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TEMA GERAL - SUBTEMA 2: DOCUMENTAÇÃO, CONSERVAÇÃO E

RESTAURAÇÃO

POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO ARQUITETO NA


CONSERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DE ÁREAS ARQUEOLÓGICAS

COSTA, TATIANA C.

1. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo


taticosta_arq@hotmail.com

RESUMO
A inter-relação entre arqueologia e arquitetura na preservação do patrimônio material pode ser
experimentada, entre outras, tanto na aplicação da pesquisa arqueológica em restaurações
arquitetônicas como no desenvolvimento de projetos arquitetônicos voltados à proteção e valorização
de áreas arqueológicas. Neste último caso, os projetos variam tanto em função da heterogeneidade
dos bens a serem protegidos como em relação ao nível de comunicação a ser oferecido ao público.
Sendo encontrados, portanto, projetos destinados a pequenos agenciamentos de descobertas
arqueológicas em áreas urbanas, coberturas de proteção provisória ou definitiva, abrigos fechados,
dentre outros voltados a assegurar a conservação, promover a acessibilidade ou intensificar a
visitação destes locais.
Entretanto, quais são as reais possibilidades de atuação do arquiteto em intervenções desta natureza
se a arqueologia enquanto disciplina responsável pela pesquisa, comunicação e tutela de áreas
arqueológicas admite também o reenterro como opção viável para a salvaguarda? Será que a
crescente demanda de valorização dos vestígios imóveis encontrados em escavações responde
majoritariamente a necessidades turísticas e econômicas contemporâneas, desprezando os demais
valores percebidos nos bens arqueológicos? Estas são as principais questões a serem exploradas no
trabalho aqui proposto, cujo foco está centrado também na relação disciplinar entre arqueologia e
arquitetura.
Palavras-chave: conservação; valorização; áreas arqueológicas.

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O propósito deste trabalho é identificar as possibilidades de intervenção arquitetônica em
áreas arqueológicas1 e analisar de forma crítica o produto de algumas destas intervenções.
Como premissa para a análise, propomos um exame dos valores dos bens materiais
trazidos à luz em escavações a partir da visão da arqueologia e o confrontamos com a
perspectiva de demais agentes responsáveis pelo processo de atribuição de valores, dentre
os quais o arquiteto.

Os projetos de arquitetura em áreas arqueológicas são operações interdisciplinares por


natureza e refletem muitas vezes as tensões existentes entre os profissionais envolvidos,
principalmente entre arqueólogos e arquitetos. A preexistência trazida à tona em
escavações é reconhecida e valorada de formas distintas por estes especialistas, assim,
fragmentos arquitetônicos dispersos num terreno localizado em uma área rural, por
exemplo, representam para o arqueólogo a possibilidade de inferência sobre o
comportamento de civilizações remotas. Já para o arquiteto, estes restos podem ser o
componente paisagístico de um novo projeto de arquitetura o qual pode ou não ser pautado
no respeito aos valores documentais dos achados. Não é rara a ocorrência de obras
arquitetônicas em que a preexistência arqueológica é um pretexto ao exercício projetual
autoreferente do arquiteto.

Para que as intervenções de conservação e valorização de áreas arqueológicas sejam


capazes de transmitir os valores dos bens trazidos à luz em escavações, é necessário
compreender inicialmente quais são estes valores, como podem continuar a ser percebidos
nos vestígios e qual a contribuição do arquiteto neste processo.

Áreas arqueológicas: descoberta e valoração

O processo de transformação e desintegração de antigas arquiteturas até a sua deposição


abaixo do solo está ligado principalmente ao abandono e a ação gradativa do tempo, mas
também pode ser consequência de uma catástrofe natural (como erupções vulcânicas e
terremotos) ou provocada (como incêndios e guerras). A causa da condição de ruína é
classificada por alguns autores, a exemplo de Rodrigues (2017) e De Martino (2017), em
função de três diferentes ações: do incidente, do tempo e da incúria ou do abandono.

1
Em função da heterogeneidade formal e de origem dos bens arqueológicos dispersos em áreas geográficas,
que incluem qualquer vestígio da presença humana no território, nos centraremos nos vestígios oriundos de
antigas edificações. Este recorte se deve principalmente pelas ricas possibilidades projetuais frente à estes
fragmentos, onde os diálogos sobre as questões de resgate formal e espacial estão mais presentes do que em
estruturas que nunca constituíram um espaço arquitetônico.
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O fato é que as estruturas em ruínas que chegam a ser sepultadas sob o solo e são
descobertas através de métodos arqueológicos tiveram seu processo de arruinamento
iniciado há muito tempo, independentemente da causa que o deflagrou. Esta particularidade
é relevante na investigação dos valores atribuídos a estas evidências, já que as mesmas
afloram às vezes após séculos de esquecimento e consequentemente passam por um novo
processo de apropriação. O mesmo não acontece com os edifícios em ruínas localizados
acima do solo, que devido à qualidade dos materiais, à lenta ação do tempo ou mesmo
devido a grandes dimensões, nunca desapareceram por completo e estiveram sempre
diante dos nossos olhos. Consequentemente, sua presença física é continuamente
percebida e referência para a população.

De modo oposto, a comunidade das imediações de um bem arqueológico recém-descoberto


frequentemente já não possui relações diretas com aquela que o gerou, sendo os vínculos
existentes derivados apenas da história e tradição orais. Deste modo, o arqueólogo é o
primeiro agente que se aproxima da materialidade do objeto e a interpreta. Suas motivações
são de cunho histórico e documental, conforme atesta o arqueólogo italiano Daniele
Manacorda: “[os valores] em campo arqueológico, não podem ser relativos a outro que o
valor como fonte histórica no sentido mais amplo do termo e, portanto, incluem a
excepcionalidade, a raridade”... (MANACORDA, 2007, p. 79-80).

Não se pode desconsiderar, porém, o papel coletivo que todo bem arqueológico possui, o
qual comumente está ligado às questões patrimoniais2. O alargamento do conceito de
patrimônio, desde a perspectiva tipológica, cronológica e geográfica colocada por Choay
(2014) até a inclusão da dimensão imaterial dos bens, resultou numa maior complexidade
da matriz de valores com a qual se lida atualmente. Assim, aspectos simbólicos, sociais e
culturais de diferentes grupos passam a ser reconhecidos e valorizados e não somente os
aspectos históricos e estéticos. No que tange aos vestígios arqueológicos, estes deixam de
ser entendidos como objetos estáticos e heranças intocáveis de antigas civilizações ou na
designação comum do século XIX, “monumentos mortos”, e passam a ser entendidos de
forma dinâmica e inseridos no seio da sociedade que o elege.

Mas para que seja permitida a interatuação entre os valores interpretados inicialmente pelo
especialista (arqueólogo, historiador), e aqueles que porventura sejam construídos pela
sociedade, é necessário que esta participe do processo de descoberta dos achados, o que
nem sempre ocorre (à exceção das práticas da Arqueologia Pública). Assim, a grande

2
Segundo Bruno (2014), “no Brasil, [por exemplo] a evidência arqueológica ao ser desvelada já se configura
como um bem patrimonial de interesse da nação”. (BRUNO, 2014, p. 9).
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maioria das intervenções em áreas arqueológicas é realizada de forma didática, com a
intenção de traduzir ao amplo público o conhecimento histórico gerado sobre os objetos
revelados nas escavações. A relação da sociedade com o bem passa a ser de “mão única”,
sendo a interpretação predominante, aquela já realizada pelo especialista.

Para incrementar ainda mais a arena dos valores atribuídos às áreas arqueológicas, temos
as práticas dominantes da indústria patrimonial, que ampliam a demanda de projetos de
proteção e apresentação de áreas arqueológicas. Ranellucci (1996) identifica, por exemplo,
que em alguns casos a motivação turística e a própria musealização se confundem com a
motivação inicial e justificam a escavação e a conservação do sítio arqueológico. Nestes
casos, é o valor econômico que se sobrepõe ao valor documental e histórico dos achados,
os quais são subjugados em intervenções que destroem a capacidade de legibilidade dos
vestígios. Mas qual o lugar do arquiteto nesse processo e em que medida sua visão estética
e social pode contribuir?

Áreas arqueológicas: conservação e valorização

Afora as razões econômicas e turísticas mencionadas acima, as quais Manacorda (2007)


relaciona a um processo de “arqueologização”, intervir para a salvaguarda dos vestígios
pode ser colocado como o principal objetivo das estruturas de proteção em áreas
arqueológicas. A inserção de novos elementos visa principalmente a conservação dos
artefatos arqueológicos através da desaceleração de suas patologias, permitindo seu estudo
e perpetuação (PALMERIO, 2007). As estruturas propostas nesse sentido podem ter um
caráter provisório ou definitivo.

Coberturas provisórias ou definitivas

Um exemplo interessante e polêmico de estrutura criada para barrar a ação destruidora dos
agentes atmosféricos sobre os materiais construtivos antigos de uma área arqueológica é a
proposta por um grupo de arquitetos suíços para a Acrópole de Atenas, em 1977. O projeto
se baseava na construção de uma cobertura de aço elíptica com material transparente sobre
a área da acrópole, equivalente a aproximadamente 40.000 m² (Fig. 01). Inspirada na cúpula
geodésica de Buckminster Fuller para New York – Manhattan (1968), a cúpula transparente,
segundo os autores do projeto não prejudicaria a visão do conjunto monumental (SCHMIDT,
1988, p. 09).

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Fig. 01: Fotomontagem de 1977 com a cúpula proposta para proteção da Acrópole de Atenas.
Fonte: (RANELLUCCI, 2009, p. 106).
Evidentemente considerada irrealizável e de difícil manutenção técnica, a proposta para a
acrópole de Atenas demonstra, entretanto, o significado da estrutura de proteção como um
elemento capaz de interromper ou retardar as forças dos agentes de degradação,
permitindo a salvaguarda dos bens arqueológicos com a preservação da sua condição
fragmentária. Esta ideia da manutenção dos vestígios em sua incompletude é muito próxima
do caráter conservativo que guiou as intervenções de “restauro arqueológico” no século XIX
na Itália, justificado pela importância histórica dos achados. Na atuação prática daquele
período, as descobertas arqueológicas da civilização romana deveriam ter sua matéria e
seus elementos característicos preservados ao máximo, além de manter o caráter pitoresco
e as marcas da passagem através dos tempos.

Ocorre que a não execução de uma nova cobertura sobre os fragmentos trazidos a tona em
escavações nem sempre é uma opção. Em alguns casos, a imediata variação ambiental
gerada com a descoberta do manufato que antes se encontrava soterrado, resulta na
fragilidade do material que reclama uma intervenção urgente para protegê-lo. Assim a nova
cobertura protege o bem e permite seu estudo por meio de uma pesquisa arqueológica
cuidadosa, a qual geralmente é de extensa duração e requer também o resguardo da equipe
de profissionais envolvida.

Seja de caráter provisório ou definitivo, a construção de uma cobertura sobre uma área
arqueológica é uma obra de arquitetura e pode alterar significativamente a percepção do

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bem arqueológico. Uma intervenção que ilustra de forma clara esta interferência foi
realizada no Templo de Apolo Epicuro, em Bassae, Grécia.

Construído nas montanhas da Arcádia, em meados do século V a. C. e. inscrito na Lista do


Patrimônio Mundial da UNESCO na década de 1980, o Templo de Apolo Epicuro
apresentava fragilidades próprias da sua estrutura e dos efeitos adversos do clima e do
ambiente, incluindo temperaturas extremas, vento forte, água da chuva e atividade sísmica.
Em 1987 foi colocado sobre o templo um abrigo de proteção em estrutura metálica e
tensoestrutura (Fig. 02) com o objetivo de minimizar os danos causados pelas intempéries e
fornecer condições mais favoráveis para as obras de restauração.

Fig. 02 - Cobertura tensionada que protege “provisoriamente” o Templo de Apolo Epicuro, Bassae, Grécia.
Fonte: http://whc.unesco.org/en/documents/148101. Acesso em: 15 dez 2018.

A cobertura permanece no local há mais de trinta anos, escondendo-o, além de romper a


relação entre o templo e a paisagem, não sendo possível estabelecer um vínculo com o
ambiente em que ele se encontra como calcário das montanhas que o rodeiam e com o qual
foi construído.

Manutenção, anastiloses, agenciamento e visitação

No segmento de valorização de áreas arqueológicas, encontram-se as intervenções


mínimas que incluem a construção de percursos físicos através de passarelas de visitação.
São formas de se aproximar do objeto, propiciando o envolvimento do corpo e facilitando a
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visão dos achados, algumas vezes a partir do alto. Esta escolha projetual é feita por
diversas razões, dentre as quais a insuficiência de recursos, a natureza dispersa dos
vestígios ou mesmo por questões conceituais. De um lado, este tipo de intervenção mínima
visa uma conservação mais pura do objeto, mas de outro, requer maior manutenção da
preexistência, já que os materiais ficam expostos às intempéries.

Obviamente, a inserção de uma passarela de visitação na preexistência de valor histórico


não é uma atitude neutra. Carbonara (2013, p. 03) argumenta que em áreas de escavo, este
elemento não permanece figurativamente irrelevante e que o mesmo implica numa solução
estética e de design. Do mesmo modo a região que foi objeto de escavação não é
apresentada apenas com a remoção de camadas de terra. Portanto, o agenciamento de
áreas arqueológicas é também um projeto de arquitetura, compreende a realização de
anastiloses, a definição de materiais construtivos que sejam compatíveis com os existentes
e a escolha de percursos que valorizem o achado, seja através do refazimento daqueles
outrora existentes, seja pelo novo desenho proposto.

Documentação e reenterro

Após a pesquisa arqueológica, há casos em que os vestígios encontrados não são capazes
de “falar” nem mesmo ao arqueólogo, momento em que o reenterro se mostra uma opção
viável, como exemplifica Manacorda (2009) com referência às escavações conduzidas entre
1996-1997 na Piazza della Rotonda, onde se localiza o Pantheon, em Roma: “Quando não
temos as condições para que o monumento fale, o monumento via de regra deve ser
congelado novamente (como foi afortunadamente decidido fazer nas recentes escavações
na Praça do Pantheon em Roma)”. (MANACORDA, 2009, p. 9-10).

O autor se reporta à dificuldade de percepção, por parte dos arqueólogos, da forma e função
de alguns restos estruturais em sítios arqueológicos, sugerindo que os mesmos sejam
representados na documentação da escavação, desaparecendo fisicamente, ou seja, sendo
reenterrados. Relembra ainda que a decisão do reenterro ou não, é de grande
responsabilidade e que o arqueólogo deve saber assumi-la, porém, nunca sozinho
(MANACORDA, 2007, p. 83). Esta opinião é compartilhada por outro arqueólogo italiano,
Andrea Carandini (2000, p. 11), quando defende que nem todas as escavações devem ser
mantidas abertas e que os resultados das pesquisas podem ser comunicados através de
textos, gráficos, fotografias e maquetes. Para este autor, os arqueólogos costumam
superestimar o que encontraram e sujeitam estruturas pobres a restaurações
desnecessárias e caras, deixando frequentemente importantes ruínas sem cuidados e
explicações.
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Reproposição espacial

A partir da decisão de expor os achados ao amplo público, atuando não apenas na


conservação dos mesmos, mas na valorização e comunicação da materialidade incapaz
(sozinha) de informar o seu significado ao espectador, é que se encontra a maior
contribuição do arquiteto. Ou seja, na criação de elementos que facilitem tal comunicação,
impossibilitada pela ausência de integridade material dos vestígios, sua singularidade ou
complexidade.

No caso da preexistência arqueológica proveniente de antigas arquiteturas, a visão


tridimensional do achado é fundamental para seu entendimento. Segundo Carandini (2017,
p. 129), a reconstrução do espaço arquitetônico é necessária não apenas para a
compreensão do monumento, mas também para sua conservação porque a característica
da arquitetura, assim como da escultura, reside nas três dimensões espaciais e os
arqueólogos que não propõem a reconstrução, se limitam a considerar o monumento de
forma bidimensional.

Decerto a reconstrução espacial do objeto arqueológico contribui sobremaneira à sua


apreensão, porém, há um limite em que isso é possível sem cair em analogias,
comparações e recriações que em nada contribuem para o desenvolvimento do campo
projetual arquitetônico. As conjecturas acerca de partes perdidas e as possibilidades de
completamento deveriam permanecer no campo das reconstruções virtuais, sem afetar
diretamente os vestígios encontrados, os quais são bens únicos e não renováveis.

Nesse cenário, uma recente intervenção (2016) localizada na Manfredônia, região da Apulia,
na Itália, apresenta uma solução de reconstrução volumétrica desenvolvida sobre a
preexistência arqueológica, que afirma seu caráter contemporâneo ao passo que permite a
revelação e compreensão dos fragmentos. Trata-se do Parque Arqueológico de Siponto3,
onde foi realizada uma intervenção artística sobre os restos de uma antiga basílica
paleocristã revelada em pesquisas arqueológicas.

Edoardo Tresoldi, artista plástico milanês, em conjunto com uma equipe multidisciplinar,
repropôs a forma da basílica com uma leve estrutura em telas de arame, numa solução
artística inovadora aliada à sistematização de toda a área em torno da igreja românica de
Santa Maria Maggiore (construída em fins do séc. XI-XII).

3
A antiga Sipontum foi uma colônia romana e mais tarde bizantina, fundada no século II.d.C. e destruída num
terremoto no período medieval.
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Segundo Francesco Longobardi, arquiteto diretor das obras da Basílica, trata-se de “uma
instalação de arte contemporânea a serviço da arqueologia, não somente sugerindo a
recriação da arquitetura antiga, mas, principalmente, permitindo ao visitante se aproximar da
identidade do lugar”. Ele explica que o projeto original previa a realização de uma cobertura
de proteção para os mosaicos da Basílica e no desenvolvimento dos trabalhos percebeu-se
que isso iria interferir muito na estrutura muraria remanescente. Assim, foi criado um grupo
de trabalho composto por arqueólogos, arquitetos, professores universitários, engenheiros,
entre outros, para formular uma resposta alternativa. A abordagem projetual procurou
identificar-se com o turista comum que ao visitar uma zona arqueológica com a
predominância de estruturas murárias remanescentes tem, via de regra, dificuldade de
compreensão e percepção da terceira dimensão do sítio, visto que “um espaço arqueológico
é geralmente um espaço sem alturas” (Fig. 03).

Fig. 03: Vista geral da intervenção de reconstrução volumétrica executada em telas de aço sobre os
vestígios arqueológicos da basílica paleocristã descoberta em escavações.
Fonte: Foto da autora, 2020.

O projeto apresenta novos cenários para a preservação e valorização do patrimônio


arqueológico, tendo sido premiado com a Medaglia d’Oro all’Architettura Italiana e com o
Premio Riccardo Francovich da Società degli Archeologi Medievisti Italiani (SAMI), por
reconhecer “a capacidade de combinar o rigor acadêmico com uma comunicação eficaz
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para o público não especializado”. A restituição de significado ao bem arqueológico, a
facilitação da sua percepção e atmosfera são qualidades presentes nesta intervenção, na
qual constata-se a prevalência dos aspectos estéticos e interpretativos associados à
condição revelativa.

Por outro lado, a grande quantidade de recursos despendidos e a interferência do novo


volume na imagem da igreja românica de Santa Maria Maggiore (vizinha à área
arqueológica) são pontos criticados por alguns autores que são favoráveis ao seu desmonte.
Estas críticas denotam a complexidade deste tipo de projeto e o quanto é difícil alcançar um
equilíbrio na conservação e na valorização de áreas arqueológicas, já que se por um lado, a
estrutura que evoca a antiga basílica traz significado ao achado, de outro, não o protege e
nem o conserva, pois é assentada sobre o mesmo.

Além dos vestígios da antiga basílica, as escavações revelaram também os estratos de um


antigo assentamento romano, os quais foram agenciados com a utilização de displays
educativos em aço corten. Atualmente, menos de quatro anos após a inauguração, os
equipamentos estão destruídos e não são mais capazes de trazer as informações do sítio,
tornando-se tão abstratos quanto os restos edilícios do período romano encontrados no
terreno.

Em certos casos, o projeto de conservação e valorização de áreas arqueológicas resulta


num novo objeto arquitetônico com linguagem e expressão próprias que ultrapassam a
simples consolidação, reconstrução evocativa ou pequenos agenciamentos para visitação,
promovendo uma alteração significativa da paisagem. É o caso dos “abrigos arqueológicos”.

Como exemplos estão centenas de projetos realizados principalmente na Europa sobre os


restos de antigas civilizações. A citar: Museo delle Terme Romane (2003-2007), em Treviri,
Alemanha, projeto do arquiteto Oswald Mathias Ungers; Villa romana La Olmeda (2009), em
Palencia, Espanha, projeto de Ángela García de Paredes e Ignacio Pedrosa; Gallo-Roman
Museum Vesunna (1993-2003), em Périgueux, França, projeto do arquiteto francês Jean
Nouvel, além de outras dezenas de projetos realizados na Itália.

No caso do Gallo-Roman Museum Vesunna, a estrutura projetada por Jean Nouvel protege
e apresenta o sítio arqueológico da Domus des Bosquets, cujos vestígios foram descobertos
em 1959 durante uma escavação arqueológica. A cidade enterrada no subsolo que deu
origem a Perigueux foi fundada por volta de 16 a.C.

O museu exibe os objetos encontrados da cidade antiga e no território circundante,


exemplificando o modo de vida das famílias aristocráticas locais durante o século I.
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Apresenta uma solução didática interessante que compreende a reprodução da planta baixa
da domus no teto da nova construção. A volumetria proposta não visa recuperar a
espacialidade antiga e propõe a permeabilidade entre o interior e o exterior, além de
proporcionar um ambiente favorável à visualização dos achados do ponto de vista da
iluminação, percursos e dispositivos educativos.

Fig. 04: Vista de parte externa do Gallo-Roman Museum Vesunna, localizado em Périgueux, França
e projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel.
Fonte: https://structurae.net/en/media/21622-gallo-roman-museum-of-vesunna-perigeux. Acesso em:
20 dez 2018.

Refletindo a partir das possibilidades...

A partir da opção pela exposição dos vestígios descobertos em escavações, escolha


cuidadosa que deve ser feita com base em um trabalho multidisciplinar, o arquiteto que será
responsável pela “costura” entre os vários aspectos e valores explanados anteriormente,
possui do ponto de vista prático uma gama de possibilidades. Para aclarar as variadas
opções projetuais, Ruggieri Tricoli (2013) propõe uma classificação das intervenções em
áreas arqueológicas de acordo com o nível de comunicação que é oferecido ao público: da
simples conservação, acessibilidade física e visiva, apresentação até a musealização, onde
há maior reintegração cultural do bem. Nesta última categoria, as ações compreendem
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demandas de ordem técnica (iluminação artística, manutenções, restaurações, proteções
definitivas, percursos de fruição, acesso a deficientes, visita regular, instalação de centros
de visitação, livrarias, dentre outros) bem como questões relacionadas à gestão do local.

O nível de profundidade da intervenção não pode ser definido pelo arquiteto, já que envolve,
dentre outras, razões de ordem econômica, porém, é seu papel traduzir o discurso do
arqueólogo através da linguagem arquitetônica, evidenciando o universo formal, espacial e
estético dos vestígios e seu contexto, além de atender a outras demandas de ordem cultural
e social.

Podemos dizer que os arquitetos encarregados de projetos em áreas arqueológicas


possuem uma atividade similar à dos arqueólogos: ambos interpretam objetos do passado
no presente. A revelação do passado pelos arqueólogos é feita através de palavras e
discursos, a dos arquitetos restauradores na materialização do espaço. Em ambos há
intenção política e público alvo, reflexão e ação. A interpretação dos vestígios antigos por
qualquer um destes dois campos das ciências humanas tem sempre que ser uma
interpretação crítica e deve incorporar os fatores sociais e simbólicos inerentes à arquitetura
como produto da atividade humana.

Referências Bibliográficas

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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