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Introdução

Neste ensaio será proposta uma interpretação expandida do conceito de Ecologia


(no que diz respeito à Filosofia), com base no modelo ontológico delineado pela
Ontologia Objeto-Orientada, que passará a abranger todo tipo de relação entre entes de
qualquer espécie, e não apenas a relação entre organismos e habitats. Essa ampliação
decorre da maneira como entes outrora excluídos desse campo do pensamento hoje
impingem sobre o cotidiano, as decisões e o futuro dos seres humanos. 1 Atualmente
questões ecológicas estão presentes nas mais variadas esferas da vida, das decisões
domésticas a respeito do lixo a decisões políticas intergovernamentais com relação às
emissões de carbono. Sendo assim, um conceito de Ecologia que permeie todas essas
esferas é desejável, se não necessário, para que seja possível lidar com as questões que
as condições atuais do planeta suscitam.
Está a ser negociada a inclusão de uma nova época na escala temporal da
Geologia - chamada Antropoceno, a "Idade do Homem" - caracterizada pelas marcas
claramente discerníveis do impacto humano na crosta terrestre; uma camada de
carbono depositada ao longo dos séculos, cuja origem é a queima de combustíveis
fósseis, e uma camada de matéria radioativa, depositada a partir de 1945, com as
primeiras explosões nucleares. 2 Somando-se a isso a constatação indiscutível de que os
ritmos acelerados da atual fase de aquecimento global são de origem antropogênica, é
fácil construir uma narrativa na qual o ser humano é o vilão. Porém, demonizá-lo, como

1
Morton, 2010, pp. 11, 28
2
Morton, 2013-B, pp.4-5

1
aponta Bruno Latour, significa tomá-lo ainda como um ente excepcional, e é
exatamente isso que este ensaio procura evitar ao fundamentar seu conceito de
Ecologia sobre bases objeto-orientadas.3
A Ontologia Objeto-Orientada (cujo preceptor é o filósofo americano Graham
Harman) define os objetos como os entes individuais específicos que compõem o
cosmos.4 São objetos: entes de qualquer escala, materiais ou não, contanto que
possuam unicidade, ou seja, resistam ser reduzidos a suas partes, efeitos ou relações.
De raquetes a elefantes, de Hamlet às cataratas do Iguaçu, todos são igualmente
objetos. Este modelo fornece o esquema para uma ontologia plana, não-hierárquica,
que problematiza o papel coadjuvante ao qual o correlacionismo prevalecente - a
noção, cuja origem atribui-se ao pensamento de Immanuel Kant, de que há uma fenda
entre o sujeito transcendental (humano) e a coisa em-si - relega tudo o que não
abrange, em outras palavras, a Ontologia Objeto-Orientada estabelece um patamar
ontológico único, compartilhado por todo tipo de objeto, sem que um deles (ou uma
categoria de objetos) possua estatuto privilegiado ou especial acesso à realidade (por
via da racionalidade ou de qualquer outra forma).5
Ao localizar todo tipo de ente num mesmo nível ontológico, o papel de cada um
na constituição da realidade é reconhecido, o que abre caminho para um pensamento
mais ecologicamente consciente, ou seja, que leva em consideração a maneira como
objetos de toda sorte existem, conjugam-se e interagem - sejam eles humanos ou não-
humanos, visto que, nos moldes desta orientação, o humano consta como mais um
objeto entre muitos.6

3
Latour, 1994, p. 123
4
Harman, 2011-A, pp.5-6
5
Latour, 1994, p. 56
Morton, 2013-B, p. 9
6
Morton, 2013-A, pp. 62-4
Harman, 2012-A, p.17

2
A crise ambiental anuncia uma crise no pensamento; quando Etienne Turpin cita
a formulação deleuziana que afirma que a capacidade de elaborar problemas é a tarefa
fundamental da Filosofia, ele aponta para a maneira como a concepção do Antropoceno
representa uma oportunidade para a descoberta de novos rumos, e para uma profunda
transformação na trajetória do pensamento. O Antropoceno (e a crise ambiental que o
acompanha) convoca discussão por parte não só da comunidade científica, mas também
das humanidades, da classe política e do público em geral. 7 Na base deste debate está o
lugar ocupado por cada objeto (natural, vivo, senciente, humano, ou não) no plano
ontológico, o tema deste ensaio encontra-se, assim, no ponto de partida para tais
transformações e descobertas.

A primeira parte deste ensaio ocupar-se-á, nomeadamente, dos objetos.


Inicialmente será apresentada a crítica ao chamado correlacionismo. A fenda entre o
sujeito e o objeto em-si, tradicionalmente uma exclusividade humana, será distribuída
pela Ontologia Objeto-Orientada entre todos os objetos. Estes, da mesma maneira
como o sujeito humano, serão incapazes de acessar qualquer outro objeto diretamente,
toda interação acontecerá sempre através de simulacros sensíveis produzidos no ato da
interação.
Em seguida, será delineada a maneira como os objetos vem sendo abordados ao
longo da história da Filosofia. Serão descritas as duas principais estratégias usadas para
anular o objeto (o minar e o dissipar) em favor de um outro ente.
Na seção ´Os Objetos e suas Relações` serão introduzidas algumas das principais
noções que constituem a estrutura deste modelo; o objeto real e o objeto sensível (a
essência que se retira de qualquer contato e o perfil estético que se mostra,
respectivamente), a estrutura do como (a maneira como um objeto tem acesso ao

7
Turpin, 2013, p.10
“(...) problems get the solutions they deserve according to the terms by which they are created as
problems.”

3
outro) e a causalidade vicária (causalidade indireta, a forma como objetos reais jamais
se encontram diretamente, mas são sempre mediados pelos objetos sensíveis).
Na segunda parte do ensaio o tema da Ecologia será posto em foco e
desenvolvido, sempre em relação às bases ontológicas estabelecidas na primeira parte.
Será discutida a maneira como a Ecologia hoje sofre com a imprecisão, pois, sua própria
definição encontra-se muitas vezes apoiada sobre conceitos problemáticos (a Natureza
ou o natural, por exemplo) mas que, ainda assim, questões relacionadas à Ecologia são
cada dia mais variadas e mais presentes - dada a compreensão de que o ser humano
transformou-se em uma das mais potentes forças planetárias ao mesmo tempo que foi
apontado como responsável pelos atuais transtornos climáticos. Contudo, o objetivo
deste ensaio não é tornar precisos esses conceitos; alguns deles serão rejeitados (como
o próprio conceito de ´Natureza`, que não existe à parte dos entes que a constituem),
outros serão apresentados em toda a sua nebulosidade e imprecisão, traços que, como
será observado, são comuns aos objetos em geral.8
Em seguida, o estranho-estranho será apresentado como contraparte do discurso
ecológico ao objeto real do discurso ontológico; o ente individual, que se afasta de
qualquer encontro direto mas que, ainda assim, é o elemento fundamental na
constituição do ambiente. A interconexão entre todos os estranhos-estranhos compõe
aquilo a que Morton dá o nome de malha que, nos termos de Harman, corresponde ao
éter sensível no qual todos os objetos encontram-se submersos.9
O encontro com estranho-estranho será apresentado como um evento
essencialmente inquietante, pois, no coração de cada ente existe um hiato entre sua
essência (o objeto real em plena execução) e sua aparência (seus traços estéticos, a
parte que se mostra aos entes com os quais interage), ou seja, o objeto não pode jamais

8
Morton, 2013-A, p. 48
9
Morton, 2010, p.8
Morton, 2013-A, pp. 75-6
Harman, 2005, pp.33-44, 77, 81-4, 84-7

4
ser totalmente identificado com a maneira como ele aparece para outro objeto. Assim,
será descrito também o modo como dessa inquietação ontológica nasce a ansiedade
fundamental (intrínseca ao ser humano) que motivou o desenvolvimento e o
estabelecimento da agrilogística - o programa agricultural surgido no período Neolítico
(por volta de dez mil anos atrás), que desde então veio a dominar as técnicas de
produção de alimentos (a agricultura e a criação de animais) em todo o planeta.10
Devido a sua grande eficiência a agrilogística possibilitou o desenvolvimento
civilizacional nos moldes (e escala) existentes hoje mas, por outro lado, ao mesmo
tempo em que aparentava eliminar a ansiedade e a contradição, ela estabeleceu
barreiras rígidas entre as esferas humana e não-humana, e reduziu a qualidade de
existência à mera quantidade (nos moldes da conclusão repugnante de David Parfit).11
As condições de possibilidade do Antropoceno têm, assim, raiz na maneira como a
agrilogística impele o ser humano a enquadrar o ambiente de modo a transformá-lo
num armazém de materiais.12
Desta maneira, uma perspectiva objeto-orientada para a Ecologia no
Antropoceno - encapsulada na Ecologia Sombria desenvolvida por Timothy Morton -
não só problematiza o privilégio do sujeito humano na Filosofia, mas sugere caminhos
para o desenvolvimento de relações mais equilibradas entre humano e não-humano,
visto que estas duas esferas não existem em separação absoluta mas, pelo contrário,
determinam-se mutuamente.
Ao estabelecer entes autônomos como elementos primários, anteriores às
relações que engendram esta abordagem concede a cada um deles existência real, que
exige reconhecimento. A Ecologia Sombria está em linha com a fenomenologia de
Alphonso Lingis, que descreve a realidade como um espaço interobjetivo no qual cada

10
Morton, 2014-A, segundo seminário
11
Parfit, 1984, pp. 381-90
12
Morton, 2013-B, pp.106-7
Heidegger, 1977, p.17

5
objeto emana "uma ressonância (...) que invade nossa sensibilidade". Eles expedem
directivas - comandos - sobre os objetos com os quais interagem, e a coexistência torna-
se uma questão de sintonia (attunement) em meio a profusão de entes que existem
radicalmente próximos ao mesmo tempo que absolutamente separados pela fenda
irredutível que cerca cada objeto.

6
I - As bases ontológicas

Esta primeira parte do ensaio procurará demonstrar a maneira como a realidade


é quantizada, ou seja, composta por partes, e ainda, como são os chamados objetos
estes elementos constituintes fundamentais.13 Objetos serão, portanto, descritos na
qualidade de entes ontologicamente primários, que existem sinceramente - um termo
ao qual Harman dá (seguindo Emmanuel Levinas) um significado específico, a saber, o
modo como entes existem "absorvidos em ser exatamente aquilo que são".14 Será
discutido ainda, o modo como estes objetos existem cindidos entre sua essência e sua
aparência: a primeira, a pura execução de uma realidade específica e individual, que o
define ao mesmo tempo que permanece obscura e retirada; enquanto a segunda, o
perfil estético que aparece, aquele que é apreendido por um outro objeto no momento
da interação, ou seja, a representação que lhe corresponde).15

Correlacionismo

A OOO surge em meio a uma gama de filosofias recentes, agrupadas sob a


denominação Realismo Especulativo, que vêem de maneira crítica aquilo a que Quentin
Meillassoux dera o nome de correlacionismo - a noção, de origem kantiana, de acordo
13
Harman, 2002, pp.34, 43-4
Morton, 2013-A, p. 42
14
Harman, 2005, pp. 59-60, 136
15
Harman, 2011-A, pp. 20-50 (especialmente pp. 29, 39)
Harman, 2005, pp. 76, 86

7
com a qual um indivíduo tem acesso somente àquilo que se encontra circunscrito na
correlação entre a esfera subjetiva (do indivíduo humano) e a esfera objetiva (das coisas
no mundo).16 A OOO busca expandir o escopo desta correlação afirmando que todo
objeto acessa de fato a realidade, porém, à sua maneira. Também fazem parte deste
grupo nomes como Quentin Meillassoux (e seu materialismo especulativo), Ray Brassier
(que defende um niilismo transcendental), Iain Hamilton Grant e Jane Bennett (que
subcrevem ao materialismo transcendental e ao neo-vitalismo, respectivamente), entre
outros.
Quando Immanuel Kant, na Crítica da Razão Pura, aponta para o hiato
intransponível existente entre a coisa-em-si e o objeto da experiência humana, ele
cimenta uma noção central para a Filosofia moderna, conhecida hoje como sua
correlação. Esta, consiste na proposta de que os princípios do entendimento puro não
possuem uma correspondência direta com a realidade objetiva, mas contêm em si, e a
priori, o “esquema da experiência possível”.17 Para Kant, objetos são dados ao indivíduo
por via da sensibilidade, que o provê com intuições que, por sua vez, referem este
objeto (externo) ao entendimento (interno).18 Desta maneira, um abismo é situado à
volta da experiência (humana), uma noção subsequentemente passada adiante através
da história da Filosofia. Bruno Latour reconhece a penetrância desta herança quando
afirma que o kantianismo fora responsável por transformar uma mera distinção numa
separação total: a coisa-em-si tornou-se algo remoto e inacessível enquanto,
simetricamente, o sujeito transcendental foi posto numa esfera infinitamente retirada,
e as relações entre os dois passaram a ser mediadas pelos fenômenos. 19
Hoje, essa correlação vem sendo questionada pelo Realismo Especulativo por
diferentes vias e razões, mas principalmente porque ao aderir-se a esta correlação, nos

16
Meillassoux, 2010, pp.5-7
17
Kant, 1989, pp. 257-258
18
Kant, 1989, pp. 21-23
19
Latour, 1993, pp. 55-56

8
termos estabelecidos por Kant, o campo da Filosofia (juntamente com a Arte e a
Ciência) fica restrito à pequena região da realidade acessível ao humano (ou a um grupo
limitado de entes racionais), uma região que existe dentro de um espaço muito maior, a
dimensão da causalidade, que não se restringe àquilo que acontece entre entes
racionais, ou entre ente racionais e o mundo, mas inclui átomos de hidrogênio, vento,
narcisos, chips de silicone, meteoros e engrenagens; "O trabalho anônimo da existência
acontece na pura execução das coisas sendo aquilo que são, e não em um suposto
acesso que possamos ter a esta execução".20
São duas as preocupações principais deste ensaio no que concerne a chamada
revolução copernicana de Kant, a derrubada definitiva da ponte entre a experiência do
sujeito racional (em outras palavras, humano) e a coisa-em-si, a saber, a) o privilégio do
ser humano como ente designador de realidade; b) a maneira como, inadvertidamente,
Kant dá continuidade a um processo que começara mais cedo, com Descartes, e que
pode ainda ser observado, no qual questões epistemológicas gradualmente assumem o
papel de destaque na investigação filosófica, e a especulação a respeito daquilo que jaz
fora do eixo entre a mente humana (ou racional) e o mundo é posta de lado, tornando-
se uma tendência menor no cenário da Filosofia moderna.21
Segundo Latour, no espírito do método cartesiano, cujo alicerce é a dúvida
insistente, nasce no século XVII o ´fato científico` - uma descrição física precisa do
mundo, com base na matemática dos cálculos e na experiência empírica das medições -
e este é, a partir de então, tomado como fundamento de toda a realidade, além de ser
ainda frequentemente usado para encerrar discussões, uma vez que tradicionalmente
nenhum outro tipo de conhecimento possui igual valor como garantia de verdade.22
Husserl já identificara esta tendência: “Tornou-se quase um lugar comum (...) afirmar

20
Harman, 2002, p. 239
21
Latour, 1999, p.6
Morton, 2013-A, p. 79, 210
22
Latour, 1993, p.33

9
que só pode haver um método cognoscitivo comum a todas as ciências e, portanto,
também à Filosofia. Esta convicção corresponde perfeitamente às grandes tradições da
Filosofia do séc. XVII, a qual também defendeu que a salvação da Filosofia depende de
ela tomar como modelo metódico as ciências exactas e, acima de tudo, pois, a
matemática e a ciência natural matemática”.23 Este favorecimento do saber ôntico,
conclui Meillassoux, exclui da prática filosófica justamente aquilo que constitui o caráter
revolucionário do conhecimento científico: seu teor especulativo, pois, devido aos
mecanismos da correlação kantiana a Filosofia fica impedida de fazer asserções em
relação ao modo de existir dos objetos do mundo, por estar restrita à maneira como
estes percolam o entendimento humano. Assim, a metafísica deixa, em grande parte, de
apresentar-se como guarida de compreensão acerca daquilo que se encontra fora da
articulação entre a subjetividade humana e a esfera objetiva.24 Harman dá a parte da
Filosofia continental recente a alcunha de Filosofias do Acesso (Philosophies of Access),
por tomarem a área circunscrita pela fenda kantiana como sítio privilegiado, espaço
exclusivo no qual toda filosofia verdadeiramente rigorosa pode ser desenvolvida.25
É exatamente na direção contrária a esta tendência que surge a OOO, como
braço ontológico do Realismo Especulativo, um grupo bastante diversificado, cujo traço
comum é a posição crítica em relação ao correlacionismo kantiano. Porém, enquanto
Meillassoux, por exemplo, discorda do correlacionismo por este afirmar a
impossibilidade do acesso direto à esfera real e a consequente finitude do
conhecimento humano acerca do mundo (Meillassoux defende que o acesso a um
conhecimento absoluto é possível através da matemática que, para ele, escapa
correlações), a OOO junta-se ao coro de críticas num outro tom. Harman reivindica a
possibilidade de ir-se além da tendência para uma abertura relacional especial e
exclusiva, da qual o ser humano consta como único beneficiário, à maneira das

23
Husserl,1986, pp. 46-47
24
Meillassoux, 2010, pp. 119-121
25
Harman, 2011-A, p.136

10
Filosofias do Acesso, e procura lidar com todo tipo de objeto dentro de um sistema
compreensivo.26

Correlacionismo distribuído

Em contraste com o método cartesiano o pensamento de Harman não parte da


dúvida radical, mas da ingenuidade sincera, uma ingenuidade que possui uma
significação precisa e específica, a saber, a maneira como todo objeto existe
constantemente absorvido na atividade de ser aquilo que ele é, um papel que nenhum
outro ente é capaz de exercer. - "aquela forma primitiva de inocência com a qual todo
ente já está tingido desde o início". (Harman, 2005, p.130)27 A experiência humana
imediata é povoada por objetos que ´mobiliam` seu ambiente e, assim, é daí que parte
uma descrição ontológica cujo foco recai exatamente sobre estes objetos. É importante
realçar como a categoria dos objetos (na OOO) engloba entes de toda variedade -
“canela, microondas, partículas interestelares e espantalhos” (Morton, 2013-A, p.42)28-
inclusive entes que não são considerados objetos no sentido corrente do termo, como
cores ou números - “afinal, é perfeitamente possível discutir o sentido de ´número` e
fazer novas descobertas sobre entes matemáticos - a prova mais simples concebível de
que as propriedades dos números não se encontram visíveis num vislumbre (...). É neste
sentido que até mesmo as ideias devem ser consideradas objetos”. (Harman, 2002,
p.36)29

26
Harman, 2011-A, pp.136-8
27
Harman, 2011-A, p.6
Harman, 2005, pp. 71, 128, 130, 135-6, 141
"(...) sincerity, that bedrock form of innocence with which all being is laced from the start".
Harman ecoa conceitos de ingenuidade e sinceridade de José Ortega y Gasset e Emmanuel Levinas,
respectivamente, em sua concepção da sinceridade do objeto .
Gasset: "Es vano todo empeño que pretenda desalojar del mundo la ingenuidad. Porque, en definitiva, lo
que verdaderamente hay no es sino la sublime ingenuidad, es decir, la realidad" (Ortega y Gasset, J.
Obras Completas, Vol. VIII, p.50)
28
Morton, 2013-A, p.42
“(...) cinnamon, microwaves, interstellar particles and scarecrows”
29
Harman, 2002, p. 36

11
Se inicialmente parece estranho ter a experiência humana como plataforma de
partida para uma ontologia que visa quebrar a restrição correlacionista que tende a
favorecer o humano, cabe aqui um esclarecimento. Kant impõe duas limitações
epistemológicas, a) o em-si é posto mais além de qualquer possibilidade de acesso
direto e, b) esta impossibilidade é inerente ao esquema da experiência possível
característica do ser humano. A OOO concorda com a primeira limitação, porém, um de
seus pilares principais consiste na negação da segunda.
Enquanto Kant privilegia a articulação entre a subjetividade do indivíduo humano
(ou, numa leitura generosa, do ser racional) e a realidade em-si (“...o que é realmente
característico da posição de Kant é que a relação humano-mundo tem prioridade sobre
todas as outras”, afirma Harman), a OOO expande o escopo da abordagem: “Colisões
inanimadas devem ser tratadas exatamente da mesma maneira que percepções
humanas, mesmo que estas sejam formas de relação obviamente mais complicadas.”
(Harman, 2011-A, pp.45-6)30 Posto de outra forma, um objeto, em seu existir enquanto
aquilo que ele é (em sua sinceridade fundamental), encontra-se absolutamente
afastado de qualquer outro. A pedra ou o lagarto que o ser humano toma como tema de
suas reflexões escondem-se dele na mesma medida em que ele distancia-se dos dois; e
ainda, esta pedra e este lagarto nunca se revelam completamente um ao outro, ou
mesmo a si próprios. Todo ente encontra-se envolvido num carnaval de objetos, porém,
nenhum deles corresponde ao ente em-si, nem mesmo seu próprio corpo.31 Da mesma
forma como se retiram do contato direto com a subjetividade humana, os objetos
retiram-se também do contato direto com qualquer outro ente, e em defesa desta

“After all, it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about
mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a
glance (...). It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.” (minha ênfase)
30
Harman, 2011-A, pp.45-6
“(...) what is truly characteristic of Kant's position is that the human-world relation takes priority over all
others.”
“Inanimate collisions must be treated in exactly the same way as human perceptions, even if the latter are
obviously more complicated forms of relation”
31
Morton, 2014-B, em conferência.

12
afirmação a OOO sustenta que a existência de uma hierarquia ontológica não faz
sentido, pois, todo objeto (de qualquer natureza) respeita o mesmo esquema básico no
executar de sua realidade e nas relações nas quais se envolve - "a existência no interior
de objetos é definida pela sinceridade e pelo envolvimento, não pela transcendência e
pela análise crítica".(Harman, 2005, p.255)32 Para a OOO as coisas-em-si encontram-se
eternamente fora do alcance humano, o que não se dá devido a uma marca trágica
específica de sua espécie mas, é comum a entes de qualquer qualidade. 33 Se a posição
correlacionista situa uma fenda entre a mente humana e os objetos do mundo (o
primeiro jamais desvela o segundo em sua totalidade); a OOO situa esta mesma fenda à
volta de todo e qualquer objeto. Assim, todos os entes são incapazes de desvelar uns
aos outros total e completamente, “quando objetos retiram-se para o interior de suas
escuras realidades subterrâneas, não se distanciam somente dos seres humanos, mas
também uns dos outros”. (Harman, 2002, p.2)34
Mais acerca da maneira como se dão as relações entre objetos será apresentado
à frente, mas é importante que desde já fique claro a forma como a OOO não busca
abolir o correlacionismo kantiano, pelo contrário, assevera-se que o mesmo é válido
para todo tipo de objeto; a privação do em-si é democraticamente multiplicada e
distribuída através de toda a paisagem ontológica: “[a OOO] sustenta que a relação que
o humano tem com o pólen, o oxigênio, as águias ou os moinhos de vento não é de um
tipo diferente da interação destes objetos entre si”.(Harman, 2005, p.1)35 A perspectiva
que um ser humano tem acerca da realidade é essencialmente antropomórfica na

32
Harman, 2005, p. 255
"Existence in the interior of objects is defined by sincerity and involvement, not transcendence and
critique."
33
Harman, 2011-B, p. 171
34
Harman, 2002, p. 2
“When the things withdraw from presence into their dark subterranean reality, they distance themselves
not only from human beings, but from each other as well.”
35
Harman, 2005, p.1
“(...) object-oriented philosophy holds that the relation of humans to pollen, oxygen, eagles, or windmills is
no different in kind from the interaction of these objects with each other.”

13
mesma medida em que a perspectiva de uma pedra é “lito-mórfica”, ou a de um gato é
“felino-mórfica”.36
Há momentos em que a OOO é acusada de aproximar-se do pampsiquismo, uma
doutrina muitas vezes vista como absurda dentro da esfera do privilégio da
subjetividade humana na Filosofia desde Kant.37 Entretanto, a OOO diferencia-se do
pampsiquismo - que consiste na tese que atribui algum grau de senciência a todo ente
que compõe a realidade física - na medida em que não atribui senciência, ou mente, aos
objetos em geral, mas ela afirma que os objetos (todos ocupando o mesmo patamar
ontológico) interagem sensivelmente, ou seja, através de suas qualidades sensíveis
(estéticas), pois sua essência (real) retira-se de todo e qualquer contato, deixando para
trás somente sua aparência, seus traços perceptíveis.38 Todo objeto é, para a OOO,
dotado da capacidade primitiva de produzir e interpretar fenômenos, uma capacidade
que consiste simplesmente no modo como ele traduz os traços sensíveis dos objetos
com os quais se relaciona, enformado por suas limitações próprias.39 Isso não deve ser
entendido como a antropomorfização das capacidades dos objetos, pois, como afirmado
anteriormente, cada objeto possui seu próprio estilo de interpretação da realidade, sua
própria perspectiva; por exemplo, o estilo “lito-mórfico” de percepção é enformado pela
execução da realidade específica daquela pedra. Ao descansar sobre a mesa o copo a
interpreta como uma superfície sólida que suporta seu peso e, por isso, não cai ao chão.
A chama que queima a folha de papel a traduz como algo inflamável, e apesar de não
ser capaz de encontrar outras características desta mesma folha (como sua cor, sua
textura, o odor de perfume nela impregnado, a beleza da caligrafia antiga ali registrada,
a intensidade da paixão expressa no texto que esta folha de papel - parte de uma carta
de amor - contém) a chama ainda assim consome o papel.

36
Morton, 2013-A, pp. 82, 120
37
Harman, 2011-A, p.120
38
Sprigge, 2000, p.654
39
Harman, 2005, pp.19, 165, 174, 186, 192

14
Desta forma, neste ensaio serão usados verbos como interpretar, traduzir, ou
mesmo perceber para descrever a maneira como um objeto encontra outro objeto. É
fundamental que estes termos sejam tomados num sentido muito básico e rudimentar,
que pode ser estendido a todos os objetos. Aqui, este encontro consiste em todas as
formas nas quais o objeto é afetado, aquilo que o toca, não necessariamente de forma
física. No exemplo acima, a chama encontra a folha de papel como combustível,
enquanto a folha interpreta a chama como algo que a consome. Também vale chamar a
atenção para o uso da palavra estética (e termos associados); esta expressão, derivada
do verbo grego αισθάνομαι (aisthánomai), fora originalmente identificada por
Alexander Gottlieb Baumgarten com o latim sentio, no sentido da percepção por meio
dos sentidos.40 Porém, assim como a ideia de tradução é neste ensaio empregada em
sensu lato, também é ampla a interpretação dada ao termo estética, que passa a
guardar relação com tudo aquilo que diz respeito à esfera sensível, nos moldes acima
descritos. Um evento estético é, portanto, a maneira como um objeto (qualquer)
impinge sobre outro.41
De acordo com o modelo da OOO, objetos são entes de escalas variadas,
materiais ou não, naturais ou não, simples ou compostos, duráveis ou efêmeros, que
compõem o universo; de forma que martelos, sobreiros, embriões congelados, times de
futebol, bancos de dados, números irracionais, a maratona de Nova Iorque e a Liga da
Justiça são todos igualmente objetos.42 Eles são ainda compostos por objetos, e existem
no interior de objetos - “Toda a realidade desenrola-se no interior de um objeto - ou
melhor, no interior de incontáveis objetos, que se estendem por cima e por baixo uns dos
outros indefinidamente” - no entanto, eles não podem ser reduzidos a um conjunto de

40
Budd, Townsend e Martin, 2000, pp. 7-10, 78, 664-5
41
Morton, 2013-B, p. 51
42
Harman, 2005, pp. 76-7
Harman, 2011-A, p.5

15
partes, tampouco a mera parte de um todo maior, em outras palavras, não podem ser
minados. (Harman, 2005, p.193)43
Objetos não podem ser reduzidos a suas partes ou à sua percepção por parte de
outros entes, assim como não podem ser reduzidos a seus efeitos sobre o ambiente em
que se encontram. Assim, objetos existem paradoxalmente divididos, confinados no
isolamento da execução de suas realidades específicas (fora do alcance de qualquer
outro objeto), ao mesmo tempo que exibem traços estéticos (sensivelmente
perceptíveis) que, ao contrário de seu núcleo executor, não se escondem ou recuam. 44 A
este núcleo isolado a OOO dá o nome de Objeto Real, enquanto o perfil estético (aquilo
que se mostra) recebe o nome de Objeto Sensível. Objetos devem, nestas condições, ser
concebidos (mesmo que um tanto contraditoriamente) como indivíduos discretos e
autônomos que, ao mesmo tempo, não se encontram inteiramente desconectados de
seus componentes ou de outros objetos, pois, todos encontram-se submersos no
oceano de traços sensíveis emanados pelos objetos reais, que este ensaio chama de
plano estético-causal, a esfera na qual existe a possibilidade de interação e contato.45

Uma crítica da história da ontologia

Harman, numa análise das diferentes estratégias adotadas ao longo da história


da Filosofia na abordagem dos objetos, afirma que, em geral, filósofos procuram evitar
tratá-los como fundamento da realidade e, para tal, tomam uma de duas saídas: por um
lado, escapam para um nível mais profundo, subjacente aos objetos, por outro, dão
preferência a um nível acima, do qual objetos são apenas instanciações pontuais. A
busca por um nível mais profundo é o chamado minar (undermine) dos objetos, o

43
Harman, 2005, pp. 85, 193
“All reality unfolds in the interior of an object - or rather, in the interiors of countless objects, stretching
above and below each other indefinitely”
Morton, 2013-A, pp.43, 169
44
Harman, 2005, pp. 33-44, 76-7
45
Harman, 2013-A, p.238

16
movimento oposto é seu dissipar (overmine); estes dois movimentos podem ainda ser
combinados.46

Minando o objeto

Os filósofos pré-socráticos foram os primeiros a adotar a estratégia que mina


objetos em busca de um plano mais profundo. Nas teorias dos elementos, por exemplo,
o cosmos seria composto por um elemento em diferentes graus de compressão (Tales,
Anaxímenes) ou pela combinação de um pequeno grupo de elementos básicos
(Empédocles), e o atomismo (Demócrito) é ainda, mais uma variação do mesmo tema.
Também em busca de um nível mais profundo que o dos entes que se mostram no
mundo e na experiência humana houve, ainda entre os pré-socráticos, aqueles fundiram
tudo o que existe num grande todo ou άπειρον (Apeiron) que existiu no passado mas
fragmentou-se, que existe no presente e faz da multiplicidade de objetos uma ilusão dos
sentidos, ou que existirá no futuro quando as diferentes forças em ação hoje já
houverem cancelado umas às outras (Pitágoras e Anaxágoras, Parmênides,
Anaximandro, respectivamente).47
Outra alternativa, mais recente mas que ainda parte da mesma estratégia, são as
teorias processuais, como as de Henri Bergson ou Gilles Deleuze, que procuram pensar a
realidade como algo fluido mas que, no entanto, ao tomarem o Ser como algo dinâmico
(o devir, o jogo da diferença) acabam também por rejeitar os objetos na qualidade de
elementos constituintes básicos, descrevendo-os como instanciações (estáticas
pontuais) de tais fluxos ou processos dinâmicos, que são tidos como mais profundos ou
fundamentais.48
Todas estas abordagens debilitam o objeto, e têm em comum o fato de que os
anulam em favor de uma realidade subjacente, seja esta constituída por pequenas
46
Harman, 2011-B, pp. 172-5
47
Harman, 2011-A, pp. 8-9
48
Harman, 2011-A, pp. 9-10

17
partículas, por um todo omni-englobante ou por um processo fundamental. Todas elas
têm, ainda, dificuldades em explicitar o motivo pelo qual a unicidade do fluxo (ou do
todo mais primário) fragmentar-se-ia, ou, no caso de múltiplos elementos ou processos,
como e por que o que é plural viria a combinar-se. Estas teorias também têm dificuldade
em justificar qualidades emergentes - aquelas identificadas quando o objeto como um
todo apresenta características que seus componentes não possuem isoladamente.49

Dissipando o objeto

Outra maneira de retirar o objeto do centro da investigação filosófica e tomá-lo


como uma hipótese desnecessária é dissipá-lo. Isto ocorre quando o objeto é definido
relacionalmente: pela maneira como se mostra a um observador, como um feixe
arbitrário de qualidades imediatamente percebidas, como eventos ao invés de
substâncias subjacentes, ou ainda, quando objetos são considerados reais apenas na
medida de seus efeitos.50
Para Harman, o Empirismo consta no grupo de filosofias que dissipam o objeto,
pois afirma que a mente humana é o responsável por interligar traços díspares em
feixes que formam unidades maiores, apreendidas segundo o hábito.51 Para usar o
exemplo de Harman, se a palavra “maçã” for simplesmente o apelido dado a uma série
de qualidades discretas habitualmente ligadas (vermelho, doce, sólido, etc), o objeto
maçã é incapaz de sustentar-se e já não pode ser tratado como um ente autônomo,
pois, o que existe realmente são impressões individuais, entrelaçadas pela mente
(humana) que as percebe. Contudo, este modelo falha, pois, na experiência são
encontrados objetos unificados; “as qualidades individuais das coisas já se encontram
imbuídas com o estilo ou um senso da coisa como um todo. Mesmo se exatamente o

49
Harman, 2013-B, em conferência
50
Harman, 2011-A, pp. 10-1
Harman, 2011-B, p.172
51
Harman, 2005, p. 92

18
mesmo tom de vermelho da minha maçã puder ser encontrado numa camisa ou numa
lata de tinta spray que esteja por perto, as cores terão uma sensação distinta em cada
um dos casos, já que elas estão ligadas à coisa à qual pertencem”. (Harman, 2011-A,
p.11)52 Apesar do objeto não poder ser reduzido às suas qualidades estéticas, estas
encontram-se definitivamente ligadas ao objeto, constituindo sua parte visível. 53
Outro exemplo manifesto da dissipação dos objetos pode ser encontrado no
idealismo absoluto de George Berkeley, que não admite a existência de objetos fora da
mente.54 Se “esse est percipi” (“Ser é ser percebido”), como afirma o filósofo, mais uma
vez, e de modo radical, toda a realidade fica dependente da mente humana,
impossibilitando a existência de objetos reais autônomos.
Enquanto a posição correlacionista defende objetos que dependem de uma
mente (racional), Alfred North Whitehead e Bruno Latour são dois exemplos de uma
outra possibilidade, eles sustentam que objetos existem de maneira co-determinante,
ou seja, um dado objeto só pode ser determinado em relação a outros entes - neste
caso entes de qualquer qualidade - com quem ele estabelece alguma forma de relação.
Os objetos de Latour são definidos como aquilo que transforma, modifica, perturba ou
cria outro(s) objeto(s).55 Similarmente, os objetos de Whitehead são delineados a partir
da soma de suas preensões - a forma como um objeto apreende outros.56 Note como
estes entes já não dependem da mente humana, tampouco de mente alguma, para que
sejam estabelecidos; este é um traço importante, pois, desta maneira toda a esfera do
não-humano pode ser incluída na tarefa da determinação do real, enquanto as relações
entre quaisquer objetos passam a ocupar o mesmo nível ontológico - um dos objetivos

52
Harman, 2011-A, p.11
"(...) the individual qualities of things are already imbued with the style or feel of the thing as a whole.
Even if the exact hue of red in my apple can also be found in a nearby shirt or can of spraypaint, the color
will have a different feel in each of these cases, since they are bonded to the thing to which they belong."
53
Harman, 2011-A, pp. 48-49
54
Downing, 2013
55
Latour, 1999, pp. 303, 308, 311
56
Whitehead, 2010, p.63, para uma definição das preensões positivas e negativas.
Harman, 2011-A, p.12, 46

19
deste ensaio. Entretanto, esta co-determinação implica a redução dos objetos ao modo
como se manifestam para um outro, pois, nenhuma parte de sua realidade intrínseca
fica guardada em reserva, fora do alcance de outros entes.57
Como é possível concluir, objetos podem ser dissipados de diversas formas, basta
que seus contornos sejam definidos relacionalmente, roubando-lhe de sua
primordialidade ontológica e autonomia. Porém, este não é o único problema criado
pela dissipação dos objetos. Se um ente (ou a realidade como um todo) correspondesse
estritamente ao modo como fosse dado num certo momento, não haveria motivação
para que mudança alguma ocorresse, pois, não existiriam no objeto reservas que
efetivassem tal mudança; o objeto encontra-se-ia esgotado naquela expressão
pontual.58

Harman aponta ainda para a maneira como o filósofo francês Tristan Garcia
combina as duas possibilidades (o minar e o dissipar do objeto) quando define o objeto
como a diferença entre seus componentes internos e o contexto externo. 59 Desta
maneira, é primeiro necessário determinar as partes componentes do objeto (minando-
o), e na sequência é executada a ação dissipadora da listagem dos efeitos que este
objeto tem em seu contexto, só então é possível traçar seus contornos, obtidos através
da subtração da parcela de elementos constituintes do contexto geral. Esta posição é
problemática na medida em que o objeto torna-se algo absolutamente frágil, que deixa
de ser o mesmo ente caso qualquer mudança, mesmo ínfima, ocorra em seu contexto
ou partes.60

57
Harman, 2011-A, The Quadruple Object, p.12
58
Harman, 2011-A, The Quadruple Object. pp.12-13
59
Harman, 2012-B, p. 8
60
A esta combinação das estratégias que minam (undermine) e também dissipam (overmine) o objeto
Harman dera o nome de duomining.

20
Devido a todas essas dificuldades uma ontologia objeto-orientada busca prevenir
que objetos sejam quebrados em pequenas partes ou engolidos por objetos maiores
(minados), além de evitar eles sejam definidos simplesmente como projeções ou
reflexos de outros entes (dissipados). Tal objeto-orientação incide, portanto, sobre um
nível intermediário, povoado por entes autônomos que se retiram e isolam, elevando-se
acima de seus componentes - que fazem do objeto algo demasiado superficial - mas
mergulhando sob as manifestações mentais e efeitos-para (outros entes) - que os
condena à dissolução.
Harman aponta Aristóteles como o primeiro filósofo (ocidental) a tomar objetos
individuais como tema central, “para ele [Aristóteles], o abismo importante já não se
encontra entre as formas perfeitas e suas manifestações imperfeitas na matéria. Ao
invés disso, existem duelos acontecendo no coração dos próprios objetos: entre um gato
individual e seus traços acidentais fugazes, ou entre aquele gato e suas qualidades
essenciais”. As próprias mônadas postuladas por G.W. Leibniz são, assim como os
objetos de Harman, herdeiras de Aristóteles, pois, são descritas como entes não só
individuais, como também unificados. Todas estas teorias (Aristóteles, Leibniz, Harman)
podem ser descritas como filosofias que lidam com substâncias.61
Entretanto, se tradicionalmente substâncias devem ser naturais, simples,
indestrutíveis e reais (ou possuir ao menos algumas destas características), os objetos
da OOO não são obrigados a apresentar nenhum destes traços, podendo até tomar a
forma de um objeto artificial, composto, fictício e passível de ser aniquilado. 62 Os
contornos de um objeto são traçados pela maneira como ele não pode ser minado ou
dissipado, ou seja, reduzido a suas partes ou definido em relação a outro objeto;
pessoas, bonecas de plástico, sardinhas e raios solares, são todos objetos. 63

61
Harman, 2011-A, pp. 17-18
62
Harman, 2005, pp.85-86
63
Morton, 2013-A, p.222

21
A decisão de tomar-se o objeto, nestes moldes, como fundamento ontológico
parte tanto dos problemas que outros modelos apresentam, como também da maneira
como objetos hoje, com a (recente) compreensão de que a História não é
exclusivamente humana, mas consiste na interseção entre múltiplos entes e diferentes
temporalidades, fato que o Antropoceno demonstra de maneira especialmente
reveladora. Objetos, como a máquina a vapor ou o plutônio, que incidem violentamente
não apenas sobre a existência humana, mas também sobre o planeta e todos os seus
(outros) habitantes, exercem agora larga influência sobre todo tipo de decisão humana.
Novas políticas, novos hábitos e novos desafios são impostos sob a sombra do
aquecimento global e seus efeitos perturbadores de escala planetária.64

Os objetos e suas relações

A seguir o conceito de objeto será aprofundado e será também descrita a forma


como estes objetos estabelecem relações entre si. A proposta a ser desenvolvida
consagra os objetos como entes ontologicamente primários, irredutíveis (a seus
fenômenos, relações, usos ou efeitos), portanto, autônomos que, independentemente
de suas naturezas específicas, encontram-se no mesmo patamar ontológico.65 Esta
desierarquização põe em questão a centralidade, e mesmo a necessidade, do ser
humano na determinação do real (a postura correlacionista), e distribui tal papel
democraticamente entre os variados entes. Será defendido que os diferentes objetos
executam suas realidades específicas segundo um mesmo modelo, de acordo com o
qual eles existem divididos entre um nível profundo - o objeto real - que se retira e isola

64
Morton, 2013-A, p.49
Morton, 2013-B, pp.4-5
65
Harman, 2011-A, pp. 142-143
Harman, 2005, pp.79, 85, 110, 190, 192
Morton, 2013-A, pp.17-8, 30, 55, 169

22
de qualquer contato, e uma superfície de efeitos estéticos - o objeto sensível - que
funciona como o intermediário nas relações entre objetos.66
Dois filósofos merecem destaque nesta seção - o pai da fenomenologia, Edmund
Husserl, e seu herdeiro rebelde, Martin Heidegger - pois, as ideias de ambos serviram
como base para a concepção do objeto nos moldes descritos acima - como componente
ontologicamente primário, autônomo e irredutível a suas partes ou a seus efeitos. Dos
objetos intencionais de Husserl, Harman deriva o objeto sensível, e numa
reinterpretação da análise do instrumento de Heidegger, ele chega à noção de objeto
real.

O objeto sensível

Através da chamada redução fenomenológica (ἐποχή - epoché) - que consiste na


suspensão das considerações a respeito de tudo que é transcendente à mente - “O eu
como pessoa, como coisa do mundo, e a vivência como vivência desta pessoa, inseridos
(...) no tempo objetivo: tudo isso são transcendências e, enquanto tais,
gnoseologicamente zero” - Husserl busca atingir o conhecimento das essências
imanentes dos objetos.67 Esta suspensão completa de toda consideração acerca do
mundo natural objetivo é uma maneira radical de manter-se circunscrito na correlação
kantiana, e faz com que os objetos intencionais da fenomenologia sejam
fundamentalmente dependentes da consciência (humana).68
Ao dirigir sua atenção a um certo objeto, ao tomá-lo como tema, o indivíduo o
“intenciona”; o que é desta maneira “intencionado” - o objeto dos atos mentais de um
indivíduo - é aquilo a que Husserl dá o nome de objeto intencional. Estes objetos

66
Harman, 2011-A, pp. 5, 20-50
67
Husserl, 1986, pp.69-72
68
Harman, 2011-A, p.22

23
intencionais são sempre realidades mentais íntegras, ou seja, não são simples maços de
atributos perceptíveis, mas sim, objetos (intencionais) unos.69
Da mesma maneira, os chamados objetos sensíveis da OOO são aqueles que
apenas existem relacionalmente. São eles os “perfis sensíveis”, ou fenômenos, que um
objeto apreende com base em outro, com quem entra em contato. Nas palavras de
Harman: “objetos sensíveis são aqueles que existem apenas na experiência de um
outro objeto - como as imagens mentais de gatos ou árvores em contraposição a estes
objetos em-si”. (Harman, 2012-A, p.18)70
No âmbito deste ensaio, a principal diferença entre os objetos intencionais de
Husserl e os objetos sensíveis da OOO encontra-se na maneira como a OOO não limita a
capacidade intencional a indivíduos dotados de mente. 71 Objetos estão constantemente
construindo “modelos sensíveis” dos objetos com os quais interagem (segundo a
estrutura do como, que será apresentada à frente); estes modelos são a própria
condição de possibilidade para o contato entre objetos (como também ficará explícito
na discussão acerca da causalidade vicária); "um objeto sensível é uma aparência-para
outro objeto". (Morton 2013-B, p.118)72
A maneira como Husserl rejeita a entrada de quaisquer preconceitos com origem
na realidade objetiva em sua análise fenomenológica, e privilegia exclusivamente a
esfera subjetiva humana é, em grande parte, fonte do mesmo tipo de antropocentrismo
presente, e exacerbado, em Heidegger - que, por sua vez, sustenta que somente através
da interrogação acerca do sentido do Ser do Dasein (e para Heidegger Dasein é
exclusivamente humano) é possível atingir-se uma interpretação do sentido do Ser

69
Harman, 2011-A, p.24-5
70
Harman, 2012-A, p.18
“In my own philosophy, sensual objects are those that exist only in the experience of another object -
such as mental images of cats and trees in distinction from these objects themselves.”
71
Harman, 2005, p.19
72
Morton, 2013-B, p. 118
"A sensual object is an appearance-for another object."

24
(Sein) em geral.73 Ambos (Husserl e Heidegger) mantêm-se fiéis aos limites traçados por
Kant, que em sua Crítica da Razão Pura declara: “toda a nossa intuição nada mais é do
que a representação do fenómeno; (...) as coisas que intuímos não são em si mesmas tal
como as intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas como nos
aparecem (...), se fizermos a abstração dos sentidos em geral, toda a maneira de ser,
todas as relações dos objectos no espaço e no tempo e ainda o espaço e o tempo
desapareceriam; pois, como fenómenos, não podem existir em si, mas unicamente em
nós”.74 Neste movimento Kant extingue a possibilidade de conhecimento humano
acerca de tudo que jaz para além dos fenômenos.
A OOO assegura ser necessário abandonar-se o pressuposto tácito que afirma
que a fenda entre o humano (ou o Dasein) e o mundo é a única abertura filosoficamente
significante, o único caminho ao longo do qual os problemas da Filosofia podem
desenrolar-se; “todo preconceito vago em relação à suposta gradação entre os
diferentes tipos de entes (...) não devem ser contrabandeados para dentro da esfera das
distinções ontológicas básicas”. (Harman, 2005, p.190)75

O objeto real

Assim como Harman toma como base para seu objeto sensível o objeto
intencional de Husserl, ele faz uso da compreensão heideggeriana a respeito da esfera
objetiva (visto que Heidegger não restringe sua investigação ao âmbito dos fenômenos)
ao delinear o, já mencionado, objetos real, que consiste no desempenho de uma

73
Harman, 2005, p.74-5
Morton, 2013-B, p.14
Heidegger, 1977, p. H15
74
Kant, 1989, p.78-79
75
Harman, 2005, p.190
“All loose initial prejudice concerning the supposed gradation between different types of living and
inanimate entities must not be smuggled into the realm of basic ontological distinctions.”

25
realidade específica da qual somente ele é capaz; uma execução que se dá de maneira
oculta, em total isolamento.76
Apesar da prescrição fenomenológica, presente na introdução ao segundo
volume de suas Investigações Lógicas, que exorta a Filosofia a voltar-se para as
“próprias coisas”, Husserl toma a consciência da primeira pessoa como
epistemicamente básica, afirma que seu estudo sistemático é a tarefa fundamental da
Filosofia e, paradoxalmente, acaba por tratar das coisas do mundo somente na medida
em que estas se mostram à consciência.77 E é exatamente sobre este ponto (a
insistência em lidar apenas com aquilo que se encontra de alguma forma presente na
mente) que gira a crítica de Heidegger àquele que fora seu mestre, pois, ele acredita
que os atos mentais conscientes compõem apenas uma pequena fração de tudo aquilo
que constitui a experiência de um indivíduo, na maior parte das vezes as coisas com as
quais ele interage não chegam a irromper à consciência, pois, o objeto retira-se em
favor de sua execução.78
No terceiro capítulo da primeira parte de Ser e Tempo, Heidegger desenvolve sua
célebre análise do instrumento, na qual demonstra como o Dasein, em grande parte,
não encontra os entes do mundo na forma de uma simples percepção pura, mas em seu
“uso”.79 A não ser que o instrumento sofra alguma espécie de avaria, esteja ausente, ou
ainda, servindo de obstáculo aos objetivos do Dasein, ele encontrar-se-á retirado - na
execução silenciosa de seus efeitos, que é a expressão de sua realidade única e
específica - além de fundido numa grande rede de atribuições e referências à qual todo
instrumento pertence, e da qual Dasein é o referente máximo. 80 Assim, toda ação

76
Harman, 2011-A, pp.73-4
77
Husserl, 2007, pp.29-30
Harman, 2011-A, p. 21
78
Harman, 2011-A, pp. 36-7
79
Heidegger não limita o termo “uso”, bem como o termo instrumento (das Zeug), a seu sentido corrente;
por “uso” ele designa a forma como o ser humano conta com estes objetos de maneira não temática, e
por instrumento, qualquer tipo de objeto passível de ser encontrado (e “utilizado”) pelo Dasein.
Heidegger, 1977, p.H67
80
Heidegger, 1977, pp.H68-76

26
humana dá-se em meio a uma multiplicidade de instrumentos: “os debates mais
matizados em um laboratório estão à mercê de um fundamento silencioso de piso,
parafusos, ventiladores, gravidade e oxigênio atmosférico”. (Harman, 2002, p.18)81
Heidegger evidencia o modo como, no desenrolar de seu dia a dia, o Dasein não
encontra objetos como agregados de matéria física mas, ele conta com, e faz uso de
seus efeitos. Uma cerca de arame, antes de ser encontrada como tópico da
preocupação do carteiro (caso isto ocorra), é encontrada de maneira não temática
(Zuhanden), como um instrumento do qual ele faz uso na medida que a cerca ajuda a
constituir uma realidade na qual o cão não o consegue morder.82
Esta constatação - de que usualmente as coisas não aparecem simplesmente
como fenômenos, mas escapam para uma esfera despercebida e velada - é novamente
ampliada e redistribuída pela OOO, que remove o Dasein do papel de herói fundador de
toda a realidade e afirma que todo tipo de objeto possui esta mesma capacidade, muito
básica e primária.83 Assim como para Whitehead, para Harman todo tipo de relação
está situado no mesmo nível ontológico, independentemente do envolvimento
humano.84 Se o carpinteiro utiliza o martelo sem, ao mesmo tempo, dar-se conta de sua
composição química, da maneira como o cabo prende-se à cabeça metálica, ou da
evolução histórica daquela ferramenta, ou seja, apenas fazendo uso de seu efeito-
martelo, então, da mesma maneira, o martelo “fará uso” do prego, sem que seja
imprescindível que ele tenha consciência de que material específico aquele prego é
composto, qual é sua cor ou peso, mas simplesmente encontrando um ente que
naquele momento expressa uma realidade específica (de algo rígido, que resiste às
marteladas e pode ser enterrado num pedaço de madeira).

81
Harman, 2002, p.18
“(...) the most nuanced debates in a laboratory stand at the mercy of a silent bedrock of floorboards, bolts,
ventilators, gravity, and atmospheric oxygen.”
82
Daí a oposição Zuhanden / Vorhanden, na qual o primeiro termo expressa a modalidade não temática,
e o segundo a modalidade temática do encontro do Dasein com os entes no mundo.
83
Harman, 2011-A, p. 44
84
Harman, 2011-A, p. 46

27
Entretanto, a OOO rejeita a noção de que enquanto não tomados teoreticamente
(Vorhandenheit) os objetos encontram-se fundidos num grande todo instrumental, pois,
esta seria uma maneira de minar (a autonomia de) cada ente específico. No modelo
objeto-orientado, o objeto executa constantemente aquilo que ele próprio é, uma
realidade una, não-permutável, autônoma, e a única maneira de fazer-lhes jus é
considerá-los a) livres de toda relação, e b) mais profundos que qualquer
reciprocidade.85 Objetos reais, declara Harman, “são a krypto ousia [κρυπτώ ουσία]
indomável ou a realidade que de fato constitui cada ente: sua execução irredutível em
meio ao cosmos, absolutamente distinta da execução de qualquer outra coisa”.
(Harman, 2005, p.110)86 Enquanto uma superfície de efeitos estéticos é apreendida por
objetos que entram em relação, a essência real ou, o Ser em sentido profundo,
encontra-se infinitamente retirado e inacessível. Posto de outra forma, todo objeto
possui estes dois lados: uma essência, que se afasta e isola de qualquer contato sendo,
ainda assim, responsável pela determinação daquele objeto específico, e sua
aparência - dotada de múltiplos traços, porém, unificada - o modo como ele é
percebido por outros objetos.
Tanto um estudo científico aprofundado, quanto o uso não-temático que um
objeto faz de outro, não são capazes de alcançar totalmente a realidade expressa por tal
objeto; em outras palavras, nem a teoria, nem a prática o esgotam.87 Harman elabora:
“Uma faca tem obviamente uma realidade muito diferente quando usada na cozinha de
um restaurante, num banquete de casamento ou num triplo homicídio macabro. Mas
(...) não existe uma oposição real entre uma faca isolada na consciência e uma faca
invisivelmente usada (...) em ambos os casos ela é tratada apenas em relação a outro

85
Harman, 2011-A, p. 47
86
Harman, 2005, p. 110
“(...) the unmasterable krypto ousia or hidden reality that actually makes up each entity: its irreducible
execution amidst the cosmos, utterly distinct from the execution of anything else.”
87
Harman, 2011-A, p.39

28
algo, não em si própria”. (Harman, 2011-A, p.43)88 Por isso, ele afirma que a real
oposição presente na análise do instrumento de Heidegger não é aquela entre teoria e
prática - como muitos comentadores afirmam - mas aquela que existe entre a realidade
retirada de um objeto real (jamais encontrada por outro) e a apreensão parcial e
sobredeterminada que dele é feita por um outro objeto, enformado por suas
respectivas capacidades e limitações.89

A estrutura do como

A possibilidade de um objeto ser encontrado como aquilo que ele é (aquele


objeto específico) por outros entes (ex.: uma cadeira é uma cadeira para os seres
humanos, que desfrutam de sua qualidade de assento) confirma sua primordialidade
ontológica, pois, os contornos específicos de um objeto correspondem aos contornos
específicos da diferença ontológica que Heidegger insiste em manter clara: a diferença
entre os entes em geral (Seiendes) e o Ser (Sein) desses entes - “aquilo que determina
entes como entes”. (Heidegger, 1977, p. H6)90
Para Harman, “todo fenômeno é necessariamente uma aparência tomada ´como´
algo, seja este algo uma alucinação vazia ou um fato inquestionável. Mas a coisa ´como´
coisa não é o mesmo que a coisa-em-si, que não pode, nunca, ser abertamente
encontrada”. (Harman, 2002, p.69)91 Assim, a coisa-como-coisa corresponde ao

88
Harman, 2011-A, p. 43
“A knife obviously has a very different reality when used in a restaurant kitchen, at a wedding banquet, or
in a grisly triple homicide. But (...) There is no real opposition between an isolated knife in consciousness
and an invisibly used knife (...) in both cases it is treated only in relation to something else, not in its own
right.”
89
Harman, 2011-A, p.42-3
90
Harman, 2002, p. 238
Heidegger, 1977, p. H6
“Das Gefragte der auszuarbeitenden Frage ist das Sein, das, was Seiendes als Seiendes bestimmt, das,
woraufhin Seiendes, mag es wie immer erörtert werden, je schon verstanden ist. Das Sein des Seienden
´ist` nicht selbst ein Seiendes”
91
Harman, 2002, p. 69

29
fenômeno, o objeto da experiência de um ente (qualquer); enquanto a coisa-em-si é a
substância determinante do objeto, aquela essência que recede e retira-se de qualquer
relação, jamais podendo ser acessada diretamente.
Harman deriva este encontrar-como, em grande parte, da noção da estrutura do
como (Als-Struktur) desenvolvida por Heidegger: “Aquilo que é revelado pelo
entendimento - aquilo que é compreendido - encontra-se já acessível de tal forma que
seu ´como` pode ser destacado explicitamente. O ´como` compõe a estrutura da clareza
de algo que é compreendido. Ele constitui a interpretação. Ao lidar com aquilo que se
encontra à mão [Zuhandenen] no ambiente e interpretá-lo circunspectamente, nós
´vemos` algo como uma mesa, uma porta, um carro, ou uma ponte; mas o que assim
interpretamos não precisa ainda ser decomposto em uma afirmação que o caracterize
definitivamente. Qualquer visão pré-proposicional do que está à mão é, em-si, algo que
já compreende e interpreta”. (Heidegger, 1977, p.H149)92
Entretanto, para a O.O.O. esta interpretação, este encontrar algo como aquilo
que ele é, novamente em contraste com Heidegger, é algo comum a toda e qualquer
espécie de objeto, não estando restrita à relação que o Dasein (humano) tem com os
entes do mundo; “Se de alguma forma o papel não encontrasse a faca ´como` faca, ele
jamais poderia ser danificado por tal faca. Isto para dizer que o tipo específico de dano
que ele sofre demonstra que o papel encontra, sim, a faca como faca e não como uma
chama ou uma pedrinha inofensiva”. (Harman, 2002, p.32)93 Com este exemplo Harman

“Every phenomenon is necessarily an appearance taken ´as` something, whether it be empty


hallucination or unshakeable fact. But the thing ´as` thing is not the same as the thing itself, which can
never be openly encountered.”
92
Heidegger, 1977, p. H149 (minha ênfase)
“Das im Verstehen Erschlossene, das Verstandene ist immer schon so zugänglich, daß an ihm sein ´als
was` ausdrücklich abgehoben werden kann. Das »Als« macht die Struktur der Ausdrücklichkeit eines
Verstandenen aus; es konstituiert die Auslegung. Der umsichtigauslegende Umgang mit dem umweltlich
Zuhandenen, der dieses als Tisch, Tür, Wagen, Brücke ´sieht`, braucht das umsichtig Ausgelegte nicht
notwending auch schon in einer bestimmenden Aussage auseinander zu legen. Alles vorprädikative
schlichte Sehen des Zuhandenen ist an ihm selbst schon verstehendauslegend.”
93
Harman, 2002, pp. 32, 70

30
deixa clara a maneira como um objeto é experimentado como aquilo que ele é por um
outro objeto qualquer (não somente pelo ser humano), além da forma como senciência,
consciência, inteligência ou mente, não são, de forma alguma, atributos essenciais para
que experiência, pecepção ou interpretação exista, ao menos no sentido primitivo e
rudimentar aqui adotado: a versão caricatural e sobredeterminada que um objeto faz de
outro.
Assim, todos os objetos (ser humano, palmeira, drosophila, tupperware, muralha
da China, cometa ou grão de pó) experienciam a realidade através de descrições
individuais que são capazes de produzir a partir deste contato - certamente diferentes e
provavelmente menos complexas que os fenômenos da experiência humana, porém,
qualitativamente da mesma espécie e, portanto, tratadas como fenômenos por este
modelo. Visto que ente nenhum se pode fazer presente de maneira a desvelar sua
realidade mais profunda completamente, a estrutura do como é, já de partida, sempre
um simulacro.94
Em seu existir, cada objeto está constantemente a interpretar a realidade na qual
encontra-se presente; ele a traduz em fenômenos congruentes à sua própria estrutura;
pode-se dizer, por exemplo, que a percepção humana é uma tradução antropomórfica -
enformada pelos limites do organismo humano, sistemas simbólicos específicos e
condições socialmente mediadas de construção de conhecimento - dos objetos do
mundo. As ideias de Alphonso Lingis, apesar de baseadas numa definição de objeto mais
estreita (restrita a entes materiais), assemelham-se ao pensamento objeto-orientado
quando ele afirma que através de sua forma um objeto é secretamente em si mesmo ao
mesmo tempo que o é para quem o percebe; “sob as formas que fizeram os objetos
palpáveis e domesticados, suas naturezas internas estão vestidas e ocultas”. (Lingis,

“(...) if paper did not somehow encounter knife ´as` knife, it could never be damaged by that knife. That is
to say, the special kind of damage it undergoes shows that it does encounter the knife as a knife, rather
than as a flame or harmless pebble.”
94
Harman, 2002, pp. 71-5

31
1998, p.77)95 Harman dá o seguinte exemplo: uma truta que teve a infelicidade de
habitar um lago poluído pode descobri-lo venenoso, entretanto, ´venenoso` não é um
atributo estático estacionado na superfície do lago à espera de ser encontrado, mas
uma propriedade relacional que requer a truta não menos que o lago para efetivar-se.
Este exemplo demonstra como independentemente das propriedades usadas na
definição do lago, elas serão sempre relacionais. Por este motivo não é possível
especificar o Ser do lago (ou de qualquer objeto) diretamente, pois, seus contornos são
sempre traçados através da perspectiva de um outro objeto. 96 Porém, isto não significa
que o lago não existe em-si mas antes, que não é possível para ente algum acessar o
lago-em-si diretamente.

Causalidade vicária

Porém, possível alcançar os objetos indiretamente, e apenas indiretamente. É


exatamente nisso que toda relação entre entes (sejam eles humanos ou não) consiste: o
que é encontrado, - uma vez que a essência fundamental de um objeto está sempre
escondida - são perfis sensíveis, manifestações estéticas, aparências.
É característico da própria relacionalidade o modo como o contato entre
objetos reais nunca acontece diretamente, mas sempre através de um objeto sensível.
A forma como o objeto obrigatoriamente se afasta de todo e qualquer tipo de contato
não significa que ele esteja escondido (espacial, material ou temporalmente) podendo
ainda ser encontrado; retirado de toda relação implica que a essência deste objeto - o
que o determina como aquilo que ele é - encontra-se absolutamente isolada, fora do
alcance de qualquer tipo de acesso, qualquer forma de percepção, mapeamento,

95
Lingis, 1998, pp.74-7
“Under their forms which have made things graspable and domesticated, their inner natures are clothed
and concealed.”
96
Harman, 2002, p. 224
O termo ´aparência`, neste texto, não está restrito ao conjunto de características apreendidas
visualmente, mas refere-se ao conjunto global de atributos que podem ser encontrados num dado objeto.

32
narrativa, teste ou extrapolação heurística.97 O objeto “não é um prático ´universal` em
funcionamento, mas sempre um indivíduo, sempre a execução discreta de uma realidade
localizada não-permutável”. (Harman, 2002, p.270)98
Se não existe contato direto entre objetos reais, ao mesmo tempo que, de
alguma forma, correntes causais são de fato estabelecidas entre os entes no mundo
(como atesta a experiência humana), estas relações devem dar-se obrigatoriamente de
maneira indireta, via objetos sensíveis. A esta conexão indireta, a maneira como todo
tipo de encontro entre objetos ocorre, Harman dá o nome de causalidade vicária.
"Assim como a percepção explícita, a reação causal é sempre apenas uma resposta a
uma gama limitada de fatores no ente causativo; outros traços são preteridos, [e
permanecem] escondidos do objeto que vai a seu encontro". (Harman, 2002, p.223)99
Lingis descreve precisamente este mecanismo quando declara que um objeto é “ao
engendrar imagens de si próprio, reflexos, sombras, máscaras, caricaturas de si mesmo”,
e ele afirma ainda que objetos não podem ter sua realidade reduzida aos “puros fatos”
da observação empírica, tampouco a seu perfil prático; todo objeto possui uma
profundidade inascessível. (Lingis, 1998, p.114)100
A única espécie de contato possível é aquele que acontece entre o objeto real e
o objeto sensível que ele experiencia. Assim, as relações entre objetos são sempre
assimétricas, ou seja, ocorrem numa única direção.101 O objeto-real-barco encontra o
objeto-sensível-mar como algo com uma densidade específica, sobre o qual ele
97
Morton, 2013-A, p. 54
98
Harman, 2002, p. 270
“The tool-being is not a handy functioning ´universal`, but always an individual, always the discrete
execution of some localized and unexchangeable reality.”
99
Harman, 2007, pp. 187-221.
Harman, 2002, p. 223
"Just like explicit perception, causal reaction is always only a response to a limited range of factors in the
causative entity; other features are passed over, concealed from the object that runs up against it."
100
Lingis, 1998, p. 114
“A thing is, we argue, by engendering images of itself, reflections, shadows, masks, caricatures of itself.
Things are not reduced to their reality by being reduced to facts; the ´pure facts´ of empirical observation
are abstracts of intersecting scientific theories, logics, and effects of technological engineering. But things
are also not reduced to their reality by being perceived in their practicable format.”
101
Harman, 2011-A, pp.75-8

33
consegue flutuar; o segundo é, assim, uma tradução produzida pelo primeiro
(enformada por sua composição material, sua forma, etc), cuja base é o perfil sensível
irradiado pelo objeto-real-mar. A ligação inversa (entre o objeto-real-mar e o objeto-
sensível-barco) constitui uma outra relação.
Através da estrutura do como e mediados pelos objetos sensíveis os objetos reais
fazem contato (sempre indireto), influenciando-se e tomando parte nas correntes
causais. Ao passo que a esfera sensível (em outras palavras, o domínio estético) abriga
toda e qualquer relação possível entre objetos, conclui-se que toda relação causal é,
essencialmente, uma relação estética, uma afirmação que Harman qualifica da seguinte
maneira: “(...) se agora dizemos que o universo tem uma estrutura estética ou
metafórica, isso não tem relação alguma com o tema já gasto do artista humano
projetando seus valores sobre um universo arbitrariamente perspectivo. Pelo contrário,
esta é uma afirmação metafísica sobre o modo como as gotas de chuva ou as
tempestades de areia interagem entre si mesmas quando não há ser humano algum em
cena. Esta ideia não consiste no velho conto pós-moderno da ´vida como literatura`, mas
sim, na própia causalidade como música, escultura e teatro de rua”. (Harman, 2005,
p.174)102
Aquilo a que se dá o nome de causalidade depende, assim, das duas fendas
abordadas acima, aquela que existe dentro do próprio objeto - cindindo-o entre sua
essência retirada (o objeto real) e seus efeitos estéticos (o objeto sensível) - e a fenda

102
A conclusão de que toda relação causal é uma relação estética aparece em múltiplos livros e artigos
tanto de Harman como de Morton. Por este motivo, no artigo On Vicarious Causation (que, como o título
indica, é inteiramente dedicado a este tema) ele defende a Estética como primeira filosofia. Morton
dedica todo o seu livro Realist Magic - Objects, Ontology, Causality ao desenvolvimento desta única
afirmação, sendo assim uma fonte ampla de argumentação neste sentido.
Harman, 2007, p. 221
Morton, 2013-A, especialmente pp. 20-1, 24, 30-6, 64-74, 82, 90-101
Harman, 2005, p.174
“For this reason, if we now say that the universe has an aesthetic or metaphorical structure, this has
nothing to do with the shopworn theme of a conscious human artist projecting values onto an arbitrary
perspectival universe. Instead, it is an actual metaphysical statement about the way that raindrops or
sandstorms interact among themselves even when no humans are on the scene. The point is not the old
postmodern chestnut of ´life as literature`, but rather causation itself as music, sculpture, and street
theater.”

34
intransponível que existe ao redor dos diferentes entes. 103 Sem estas duas tensões o
cosmos poderia ser resumido na maneira como é ele dado em um instante qualquer,
não havendo uma fonte plausível para o dinamismo que possibilita qualquer mudança;
o resultado seria um universo estático.104 Entretanto, exatamente porque um objeto
nunca é uma expressão adequada de si próprio, já que entes são sempre aparências, e
aparências são sempre para-um-outro-ente, é possível afirmar que objetos são
dialeteicos (do grego διαλέθεια - dialetheia - dupla verdade), ou seja, são aquilo que
mostram e, ao mesmo tempo, não são redutíveis àquilo que se mostra. Existe, assim,
dentro de cada objeto uma certa instabilidade que, no entanto, concede dinamismo
suficiente para impulsionar toda causalidade.105

Morton afirma que “objeto não significa objetificado. Antes, significa totalmente
incapaz de objetificação”; com esta afirmação ele pretende ilustrar a maneira como
objetos existem sempre fendidos entre a execução íntima de sua realidade específica e
única - o objeto real - e seu perfil estético, que se mostra sinceramente e influencia
outros objetos, envolvendo-se nas correntes da causalidade - o objeto sensível.106 Este
ensaio abordou até aqui esta contradição no coração do objeto; foi também
apresentada a maneira como objetos são os elementos componentes do universo de
maneira geral, possuindo primordialidade ontológica em relação a seus efeitos e suas
partes. Outro ponto aqui discutido foi a maneira como entes de toda espécie são
considerados objetos pela OOO, sejam eles materiais, simples, duradouros, naturais, ou
não; e todos eles ocupam o mesmo patamar ontológico, pois, obedecem as mesmas
regras no que diz respeito ao modo como existem e interagem.

103
Morton, 2013-B, p.83
104
Harman, 2011-A, p.12
105
Morton, 2013-A, especialmente pp. 31-2, 74-6
106
Morton, 2013-A, p.176

35
O restante deste ensaio ocupar-se-á das implicações que uma base ontológica
nestes moldes tem para a Ecologia. Será defendido que com o encetamento do
Antropoceno, esta maneira (não-antropocêntrica) de pensar tornou-se não só possível,
mas incontornável.

36
Ecologia Objeto-Orientada

Ecologia: ubíqua e imprecisa

Se, por um lado, é reconhecida a maneira como, apesar de abranger uma grande
variedade de subdisciplinas, a Ecologia desempenha um papel marginal dentro da
107
Filosofia, por outro, ´filosofias ecológicas` abundam fora da academia. A partir de
meados do séc. XX - quando as evidências dos transtornos ambientais causados pelo ser
humano no planeta atingiram uma magnitude incontornável - considerações
especificamente ligadas ao meio ambiente, e à influência humana sobre este,
começaram a emergir de maneira semelhante a como nos séculos XVIII e XIX as
alterações na paisagem, provocadas pelo início e subsequente instalação da indústria,
induziram filósofos e poetas românticos a refletir acerca do mundo à sua volta e a
exaltá-lo, tendo como foco de sua reflexão todo o meio ambiente - em outros termos, a
Natureza.108 O livro Silent Spring, de Rachel Carson, que documenta os efeitos
prejudiciais do uso indiscriminado de pesticidas, é o primeiro exemplo significativo de
obras, surgidas ao longo do último meio século, que tomam o meio ambiente como
tema central e é muitas vezes reconhecido como impulsionador de toda uma onda de
outras considerações.109

107
Sarkar, 2014
Morton, 2014-A, primeiro seminário
108
Luke, 1997, p. xi
Hay, 2002, pp. 4-11
109
Luke, 1997, p. 211

37
Como justificativa parcial para esta ausência de investigações filosóficas
abertamente dedicadas à Ecologia este ensaio aponta para dificuldades na definição dos
limites do próprio conceito (de Ecologia), que são inúmeras, além da difícil relação entre
teoria e ativismo ecológico (ou ambiental) que, por vezes, são equivalentes e
confundem-se mas, por outras, apresentam objetivos contrastantes (o primeiro mais
focado na estruturação teórica e no desenvolvimento das bases conceituais e o segundo
nas questões de ordem prática, de efeitos mais imediatos).110
Muitas vezes associada a, quando não dependente de, dicotomias e conceitos
problemáticos (como Natureza/Cultura, vida/não-vida, humano/não-humano) a
Ecologia tende a tratar de certas porções do cosmos em detrimento de outras; florestas,
recifes de coral e ursos panda são incluídos, enquanto eletricidade, balões de festa e
teclados de computador parecem situar-se totalmente fora de seu escopo. De maneira
intuitiva, com base nas significações correntes, é fácil reconhecer uma associação de
observadores de pássaros como uma instituição de alguma forma ligada a questões
ecológicas, enquanto o mesmo não ocorre com um grupo que faz campanha para salvar
o parque infantil do bairro.111 Este exemplo hipotético demonstra como ideias acerca do
significado e da abrangência da Ecologia são imprecisamente determinadas, pois,
recorrem a limites vagos, como as fronteiras entre o que é natural ou não (o que, por
sua vez, levanta a pergunta o que se encontra ´fora` da Natureza?).
Entretanto hoje, já na segunda década do séc. XXI, mais que nunca questões
relacionadas à Ecologia estão sendo pensadas e postas em prática em diferentes
esferas. A Ecologia - em sentido corrente, restrito ao tratamento das relações entre
organismos e o meio ambiente, conceito que será alargado mais à frente -

Outra obra influente, que data do início da década de sessenta, é Our Synthetic Environment, escrita por
Murray Bookchin, sob o pseudônimo Lewis Herber. Esta obra também trata do uso de pesticidas, e de
defende uma visão de mundo condizente com o entrelaçamento primordial entre os entes no mundo.
Para mais, Luke fornece uma longa e exaustiva lista de referências abrangendo as variadas tendências
ecocríticas do séc. XX nas notas ao longo da obra, pp.211-47.
110
Hay, 2002, p.1
111
Hay, 2002, p. 2

38
presentemente já informa (e enforma) variadas áreas da vida, da cultura e da
sociedade.112 Transformações estão a ocorrer como consequência do despertar de
consciência em relação ao impacto que o estilo de vida humano exerce sobre o planeta,
bem como mudanças impostas pelas próprias alterações dos sistemas terrestres (como
alterações climáticas, de nível e acidificação dos oceanos, ou da composição
atmosférica); de novos hábitos no cotidiano - como a separação e reciclagem do lixo, ou
o abandono do uso de sacos plásticos em supermercados (para citar dois exemplos
patentes) - à maneira como planos e decisões políticas têm agora de levar em
consideração a crise ambiental - com a implementação de impostos “verdes”, e o
surgimento de inúmeros partidos cuja bandeira principal guarda relação com o meio
ambiente - ou ainda, a maneira como questões ecológicas mostram-se cada vez mais
influentes e importantes para as artes (vide o surgimento de inúmeras vertentes da
chamada arte ambiental nas últimas décadas), a arquitetura (cada vez mais preocupada
em encontrar opções sustentáveis), a ciência e a tecnologia (que avançam a passos
largos no desenvolvimento de implementos e modelos cada vez mais compreensivos e
complexos de ecossistemas, do clima, etc.). A Ecologia, como se vê, já permeia
diferentes aspectos da vida humana. Devido a esta abrangência, infinitamente profunda
e ampla, é imprescindível que a Ecologia seja pensada e discutida seriamente, de
maneira transdisciplinar, a combinar insights da biologia com as artes, a computação, a
Filosofia, etc, pois, todas essas disciplinas encontram-se (ecologicamente) ligadas e
podem acrescentar perspectivas igualmente importantes a esta discussão, num debate
que toca absolutamente todos os entes do planeta, como afirma Rajendra Pachauri,
atual presidente do IPCC.113
“(...) Existe simplesmente um sem-número de entes únicos (fazendeiros, cães, íris,
lápis, LEDs, e assim por diante) a quem devo obrigação pelo simples fato de que

112
Morton, 2010, pp.13, 28
113
IPCC, Assessment Report 5 Working Group II Report Press Conference

39
existência é coexistência”, se a simples existência de um objeto implica sua coexistência
(num mesmo patamar ontológico) com uma infinidade de outros objetos, de modo a
impingir sobre eles sua realidade específica, isso significa que não existe um espaço
´fora` ou ´além` dessa malha de interconexões. (Morton, 2013-B, p.125)114 Este
enredamento inescapável transforma a consciência da proximidade (por vezes difícil e
perturbadora) entre todos os entes em algo inevitável. O espaço de possibilidade para a
reflexão ecológica encontra-se envolto em objetos e é composto por objetos, num
ambiente abarrotado e claustrofóbico do qual o ser humano é (mais uma) parte. Tal
conjugação significa ainda que, como Derek Parfit aponta, são necessárias novas teorias
da beneficência, pois, tanto a moralidade do senso-comum, quanto princípios do
interesse próprio falham frente à complexidade da malha de interconexões, formada
pelos objetos em relação. "Apesar de cada ato ter efeitos triviais, é frequentemente
verdade que juntos nós impomos grandes prejuízos sobre nós próprios e outros. Alguns
exemplos são poluição, congestionamento, esgotamento de recursos, inflação,
desemprego, recessão, sobrepesca, sobrexploração da agricultura , erosão do solo, fome
e superpopulação". (Parfit, 1984, p.443-4)115 Ações estatisticamente insignificantes, en
masse, têm efeitos potencialmente gigantescos - como a própria alteração da
composição atmosférica do planeta, uma realidade pela qual a ação humana (a queima
de combustíveis fósseis e liberação de outros poluentes) contínua e generalizada é
responsável, apesar da impossibilidade de culpabilização de indivíduos.116 Deixar de lado
teorias que defendem o interesse próprio envolve um contato mais íntimo com outros
entes, além de indivíduos futuros.117

114
Morton, 2013-B, p.125
“(...) there are simply a number of unique beings (famers, dogs, irises, pencils, LEDs, and so on) to whom
I owe an obligation through the simple fact that existence is coexistence.” (minha ênfase)
115
Parfit, 1984, p. 443-4
“(...) though each act has trivial effects, it is often true that we together impose great harm on ourselves or
others. Some examples are pollution, congestion, depletion, inflation, unemployment, a recession, over-
fishing, over-farming, soil erosion, famine, and overpopulation."
116
IGBP, 2013 pp. 12, 15
117
Morton, 2013-B, p.128

40
O termo Ecologia foi originalmente cunhado pelo zoólogo alemão Ernst Haeckel
em 1866 com o objetivo de designar as ´economias` das formas vivas - uma definição
biocêntrica (hoje muitas vezes equivalente ao termo Bionomia) que também leva em
conta o inorgânico, porém, apenas na medida em que este é ambiente para, e
influencia, o orgânico.118 Desde então os contornos exatos do conceito variaram,
tornando-se mais ou menos abrangentes de acordo com o foco escolhido
(conservacionismo, gerenciamento de recursos, planejamento urbano, etc).
Seguem abaixo três definições de Ecologia, a primeira advinda da Filosofia, a
segunda dos Estudos Ambientais e a terceira da Ecologia Profunda:
a) Ecologia trata “[d]as interações entre organismos individuais e o meio ambiente,
incluindo as interações com membros da mesma e de outras espécies” ; (Sarkar, 2014)119
b) Ecologia “como o estudo da totalidade das interrelações entre uma sociedade
humana e tudo em seu ambiente”; (Luke, 1997, p.xii) 120
c) A Ecologia é “o estudo científico interdisciplinar das condições de vida de organismos
em interação uns com os outros bem como com o ambiente, orgânico e inorgânico”.
(Naess, 1989, p.36)121
Inúmeros pressupostos transparecem nestas interpretações, conceitos usados na
definição (como ambiente e organismo) são, muitas vezes, disputados, ou sofrem da
mesma imprecisão daquilo que buscam definir. Também chama a atenção o
antropocentrismo sem disfarce da segunda acepção, flagrantemente correlacionista,
que coloca o ser humano como único organismo a ocupar um lado da equação

118
Haeckel, 1866 p. 286
119
Sarkar, 2014
“The science of ecology studies interactions between individual organisms and their environments,
including interactions with both conspecifics and members of other species. “
120
Luke, 1997, p. xii
“´ecology` (...) as the study of the totality of all interrelations between a human society with everything in
its environment.”
121
Naess, 1989, p.36
“the interdisciplinary scientific study of the living conditions of organisms in interaction with each other and
with the surroundings, organic as well as inorganic.”

41
ecológica, enquanto todo o resto, tudo aquilo que não é humano (e o que exatamente é
o humano?), é posto, em contraposição, do outro lado.122
No âmbito da Ética Ambiental - sem dúvida a área da Filosofia na qual a Ecologia
figura com maior proeminência - o problema da determinação de limites fica ainda mais
claro. Na busca de um critério universal para a atribuição de direitos a entes não-
humanos, por exemplo, muitas opções existem, porém, a questão parece estar ainda
longe de um acordo unânime. Enquanto Peter Singer, em seu célebre trabalho Animal
Liberation, defende que a capacidade para o sofrimento deve constituir o limite de
consideração moral123, ele próprio afirma, em Ética Prática, que a posse de um conceito
de si próprio como ser vivo com um futuro talvez seja um critério mais adequado. 124 Há
ainda aqueles que chamam atenção para o perigo do especismo com a criação de novas
hierarquias, para o interior das quais alguns não-humanos são movidos, enquanto os
excluídos continuam a ser tratados simplesmente como recursos naturais, desprovidos
de interesses moralmente significativos.125
Assim, muito da discussão acerca da definição de conceitos e da instauração de
critérios e limites, em toda a extensão do pensamento ecológico, gira à volta de quanto
e que partes do universo não-humano são dignas de consideração. Na falta de
referências o próprio ser humano torna-se referência e uma espécie de utilitarismo-
padrão passa a subtender a maneira como questões de cunho ecológico são
ponderadas. Morton dá o nome de agrilogística a essa tendência, e remete sua origem
aos primórdios da agricultura, há cerca de dez mil anos, no Crescente Fértil.126

122
Vale apontar que Luke formula esta acepção a partir de diversas definições dadas por correntes
variadas (de movimentos ambientalistas radicais ao consumismo ´verde`) que ele apresenta criticamente
em seu livro, assim, exatamente por colocar-se criticamente, ele enfatiza tal correlacionismo.
123
Singer, 1990, pp. 8-9
124
Singer, 2000, p. 145
125
Francione, 2008, p.144
126
Morton, 2014-A, primeiro e Segundo seminários

42
Uma noção expandida de Ecologia

“Yo soy yo y mi circunstancia,


y si no la salvo a ella no me salvo yo”127
- José Ortega y Gasset

Este ensaio não pretende adotar nenhuma das definições correntes do termo
Ecologia, ao contrário, ele procura estabelecer novos contornos, mais largos, pois, os
limites estreitos impostos pelo contexto no qual originou-se o termo (o universo das
chamadas ciências biológicas) não se mostram adequados a outros contextos, ou sob a
luz do Antropoceno e das mais recentes constatações de outras áreas científicas. Como
visto, muitas vezes a Ecologia é descrita como a economia das relações estabelecidas
entre organismos e outros organismos, e também entre estes e tudo aquilo que compõe
seus habitats.
São chamadas ecológicas relações como: mutualismo, simbiose, inquilinismo,
predação, competição, parasitismo, entre outras. Porém, no âmbito deste ensaio a
Ecologia não está restrita a estas relações, e também deve ser distinguida da economia,
e também da política, na medida em que não lida exclusivamente com relações de
produção e consumo, ou com relações de poder, mas ocupa-se da análise, descrição e
heurística de relações de todo gênero, entre objetos de toda espécie, e o modo como
estes delineiam os contornos do mundo e do próprio pensamento. Objetos não podem
ser determinados através de suas relações, ao contrário, somente objetos discretos
autônomos podem-nas estabelecer; entretanto, uma vez ligados objetos influenciam-se
uns aos outros por vezes sutil, por vezes drasticamente.128 Esta influência, de maneira
geral, e as relações que nela resultam, constituem o objeto de investigação da ecologia.

127
Ortega y Gasset, 2004, Vol. I, p. 757
128
Harman, 2011-A, p. 19

43
Assim, um dos objetivos deste ensaio é estabelecer uma base objeto-orientada
para a Ecologia, incomensuravelmente mais ampla que o campo exclusivo de
organismos e habitats. Isto significa que, deste ponto em diante, sob o rótulo Ecologia
(ou ecológico) cairão todas as relações estabelecidas entre entes de qualquer tipo. A
Ecologia guarda relação com quaisquer objetos e não apenas com os habitantes
ameaçados da Amazônia, as criaturas abissais das Marianas ou os pinguins do Atacama.
A porcentagem de dióxido de carbono na atmosfera concerne a vida e o bem-estar de
grande parte dos organismos na Terra, a temperatura e taxa de acidificação dos oceanos
e o ritmo de derretimento da neve nos Alpes suíços, mas também guarda relação com
companhias aéreas low cost, políticas de planejamento urbano, laptops e moinhos
d´água, pois, o dióxido de carbono é apenas um exemplo de objeto, e os objetos
encontram-se todos interconectados numa esfera de influência mútua, a dimensão
estético-causal, descrita como uma malha (um termo que sugere tanto os fios de uma
rede, como os espaços entre eles, refletindo não só a unicidade e coesão dos objetos e
suas relações, mas também a fenda que os caracteriza e a fragilidade dessas
conexões).129 “A existência de um objeto é irredutivelmente uma questão de
coexistência”, todavia, esta coexistência não significa que objetos existem unicamente
em relação mas, ao contrário, devido ao modo como objetos reais retiram-se de toda
relação eles jamais se esgotam em suas aparências (seu objeto sensível
correspondente), há sempre uma reserva de possibilidades, um excesso mantido à parte
de qualquer relação (sua essência real). (Morton, 2013-A, p.45)130

129
Morton, 2010, p. 28
130
Morton, 2013-A, p. 45, 113, 145-6, 159-60, 211
“The existence of an object is irreducibly a matter of coexistence.”

44
O estranho-estranho e a malha de interconexão

“Quand je me joue à ma chatte,


qui sçait si elle passe son temps de moy
plus que je ne fay d'elle?”131
Michel Montaigne

Na primeira parte deste ensaio foi argumentado que todo tipo de ente (seja ele
material, natural, simples, durável, ou não) deve ser considerado como objeto. Os
objetos foram descritos como elementos ontologicamente primários, ou seja, anteriores
a quaisquer relações das quais possam fazer (ou vir a fazer) parte, pois, são
absolutamente irredutíveis tanto a essas relações, quanto a uma (ou a soma) de suas
partes, eles não podem ser fundidos numa totalidade holística, além de não poderem
ser resumidos a seus efeitos sobre outros objetos. Foi também demonstrada a maneira
como os objetos existem cindidos entre sua essência real, que se retira de toda forma
de contato enquanto é responsável pela execução daquela realidade específica, e seu
perfil sensível, a representação que cada outro objeto dele produz a cada encontro.
Esta breve recapitulação serve para que sejam aqui apresentados dois dos
conceitos fundamentais a figurar nesta segunda parte do presente ensaio - o estranho-
estranho e a malha - introduzidos pela primeira vez na obra The Ecological Thought, de
Timothy Morton. Nesta obra Morton utiliza tais termos de maneira ainda estreita, em
referência aparentemente exclusiva aos organismos (vivos) e à rede de relações que
estes estabelecem com outros organismos e com entes não-vivos, respectivamente;
“(...) os estranhos-estranhos [são] todas as formas vivas com as quais encontramo-nos
conectados”, já a malha inclui “todas as formas vivas (...), assim como todas as formas
mortas, além de seus habitats, que também são compostos por entes vivos e não-vivos”.
131
Montaigne 1947, pp.172

45
(Morton, 2010, p.28-9)132 Porém, em obras subsequentes, com a aproximação de
Morton ao movimento da Ontologia Objeto-Orientada, ambos (estranho-estranho e
malha) são alargados e passam a incluir não só os seres vivos e suas relações mas, todo
objeto e toda a esfera estético-causal (região na qual o encontro entre objetos - reais e
sensíveis - acontece, a esfera da causalidade vicária). Atualmente, Morton afirma que a
estranheza (termo com significado preciso em sua ecocrítica) é condição ontológica de
todo ente; “a interconexão de todas as coisas é uma trama finamente tecida que paira
frente àquilo a que eu (...) dera o nome de estranhos-estranhos: todos os entes, de
esferovite e ondas de rádio a amendoins, cobras e asteróides, são irredutivelmente
inquietantes”. (Morton, 2013-A, p.75)133
Das afirmações acima nascem perguntas como: em que exatamente consiste este
aspecto inquietante que Morton atribui aos objetos, será mesmo necessário articular
uma conexão entre todos os entes, e ainda, qual é a relevância desta estranheza para a
deliberação acerca da Ecologia? Qual é a diferença entre a malha de interconexão e um
conceito totalizante, como mundo ou Natureza (ambos conceitos que Morton considera
contra-produtivos para o discurso ecológico)?134 Abaixo, segue a tentativa de responder
a estas e outras questões, assim como a de traçar as implicações que decorrem da
perspectiva (objeto-orientada) assumida por este ensaio para a Ecologia no
Antropoceno.
Se é o caso que objetos reais nunca se encontram de forma direta, mas o fazem
sempre vicariamente, através de simulacros sensíveis (a maneira como aparecem para
um outro objeto), parte desse objeto encontrar-se-á eternamente fora do alcance de
132
Morton, 2010, pp. 28-9
“(...) strange strangers, the life forms to whom we find ourselves connected.”; “All life forms are the mesh,
and so are all dead ones, as are their habitats, which are also made up of living and nonliving beings.”
133
Morton, 2013-A, p. 75
“The interconnectedness of everything is a finely woven tissue that floats in front of what elsewhere I
have called strange strangers: all entities, from Styrofoam and radio waves to peanuts, snakes and
asteroids, are irreducibly uncanny.”
134
Sua obra de 2007, por exemplo, tem o título Ecology Without Nature, e nela ele desenvolve o
argumento de que o conceito de Natureza já não é heuristicamente útil, pois, ele abafa a existência real
e específica de cada um dos entes que constituem tal Natureza.

46
qualquer outro ente, inclusive dele próprio. Qualquer descrição do objeto jamais
corresponde ao objeto em-si; “Um bloco de cimento é duro e frio para uma mosca, é
áspero para o meu dedo, é frágil para um golpe de karatê bem posicionado. Ele é
invisível para um neutrino.”, apesar das múltiplas interpretações possíveis (a da mosca,
do dedo, do golpe, ou do neutrino) o bloco é, ainda, um objeto real específico,
impermutável, e não se resume a nenhuma delas. “Posto de outra forma, nenhum ente
é redutível ao hic et nunc das energias que libera”. (Morton, 2013-A, p.27; Harman,
2002, p.224)135 Sendo assim, todo objeto é em certa medida um estranho (no sentido de
algo que é desconhecido), pois, parte da realidade de cada objeto retira-se e esconde-se
de todo contato, permanecendo sempre inatingível atrás das pesadas cortinas
ontológicas, mais além de qualquer possibilidade de descrição, análise ou uso.
Porém, o objeto é duplamente estranho, como indica a repetição do adjetivo na
composição do termo. Ele é estranho para os objetos que o encontram (por possuir uma
parte sempre velada), ele é inquietante, em sentido freudiano - da sensação de
familiaridade e estranhamento simultâneos136 - mas, também é estranho em si (e talvez
mais estranho por este motivo que por qualquer outro), pois, não pode ser reduzido a
seus atributos, partes, relações ou efeitos, ao mesmo tempo que só pode ser
percebido como objeto através destes. O objeto “falha em coincidir com sua aparência-
para um outro objeto”, ele apenas deixa um rastro de signos indiciais, correspondente à
forma como são percebidos, enquanto escapa a apreensão total. (Morton, 2013-B,
p.196)137 Morton argumenta que neste sentido a OOO segue e sustenta a descoberta

135
Morton, 2013-A, p. 27
“A cinder block is hard and cold for a fly, it´s stubbly to my finger, it´s fragile to a well-placed karate chop.
It´s invisible to a neutrino.” (minha ênfase)
Harman, 2002, p. 224
“Put differently, no entity is reducible to the hic et nunc of its specific unleashed energies.”
136
Morton, 2010, p. 50
Freud, 2003, pp.123-62
137
Morton, 2013-B, pp. 77, 176, 196
“An object fails to coincide with its appearance-for another object, no matter how accurate that
appearance-for.”

47
fenomenológica que descreve a maneira como objetos não são percebidos na forma de
uma multiplicidade de sensações, só posteriormente agrupadas numa unidade, mas
que, ao contrário, o objeto como um todo é já ´intencionado´ pelo indivíduo.138
Estes estranhos-estranhos, em sua existência contraditória, encontram-se não
somente próximos (sendo compostos por objetos e situados no interior de objetos)
mas, em conjunto compõem a chamada malha que, ao contrário de um sistema
fechado, consiste em “uma vasta e espalhada malha de interconexão, sem centro ou
borda definidos. Ela é intimidade radical, a coexistência com outros entes, sencientes ou
não - e como é que podemos tão claramente fazer tal distinção?”. (Morton, 2010, p.8)139
A pergunta ecoa a hesitação, a incerteza, a ironia e a atitude contemplativa
fundamentais para o pensamento ecológico “crítico e auto-crítico” promovido por
Morton, que admite a impossibilidade de chegar-se a uma posição exterior a quaisquer
contextos, a partir da qual seja possível analisar a malha, ou traçar esses limites e
determinar fronteiras sem preconceitos ou inclinações.140
A malha nunca é percebida diretamente, ela só pode ser conhecida através dos
estranhos-estranhos. A malha aponta para as formas de conexão e separação
simultâneas que existem entre os objetos do mundo sem estabelecer uma substância
subjacente (comum a todos os entes - como a extensão cartesiana, a noção de matéria
ou mesmo de Natureza); a malha aponta, portanto, para a existência de entes

Um exemplo de signo indicial são as pegadas, indícios de uma pessoa ou animal; ou ainda, a fumaça,
signo indicial do fogo, como no ditado popular “onde há fumaça, há fogo”.
138
Morton, 2013-A, p. 61
139
Morton, 2010, p. 8, 28-30
“It is a vast, sprawling mesh of interconnection without a definite center or edge. It is radical intimacy,
coexistence with other beings, sentient and otherwise - and how can we so clearly tell the difference?”
140
Morton, 2007, pp. 13, 67
Morton, 2010, p. 16
Morton, 2013-B, pp. 2, 22, 134-58, 160 - Nesta obra Morton aborda essa impossibilidade e dá a ela o
nome de hipocrisia. Ele argumenta que, hoje em dia, a humanidade vive constantemente sob a sombra
desta hipocrisia, pois, descobriu-se protagonista de todo um período geológico (o Antropoceno) ao
mesmo tempo em que descobriu-se, ela própria, vilã da crise ambiental.

48
singulares - os estranhos-estranhos - que se encontram profundamente ligados apesar
de jamais se conhecerem totalmente.141
A interconexão generalizada representada pela malha corresponde, em
Heidegger, a sua contextura instrumental (a rede de referências e atribuições na qual
está fundido todo objeto encontrado circunspectamente à mão - Zuhanden), porém, a
malha diferencia-se da contextura instrumental global (na qual os instrumentos não
existem separadamente) pois, concede unicidade e autonomia a cada elemento que a
compõe, e salienta a extrema proximidade, apesar da separação absoluta, entre eles. 142
“Existência é coexistência”, mas não a coexistência hamônica e equilibrada com
base na fundamental intuição de um princípio (transcendental) de Natureza e do modo
como o ser humano é parte dela, como defende, por exemplo, a Ecologia Profunda.
Morton está disposto a lidar com a imprecisão, a incerteza, a inquietação e as
consequentes (e inúmeras) dificuldades que existem anexadas a uma ideia de Ecologia
nestes moldes; “O pensamento ecológico, o pensar da interconexão, possui um lado
sombrio que está presente não numa estética hippie da vida sobre a morte, ou a
Bambificação sádico-sentimental dos entes sencientes, mas em uma afirmação ´gótica`
da ideia contingente e necessariamente estranha de que queremos permanecer com um
mundo que morre: uma ecologia sombria”. (Morton, 2007, pp.184-5)143

141
Morton, 2010, p. 57
142
Morton, 2013-B, p. 83
Heidegger, 1977, p.H68
143
Morton, 2013-B, p.125
Morton, 2007, pp.184-5
“The ecological thought, the thinking of interconnectedness, has a dark side embodied not in a hippie
aesthetic of life over death, or a sadistic-sentimental Bambification of sentient beings, but in a ´goth`
assertion of the contingent and necessarily queer idea that we want to stay with a dying world: dark
ecology.” (minha ênfase)
Naess, 1973, pp. 95-100
Devall, Sessions, 1985, pp. 67, 75-6

49
Agrilogística

Cerca de dez mil anos atrás, em diferentes partes do mundo pessoas começaram
a domesticar plantas e animais, fora este o início da chamada Revolução Neolítica.144 O
impacto das inovações técnicas e culturais nascidas neste período não pode ser
subestimado, elas viriam a definir o modo de vida do ser humano através do globo pelos
milênios subsequentes, transformando-se no padrão que ainda hoje prevalece. O
surgimento da agricultura deu-se em um momento de invenção e desenvolvimento
profundos, cuja abrangência e poder transformativo só seria equiparado pelas
transformações nascidas com a Revolução Industrial.
Morton argumenta que a agrilogística - nome que ele dá à estratégia agricultural,
originada no Crescente Fértil - surge da tentativa de aplacar duas formas de ansiedade.
A primeira, e mais óbvia, é a ansiedade que quaisquer comunidades dependentes da
caça e/ou da coleta como fonte exclusiva de alimento enfrentam constantemente: a
insegurança e a incerteza de como ou quando virá a próxima refeição. 145 É fácil imaginar
como um campo de cultura que assegura a produção de uma certa quantidade de
alimento, dentro de um certo período de tempo, além de representar mais comida por
menos esforço, é atraente, visto que a outra opção não fornece garantias. Uma
comunidade nômade (ou semi-nômade) de caçadores/coletores está constantemente
dependente da riqueza, abundância e generosidade da paisagem local, o que nem
sempre assegura o suprimento das necessidades da população.
A segunda forma de ansiedade descrita por Morton é, entretanto, ainda mais
primordial, trata-se do anseio e do desassossego, de origem ontológica, despertado pelo
encontro com o estranho-estranho, e pela existência contraditória em meio a uma
multidão heterogênea de entes em uma realidade que nunca se revela totalmente. Na

144
Diamond, 1987, pp.64-6.
145
Morton, 2014-A, primeiro seminário

50
tentativa de fixar horizontes e combater a contradição que existe no coração de todo
objeto - a fenda entre ser (o objeto real) e parecer (o objeto sensível) - o humano
recorreu à abertura ostensiva de campos firmemente delimitados e à monocultura.
Numa luta contra o estranho e o acidental o campo é reconfortante, pois, está sempre
presente - visivelmente demarcado, quando não fisicamente cercado. O campo de
agricultura funciona como uma tela em branco sobre a qual seres humanos podem
violentamente (porque a abertura de um campo implica a remoção de tudo que lá
estava antes) projetar a satisfação de suas necessidades.146
A agrilogística é, assim, aquela que Heidegger chamara de metafísica da presença
posta em prática - uma noção que remete a um conceito de Natureza que a equipara a
um simples estoque de materiais (Bestand) e conduz à sua exploração nestes mesmos
termos. O campo destaca-se da paisagem transformando-se num armazém. Para
Heidegger, a metafísica da presença representa uma ameaça à possibilidade de respeito
autêntico pela Natureza, pois, limita o conhecimento das características e qualidades do
meio ambiente a suas propriedades ônticas; seu Ser (em sentido ontológico) é ignorado,
restando apenas o escrutínio do modo como seus elementos podem vir a ser úteis ou
danosos para quem os considera.147
A progressiva adoção da agricultura teve como resultado a gradual
transformação do modo de vida da população humana ao redor do planeta. Uma fonte
relativamente segura e abundante de alimento (porque o rendimento de cada safra de
vegetais plantados é inúmeras vezes maior que o da coleta de frutos, raízes e bagas, e o
pastoreio mais eficaz que a caça) permitiu que um estilo de vida sedentário fosse
adotado em lugar do nomadismo. Como consequência alimentos começaram a ser
armazenados para garantir a nutrição durante os meses de inverno, comunidades mais
numerosas puderam desenvolver-se, bem como novas tecnologias (utensílios e

146
Morton, 2014-A, primeiro seminário
147
Blackburn, 1994, p. 300

51
ferramentas para a agricultura e criação de animais, tijolos e argamassa, moinhos),
surgiram ainda novas estruturas sociais.148
Entretanto, esse passo evolutivo sem par no desenvolvimento civilizacional
humano, ao contrário do que inicialmente possa parecer, veio acompanhado de uma
série de inconvenientes. Foi constatado que cerca de três mil anos após o encetamento
da prática da agricultura também haviam aparecido os primeiros indicadores da
desigualdade social e sexual (a transformação da mulher em parte do ´mecanismo` do
campo e a ascenção de uma classe dominante), do surgimento e da proliferação de uma
série de doenças, diminuição da estatura média e expectativa de vida, empobrecimento
da dieta (agora dependente de uma ou duas variedades de plantas amiláceas, como o
trigo, o arroz e o milho), aparecimento de uma ideologia voltada para a guerra (pela
necessidade de defesa dos campos e das comunidades que se desenvolviam à sua
volta), além de indícios de que a carga de trabalho pesado aumentara significativamente
em comparação a períodos anteriores (pré-agriculturais) devido a novas necessidades: a
aragem dos campos, corte de árvores, fabricação de tijojos de barro, preparação de
argamassa de cal, moagem de cereais, abertura de pedreiras, etc. 149
Tudo isso aponta para a maneira como o modelo agrilogístico pode de fato
sustentar um número maior de pessoas que a caça e a coleta. Porém, apesar dos
benefícios a estratégia agrilogística também traz consigo uma série de desvantagens e,
como sugerem descobertas recentes no ramo da arqueologia e da paleopatologia, em
última instância, a agricultura representa menos prêmios que prejuízos, pois, maximiza
a existência em detrimento da qualidade de vida, num exemplo perturbador daquilo

148
Diamond, 1987, pp.64-6
Diamond, 1998, pp. 33-191
Hershkovitz, Gopher, 2008, pp. 441-479
149
Whittle, A. 2003, pp. 162-167
Hershkovitz,, Gopher, 2008, pp. 441-479

52
que Derek Parfit chama de “a conclusão repugnante”, a conclusão de que é melhor que
existam mais pessoas do que pessoas mais felizes.150
O modelo agrilogístico é estruturado de forma a suprir exclusivamente as
necessidades humanas; da horta e do pomar são excluídas todas as espécies que não as
selecionadas pelo agricultor. No momento em que todo ente que não tem serventia
direta para o humano é banido, um padrão utilitarista emerge, e é este padrão que
subjaz e é responsável pela transformação da espécie humana no principal agente
geofísico deste período - o Antropoceno.
A agricultura, herdada deste passado distante e incrementada ao longo da
História, chega aos dias de hoje numa versão extrema, a da agricultura industrial, com
base no uso de fertilizantes sintéticos e modificações genéticas. Com base em uma
distorção dos recursos - abertura de campos de cultivo (e consequente destruição do
que ocupara a área), irrigação, fertilização, controle de insetos, fungos e nematóides,
etc - é criada uma abundância artificial e transiente que não pode ser mantida
indefinidamente. Num sóbrio conto sobre como o efeito cumulativo de ações
aparentemente desprezíveis podem ter consequências inesperadas que, por sua vez,
podem atingir magnitudes devastadoras, Jared Diamond enumera exemplos de povos
que durante séculos usufruiram dos recursos naturais disponíveis desta maneira
(cultivando e controlando a paisagem) até atingirem uma proporção insustentável e
entrarem em colapso, num processo que, pelo menos em parte, fora fruto de problemas
ecológicos oriundos da destruição involuntária dos recursos naturais, dos quais tais
sociedades dependiam. Ao redor do globo constam exemplos de ecocídios deste gênero
- os Anasazi e Cahokia na América do Norte, as cidades maias na América Central, as
sociedades moche e do Tiahuanaco ao Sul, a Grécia micênica, a Creta minóica, o Grande
Zimbabué no continente africano, Angkor Wat e as cidades do Indo na região de

150
Diamond, 1987, pp.64-6
Morton, 2014, primeiro seminário
Parfit, 1984, pp. 381-90

53
Harappa na Ásia e, talvez o exemplo mais célebre, a Ilha de Páscoa na Polinésia.151 Um
paralelo entre estas comunidades (uma vez prósperas) em suas respectivas regiões e a
população humana no planeta Terra, apesar de parecer simples e automático, não
funciona na prática, pois, cada um desses casos possui tantas especifidades que linhas
gerais não podem ser traçadas a partir de seu conjunto. Esta é uma situação frequente
na Ecologia, pois, a criação de modelos com base na (extremamente) complexa teia de
relações é uma tarefa que somente nas últimas décadas tem-se provado possível,
através do uso de potentes computadores.
Ciente de que uma parcela significativa das causas do aquecimento global advém
da agricultura e da criação de animais (da remoção da cobertura vegetal original para o
plantio aos gases de efeito estufa emitidos por bovinos) e do caráter insustentável do
estilo de vida moderno (baseado na exploração constante, crescente e sem limites dos
recursos disponíveis) a humanidade já não pode ignorar o fato de que a estratégia
agrilogística é, a longo prazo, auto-destrutiva.
Porque o impacto humano vem se mostrando de tal forma profundo e
furiosamente transformador, a ponto de sobrepor sua História à dos sistemas
terrestres, é necessário que a conduta humana (enquanto espécie) seja reavaliada. O
Antropoceno inaugura e o aquecimento global exige o pensar a longuíssimo prazo, uma
necessidade que o IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) escolheu
descrever com as seguintes palavras: "a Terra como um todo é agora um campo de
testes global à medida que a humanidade acelera seu experimento involuntário em
escala planetária com seus próprios meios de suporte de vida". (IGBP, 2004, p.35)152

151
Diamond, 2005, pp. 18-23

152
IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme), 2004, p. 35
“In fact, the Earth is now a global test bed as humanity accelerates its unintended planetary-scale
experiment with its own life-support system.”

54
O Antropoceno

Marcas significativas nas camadas rochosas da crosta terrestre delimitam o


início/fim de cada época/período geológico. Estas marcas podem ter origem em eventos
como deslocamentos tectônicos, impacto de grandes meteoros, glaciações, vulcanismo
ou outras alterações na dinâmica do sistema planetário. Porém, entre meados do séc.
XVIII e início do séc. XIX (com o início e posterior estabelecimento da indústria, cuja
principal fonte de energia são, até hoje, os combustíveis fósseis) as modificações
antropogênicas sobre o meio ambiente intensificaram-se radicalmente - fato que pode
ser observado claramente através dos inúmeros gráficos representando mudanças
globais (população, uitlização de recursos hídricos, consumo de fertilizantes,
urbanização, e diversas outras) elaborados por cientistas de áreas variadas nas últimas
duas décadas153, bem como através da inspeção da fina camada de carbono depositada
no leito de lagos profundos e núcleos de gelo, cuja origem é a queima de combustíveis
fósseis.154 Diferentemente de períodos de aquecimento planetário anteriores, os fatores
responsáveis pelas atuais mudanças são inerentemente sociais, “atividades humanas
levaram a mudanças globais na atmosfera, clima, litosfera e biosfera terrestres sem
precedentes na história humana, quiçá na história do planeta”; o ser humano pode ser
considerado o principal fator geofísico contribuindo atualmente para a configuração do
planeta.155
Em 2000 foi publicado o artigo seminal, de co-autoria de Paul Crutzen e Eugene F.
Stoermer, no qual o termo Antropoceno aparece pela primeira vez em referência ao

153
Como, por exemplo, os inúmeros gráficos presentes nos relatórios de entidades multinacionais como
o IPCC e o IGBP retratando as mudanças globais. Este ensaio toma como base o quadro construído
pelo IGBP em 2004 mostrando a maneira como índices diversos sofreram, nas últimas décadas,
alterações em ritmo acelerado, sem precedentes na história do planeta. Ver Anexo I.
IGBP, 2004, pp.15,17
154
Em 1999 foram publicados os dados extraídos do núcleo de gelo de Vostok, na Antártida, que
permitiu a análise da atmosfera e da variação de temperatura no planeta nos últimos 420.000 anos. Esta
análise foi fundamental no desenvolvimento da ideia do planeta como sistema complexo.
Petit, 1999, pp. 429-436
155
Ellis, 2013, p.32
IGBP, 2004, p.23

55
intervalo temporal geológico presente, no qual condições e processos geologicamente
significantes foram, e continuam sendo, profundamente afetados pela atividade
humana. A raiz grega do termo - Άνθρωπος (anthropos) - põe em foco o papel
fundamental do ser humano, na qualidade de espécie dominante, no descortinamento
deste período, papel que nenhuma outra espécie jamais desempenhara com
semelhante eficiência em toda a história da vida na Terra.156
Apesar da oficialização do termo pela Comissão Internacional de Estratigrafia (ISC
- International Commission on Stratigraphy) encontrar-se ainda pendente, a ideia de que
a Terra encontra-se neste período - o Antropoceno - é já amplamente aceita dentro de
áreas variadas (em especial no ativismo ambiental, estudos climáticos e do sistema
terrestre, mas também nas Artes e na própria Filosofia), tendo adquirido desde a data
de publicação do artigo de Crutzen e Stoermer enorme força retórica.157
Os limites que definem o início do Antropoceno permanecem sob discussão. A
proposta original foi a de começar a contagem a partir do encetamento da Revolução
Industrial na Europa, porém, datas anteriores (o estabelecimento da agricultura, ou
mesmo antes) e posteriores (o começo da Era Nuclear) também já foram sugeridas.158
Morton escolhe uma data precisa, abril de 1784, dia no qual o multifuncional motor a
vapor, desenvolvido por James Watt, foi patenteado na Inglaterra, um momento chave,
pois, foi ele (o motor a vapor) quem alimentou e permitiu o florescer da Revolução
Industrial.159 Em 16 de julho de 1945, com o primeiro teste nuclear (chamado Trinity
Test - no Novo México, Estados Unidos) uma nova camada, desta vez de materiais
156
Crutzen, P. e Stoermer, E.F. 2000 “The ´Anthropocene´”, Global Change Newsletter 41 (IGBP). pp.
17-18
Um outro exemplo de transformação radical de origem biótica no planeta é o Grande Evento de
Oxigenação (GOE). Bactérias fotossintetizantes começaram a excretar oxigênio (subproduto da
fotossíntese), este acumulou-se na atmosfera ao longo de bilhões de anos, num processo responsável
pelo maior evento de extinção em massa da história do planeta, mas também responsável pela
composição rica em oxigênio da atmosfera hoje, da qual depende a maior parte da vida que existe
atualmente no planeta.
Holland, 2006, pp. 903–915
157
Chakrabarty, 2013, em conferência
158
Ellis, 2013, pp.32-35
159
Morton, 2013-B, pp.4-5

56
radioativos, passou a ser depositada sobre a superfície do planeta, dando início ao
período hoje conhecido como a Grande Aceleração, no qual o ritmo do impacto humano
sofreu um incremento drástico.160 Dipesh Chakrabarty chama atenção para o modo
como este aumento - uma elevação aguda nos níveis da agricultura, da industrialização
e do consumo de água e energia - reflete a crescente democratização dos padrões de
consumo em âmbito global.161
A validação oficial do Antropoceno tem o potencial de ajudar a integrar
discussões entre diferentes disciplinas, porém, a inclusão do humano na categoria de
força geofísica não depende desta oficialização. A classe científica, de modo geral, já
reconhece e salienta o fato, também observável no próprio cotidiano quando analisado
cuidadosamente. O Antropoceno consiste na interseção de escalas temporais
absolutamente distintas - a escala temporal do sistema terrestre, difícil de imaginar por
ser contada em bilhões de anos, a escala temporal da vida no planeta, também muito
mais extensa (milhões de anos) que a terceira escala, a da História humana (que não se
estende além de alguns milhares de anos). O que fora parte exclusiva do domínio
geológico e do domínio evolutivo - as transformações gigantescas, quase
inimaginavelmente profundas e retiradas da experiência humana - agora é também
parte e agente na História, que, por sua vez, deixa de ser domínio exclusivo do humano,
ao passo que todo tipo de objeto força entrada no horizonte de suas preocupações na
forma da crise ambiental.
O que, por um lado, descreve um novo nível (geofísico) de influência e poder
humanos, por outro, vem acompanhado de uma ameaça à própria existência da espécie
e faz com que o Antropoceno seja muitas vezes interpretado de maneira lúgubre e
160
A população do planeta mais que dobrou na segunda metade do último século, a produção de grãos
triplicou, o consumo de energia quadruplicou, e atividades econômicas quintuplicaram.
IGBP, pp.15-17
161
Chakrabarty, 2013, em conferência
O que também afirma o IGBP quando, já em seu primeiro relatório do gênero, declara que "these global
changes are accelerating as the consumption-based Western way of life becomes more widely adopted
by a rapidly growing world population."
IGBP, 2004, p. 38

57
apocalíptica. Além disso, a confluência radical de diferentes temporalidades
problematiza velhas distinções - entre humano/não-humano, natureza/cultura,
organismo/máquina, público/privado, primitivo/civilizado - oferecendo uma chance
para que a validade destas distinções seja reavaliada. Os próprios contornos daquilo que
significa ser humano - expressão na qual a palavra ´ser´ pode ser lida tanto como
substantivo, quanto verbo - tornam-se difusos (e, por que não, confusos?) na tentativa
de torná-los precisos. O humano revela-se como um ente fundamentalmente
prostético, que só existe, enquanto tal, em conexão com a tecnologia característica de
sua espécie (linguagem, cultura, sistemas simbólicos).162 A isto soma-se o fato de que
somente com o (muito recente, mesmo em termos históricos) desenvolvimento de
tecnologias em áreas como a computação (com o aumento da capacidade de
processamento e armazenamento), inteligência artificial, análise de sistemas complexos,
física estatística, dinâmica não-linear, etc. - todos estes elementos não-orgânicos, cujas
condições de possibilidade são o próprio Antropoceno163 - os seres humanos foram
capazes de ´descobrir´ (ver, interpretar e compreender) os sinais que confirmam esta
nova época: “a forma na qual a informação foi entregue foi precisamente a das fórmulas
instrumentais e matemáticas da própria modernidade”. De maneira circular e irônica, a
separação entre o natural-biológico e o tecnológico-maquínico é também obscurecida.
(Morton, 2013-B, p.19)164
Já é conhecida pelas ciências a maneira como processos biológicos interagem
fortemente com processos físico-químicos na construção do ambiente que mantém o
planeta habitável para a vida, uma relação de co-determinação que é uma das
162
Wolfe, 2013, em diálogo com Claire Colebrook
163
Donna Haraway descreve em seu célebre ensaio ´A Cyborg Manifesto´:
“By the late twentieth century, our time, a mythic time, we are all chimeras, theorized and fabricated
hybrids of machine and organism; in short, we are cyborgs.”
Haraway, 1991, p.150
164
Morton, 2013-B, pp.19, 128-129
“There we were, trolling along in the age of industry, capitalism, and technology, and all of a sudden we
received information from aliens, infomation that even the most hardheaded could not ignore, because
the form in which the information was delivered was precisely the instrumental and mathematical formulas
of modernity itself.”

58
condições de possibilidade para o próprio surgimento e evolução dos diferentes tipos de
organismos.165
O papel fundamental desempenhado por objetos de todo gênero tem motivado
autores, como Jane Bennett, a apontar para a vitalidade intrínseca da chamada matéria
bruta. Bennett, em Vibrant Matter, reivindica os “poderes animados das formações
materiais”, suas trajetórias, propensões e tendências próprias que, quando não são
negadas são, em grande parte, ignoradas. Buscando imaginar o impacto que o
reconhecimento verdadeiro e sincero desta vitalidade abiótica acarretaria na resposta a
problemas públicos, (não restritos a questões ambientais) ela apresenta inúmeros
exemplos do papel real e ativo que os variados objetos desempenham - das reações
químicas provocadas em meio ao lixo nos depósitos, bem longe dos olhos humanos, ao
efeito que ácidos graxos podem vir a ter sobre o humor e o comportamento de
indivíduos - e descreve a maneira como humano e não-humano, vida e não-vida, agem e
interagem intimamente naquilo que ela chama de “materialidade compartilhada”.166
Paralelamente, Morton pergunta (em The Ecological Thought) “Como seria um encontro
verdadeiramente democrático entre entes verdadeiramente semelhantes - será mesmo
possível imaginarmos?”. (Morton, 2010 p. 7)167 Ambas as questões, de Bennett e
Morton, permanecerão sem resposta enquanto a classificação ontológica dos entes
(que em conjunto compõem tudo aquilo que há e tudo aquilo que é) consentir que
objetos que compartilham de certos traços (materialidade, vida, consciência, ou outro)
sejam tomados como particularmente significativos.

165
Por exemplo: processos biológicos contribuem significativamente para a absorção de CO2
atmosférico pelos oceanos, o que por sua vez controla os níveis de CO2 na atmosfera durante longos
intervalos de tempo. A fotossíntese do fitoplâncton reduz a quantidade de CO2 na superfície do oceano,
permitindo assim que mais CO2 da atmosfera seja dissolvido. Cerca de 25% do carbono fixado pelo
fitoplâncton na superfície desce para o interior, onde é armazenado por centenas de milhares de anos,
contribuindo para a não-acumulação deste gás na atmosfera.
IGBP, 2004, p. 9
166
Bennett, 2010, pp. vii, 4-5, 40-43
167
Morton, 2010 p. 7
“Ultimately, this includes thinking about democracy. What would a truly democratic encounter between
truly equal beings look like, what would it be - can we even imagine it?”

59
É justo, portanto, afirmar-se que a conjugação entre humano e não-humano e
suas implicações decorrentes têm-se mostrado cada vez mais conspícuas, e que a
descoberta do Antropoceno ao mesmo tempo que revela a ligação estranha, ainda que
íntima, entre todos os entes, levanta questões fundamentais (como as duas questões
propostas por Latour na epígrafe à este ensaio); o esforço em reponde-las é o que
ajudará a traçar caminhos, tanto para a teoria quanto a prática (humanas), que admitam
e reconheçam esta interconexão como condição ontológica de todos os objetos.
A maneira como entes de todo tipo existem estreitamente emaranhados (bolos
de chocolate, bicicletas, sinais de internet sem fio, bancos e bactérias) é refletida no
modo como o pensamento ecológico (o pensar-se a própria Ecologia) guarda relação
direta não só com ideias ditas "verdes", mas com seu próprio suporte, o conjunto de
objetos que são suas condições de possibilidade. Morton exemplifica este fato com uma
breve e fascinante passagem na qual descreve o modo como Descartes, apesar de
frequentemente vilipendiado pela ecocrítica tradicional, inicia suas Meditações
descrevendo o ambiente no qual se encontra - sentado à beira do fogo, segurando em
suas mãos o papel sobre o qual escreve - uma estratégia típica da nature writing (de
figuras como Henry Thoreau), que busca justamente ofuscar a separação entre o Eu e o
ambiente. Morton chama atenção para a forma como o raciocínio que segue tal
descrição (a fase de dúvida radical que culmina no cogito) apoia-se exatamente sobre o
contexto, a ambiência que o envolve, sendo impossível designar um (o Eu), ou outro (o
meio) como ontologicamente anterior. “´Eu penso` depende do ´Eu estou` do ´Eu estou
aqui sentado ao pé da lareira` (...) Penso, logo existo (aqui, sentado à beira do fogo)”.
(Morton, 2007, pp. 176-7)168

168
Morton, 2007, pp. 176-7
““I think” depends upon the “I am” of “I am sitting here by the fire.” Moreover, the very philosophy of the
self depends upon this environment, as Descartes starts to subject his innocent situatedness to a series
of doubts that hollow out that comfortable place by the fire. “I am here” depends upon a sense of doubt,
which leads to the cogito: I think therefore I am (that is here, sitting by a fire)." (minha ênfase)

60
De modo semelhante, Morton descreve o próprio pensar como um evento
ecológico, o que emerge do enredamento simbiótico de uma multiplicidade de objetos -
no caso humano, bilhões de organismos (suas próprias células e microbioma) que, em
conjunto, constituem e permitem o funcionamento do corpo. (Morton, 2010, pp. 7-8)169
Assim, consciência e senciência transfor qualidades emergentes de sistemas complexos,
ao mesmo tempo que se evita o quadro simplista do eliminativismo, pois, os elementos
componentes deste sistema além de não serem exclusivamente materiais, mantêm
parte de si (que se retira de qualquer contato) sempre em reserva.
Georges Bataille, em seu livro Teoria da Religião, contrapõe a animalidade,
caracterizada pela continuidade entre o ente e o ambiente - “como água na água” - à
condição humana de separação e dualidade que, segundo ele, o homem procura
resolver com a invenção do sagrado, através de ritos e sacrifícios. Ele afirma que a
essência da religião é a busca pela intimidade perdida - “O homem é o ser que perdeu,
até mesmo rejeitou, o que é obscuramente intimidade indistinta”.170 Por esta
perspectiva a religião não é a busca por algo maior que o próprio humano, algo com o
qual este deseja fundir-se, mas, pelo contrário, é a busca pela intimidade com o Outro
(no caso da religião, o sagrado), com aquilo que é diferente do sujeito, a alteridade que
lhe é dessemelhante e estranha, resultado da condição humana de separação que ele
próprio assevera. Hoje, uma ansiedade profunda e generalizada, fruto do leque de
ameaças e incertezas com relação ao futuro - a população a multiplicar-se, o planeta a
aquecer, a abundância de discursos apocalípticos e falta de soluções efetivas - um
indicador de que o ser humano talvez esteja à procura de algo análogo é justamente o
tom de fervor religioso que permeia grande parte do discurso e da retórica
ambientalista. O humano não inaugurou o Antropoceno (a "Idade do Homem") sozinho,

169
Morton, 2010, pp. 7-8
“Thinking itself is an ecological event.”
Standen, 2013
170
Bataille, 1993 p. 27

61
mas em estreita colaboração com outros objetos - sílex, barro, ferro, cavalo, petróleo,
bicho-da-seda, sistemas de governo, etc - busca aproximar-se dessa estranha intimidade
entre a res cogitans cartesiana e o ambiente que a constitui, suporta e revela.
A crescente conscientização acerca das inumeráveis relações entre formas de
vida, entre vida e não-vida, e também de elementos não orgânicos entre si, começa a
derrubar lentamente a antiga noção do meio ambiente como ´caixa contentora´, pois,
revela a maneira como o ambiente é, simultaneamente, meio e produto das relações
entre objetos de naturezas diferentes. Tal constatação permite que uma apreciação
ecologicamente superior emerja, e o encontro com entes, que juntamente com o
humano constituem esta malha, torna-se profundo e significativo.171 O aprimoramento
do senso de proximidade faz ruir a ilusão de um lugar ´fora`, de uma esfera (imaginária)
infinitamente remota para onde iria o lixo deitado fora. Hoje todos sabem que o destino
do lixo são as usinas e os aterros, que o esgoto não vai para o além, mas para a usina de
tratamento - este espaço `acolá´ já não se pode manter porque questões como as ilhas
de plástico nos oceanos ou o lixo espacial são de conhecimento geral.172

A perspectiva objeto-orientada

Uma abordagem objeto-orientada para a Ecologia é significativa exatamente


porque admite e reconhece a existência e a paridade ontológica de todo tipo de ente,
além das incontáveis relações que estes engendram entre si (envolvendo diretamente o
humano ou não), ao mesmo tempo que compartilha do discernimento ecológico
fundamental: a noção de que os elementos nos quais consiste o meio ambiente
encontram-se interconectados, de diferentes maneiras. “Os objetos da OOO encontram-
se simultaneamente fechados [em si] e emaranhados [uns nos outros] num éter sensível
(interobjetivo)”. (Morton, 2013-A, p.68)173

171
Morton, 2013-B, p.128
172
Morton, 2011, p. 82
173
Morton, 2013-A, Realist Magic - Objects, Ontology, Causality. p.68

62
Apesar dos objetos serem definidos com base em sua autonomia, a OOO também
descreve a maneira como eles são, essencialmente, constituídos por objetos, além de
existirem dentro de objetos, o que remete à própria etimologia do termo ecologia - cuja
raiz grega οίκος (oikos) significa casa - pois, pode-se afirmar (metafórica-, mas também
literalmente) que objetos servem de casa para outros objetos, bem como, objetos
habitam o interior de objetos.174
Como citado na primeira parte do ensaio, Harman identifica a sinceridade
(seguindo Levinas) como uma estrutura universal, comum a todo objeto; uma estrutura
semelhante ao que José Ortega y Gasset chamara ingenuidade.175 Esta sinceridade
consiste na "atividade anônima da existência", a pura execução de cada objeto, e
independe de qualquer suposto acesso humano a esse desempenho, em outras
palavras, a sinceridade (neste sentido específico) significa simplesmente que objetos
existem inescapavelmente absorvidos em suas respectivas execuções.176 A existência
nessa teia (sempre constituído por, e no interior de, objetos) é definida por esta
sinceridade e pelo envolvimento.177
O objeto individual, anterior às relações nas quais encontra-se envolvido (o
objeto autônomo e irredutível descrito na primeira parte deste ensaio) pode ainda ser
visto como algo distintamente ecológico por outra virtude. Caso seja admitido que para
relações serem estabelecidas são logicamente necessários - antes de tudo - elementos
componentes que se relacionem, são concedidos a cada objeto específico valor e
importância que ele não receberia caso fossem favorecidas as relações (dissipando-os),
ou caso objetos fossem entendidos como partes (substituíveis) de uma totalidade,
componentes de um objeto-topo dentro do qual todos os outros existem - nos moldes

“OOO objects are simultaneously enclosed and entangled in a sensual (interobjective) ether.”
174
Morton, 2013-A, p. 45
Morton, 2013-Bpp. 116-9
175
Morton, 2013-A, p. 67
176
Harman, 2002, pp. 238-9
Harman, 2005, pp. 39, 43-9, 128-35, 194
177
Harman, 2005, p. 255

63
da Natureza. Além disso, como aponta Levy Bryant, a posição contrária (que especifica
cada objeto segundo suas relações) “debilita nosso senso da fragilidade das relações, de
que elas podem ser facilmente quebradas, e que a destruição destas relações
frequentemente tem consequências destrutivas incalculáveis”.178
Um dos principais resultados da adoção de uma visão objeto-orientada da
Ecologia (para a Filosofia) é a expansão de sua esfera de abrangência; a Ecologia deixa
de estar associada apenas a uma parcela reduzida de entes (ecossistemas ameaçados,
derramamentos de óleo e calotas polares), passando a referir-se a todo tipo de objeto
(de átomos e novos prédios em Dubai a pedaços de satélites para sempre perdidos na
exosfera). Esta abertura de escopo é absolutamente fundamental, pois, hoje a crise
ambiental lança ao humano o desafio de lidar com este imenso e confuso conjunto de
objetos; as variadas ciências atestam sua conjugação íntima e generalizada, além do
modo como estes objetos podem influenciar uns aos outros profundamente. Para que o
ser humano seja capaz de avaliar a situação e tomar decisões inteligentes (em relação a
sua própria conduta) é imprescindível que ele leve em consideração esta multiplicidade
de perspectivas - representadas pelos estranhos-estranhos.
Como resultado, toda ação torna-se ecologicamente significativa. Quando estão
em jogo todos os (pequenos e grandes) componentes da realidade e temporalidades
que extrapolam a escala humana, qualquer alteração pode vir a ter repercussões
imprevisíveis, pequenos gestos podem ser (positiva- ou negativamente) amplificados
numa escala de tempo tão estendida, um fato que Parfit exemplifica com o problema do
lixo nuclear. Não existem teorias do interesse-próprio capazes de abarcar a (longa)
escala temporal do decaimento radioativo - materiais radioativos podem permanecer
letais por mais de vinte e quatro mil anos - o que significa que absolutamente todos os
humanos eventualmente vivos dentro deste período serão afetados pelas decisões
178
Bryant, 2012, em seu blog Larval Subjects
“The idea that relations are internal undermines our sense of the fragility of relations, that they can be all
too easily broken, and that the destruction of these relations often has incalculable destructive
consequences.”

64
tomadas no presente no que diz respeito ao armazenamento do lixo nuclear, numa
espécie de efeito cascata.179 Este é um exemplo claro de como pensar as relações na
escala imposta pelo foco no objeto obriga o humano a dar-se conta, estar atento, e
procurar lidar (antecipadamente) com potenciais repercussões inesperadas, não-
planejadas, e muitas vezes indesejadas, de cada ação presente, dando origem àquela
que Ulrich Beck chama de sociedade de risco.180
A Natureza, uma tradução humana do grande carnaval de objetos que compõem
o ambiente circundante, pode, segundo Morton, ser entendida como um objeto
sensível, pois, o que ela designa é sempre Natureza-para (um dado ente - construída de
acordo com a estrutura do como, descrita na primeira parte deste ensaio), sempre um
fenômeno, uma interpretação.181 Lembrando que um objeto sensível é aquele que
existe unicamente quando objetos reais estabelecem uma relação (é a interpretação
sensível que um objeto faz de outro)182, a Natureza é, portanto, incapaz de subtender
ou conter objetos (reais). Pensá-la como um pano de fundo sobre o qual se desenrolam
as estações do ano, a vida dos diferentes organismos, ou as grandes catástrofes
naturais, é adotar a perspectiva da metafísica da presença, o que significa afirmar que a
Natureza possui presença objetiva constante ("Natureza" como horizonte). Sob esta
perspectiva a rede de relações torna-se mais importante, ou mesmo mais real, que seus
componentes, tendo sobre eles um efeito dissipativo.
Mas o que significa afirmar que tudo está interconectado? Harman indica duas
possibilidades: se tomada no sentido de uma conectividade forte, a afirmação aponta
para uma visão holística, na qual tudo é determinado com base em suas interações com
todo o resto; enquanto uma conectividade fraca significa simplesmente que objetos de
toda sorte fazem parte de uma mesma trama, livres de classificações dicotômicas como

179
Parfit, 1984, p. 443
Morton, 2011, p.87
180
Morton, 2013-B, p. 140
181
Morton, 2013-B, p.119
182
Harman, 2012-A, p.18

65
mente/matéria, natural/não-natural, humano/não-humano, ou de uma hierarquia.183 É
no segundo sentido (da conectividade fraca) que Morton afirma que todos os objetos
encontram-se interconectados; “A crise ecológica que encaramos é tão óbvia que se
torna fácil - para alguns, estranha ou assustadoramente fácil - ligar os pontos e perceber
que tudo está interconectado. Este é o pensamento ecológico”. (Morton, 2010, p.1)184
Assim, uma ontologia plana, fundamentalmente democrática, emerge, na qual todos os
objetos possuem o mesmo estatuto ontológico. Uma ecologia construída sobre tais
bases claramente põe em causa noções de hierarquia ou privilégio, mas,
principalmente, vai além do correlacionismo que dá ao ser humano dignidade
ontológica exclusiva. Morton afirma que pensar-se a Ecologia nos termos da malha
significa abandonar a noção de um centro, de um ente que determina todo o restante,
bem como a ideia de uma separação entre ´dentro` e `fora`; a malha estende-se por
todas as escalas - dentro de um objeto existem mais objetos, e o mesmo à sua volta. 185
Numa ontologia plana não existe um pano de fundo sobre o qual se destacam os
objetos, por consequência, também não há um primeiro plano; nenhum ente é
considerado especial em relação a qualquer outro.
Na obra Jamais Fomos Modernos, Latour apresenta aquilo a que dá o nome de
quase-objetos, que são compostos através de associações entre humanos e não-
humanos em “íntima fusão através da qual os rastros dos dois componentes da natureza
e da sociedade se apagam”.186 Nesta obra, ele implode separações salientando como a
relação de dependência e determinação mútuas entre essas duas dimensões (Natureza
e Cultura) precisa ser devidamente admitida para que possam ser acomodadas a
multiplicidade e a ubiquidade destes híbridos, fornecendo-lhes “um nome, uma casa,

183
Harman, 2012, p.16
184
Morton, 2010, p. 1
“The ecological crisis we face is so obvious that it becomes easy - for some, strangely or frighteningly
easy - to join the dots and see that everything is interconnected. This is the ecological thought.” (minha
ênfase)
185
Morton, 2010, pp. 38-9
186
Latour, 1994, pp. 54-5

66
uma filosofia, uma ontologia e, (espero) uma nova constituição”.187 “Escrever sobre
ecologia”, afirma Morton, “é escrever sobre a sociedade, e não simplesmente no sentido
fraco, de que nossas ideias acerca da ecologia são construções sociais. Condições
históricas aboliram a natureza extra-social à qual teorias da sociedade podem apelar,
enquanto, ao mesmo tempo, fizeram com que entes que se encaixam sob este título
[extra-social] passassem a impingir ainda mais urgentemente sobre a sociedade”.
(Morton, 2007, p.17)188 Em outras palavras, aquilo que recebe o nome Natureza está
hoje presente, e em verdade esteve sempre, no seio do espaço social. O Antropoceno -
período geológico atual, caracterizado pela influência humana sobre a crosta terrestre -
atesta exatamente a impossibilidade desta separação.

Ecologia Sombria

“This is the way the world ends


This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper”189
- T.S. Eliot

O desenvolvimento de um conceito de ecologia baseado na forma como uma


miríade de objetos autônomos afetam uns aos outros e existem em proximidade radical,
não tem como objetivo a simples expansão da esfera de inclusão da Ecologia, mas busca
principalmente salientar o encontro profundamente íntimo entre objetos - de toda
natureza e toda escala - que são, e serão sempre, estranhos uns aos outros apesar

187
Latour, 1994, pp. 8-11, 55
188
Morton, 2007, p. 17
“To write about ecology is to write about society, and not in the weak sense that our ideas of ecology are
social constructions. Historical conditions have abolished an extra-social nature to which theories of
society can appeal, while at the same time making the beings that fell under this heading impinge ever
more urgently upon society.”
189
Eliot, 1936, pp.87-90

67
dessa proximidade (afinal, objetos nunca são descobertos em sua totalidade); um
encontro que estreita laços ao mesmo tempo que realça diferenças.
Morton afirma que meditar acerca da Ecologia é difícil, “envolve tornar-se aberto,
radicalmente aberto”, exige uma atitude crítica de constante reavaliação e
questionamento, "é um pensar que é ecológico, um contemplar que é ação", pois, tomar
consciência de um objeto (ou ´intencioná-lo´, em termos husserlianos) é fazer-se
vulnerável a este objeto, é estar aberto e receptivo às directivas que ele emite.190
Se por um lado o modelo de ecologia promovido por Morton - ao qual ele dera o
nome Ecologia Sombria (Dark Ecology) - procura questionar problemas, conceitos e
padrões, por outro ele sugere uma postura específica, que parte da ansiedade, da
hesitação e da incerteza frente a uma realidade essencialmente estranha. Claramente, o
objetivo de uma abordagem nestes moldes não é o de estabelecer critérios normativos
rígidos de conduta, tampouco, o de reduzir ou simplificar as inúmeras questões que a
Ecologia (como princípio das relações entre todo tipo de objeto) levanta, a Ecologia
Sombria, ao contrário, propõe uma postura contemplativa, aberta e não-violenta como
estratégia para desenvolvimento de uma "lógica de coexistência futura"; uma
coexistência que reconhece o modo como diferentes objetos desempenham diferentes
papéis enquanto engajados em uma multiplicidade de relações inerentemente
frágeis.191

A possibilidade que se revela ao humano com a ´descoberta` do Antropoceno, e


que o aquecimento global exige e impõe, de pensar-se numa escala espaço-temporal
expandida (que abarque os limites extensos e imprecisos de entes como a biosfera, bem
como as longas e lentas transformações do sistema terrestre) envolve encarar a

190
Morton, 2013-B, p.7
“Thinking the ecological thought is difficult, it involves becoming open, radically open”, “it is a thinking that
is ecological, a contemplation that is doing”.
Harman, 2002, p. 226
191
Morton, 2014-A, nos três seminários

68
perturbadora ausência de uma ´conduta adequada´ determinada (ou determinável) em
relação ao planeta e aos entes que nele habitam, além da inescapável hipocrisia nas
fronteiras do cuidado ecológico, uma vez que as próprias condições de possibilidade
para a vida (humana ou não) implicam perturbações no meio ambiente.192
O conceito de ´Natureza` chega a ser contra-produtivo para o projeto
ambientalista por inúmeras razões. Uma delas é a maneira como uma Natureza
normativa baseia-se em sua capacidade de excluir aquilo que não é considerado natural,
entretanto, a decisão cabe sempre ao humano. Por vezes a natureza é a mais palpável
realidade, por outras é o princípio transcendente que rege alguns entes (ditos naturais)
e não outros. Mas, talvez o grande problema seja a maneira como aquilo a que se refere
o termo não coincide com o que de fato constitui o ambiente terrestre.
O conceito moderno de Natureza, herdado da tentativa de resistência à
industrialização por parte dos românticos, a estabelece como um ciclo harmonioso e
periódico, algo que, sob a perspectiva da geologia por exemplo, não passa de uma
ficção.193 O ambiente terrestre é um exemplo de um conjunto de transformações e
mudanças radicais contínuas- períodos de aquecimento e resfriamento extremos,
extinções em massa, etc. - mesmo antes do surgimento da espécie humana (a História
humana, da espécie como ela é reconhecida hoje, teve início há cerca de cinquenta mil
anos), que por sua vez, já enfrentou inúmeros períodos de mudanças climáticas
anteriores. Os últimos doze mil anos da história terrestre, o período oficialmente
denominado Holoceno, cujo início é marcado pelo fim da última era glacial, caracteriza-
se exatamente pelo aquecimento inicial e pela subsequente estabilidade de um clima
relativamente ameno, propício a uma grande variedade de espécies, inclusive a
humana.

192
Colebrook, 2013, em diálogo com Cary Wolfe
193
Morton, 2014-A, primeiro seminário

69
Assim, a partir do início do Holoceno (o fim da última glaciação) o ser humano foi,
obrigado a traçar estratégias para lidar com um planeta em aquecimento. A arqueologia
fornece evidências de movimentos migratórios e do desenvolvimento de novas
tecnologias; é também neste momento que a agrilogística surge como alternativa
particularmente atraente pelos motivos já citados (a confiabilidade dos resultados,
maior rendimento por menor esoforço, etc), sendo gradualmente adotada ao redor do
globo. Discutivelmente esta fora a mais fundamental das transformações efetivadas
pelo ser humano no ambiente; seu gigantesco impacto sobre os sistemas terrestres
contribuiu para a manutenção da estabilidade climática (ainda que temporária) no
planeta, ao tentar evitar as consequências do aquecimento global que os humanos do
início do Holoceno enfrentavam, foi desenvolvida uma estratégia lógica (a agrologística)
cujo resultado a longo prazo é justamente o aquecimento global em curso hoje.194 As
transformações acumuladas (especialmente nos últimos dois séculos) vieram perturbar
esta aparente estabilidade, inaugurando um novo período de aquecimento global com o
qual o humano (enquanto espécie) tem de lidar, desenvolvendo novas estratégias de
adaptação e tendo em mente a maneira como as atividades humanas têm
consequências tão amplas e profundas que afetam o planeta (hoje mais que nunca)
numa escala verdadeiramente global, de maneira complexa, interativa e acelerada. 195

O aspecto sombrio deste modelo de Ecologia é derivado do inquietante encontro


com o estranho-estranho, e da proximidade claustrofóbica da convivência com as
multidões de objetos que não só constituem o ambiente mas o próprio humano. Esta
lugubridade vem ainda da postura destas ideias em relação ao chamado ´fim do mundo`
- um recurso retórico tão frequentemente encontrado no discurso ambientalista,
discussões sobre a crise ambiental, o aquecimento global e consequentes mudanças

194
Morton, 2014-A, primeiro seminário
195
IGBP, 2004, p. 6

70
climáticas, e cada dia mais presente na cultura popular. Existe uma crescente variedade
de narrativas (especialmente no cinema) que retratam futuros distópicos, nos quais a
humanidade (ou o que resta dela) é obrigada a enfrentar um leque variado de horrores,
muitas vezes de sua própria autoria. Em geral, tais narrativas retratam o futuro (mais ou
menos distante) ao mesmo tempo que situam o presente sob a sombra deste
(eco)apocalipse, que apesar de muitas vezes iminente, é representado como algo que
ainda está por vir.196
Especialistas afirmam que "Muito mais provável que um cenário de fim de
mundo, envolvendo a extinção humana ou um colapso apocalíptico da civilização
industrial, será ´apenas` um futuro com padrões de vida significativamente mais baixos,
com riscos cronicamente mais elevados e com a destruição daquilo que hoje
consideramos alguns de nossos valores fundamentais".197 O quadro descrito por
Diamond parece tão retirado da realidade atual. Ao contrário dos filmes de desastre ele
apresenta um ´fim do mundo´ muito mais gradual, que acontece antes que os
envolvidos se dêem conta dele.
Morton insiste que o fim do mundo já aconteceu - o subtítulo de seu livro mais
recente, Hyperobjects, é justamente "Filosofia e Ecologia Após o Fim do Mundo" - e ele
especifica um momento preciso a partir do qual o mundo (enquanto conceito definido
em relação exclusiva ao humano) começou a desmoronar: Abril de 1784.198 Esta mesma
data foi anteriormente mencionada neste ensaio para determinar o início do
Antropoceno - o momento da história do planeta no qual o humano juntou-se ao grupo
dos principais agentes geofísicos sobre a Terra, um estatuto que só pôde ser atingindo
através da íntima associação entre o humano e um sem número de outros entes (não-

196
Uma breve listagem (de modo algum exaustiva) de exemplos que tiveram êxito de público inclui:
Melancholia, 2011, dir. Lars Von Trier, Zentropia Entertainment
The Road, 2009, dir. John Hillcoat, Dimension Films
Wall-e, 2008, dir. Andrew Stanton, Pixar Animation Studios
I am Legend, 2007, dir. Francis Lawrence, Warner Bros.
197
Diamond, 2005, p. 22
198
Morton, 2013-B, pp. 7,16-17, 21

71
humanos como pás, motores, teares, fábricas, raios gama e moedas) que de forma
direta ou indireta são enformam suas ações. É exatamente devido à tomada de
consciência de sua inextricabilidade em relação ao contexto, ao modo como o meio
ambiente já não pode ser tomado como um simples ´pano de fundo´ para o drama
humano (pois, o pano de fundo invadiu o centro do palco), que Morton argumenta que
o conceito de ´mundo` é, hoje, insustentável. "O fim do mundo está correlacionado ao
Antropoceno, a seu aquecimento global e subsequente mudança climática drástica, cujo
alcance preciso permanece incerto enquanto sua realidade é verificada de maneira
inquestionável". (Morton, 2013-B, p.7)199 Este ´fim do mundo`, portanto, não é sinônimo
da extinção do planeta ou da espécie humana, mas o fim de uma noção de ´mundo`
como efeito estético baseado em sua imprecisão e distanciamento, além de sua
presença constante - nos moldes da Natureza como armazém de recursos (vítima da
metafísica da presença) criticada por Heidegger.
Assim, a crise ambiental vem acompanhada de uma crise dos hábitos do
pensamento filosófico, e confronta a humanidade com problemas que desafiam não só
sua capacidade de controle, mas de entendimento; “Entes não humanos são
responsáveis pelo próximo momento da história e do pensamento humanos". 200

Porém, a Ecologia Sombria não é sinônimo de uma filosofia de rendição niilista.


Depois do fim do mundo, em outras palavras, hoje, o humano começa a reorientar-se a
fim de conseguir fazer sentido de mais este descentramento, que segue o que Freud
considerara as três grandes humilhações do humano (ou três feridas narcísicas), as
descobertas de Copérnico, Darwin e a sua própria, que retiraram o humano do centro
do universo, da genealogia de origem divina (com início em Adão) e do centro da

199
Morton, 2013-B, p. 7
“The end of the world is correlated with the Anthropocene, its global warming and subsequent drastic
climate change, whose precise scope remains uncertain while its reality is verified beyond question.”
200
Morton, 2013-B, p. 201
“Nonhuman beings are responsible for the next moment of human history and thinking."

72
própria atividade psíquica, respectivamente. Morton acrescenta a esta lista de
humilhações o deslocamento efetivado pela OOO ao situar o Ser (do) humano no
mesmo patamar ontológico que qualquer outro ente. (Morton, 2013-B, p.201)201
Harman, em contraposição a Heidegger, afirma que "O mundo não é apenas um, é
também muitos. Ele não é composto somente por partes que se empurram para além de
si próprias e perdem suas identidades numa contextura cósmica de sentido, antes, suas
partes são também pontos finais, vizinhanças fechadas que retêm suas identidades
locais apesar dos sistemas mais amplos nos quais se encontram parcialmente
absorvidas”, em outras palavras, o mundo não se constitui somente para o humano.202
O reconhecimento do Antropoceno implica o reconhecimento, dentro e fora da
ciência, da maneira como entes discretos existem intimamente ligados. A crise
ambiental trouxe consigo aquela que Morton chama de "náusea da coexistência", pois,
o não-humano passou a impingir decididamente sobre a História e muitas vezes a
oprimir e ameaçar o humano.203 A estrutura circular do Antropoceno (reminiscente dos
romances noir e de tragédias como Rei Édipo, de Sófocles, nos quais o protagonista
descobre ser o próprio vilão) também concede tons sombrios a esta conscientização. 204
A "abertura radical" que Morton declara imprescindível para que uma
convivência ecologicamente superior emerja é também descrita como uma forma de
sintonia (attunement) entre estranhos-estranhos.205 Com base na reinterpretação do
imperativo categórico kantiano efetuada por Lingis (na obra The Imperative), Morton
afirma que estar em sintonia com os objetos à volta é tornar-se suscetível e vulnerável
às directivas por eles emitidas.206 E ele sugere uma ética do Outro, baseada na
proximidade com o estranho, semelhante ao que Jacques Derrida propõe quando ele

201
Morton, 2013-B, pp. 16-17
202
Harman, 2002, p.34
203
Morton, 2014, terceiro seminário
204
Morton, 2014, Segundo seminário
205
Moton, 2013-C, em conferência
206
Morton, 2014, terceiro seminário

73
afirma que um princípio da ética é a obrigação que convoca a responsabilidade no que
diz respeito ao mais dissimilar, o "irreconhecível" (méconnaissable).207
Lingis situa o a priori transcendental no que ele chama de níveis (que Morton
rebatiza zonas) - as áreas dentro das quais objetos exercem seu poder de influência -
correspondente ao ´éter sensível´ da OOO, a dimensão estético-causal na qual objetos
deixam sua impressão sobre outros objetos.208 Segundo o próprio Lingis, a
correspondência entre estes níveis convoca o indivíduo como uma directiva - que não é
recebida pelo entendimento conceitual ou pela razão, não é o imperativo para
conceber-se cada padrão sensível como categoria universal e necessária, nem um
imperativo para que os objetos reconhecidos conceitualmente sejam conectados a leis
necessárias universais mas, é recebida pelo corpo sensório-motor, finalizando a
percepção feita do objeto em direção a um campo definido, ao invés de um caos de
padrões transitórios. A ética de Lingis depende, portanto, de um tipo de harmonização
ou sintonia (uma Stimmung), ou uma correspondência entre objetos que independe de
raciocínios ou cálculos éticos, pois, "a obediência aos níveis precede e torna possível
qualquer iniciativa, qualquer liberdade, de sensibilidade ou movimento". (Lingis, 1998,
p.38)209 No decorrer de sua existência, e envolvido em objetos, as estruturas materiais
dos caminhos, dos implementos e dos obstáculos aparecem como directivas que
regulam a ação do indivíduo.210 Estes níveis, ou zonas, correspondem ao ´éter sensível´
no qual todos os objetos encontram-se submersos, que Morton chama de um “campo

207
Derrida, 2009 p.108
208
Harman, 2005, p.42-4
Neste livro, Harman dedica-se à investigação desse ´éter`: "In Tool-Being, I focused on objects as
withdrawn unities that never come to presence. In the present book, what interests me is the cloud of
gaseous qualities that are present, in which objects do take form and become manifest”.
209
Lingis, 1998, p.38
“Obedience to the levels precedes and makes possible any initiative, any freedom, of sensibility and
movement.”
210
Lingis, 1998 p. 171
Morton, 2013-B, pp.140-1

74
ilusório de ironia”; o objeto e sua zona são, posto em outros termos, a coisa-em-si e seu
fenômeno, ou ainda, o objeto real e o objeto sensível.211
Em um belíssimo exemplo da maneira como objetos (entes reais e autônomos)
convivem de maneira absolutamente próxima, exercendo influência uns sobre os outros
de modo a constituirem a chamada malha de interconexão, e de como estes objetos
entram em sintonia ou dissonância, pode ser encontrado no ensaio A Defense of Poetry,
do poeta inglês Percy Bysshe Shelley, com ecos em Heidegger e também em Lingis.
Shelley traça um paralelo entre a maneira como uma harpa eólica produz som e o poeta
escreve poemas, ambos o resultado do encontro entre diferentes entes - a harpa e o
vento, o poeta e seu tema - ou seja, a tradução que um faz do outro no próprio ato da
interação.
O instrumento, muito popular na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII, consiste em
um caixa retangular de madeira, sobre a qual cordas correm longitudinalmente,
estendidas sobre pontes em cada extremidade e ligadas a cravelhas. Posicionada no
peitoril de uma janela, a harpa vibra com a pulsação das correntes de ar produzindo
som. Shelley afirma que o ser humano é, de certa maneira, análogo a essa harpa eólica
na medida em que "O homem é um instrumento sobre o qual uma série de impressões
externas e internas são movidas", ele percebe passivamente uma corrente de estímulos
e ressoa em conformidade.212
Se deixada sozinha num ambiente externo a harpa eólica emitirá, vez ou outra,
suas vibrações estranhas, que soam surpreendentemente futuristas aos ouvidos atuais,
causadas pela fricção das correntes de ar sobre as cordas. Heidegger afirma que o som
do vento em-si nunca é ouvido, o que se ouve é o assobiar do vento na chaminé, o
sussurro do vento nas folhas de uma árvore, o vento roçando as cordas de uma harpa
eólica.213 Em outras palavras, ouve-se a tradução que o vento faz das cordas; a tradução,

211
Morton, 2013, p. 143
212
Shelley, 1904 p.13
213
Heidegger, 2002, p. 8

75
em ondas de pressão amplificadas que a caixa oca faz da vibração das cordas. Ao entrar
no ouvido estas ondas serão novamente traduzidas pela cóclea, que age como um
transdutor, traduzindo vibrações mecânicas em sinais eletromagnéticos. 214 Assim, uma
série de conversões, traduções, ou interpretações são necessárias para a ocorrência dos
processos perceptivos.
Lingis, por sua vez, apresenta uma extensa série de exemplos que descrevem esta
sintonia, quando na escuridão de uma caverna "tateamos as rochas, nosso tato espalha
seu relevo pedregoso diante de nós enquanto a massa de nossas mãos pressionadas
contra a rocha escorregam sobre ela. A força de nossas mãos é extraída da força que
sustenta nossa postura arqueada que é extraída da força que sustenta o chão e as
paredes da caverna". Ele fala da maneira como objetos existem em interação íntima e
constante, além de necessária para que o ambiente seja constituído como tal, "ouvimos
o grito da águia com os ventos e as paredes de rocha do canyon". E ele insiste “os meios
que nos fazem perceber nosso ambiente como tantas rotas e caminhos e interconexões
dinâmicas são exteriores e nos comandam”. (Lingis, 1998, pp.282-4)215
Assim, o momento em que o humano dá-se conta da extensão e penetrância de
sua influência sobre o "mundo" coincide com o momento em que o humano percebe
que ele também é influenciado pelos objetos que o constituem em igual medida. Como
resultado dessa dupla apreciação a Ecologia passa, no Antropoceno, a concernir tido
tipo de relação entre todo tipo de objeto, e esta compreensão levanta uma série de
questões desagradáveis. Do que fazer com os dejetos, passando pelo cálculo dos riscos,
até o enfrentamento da "conclusão repugnante" (delineada por Parfit), hoje, essas
perguntas vêm à tona continuamente, a todo momento. O lixo, por exemplo, está mais
214
Morton, 2012, p. 206
215
Lingis, 1998, p. 82-84
"(...) we grope at the rocks, our touch spreads their gritty relief before us as the mass of our hands press
up against the rock and skid across it. The force of our hands draws on the sustaining force of our sprung
stand which draws on the sustaining force of the cave floor and walls."
“We hear the scream of the eagle with the winds and the rock walls of the canyon”
“The ends which make us perceive our environment as so many routes and pathways and dynamic
interconnections are exterior and command us.”

76
presente que nunca no cotidiano, na forma de contentores coloridos espalhados pelas
ruas e pelas cozinhas, na maneira como deitar algo fora agora inclui a pergunta se aquilo
é ou não reciclável, no modo como se sabe que o lixo não é simplesmente "jogado fora"
mas sim, depositado em algum lugar (às vezes em locais indevidos, causando uma série
de problemas, outro fato que poucos hoje ignoram), onde o fluxo de reações e
transformações continua longe da presença humana, porém, intimamente ligado à ela.
A ansiedade primordial da existência, a inquietação perturbadora frente ao
estranho-estranho (o objeto contraditório que é aquilo que se mostra ao mesmo tempo
que não o é retorna na figura de entes como o aquecimento global (que apesar de real
nunca é encontrado diretamente, apenas em seus efeitos). Tudo isso impõe sobre o
pensamento uma escala esmagadoramente vasta, talvez mais difícil de imaginar que o
próprio infinito abstrato.216

Aceitar que o fim do mundo já aconteceu implica parar de tentar salvar o mundo,
o que à primeira vista pode parecer o exato oposto daquilo que uma teoria da Ecologia
e da coexistência poderia querer promover. Porém, após o "fim do mundo" tudo o que
resta são entes individuais em coexistência, uma profusão de estranhos objetos que
cintilam, cada um a seu modo. Este ensaio defende que neste momento, quando o ser
humano começa a reconhecer o modo como o próprio humano consiste numa
multiplicidade de não-humanos é uma incumbência da Filosofia assistir no
desenvolvimento dos termos que serão usados na formulação dos problemas
inaugurados com o Antropoceno.

216
Morton, 2010, pp. 40, 118

77
78
Conclusão

A proposta desenvolvida ao longo deste ensaio foi a de delinear um conceito


renovado de ecologia para a Filosofia, capaz de responder ao desafio lançado pela
compreensão de que o ser humano, enquanto espécie, nos últimos dois séculos tornou-
se a principal força geofísica em ação no planeta, inaugurando a mais recente época
geológica: o Antropoceno.
O ensaio foi dividido em duas partes, na primeira delas foi apresentada aquela
que serviu de base para o desenvolvimento deste conceito alargado de ecologia, uma
teoria geral dos objetos - a Ontologia Objeto-Orientada - que lida com um mundo
quantizado, na qual entes existem como realidades unificadas, herméticas e discretas,
217
os chamados objetos. A segunda parte tratou das implicações de uma perspectiva
objeto-orientada para a Ecologia no momento específico do Antropoceno.
Ao definir os objetos como entes que possuem existência unificada e
autônoma, em excesso de suas relações, acidentes, qualidades e momentos, que se
retiram de qualquer contato direto e mantêm uma faceta sempre isolada, a Ontologia
Objeto-Orientada aproxima-se daquilo a que Manuel Delanda dá o nome de ontologia
plana - formada exclusivamente por indivíduos únicos, singulares, que diferem na escala
espaço-temporal mas não em estatuto ontológico. 218 Como foi discutido, este modelo
argumenta que o plano ontológico possui dois tipos diferentes de objetos, os objetos
reais e os objetos sensíveis. 219 O termo objeto é aplicado universalmente, e abarca toda

217
Harman, 2011-A, pp.5-6
218
DeLanda, 2002, p.58
219
Harman, 2011-A, pp.20-50

79
espécie de ente - de cães, canhões ou castelos a eléctrons, emails e escolas de samba.
220
Para Harman nem mesmo entes imateriais, como os números, escapam desta
categoria, pois, “é perfeitamente possível discutir-se o significado de ´número` e fazer
novas descobertas acerca de entes matemáticos - a prova mais simples concebível de
que as propriedades dos números não são visíveis num relance(...). É neste sentido que
mesmo as ideias devem ser concebidas como entes reais”, em outras palavras, entes
imateriais, efêmeros, compostos, ficcionais - que muitas vezes são excluídos das
categorias mais gerais da ontologia - são, aqui, também considerados objetos, pois,
assim como os entes materiais, eles não podem ser reduzidos nem a sua estrutura ou
nem a seus efeitos sobre outros entes. 221
Foi apresentada a forma como a Ontologia Objeto-Orientada desenvolve a
estrutura básica do objeto a partir de noções elaboradas por Husserl e Heidegger:
“Heidegger estabeleceu que o Ser de um objeto não é jamais completamente
apreendido, mas aparece sempre como uma caricatura cada vez que surge enquanto
fenômeno. Nenhuma aparência do martelo, nenhuma relação para com ele, pode
apreender as profundezas do Ser-martelo. Na esfera fenomênica, Husserl mostrou que
existe uma segunda fratura. O martelo fenomênico, o objeto intencional ´martelo`,
permanece uma unidade durável enquanto giro-o em minhas mãos, observo-o de perto
ou à distância, e continuo a observá-lo enquanto meu humor altera-se da euforia à
222
absoluta depressão suicida”. Assim, o objeto da OOO existe fendido entre seu

220
Harman, 2005, pp. 73-87
221
Harman, 2002, p.36
“(...) it is quite possible to discuss the meaning of ´number` and to make new discoveries about
mathematical entities - the simplest conceivable proof that the properties of numbers are not visible at a
glance, not merely vorhanden. It is in this sense that even ideas must be regarded as real entities.”
222
Harman, 2008, pp. 3, 10
“Heidegger established that the being of an object is never fully grasped, but always appears as a
caricature whenever it appears as a phenomenon. No appearance of the hammer, no relation to it
whatsoever, can grasp the depths of hammer-being. Within the phenomenal sphere, Husserl showed that
there is a second fracture. The phenomenal hammer, the intentional object ´hammer`, remains an
enduring unit as I rotate it in my hands, view it up close or from a distance, and continue to view it as my
mood shifts from euphoria to utter suicidal depression.”

80
executar autônomo e isolado e a apreensão sensível que dele é feita; entre a parte do
objeto passível de ser traduzida por um outro objeto e a parte que se afasta de toda e
qualquer forma de contato.
Outra característica distintiva da ontologia abordada neste ensaio é a maneira
como as relações entre os variados tipos de objetos são também colocadas no mesmo
patamar. Foi mostrado como as relações entre uma pedra e uma vidraça, ou entre
Pedro e a pedra podem ser descritas da mesma forma, pois, acontecem por via de
simplificações que um objeto (a pedra, a vidraça, Pedro) produz acerca de outro. Porque
acontecem através desta interpretação sensível, foi também afirmado que todas as
relações entre objetos são, essencialmente, de cunho estético. 223
Na segunda parte do ensaio, denominada ´Ecologia Objeto-Orientada`, as
variadas constatações da Ontologia Objeto-Orientada foram tomadas como
fundamento para uma concepção filosófica ampliada do significado do termo ´Ecologia`.
Foi afirmado que esta ampliação é particularmente relevante no atual momento de
crise ambiental no qual o humano precisa incluir-se num contexto geral maior, de uma
escala espaço-temporal distendida, a fim de avançar um modo de pensar menos
antropocêntrico.224
Procurou-se demonstrar a forma como, apesar do termo Antropoceno ainda não
ter sido oficializado pela geologia, o termo já se encontra difundido em outras áreas e
disciplinas, além de ter também adquirido enorme poder retórico, pois, contém
claramente em sua raiz - do grego Anthopos - a marca do ser humano, extamente aquilo
a que se refere. Apesar de sugestões situarem o início desta época geológica séculos no
passado, quando não milênios, o estabelecimento do Antropoceno só pôde ser
constatado retrospectivamente, em parte, devido ao desenvolvimento de

223
Harman, 2005, pp. 169-234
Morton, 2013-B, pp.19-20

224
Chakrabarty, 2013, em conferência

81
computadores cada vez mais potentes e à criação de modelos suficientemente
sofisticados (ainda que incompletos e em constante aperfeiçoamento) das complexas
relações entre os diferentes sistemas terrestres. 225 Foi argumentado que o Antropoceno
é um período no qual se cruzam diferentes temporalidades - sobretudo as da história
física do planeta e a História social humana - problematizando o papel privilegiado do
humano, no sentido de que ele está no foco e de que ele é favorecido em detrimento do
não-humano, de maneira geral.
Na Filosofia, exatamente no princípio do Antropoceno, Kant propôs que um
objeto jamais corresponde ao seu fenômeno, o indivíduo está infinitamente separado
da coisa em-si. 226 Entretanto, Kant limitou-se a estabelecer essa fenda exclusivamente à
227
volta do ser humano (o a priori pertence ao intelecto humano). Desde então a
correlação entre a realidade, o mundo, e o pensamento humano tem sido o espaço no
qual se concentra grande parte de toda a investigação filosófica; dificilmente uma
postura que reflete uma compreensão da influência mútua, quando não da
interdependência (ou ainda a imprecisão das fronteiras), entre humano e não-humano –
um discernimento fundamental para a Ecologia. 228 Portanto, para que a Filosofia seja
capaz de pensar a Ecologia hoje - no Antropoceno - ela precisa ser capaz de não só
abarcar as grandes escalas do espaço e do tempo, mas também a enorme diversidade
de objetos que se multiplicam em todas as escalas.
Fundamentar o conceito de Ecologia sobre bases objeto-orientadas resulta
numa Ecologia inclusiva, que reconhece a unicidade de cada um de seus elementos, ao
mesmo tempo que observa seus laços estreitos. Todos são contemplados com a falha
fundamental que impede um objeto de acessar qualquer objeto diretamente. As três

225
Crutzen, Stoermer, 2000, pp.17-18
Morton, 2013-B, pp.4-5
Ellis, 2013, p. 32-35
226
Morton, 2013-B, p.18
227
Latour, 1993, p.33
228
Meillassoux, 2010, pp.119-121

82
principais implicações de um conceito de Ecologia nestes moldes são a) a Ecologia deixa
de estar restrita ou associada apenas a um seleto grupo de entes (sejam eles espécies
em extinção, rios poluídos ou o dióxido de carbono), b) a pluralidade de ângulos (de
pontos de vista além do humano) vem à tona, assim como o fato de que existir é já, e
sempre, coexistir, c) toda ação torna-se ecologicamente significante.
Para lidar com a enorme carga de ansiedade gerada por esta terceira
implicação, foi apresentada a Ecologia Sombria de Timothy Morton, que põe foco sobre
a descrição da estranheza intrínseca aos objetos (os estranhos-estranhos) que se
encontram ligados direta e indiretamente no que é descrito como uma malha de
229
interconexão, sem margens ou centro definidos. Também estranha e sombria é a
noção, que esta concepção de Ecologia apresenta, de que o fim do mundo (o mundo
como caixa contentora, sempre presente, e totalmente determinado em relação ao
humano) já aconteceu, de que hoje já se vive a realidade pós-apocalíptica imaginada
pela ficção. 230 Entretanto, buscou-se demonstrar o modo como o fim (desta concepção
de) mundo realça a existência específica de cada ente, e aponta para uma "lógica de
coexistência futura" baseada em uma abertura radical ao estranho-estranho, em uma
sintonização com as directivas emanadas pelo objeto - comandos que convocam,
seduzem e tocam aqueles que se encontrem suscetíveis.
E é exatamente essa suscetibilidade, o estar-se aberto ou vulnerável, que
Theodor Adorno sugere como definição para o que ele chama de comportamento
estético. Adorno afirma que a própria subjetividade é a "ansiedade cega do
estremecimento", que a vida no sujeito é justamente aquilo que nele reverbera na
presença do outro. Esse estremecimento, essa vibração consiste no ato de ser ´tocado`
pelo outro. E ele acrescenta ainda que o comportamento estético é a postura que se

229
Morton, 2010, pp. 8, 17, 29
Morton, 2013-A. pp. 75
Morton, 2014-A, toda a série de seminários
230
Morton, 2013-B, pp.16-17, 21

83
assimila ao outro - aquela que entra em sintonia com o outro - ao invés de subordiná-
lo.231 Para a Ontologia Objeto-Orientada toda relação entre objetos é uma relação
estética. Um conceito de Ecologia que pressupõe esta afirmação (que faz de toda
relação ecológica também uma relação estética) é capaz de extrapolar da definição de
Adorno a preocupação em acomodar o outro, encapsulada também na injunção pela
abertura ao estranho-estranho da Ecologia Sombria.
Assim, este ensaio termina com a proposta de que a Ecologia no Antropoceno
deve adotar contornos mais amplos, para que a especificidade dos variados entes seja
admitida, distribuindo todos os seus objetos num mesmo patamar ontológico, e
deixando de considerar a perspectiva de uma só categoria de entes (o humano) como
locus de abertura para a realidade.

231
Adorno, 2013, p.437

84
Lista de referências bibliográficas

Monografias, artigos, relatórios e recursos digitais serão listados juntamente, de acordo


com o autor e a data de publicação

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Anexo I

fonte: IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) 2004, “Executive


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