepção de direitos
individuais que não resulta de uma visão apriorística como o jusnaturalismo nem
tampouco enxerga a sociedade como o organismo superior, do qual o indivíduo seria
tão somente uma célula.
Nas descrições das sociedades primitivas apresentadas por Hans Kelsen em
nenhum momento o ser humano foi retratado como um ser isolado que vivia sozinho.
Os humanos primitivos sempre conviverem em grupos que, com o tempo, evoluíram
para tribos e nações. Então, falar que o homem natural é um ser isolado não retrata a
realidade apontada pela antropologia social. O que existiu na história deste mundo foi
um grande número de grupos de pessoas, cada um com sua dinâmica própria, que se
desenvolveram de maneira a permitir o surgimento dos indivíduos.

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2 Sociedade e Natureza

A obra de Hans Kelsen Society and Nature – A sociological inquiry é o ponto de


partida para elaboração deste trabalho. A investigação foi baseada em material
etnográfico e buscou entender como o homem primitivo interpreta a natureza que o
cerca.
Para Kelsen, Sociedade e Natureza são os resultados de dois métodos
diferentes de pensamento e somente assim são dois objetos distintos. Isto porque os
mesmos elementos, se estiverem conectados entre si pelo princípio da causalidade,
constituem a natureza e, caso ligados por um princípio normativo, constituem
sociedade. (KELSEN, 1943, p.8).
Houve períodos na história do pensamento humano em que o homem não
pensou em termos de causalidade – isso significa que o homem não conectou os fatos
percebidos pelos seus sentidos de acordo com o princípio da causalidade, mas de
acordo com os mesmos princípios que regulavam sua conduta em relação a outros
homens. A lei da causalidade como um princípio do pensamento científico surge em
um nível relativamente alto de desenvolvimento mental. Ela não é conhecida pelos
povos primitivos. Eles interpretam 'natureza' de acordo com normas sociais,
especialmente de acordo com a lex talionis, a norma da retribuição - 'natureza' é uma
parte intrínseca de sua sociedade.
A ciência moderna, por outro lado, tenta realizar seu objetivo monista
concebendo a sociedade como parte da natureza e não a natureza como parte da
sociedade.
De acordo com os estudos de Hans Kelsen, o aspecto emocional do homem
primitivo que surge do seu sentimento e da sua volição prevalecem em relação ao
componente racional.
A falta de domínio técnico para explicar os fatos naturais parece explicar a
marcante presença da magia no cotidiano dos humanos primitivos. Os seres sobre-
humanos que, por magia, possuem o poder de satisfazer as suas necessidades.

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Eles eram marcados pelo medo de tudo o que é novo. O que acaba levando a
característica comportamental de ausência de curiosidade (não o incomoda a
contradição lógica).
Segundo Hans Kelsen, a necessidade de explicação não resulta
necessariamente em um raciocínio causal. O homem primitivo, de acordo com o
autor, tem uma necessidade de explicação em grau limitado (KELSEN, 1943, p.12):

(...) essa necessidade é menos pronunciada que qualquer outra que


ele possa ter e está sujeita a seus desejos e medos. Se eventos
extraordinários, real ou imaginariamente, afetam seus interesses
vitais e atraem a atenção do homem primitivo, sua resposta
imediata não será a explicação racional, mas a reação emocional.
Seu totalmente secundário desejo por explicação se satisfaz quando
ele consegue interpretar o fato em questão de acordo com sua
ordem social, a qual também inclui a natureza. Ele se satisfaz
quando os fatos exigindo explicação podem ser interpretados como
recompensa ou punição.“ (tradução nossa)

Constata-se que o pensamento do homem primitivo é determinado pela idéia


de retribuição e não pela lei da causalidade.
O pensamento do homem atual de que os eventos da natureza são
determinados pelas leis gerais que podem ser observadas e testadas foi construído,
paulatinamente, pela observação de poucos homens geniais em que a curiosidade
prevaleceu sobre o medo do novo.
Desenvolveu-se o raciocínio causal, de acordo com o qual a regularidade
percebida em uma sucessão de eventos é considerada como necessária.
Hodiernamente, mesmo com as explicações científicas para os eventos
naturais e das conexões causais reais (atribuir o resultado a algum fato que por si só
possa ser considerado sua causa), muitos escolhem a emoção e a possibilidade de
salvação por um ser sobre-humano.

3 A falta de consciência egóica no homem primitivo

Não há consenso na doutrina sobre o conceito de “self”. Na filosofia, as


concepções do “self” são distintas. De acordo com CHANDLER as acepções mais

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importantes foram: Schlesinger – o homem é o resultado de um sistema de essências;
Platão – o self imutável e transcendental; Descartes – dualismo entre corpo físico e
espiritual; Immanuel Kant – o ser equipado com categorias universais na mente. O que
existe em comum é o entendimento de que o fundamental no “self” é o duradouro e
permanete. (CHANDLER, 2000).
Na psicologia, uma das acepções mais aceitas descreve o “self” como o senso
de identidade de cada pessoa que envolve as representações mentais de experiências
individuais. De acordo com GAZZANIGA et all., essas representações mentais incluem
as memórias e as percepções do que acontece durante a vida de uma pessoa. Nas
palavras dos autores, “o eu também engloba os processos de pensamento da pessoa, o
corpo físico e a percepção consciente de estar separado dos outros e único. Esse senso
de eu é uma experiência integrada, contínua no tempo e no espaço”. (tradução nossa).
(GAZZANIGA et all., 2015).
Para a psicologia, o “self” é o próprio ser individualmente considerado, ou seja,
a tomada de consciência do ser como um entidade autônoma e independente do
outro.
O homem primitivo não apresentava qualquer experiência desenvolvida do seu
“self”. O “self” subliminar da sua tribo é muito superior a qualquer consciência
individual do eu de cada pessoa. O que é explicado pelo medo do ambiente que o
homem primitivo sentia. Ele acreditava que tudo ao seu redor, o que incluía seus
companheiros de tribo, os animais, os vegetais e os seres inanimados, poderia ser
habitados por espíritos ancestrais com poderes sobre-humanos.
Este episódio destacado por Hans Kelsen é bastante ilustrativo (KELSEN, 1943,
p.14):
Quando questionado a respeito das crenças de seu povo, um
esquimó respondeu ao explorador Rasmussen: 'Nós não
acreditamos, nós tememos. Nós tememos tudo o que não seja
familiar. Nós tememos tudo o que vemos ao nosso redor e todas as
coisas invisíveis também ao nosso redor, tudo o que ouvimos nas
histórias e mitos de nossos ancestrais. Por esse motivo temos nossos
costumes. (tradução nossa)

O medo das almas dos mortos, isto é, medo da vingança que eles podem
exercer sobre aqueles que ofendem a ordem social, assim como a esperança de

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proteção e apoio no caso de comportamento adequado – em suma, a crença na
função retribuitória das almas dos mortos é a base para a tão difundida prática de
veneração dos ancestrais entre os povos primitivos. Os ancestrais mortos são tudo e
fizeram tudo.
O homem primitivo travava uma batalha diária contra os perigos da natureza e
se sentia ameaçado por todos os lados. Os eventos naturais eram atribuídos às
punições aplicadas pelos seres sobre-humanos que agiam pelo princípio da
retribuição. Geralmente, quem interpretava os desejos dos ancestrais poderosos que
habitavam todo o meio ambiente ameaçador era o líder da tribo (que era seguido sem
questionamentos).
Neste contexto, não há como surgir a consciência egóica, a consciência do
“self”, que separa o homem civilizado da natureza e entrega o domínio desta a ele.
Para os primitivos, o ser humano, uma pedra, um animal, um vegetal – todos são
habitados pelos espíritos ancestrais poderosos. Não consegue separar o seu ego do
seu id porque não se sente sujeito separado do objeto e, por isso, identifica-se tão
facilmente com outros seres.
A falta de consciência egóica é somente o aspecto negativo de uma
mentalidade completamente determinada pela vida social. Por exemplo, em algumas
culturas, se determinada pessoa ficasse doente, todos os membros da sua família
deveriam ser submetidos ao tratamento. Ou se um membro da tribo fosse assassinado
por pessoa de outra tribo, o morto deveria ser reposto, ou seja, a tribo do assassino
teria que ceder um de seus membros para ser adotado pela tribo da vítima.
Essa consciência coletiva somada à tendência à substancialização do homem
primitivo explica a sua atitude coletivista. De acordo com Kelsen, o homem primitivo
não faz distinção “entre o corpo e suas condições, suas qualidades, as forças que o
movem, ou a maneira com que tal corpo se coloca em relação a outros corpos; ele
antes imagina essas qualidades, condições, forças e relações como substâncias”
(KELSEN, 1943, p.11). Ele prossegue afirmando que, para o pensamento coletivista do
homem primitivo, é de fundamental importância quais qualidades mentais e
“especialmente as morais, como o bem e o mal, e até mesmo atos moralmente

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qualificados, como o pecado, sejam considerados substâncias que, de alguma
maneira, se liguem ao corpo da pessoa, ou seja, a ele inerentes” (tradução nossa).
O homem primitivo imagina os valores resultantes de sua ordem social como
substância. Isso não significa que ele seja moralmente indiferente uma vez que é
limitado pelos laços sociais, sua moralidade equivale a seus laços sociais.
A ideia de que qualidades morais e legais são substâncias leva à crença de que
o mal, assim como a doença, é contagioso – a transgressão cometida por um membro
do grupo assume um caráter coletivo porque ela necessariamente contamina os
demais membros do grupo. Essa é a razão para a responsabilidade coletiva, tão
significativa para a ordem legal primitiva. Era plenamente justificável, por exemplo,
que os filhos expiassem os pecados cometidos pelo pai.

4 A personalidade no homem atual

Os psicólogos entendem que a personalidade consiste em pensamentos


característicos, respostas emocionais e comportamentos das pessoas. Assim, a
personalidade de uma pessoa é percebida por meio de sua conduta, sua fala, suas
respostas emocionais e a visão que o terceiro tem do indivíduo. (GAZZANIGA et all.,
2015).
Os traços da personalidade que são associados a tendências comportamentais,
cognitivas ou emocionais – chamadas de disposições – sofrem influência de múltiplos
genes herdados dos pais.
Interessante observar que os estudos com gêmeos univitelinos fornecem
evidências consistentes de que os genes respondem por cerca de metade da variação
na personalidade. (MUNAFÒ & FLINT, 2011)
A palavra personalidade vem da palavra latina persona, que significa máscara.
No século XX, os psicólogos abordaram o estudo da personalidade a partir de
diferentes perspectivas. De acordo com GAZZANIGA et all., os teóricos psicodinâmicos
defendem que a personalidade é determinada por forças inconscientes; os adeptos do
behaviorismo, por sua vez, acreditam que a personalidade resulta de histórias de

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reforço; psicólogos cognitivos estudam a maneira como os processos de pensamento
afetam a personalidade; e os humanistas dão maior atenção ao crescimento pessoal e
ao autoconhecimento. Ainda de acordo com os autores, “os psicólogos
contemporâneos estão interessados principalmente nas abordagens de traços e na
base biológica dos traços de personalidade” (tradução nossa). (GAZZANIGA et all.,
2015).

O desenvolvimento da personalidade resulta da combinação de três fatores:


herança genética, forças ambientais e o meio social. Redin & Massarolo entendem
que o essencial para a constituição da personalidade é a atividade. Nas suas palavras,
“ O pressuposto de que o desenvolvimento da personalidade pode
ser deduzido diretamente das forças hereditárias, de um lado e, das
forças ambientais, de outro, ainda que premissas necessárias, deixa
de lado o essencial quanto à explicação da origem, desenvolvimento
e formação da personalidade: a atividade. Quer dizer que as
premissas hereditárias e ambientais somente poderão atuar se o
sujeito agir, ou seja, desempenhar atividades especificas, atividades
estas que têm sua origem na prática social”. (REDIN &
MASSAROLO, 1989).

Os autores diferenciam indivíduo e personalidade. O indivíduo é indivisível, um


sujeito concreto, e as especificidades de cada um resultam da herança genética e da
experiência individual e social acumulada ao longo dos anos. A personalidade, por sua
vez, não se divide e é construída pela atividade do sujeito nas relações sociais e nas
interações ambientais. Esta atividade é sempre motivada e voltada para alcançar um
fim. Embora a pessoa saiba qual objetivo deseja atingir, ela nem sempre tem
consciência dos motivos.
Constata-se que as características comuns da personalidade são: globalidade –
elementos inatos, adquiridos, orgânicos e sociais; social – hábitos e características
adquiridas em resultado das interações sociais, que promovem o ajustamento do
indivíduo ao meio social; dinamicidade – vários elementos interagem, combinam-se,
recebem novas influências e adaptam-se as novas circunstâncias; individualidade – é o
conjunto de todos os aspectos próprios do indivíduo pelos quais ele se distingue dos
outros.

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5 A personalidade social do homem

Historicamente, os homens tiverem que sobreviver às adversidades do meio


ambiente e lutar por recursos escassos como água e comida. O ser humano aprendeu
que a estratégia de viver em grupos sociais era bem sucedida. Os seres humanos
contemporâneos herdaram os genes que codificam os comportamentos de sucesso
(ser expulso do grupo tinha consequências terríveis para sua sobrevivência). Por isso,
ao longo da história, os homens sempre fizeram muito esforço para manter boas
relações com os demais membros do grupo.
Com a finalidade de ordenar a vida em comunidade e possibilitar um convívio
razoável dentro de determinado grupo social são utilizados nas Sociedades Primitivas
os costumes. Hans Kelsen, em sua obra Society and nature, ensina (KELSEN, 1943,
p.21):
Essa completa submissão do indivíduo ao grupo também se
manifesta em um tradicionalismo próprio da mentalidade primitiva,
no caráter costumeiro da formação da lei, na observação
exageradamente escrupulosa de costumes e usos herdados dos
ancestrais (e por eles fiscalizados), e no fato de que rompimentos da
ordem sociais ocorrem com menor frequência nas sociedades
primitivas do que nas civilizadas (tradução nossa).

Interessante observar que o domínio da emoção na sociedade primitiva e a


presença do medo da punição por seres sobrenaturais levam os seres humanos a
conviver em sociedade respeitando os costumes de seu grupo.
Na sociedade primitiva, o homem estava submetido às verdades reveladas pelo
Chefe da Tribo, que era o responsável por se comunicar com a entidade sobrenatural.
Dessa forma, o líder era respeitado como o detentor de todo o conhecimento
necessário para o bom convívio social.
As ações das pessoas refletem os costumes presentes no seu grupo social. O
indivíduo já tem em si a expectativa de que determinada ação irá gerar aceitação ou
recusa pelos seus pares.

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Segundo Hans kelsen, “uma consciência egóica fraca ligada a uma consciência
coletivista forte leva a uma sensibilidade exacerbada no que diz respeito ao
julgamento social, especialmente a um grande medo da desaprovação pública”.
A tendência do homem é direcionar as suas atitudes para os costumes bem
aceitos no grupo social, mesmo sendo diferentes de suas crenças, valores e desejos
pessoais. E o faz porque tem medo das pressões antagônicas e de ser marginalizado
do convívio social.
Os costumes do grupo social podem ser benéficos ou prejudiciais. Cabe à
pessoa fazer um juízo de valor e ponderar quais ela deve desafiar por ir de encontro
com a sua individualidade. Para tanto, a pessoa precisa ser dotada de força e poder de
perseverar em si mesma, ou seja, é necessário possuir uma consciência egóica forte.
Isso possibilita ao indivíduo viver em função de si mesmo e não em função das
expectativas do momento, que são as opiniões dos outros, as pressões da família, do
emprego, dos colegas e do patrão.
Atualmente, o ambiente ameaçador que consome o “self” do homem civilizado
é o medo da opinião e do julgamento negativo pelos seus pares. E para que tal mal
não lhe suceda é preciso seguir os costumes do seu grupo social.
Interessante observar que antes o “self” deixava de ser formado em razão da
ausência de consciência egóica e da tendência à substancialização e, agora, no mundo
atual, ele pode ser enfraquecido pelo medo do isolamento, do afastamento do grupo
social.
O homem atual possui autonomia para pensar e, supostamente, possui poder
para conhecer todas as coisas e a si mesmo.
O desenvolvimento das ciências ajudou o ser humano a entender como o
mundo externo funciona. Os eventos naturais que nas sociedades primitivas eram
vistos como sobrenaturais e formas de recompensas e punições agora, em sua
maioria, são explicados pela ciência.
Imaginou-se que com o fim do medo, da substancialização e das punições por
entidades sobrenaturais e com o desenvolvimento do racionalismo moderno, o
homem se voltaria para seu interior e desenvolveria uma forte consciência egoica.

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Entretanto, a racionalidade conquistada pelo ser humano foi usá-la para
aumentar o conhecimento sobre fenômenos e fatos exteriores. O olhar para si
mesmo, o conhecimento interior, o estabelecimento de valores pessoais e a busca por
respostas a perguntas como “quem sou eu no mundo” foram relegado para o segundo
plano.
O homem médio tem a preocupação fundamental que é a sobrevivência. Esta,
em regra, é assegurada pela aquisição de um trabalho. Por isso, o ser humano focou
sua atenção em desenvolver as habilidades necessárias para que conseguisse um bom
emprego. Depois é necessário manter esse trabalho. E, para tanto, adota para si os
costumes dos seus superiores e colegas de trabalho. De forma que não corre o risco
de ser excluído do grupo social.
O conhecimento de si mesmo e o desenvolvimento da consciência egóica forte
também não parecem ser prioridades para o homem da sociedade da era da
informação. Pelo contrário, parece que agora, pelo excesso de informações externas
com que é preciso lidar todos os dias não sobra tempo para a busca pelo
conhecimento de si.
De forma que a personalidade social do homem atual pode ser descrita de
maneira dual: externamente – com desenvolvimento das ciências e da tecnologia as
explicações aos fenômenos externos são acessíveis e o medo da punição pela
entidade sobrenatural não existe mais; internamente – continua não conhecendo a si
mesmo, não construindo uma consciência egóica forte, não traçando valores pessoais.
Para este homem dual não há mais o receio de ser punido por um ente
sobrenatural por suas transgressões à ordem social. Então, foi preciso criar um
arcabouço jurídico com normas claras que devem ser obedecidas e fixar as sanções
pelo seu descumprimento. E, neste conjunto de normas criadas para a vida do homem
em sociedade nos tempos atuais destacam-se os direitos individuais.

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6 Conclusão

Mesmo na mais remota antiguidade, quando os homens viviam em pequenos


grupos, já havia regras de convívio. Tais regras eram fixadas pelo Chefe do grupo, que
se comunicava com as entidades sobrenaturais, de acordo com a crença prevalente.
Nesta comunidade, de forma precária, já estava presente o direito subjetivo que
envolve um poder de querer, ou o poder de impor aos demais o respeito a sua
vontade. Ora, as regras trazidas pelo Chefe da Tribo permitiam a qualquer um do
grupo querer e impor aos demais o respeito a sua vontade – se fossem conformes às
regras do Grupo Social.
De forma que antropologicamente falando o homem primitivo não é um ser
isolado. Os direitos são aqueles que garantem a sobrevivência de todos os membros
da tribo de forma mais harmônica possível dentro daquela realidade social, em
determinado tempo e espaço.
Com o passar do tempo e a evolução histórica, os direitos dos membros da
tribo também evoluíram e passaram a ser conhecidos como direitos humanos e,
depois, direitos fundamentais (Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948).
Por outro lado, a autonomia privada era praticamente inexistente nas
sociedades primitivas. Por autonomia privada entende-se a aptidão para construir as
próprias leis. O termo tem origem no grego. “Auto” significa “o mesmo” e “nomos”
significa “lei” e “governo”. Juridicamente, autonomia significa autogoverno e
autodeterminação conforme valores próprios, decisão consciente e ação – de forma
que o indivíduo possa gerir sua vida sem ingerências de outros (BEAUCHAMP &
CHILDRESS, 2002, p. 137).
Nas sociedades primitivas, a consciência de si como ser independente do grupo
social era fraca. Por isso, não se buscava a realização da vontade do indivíduo, mas
fazer o que era bom para o grupo social.
Em grande parte das Sociedades atuais há o respeito à autonomia do outro
como limite à própria liberdade para o indivíduo se determinar. A autonomia privada
entendida como um Direito Fundamental. Assim, no plano jurídico há conexão entre o

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conceito de direitos fundamentais e os direitos subjetivos (atrelados à autonomia do
indivíduo).
Nesse sentido, conforme assinala SANTOS AMARAL NETO (1989), a autonomia
privada
problematiza as relações entre a vontade e a norma, levando as
concepções doutrinárias diversas, conforme se polarize sobre a
primeira, de natureza subjetiva, em que se dá a proeminência dos
interesses do agente, ou sobre a segunda, em que se visam os
interesses da comunidade, realçados pelo caráter objetivo da
declaração normativa.

Para a existência de direitos subjetivos, é necessário antes que existam


sujeitos. Da mesma forma, só é possível vislumbrar direitos fundamentais, direitos
humanos, quando existem indivíduos. Não obstante o reconhecimento pela doutrina
de novas gerações de direitos dirigidos à coletividade, os direitos fundamentais
nasceram como direitos individuais.
Não é possível, portanto, diante das evidências antropológicas (aqui
mencionadas a partir do estudo realizado por Kelsen) imaginar um homem pré-
jurídico vivendo em isolamento na natureza que em algum momento se junta a outros
homens e cria uma sociedade.
Primeiro havia o grupo e não existia a consciência individual. Regras existiam e,
nesse sentido, é possível dizer que havia também o Direito. Mas os direitos individuais
são uma conquista do “eu”, do “self”; são o reflexo no mundo jurídico do
desenvolvimento da consciência egóica.
E é de suma importância que essa ideia seja preservada como um contraponto
a velhas formas de coletivismo que podem ressurgir a cada momento e às novas
roupagens que o pensamento coletivista assume no mundo moderno fragmentado em
grupos de interesse que buscam proteções e direitos especiais (pois os membros de
tais grupos deixam de ser indivíduos e passar a extrair seu senso de identidade dos
valores do grupo).

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BIBLIOGRAFIA:

BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola,


2002.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra:


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CHANDLER, Michael. Surviving time: The Persistence of identity in This Culture and
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GAZZANIGA, Michael S; HEATHERTON, Todd F; HALPERN, Diane F. Psychological


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KELSEN, Hans. Society and Nature: A Sociological Inquiry. The University of Chicago
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MUNAFÒ, Marcus R; FLINT, Jonathan. Dissecting the genetic architecture of human
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REDIN, Euclides; MASSAROLO, Adelino. A teoria Histórico-Social da Personalidade. Rio


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http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/fe/article/viewFile/61061/59279 Acesso em 02.04.2019 .

SANTOS AMARAL NETO, Francisco. Revista de informação legislativa : v. 26, n. 102


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