Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESTAURAÇÃO
COSTA, TATIANA C.
RESUMO
A inter-relação entre arqueologia e arquitetura na preservação do patrimônio material pode ser
experimentada, entre outras, tanto na aplicação da pesquisa arqueológica em restaurações
arquitetônicas como no desenvolvimento de projetos arquitetônicos voltados à proteção e valorização
de áreas arqueológicas. Neste último caso, os projetos variam tanto em função da heterogeneidade
dos bens a serem protegidos como em relação ao nível de comunicação a ser oferecido ao público.
Sendo encontrados, portanto, projetos destinados a pequenos agenciamentos de descobertas
arqueológicas em áreas urbanas, coberturas de proteção provisória ou definitiva, abrigos fechados,
dentre outros voltados a assegurar a conservação, promover a acessibilidade ou intensificar a
visitação destes locais.
Entretanto, quais são as reais possibilidades de atuação do arquiteto em intervenções desta natureza
se a arqueologia enquanto disciplina responsável pela pesquisa, comunicação e tutela de áreas
arqueológicas admite também o reenterro como opção viável para a salvaguarda? Será que a
crescente demanda de valorização dos vestígios imóveis encontrados em escavações responde
majoritariamente a necessidades turísticas e econômicas contemporâneas, desprezando os demais
valores percebidos nos bens arqueológicos? Estas são as principais questões a serem exploradas no
trabalho aqui proposto, cujo foco está centrado também na relação disciplinar entre arqueologia e
arquitetura.
Palavras-chave: conservação; valorização; áreas arqueológicas.
1
Em função da heterogeneidade formal e de origem dos bens arqueológicos dispersos em áreas geográficas,
que incluem qualquer vestígio da presença humana no território, nos centraremos nos vestígios oriundos de
antigas edificações. Este recorte se deve principalmente pelas ricas possibilidades projetuais frente à estes
fragmentos, onde os diálogos sobre as questões de resgate formal e espacial estão mais presentes do que em
estruturas que nunca constituíram um espaço arquitetônico.
4º Simpósio Cientifico do ICOMOS Brasil / 1º Simposio Científico ICOMOS-LAC
Rio de Janeiro – 10 a 13/11/2020
O fato é que as estruturas em ruínas que chegam a ser sepultadas sob o solo e são
descobertas através de métodos arqueológicos tiveram seu processo de arruinamento
iniciado há muito tempo, independentemente da causa que o deflagrou. Esta particularidade
é relevante na investigação dos valores atribuídos a estas evidências, já que as mesmas
afloram às vezes após séculos de esquecimento e consequentemente passam por um novo
processo de apropriação. O mesmo não acontece com os edifícios em ruínas localizados
acima do solo, que devido à qualidade dos materiais, à lenta ação do tempo ou mesmo
devido a grandes dimensões, nunca desapareceram por completo e estiveram sempre
diante dos nossos olhos. Consequentemente, sua presença física é continuamente
percebida e referência para a população.
Não se pode desconsiderar, porém, o papel coletivo que todo bem arqueológico possui, o
qual comumente está ligado às questões patrimoniais2. O alargamento do conceito de
patrimônio, desde a perspectiva tipológica, cronológica e geográfica colocada por Choay
(2014) até a inclusão da dimensão imaterial dos bens, resultou numa maior complexidade
da matriz de valores com a qual se lida atualmente. Assim, aspectos simbólicos, sociais e
culturais de diferentes grupos passam a ser reconhecidos e valorizados e não somente os
aspectos históricos e estéticos. No que tange aos vestígios arqueológicos, estes deixam de
ser entendidos como objetos estáticos e heranças intocáveis de antigas civilizações ou na
designação comum do século XIX, “monumentos mortos”, e passam a ser entendidos de
forma dinâmica e inseridos no seio da sociedade que o elege.
Mas para que seja permitida a interatuação entre os valores interpretados inicialmente pelo
especialista (arqueólogo, historiador), e aqueles que porventura sejam construídos pela
sociedade, é necessário que esta participe do processo de descoberta dos achados, o que
nem sempre ocorre (à exceção das práticas da Arqueologia Pública). Assim, a grande
2
Segundo Bruno (2014), “no Brasil, [por exemplo] a evidência arqueológica ao ser desvelada já se configura
como um bem patrimonial de interesse da nação”. (BRUNO, 2014, p. 9).
4º Simpósio Cientifico do ICOMOS Brasil / 1º Simposio Científico ICOMOS-LAC
Rio de Janeiro – 10 a 13/11/2020
maioria das intervenções em áreas arqueológicas é realizada de forma didática, com a
intenção de traduzir ao amplo público o conhecimento histórico gerado sobre os objetos
revelados nas escavações. A relação da sociedade com o bem passa a ser de “mão única”,
sendo a interpretação predominante, aquela já realizada pelo especialista.
Para incrementar ainda mais a arena dos valores atribuídos às áreas arqueológicas, temos
as práticas dominantes da indústria patrimonial, que ampliam a demanda de projetos de
proteção e apresentação de áreas arqueológicas. Ranellucci (1996) identifica, por exemplo,
que em alguns casos a motivação turística e a própria musealização se confundem com a
motivação inicial e justificam a escavação e a conservação do sítio arqueológico. Nestes
casos, é o valor econômico que se sobrepõe ao valor documental e histórico dos achados,
os quais são subjugados em intervenções que destroem a capacidade de legibilidade dos
vestígios. Mas qual o lugar do arquiteto nesse processo e em que medida sua visão estética
e social pode contribuir?
Um exemplo interessante e polêmico de estrutura criada para barrar a ação destruidora dos
agentes atmosféricos sobre os materiais construtivos antigos de uma área arqueológica é a
proposta por um grupo de arquitetos suíços para a Acrópole de Atenas, em 1977. O projeto
se baseava na construção de uma cobertura de aço elíptica com material transparente sobre
a área da acrópole, equivalente a aproximadamente 40.000 m² (Fig. 01). Inspirada na cúpula
geodésica de Buckminster Fuller para New York – Manhattan (1968), a cúpula transparente,
segundo os autores do projeto não prejudicaria a visão do conjunto monumental (SCHMIDT,
1988, p. 09).
Ocorre que a não execução de uma nova cobertura sobre os fragmentos trazidos a tona em
escavações nem sempre é uma opção. Em alguns casos, a imediata variação ambiental
gerada com a descoberta do manufato que antes se encontrava soterrado, resulta na
fragilidade do material que reclama uma intervenção urgente para protegê-lo. Assim a nova
cobertura protege o bem e permite seu estudo por meio de uma pesquisa arqueológica
cuidadosa, a qual geralmente é de extensa duração e requer também o resguardo da equipe
de profissionais envolvida.
Seja de caráter provisório ou definitivo, a construção de uma cobertura sobre uma área
arqueológica é uma obra de arquitetura e pode alterar significativamente a percepção do
Fig. 02 - Cobertura tensionada que protege “provisoriamente” o Templo de Apolo Epicuro, Bassae, Grécia.
Fonte: http://whc.unesco.org/en/documents/148101. Acesso em: 15 dez 2018.
Documentação e reenterro
Após a pesquisa arqueológica, há casos em que os vestígios encontrados não são capazes
de “falar” nem mesmo ao arqueólogo, momento em que o reenterro se mostra uma opção
viável, como exemplifica Manacorda (2009) com referência às escavações conduzidas entre
1996-1997 na Piazza della Rotonda, onde se localiza o Pantheon, em Roma: “Quando não
temos as condições para que o monumento fale, o monumento via de regra deve ser
congelado novamente (como foi afortunadamente decidido fazer nas recentes escavações
na Praça do Pantheon em Roma)”. (MANACORDA, 2009, p. 9-10).
O autor se reporta à dificuldade de percepção, por parte dos arqueólogos, da forma e função
de alguns restos estruturais em sítios arqueológicos, sugerindo que os mesmos sejam
representados na documentação da escavação, desaparecendo fisicamente, ou seja, sendo
reenterrados. Relembra ainda que a decisão do reenterro ou não, é de grande
responsabilidade e que o arqueólogo deve saber assumi-la, porém, nunca sozinho
(MANACORDA, 2007, p. 83). Esta opinião é compartilhada por outro arqueólogo italiano,
Andrea Carandini (2000, p. 11), quando defende que nem todas as escavações devem ser
mantidas abertas e que os resultados das pesquisas podem ser comunicados através de
textos, gráficos, fotografias e maquetes. Para este autor, os arqueólogos costumam
superestimar o que encontraram e sujeitam estruturas pobres a restaurações
desnecessárias e caras, deixando frequentemente importantes ruínas sem cuidados e
explicações.
4º Simpósio Cientifico do ICOMOS Brasil / 1º Simposio Científico ICOMOS-LAC
Rio de Janeiro – 10 a 13/11/2020
Reproposição espacial
Nesse cenário, uma recente intervenção (2016) localizada na Manfredônia, região da Apulia,
na Itália, apresenta uma solução de reconstrução volumétrica desenvolvida sobre a
preexistência arqueológica, que afirma seu caráter contemporâneo ao passo que permite a
revelação e compreensão dos fragmentos. Trata-se do Parque Arqueológico de Siponto3,
onde foi realizada uma intervenção artística sobre os restos de uma antiga basílica
paleocristã revelada em pesquisas arqueológicas.
Edoardo Tresoldi, artista plástico milanês, em conjunto com uma equipe multidisciplinar,
repropôs a forma da basílica com uma leve estrutura em telas de arame, numa solução
artística inovadora aliada à sistematização de toda a área em torno da igreja românica de
Santa Maria Maggiore (construída em fins do séc. XI-XII).
3
A antiga Sipontum foi uma colônia romana e mais tarde bizantina, fundada no século II.d.C. e destruída num
terremoto no período medieval.
4º Simpósio Cientifico do ICOMOS Brasil / 1º Simposio Científico ICOMOS-LAC
Rio de Janeiro – 10 a 13/11/2020
Segundo Francesco Longobardi, arquiteto diretor das obras da Basílica, trata-se de “uma
instalação de arte contemporânea a serviço da arqueologia, não somente sugerindo a
recriação da arquitetura antiga, mas, principalmente, permitindo ao visitante se aproximar da
identidade do lugar”. Ele explica que o projeto original previa a realização de uma cobertura
de proteção para os mosaicos da Basílica e no desenvolvimento dos trabalhos percebeu-se
que isso iria interferir muito na estrutura muraria remanescente. Assim, foi criado um grupo
de trabalho composto por arqueólogos, arquitetos, professores universitários, engenheiros,
entre outros, para formular uma resposta alternativa. A abordagem projetual procurou
identificar-se com o turista comum que ao visitar uma zona arqueológica com a
predominância de estruturas murárias remanescentes tem, via de regra, dificuldade de
compreensão e percepção da terceira dimensão do sítio, visto que “um espaço arqueológico
é geralmente um espaço sem alturas” (Fig. 03).
Fig. 03: Vista geral da intervenção de reconstrução volumétrica executada em telas de aço sobre os
vestígios arqueológicos da basílica paleocristã descoberta em escavações.
Fonte: Foto da autora, 2020.
No caso do Gallo-Roman Museum Vesunna, a estrutura projetada por Jean Nouvel protege
e apresenta o sítio arqueológico da Domus des Bosquets, cujos vestígios foram descobertos
em 1959 durante uma escavação arqueológica. A cidade enterrada no subsolo que deu
origem a Perigueux foi fundada por volta de 16 a.C.
Fig. 04: Vista de parte externa do Gallo-Roman Museum Vesunna, localizado em Périgueux, França
e projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel.
Fonte: https://structurae.net/en/media/21622-gallo-roman-museum-of-vesunna-perigeux. Acesso em:
20 dez 2018.
O nível de profundidade da intervenção não pode ser definido pelo arquiteto, já que envolve,
dentre outras, razões de ordem econômica, porém, é seu papel traduzir o discurso do
arqueólogo através da linguagem arquitetônica, evidenciando o universo formal, espacial e
estético dos vestígios e seu contexto, além de atender a outras demandas de ordem cultural
e social.
Referências Bibliográficas
___________. Il sito archeologico: fra ricerca e valorizzazione. Roma: Carocci Editore, 2007.
RUGGIERI TRICOLI, Maria Clara. Archeologia urbana senza l’archeologia. In: RUGGIERI
TRICOLI, Maria Clara; GERMANÀ, Maria Luisa (a cura di). Urban Archaeology
Enhancement: Valorizzare l’archeologia urbana. Piza: Edizioni ETS, 2013.