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Sonhos

Série Nefilins – Volume 2


Mari Scotti
Copyright ©2015 de Mari Scotti
Todos os direitos reservados. É proibido o armazenamento ou a reprodução
de qualquer parte desta obra – física ou eletrônica -, sem a autorização prévia
do autor.

Título: Sonhos
Subtítulo: Livro 2 da Série Nefilins
Linha literária: Ficção juvenil
Capa: Mari Scotti e Lari Azevedo
Diagramação: Mari Scotti
Revisão: Ignez Scotti
2º edição em 2015
Dedico a Deus que é quem me
permite criar cada palavra descrita
nesta obra, com empréstimos
inspirados na Bíblia. À
minha tia Célia e meus pais, Ricardo
e Ignez. Amo vocês!
Agradecimentos
​ gradeço a todos os leitores da série que, mesmo sem saber, me
A
incentivaram a continua-la, pois não acreditava muito nessa história. Vocês
são o impulso para a minha imaginação. O alimento que me fortifica todos
os dias e me faz continuar sem pensar em desistir.
​Agradeço a todos os amigos, escritores e familiares que apoiaram e
apoiam minha carreira.
​E as betas, pois sem vocês, o livro dois nem existiria: Thais Snape e
Fayane Galvão.

​Boa leitura!

Mari Scotti
Capítulo 1

​ s últimas semanas de minha adolescência foram recheadas de


A
surpresas, em sua maioria, muito desagradáveis. Não havia dado meu
primeiro beijo ainda – e já tinha quase dezoito anos! – contudo nestes poucos
dias, fui beijada por dois caras e ambos declararam ser apaixonados por mim,
ou melhor, acreditei que fossem.
​Não pense em dois rapazes lindos brigando pelo meu coração, pois a
realidade não é tão romântica assim, o problema é que eles são anjos – um
caído e um não –, que querem me fazer escolher entre o céu e o inferno. Se
eu soubesse que tinha apenas que fazer essa escolha, teria escolhido o Céu
sem nem piscar os olhos, porém isto estava implícito e eu escolhi justamente
o que me levaria diretamente ao Inferno.
​Agora, estou aqui, no Céu eu acho, esperando ser julgada pelo anjo
que eu tentei proteger. Optei por Pietro para que ele não matasse Arthur ou
Pierre – o nome pelo qual ele exige ser chamado aqui – e esperava que
entendessem minha escolha. O problema é que, toda vez que abro a boca,
uma enxurrada de imagens, com cenas contraditórias à minha tentativa
heróica de salvar um anjo, são projetadas em uma tela que mais parece uma
nuvem em 3D.
​É constrangedor.
​Minha cela não é muito aconchegante. É iluminada apenas por uma
fresta de sol que entra por uma pequena abertura na porta, mantendo o quarto
sempre claro. E esta claridade constante não me permite ter um momento da
solidão de que preciso. Aqui é sempre dia, mas é fácil perceber as horas
passando, pois a luz se modifica, apesar de nunca perder o brilho total. Em
poucos dias, já me acostumei ao tempo, ao calor úmido, à brisa leve e à
iluminação. Estamos no Segundo Éden, mas acho que é o Céu, talvez não
onde Deus e Jesus morem, mas ainda assim acredito ser o Céu.
​Sou vigiada constantemente e, mesmo quando as Sentinelas estão
longe, sinto seus olhares esmagadores sobre mim. É difícil me acostumar à
reclusão a que fui submetida, à falta dos livros, das pessoas, da internet e
principalmente ao modo como o Arthur passou a me tratar, ou melhor, Pierre.
​Há três dias, não recebo visitas, os vejo na sala do julgamento e
depois sou escoltada de volta ao meu alojamento. Tiraram meu suprimento de
comida, então preciso esperar que tragam minhas refeições.
​Arthur tem agido de modo estranho; não me encara e, se percebe que
o estou olhando, aperta os punhos e trinca o maxilar, enquanto se distancia o
máximo que pode, como se eu fosse um repelente natural de anjos magoados.
Tudo porque o deixei sozinho, à beira da morte, depois que Havi, Pietro e
algumas crianças-demônio o jogaram sobre rochas pontudas e o chutaram até
eu não aguentar mais ver e aceitar seguir o anjo caído em troca de pouparem
a vida dele.
​Este é exatamente o ponto que ele não entende, pois acha que segui
Pietro por amor. Até tentei contatá-lo naquele lugar, mas devia estar tão
chateado que não me ouviu.
​― Senhorita Monteiro? – A voz do juiz me tirou dos meus
pensamentos.
​Ergui meu olhar para o dele, sentindo as bochechas esquentando e
sorri afetado.
​― Desculpe, o senhor perguntou algo?
Estávamos no salão do Juízo. Atrás de mim, alguns anjos, anjos
caídos e demônios de ambos os sexos. Descobri depois do segundo dia de
discussões que eles são os mais experientes, analisam os passos do Nefilin
infrator para decidir seu fim. Pierre está entre os anjos; é o mais sério do
grupo e o que mais retruca minhas respostas.
​Estamos atrás de uma mesa em forma de lua crescente. Os anjos que
me defendem estão sentados ao meu lado: Victória e Sophia, que conheci na
primeira vez em que estive no Segundo Éden. Os que me acusam do lado
oposto. Atrás de nós, há uma bancada de cada lado. À direita, doze anjos do
céu, que analisam, discutem e decidem como aceitar minhas respostas. Até
agora, a maioria delas foi contestada. Eles se sentam em um lugar de
destaque, alto e feito de madeira como em um júri na Terra. À esquerda, mais
doze pessoas, seis anjos caídos e seis demônios. Havi e Pietro estão entre
eles. Achei ter reconhecido Persus também, mas não podia encará-los por
muito tempo, pois Victoria sempre me fazia olhar para frente.
​O Juiz fica em uma mesa simples, no centro dessa meia-lua, anotando
tudo o que falamos, todas as informações passadas, contestações e afirmações
de cada grupo de anjos e demônios. Não diz nada a meu favor, apenas
acrescenta novos fatos e perguntas. Quem fala mais é Victória, que está em
minha defesa, e Haddes que é meu acusador; o nome é apenas em
homenagem ao seu senhor, o próprio Diabo. Atrás do Juiz, há um trono vazio
e, acima, fica essa tela, que mais parece uma nuvem em 3D, mostrando todas
as minhas falhas dos últimos dezessete anos de existência.
​O bom é que finalmente aprendi a bloquear meus pensamentos e
somente os meus atos são analisados e não cada pensamento inútil que eu
tenho todos os segundos desde que cheguei. Pensar no Juiz me faz lembrar
que ele ainda está falando comigo. Suspirei, levando toda a minha atenção ao
que ele dizia.
​― Então, posso chamar a testemunha ou a defesa se opõe? – Ele
terminava de falar.
​Encarei Victória ao meu lado, um sorriso formal estava em seus lábios
e eu sabia que isso significava encrenca.
​― Não nos opomos. – Disse ela.
​― Guardião Pierre, por favor, compareça ao banco das testemunhas.
​Só a menção do nome dele deixou meu estômago revirado. Houve um
burburinho, mas aguentei firmemente e não olhei na direção que eu sabia que
ele viria. Um tempo depois, Pierre passou por mim, direcionando-se a uma
cadeira reservada ao lado da mesa do juiz.
​Pierre estava magnífico! Seus cabelos ajeitados para trás, deixando
pontas para fora por ter crescido um pouco mais, seus olhos sombrios, no tom
acinzentado que me lembra do dia em que ele me salvou do acidente. Estava
todo de branco, como era costume dos anjos aqui no Segundo Éden, a camisa
de mangas longas e com três botões abertos, deixando seu peito pálido à
vista. Seu perfume almiscarado impregnou todo o ambiente, fazendo-me
estremecer. Soltei um suspiro involuntário, incapaz de desviar os olhos dele.
​Ao se acomodar, o Juiz se aproximou, observando-o. Em seguida,
aumentou o tom de voz para que todos escutassem.
​― Guardião Pierre, faça um breve relato dos acontecimentos que
antecederam a escolha da senhorita Monteiro em seguir o anjo caído Pietro.
​Ele estava sentado, entrelaçou os dedos na frente do corpo antes de
começar a falar. Olhava para frente com um ar sério e nada amigável.
​― Tudo bem, senhor. Recebi ordens diretas da senhora Victória para
levar a Nefilin ao abrigo sul, junto às videiras, porém ao chegarmos,
averiguei que as trancas do portão estavam abertas. Alguém as havia
descoberto e, pela desarmonia dos elementos, percebi que não fora por um
ser amigável. Ocultei a garota dando ordens claras para que não se movesse e
adentrei o abrigo. Mal pisei na casa, fui atacado e, infelizmente, não sei dizer
por quem ou o quê. – Pierre olhou diretamente para a direção onde estava
Pietro, entre os demônios. Meu estômago gelou, pois eu não sabia o que de
fato havia acontecido com ele. – Não estou certo do que ocorreu depois.
Quando voltei a mim, estávamos despencando para o penhasco. A Nefilin em
queda livre, enquanto eu e o guardião do abrigo tentávamos nos livrar do
ataque de Pietro e do demônio que o acompanhava. – Ele apontou para a
plateia e vi que era para Havi.
​― Que conste nos altos que a testemunha apontou para o demônio
Havi, presente na tribuna. – Disse o Juiz e meus ossos petrificaram de medo.
​Pierre continuou como se não tivesse sido interrompido.
​― Não consegui salvar o guardião e nem a menina. – Ele piscou,
apertou bem os lábios e se corrigiu. – A Nefilin. Fui derrubado entre as
rochas e fiquei semiconsciente, sendo pisoteado, ameaçado e humilhado,
enquanto ela assistia a tudo e os amigos de Pietro também. – Havia uma
pontada de mágoa na voz dele que me fez sentir vontade de protestar e dizer
que não fiquei assistindo, que tentei ajudá-lo. – Quando de fato meus sentidos
voltaram, ela se afastava com ele, mesmo depois de ouvir da minha boca que
não deveria ir.
​― Vocês lutaram antes de ela seguir Pietro. – Victoria estava em pé,
andando na direção de Pierre. Ele a encarou desafiador. – A senhorita
Monteiro tentou protegê-lo, mesmo o senhor a mandou ir embora. Está
correto?
​Pierre apertou os lábios e, em seus olhos, eu vi a luta que ele fazia
para se lembrar; fiquei surpresa ao saber que anjos se feriam ao ponto de
esquecer o que fizeram, os acontecimentos e até quem estava ao seu lado.
Observei atentamente cada músculo dele se movendo, a respiração, os olhos
inquietos, até que se encontraram com os meus e ele parou de se mover, o
cinzento nublado se tornou brilhoso.
​― Sim, está correto. Eu mandei que ela me deixasse lá. – Confessou
e, então, desviou o olhar do meu, parecendo adquirir novamente um ar
colérico quando continuou. – Mandei-a fugir e não se juntar a ele. – Apontou
para Pietro.
​― A questão foi apenas sim ou não. – Victoria encarou o Juiz. – Sem
mais perguntas. – Finalizou, voltando a sentar.
​Encostei-me a seu braço e me inclinei para ela, inquieta.
​― Ele vai se prejudicar? – Sussurrei.
​― Não. – Ela afagou minha mão e suspirei aliviada, sentando ereta
novamente.
​ Juiz estava perto de Pierre de novo. Acionou um botão que acendeu
O
a tela estranha à esquerda da sala. A nuvem em 3D começou a passar mais
um filme de semanas atrás.
​― Não o machuque, por favor! – Ouvi minha voz surgindo da tela e
imediatamente as lembranças junto com ela. Havi me obrigando a olhar para
Arthur, sendo castigado pelas crianças-demônio, enquanto Pietro se divertia
com a cena. – Ele pode morrer?
​Apertei os olhos, sentindo a agonia que vivi naquele momento. Pietro
usava algum artifício ou dom para machucar Arthur, que se contorcia junto às
pedras, beirando a inconsciência. Por curiosidade, olhei para ele, que estava
com os olhos fixos na tela.
​― Morrer? Sim, ele pode morrer. – Respondeu Pietro. Eu me
lembrava de ter tentado atacá-lo, mas a imagem não apareceu na nuvem. – É
difícil, mas não impossível. – Outro grito de dor saiu dos lábios de Arthur e a
imagem foi para ele. Estava se contorcendo, o rosto salpicado por seu sangue
e retorcido de dor. Quase gritei naquela sala para pararem as imagens. Pietro
continuou falando. – Mas, antes de morrer eles sentem dor, Suzaninha, m-u-
i-t-a dor. – Pietro enfatizou a palavra muita para ter certeza de que eu havia
entendido o recado, e eu entendi.
​― Pare, por favor!
​Apesar de ser um filme, eu estava agoniada no meu lugar, observando
as reações de Pierre àquelas imagens. Parecia que ele as estava vendo pela
primeira vez. Estava enojado e algumas vezes encarou Pietro num misto de
surpresa e ódio, que eu esperava não inflamar ainda mais. Não sabia ao certo
se esse tipo de raiva o mandaria para o Inferno junto comigo e Pietro.
​O anjo caído estava me olhando na tela, parecia ponderar uma
pergunta. Tinha um riso divertido no canto dos lábios, que sumiu quando o
meu eu na imagem o encarou.
​― Por quê? Você vai me dar o que eu quero?
​Por causa do meu silêncio ele mandou as crianças chutarem Arthur.
Os olhos dele estavam se apagando, como se estivesse a ponto de morrer.
Apertei as mãos na mesa, grunhindo. Victória segurou em meu pulso e falou
num tom firme, perto do meu ouvido.
​― Suzanna... Você está aqui, no Segundo Éden, aquilo já aconteceu,
já passou.
​― Desculpe... Foi tão... Horrível. – Afundei na cadeira.
​Aos soluços, minha imagem pedia que Pietro parasse de torturar
Arthur e ele se divertia com meu desespero. Observei-o colocar a mão no
bolso, mostrá-la vazia para Havi e, em seguida, fingir que iria jogar algo em
Pierre. Abri os lábios, surpreendida. Ele tinha me enganado, não havia nada
em sua mão que pudesse matar o meu anjo. Gemi frustrada, sentindo ainda
mais desprezo por Pietro. A cada audiência e a cada dia, eu conseguia
enxergar o quanto fui infantil e tola, caindo direitinho em suas armadilhas.
​Lutamos na grama. A névoa preta que vinha dele, de longe, parecia
com asas negras, penas grossas e brilhantes. Quis perguntar se eram mesmo
asas, mas Victória também estava atenta à tela, todos estavam.
​Pierre me olhou por um momento, surpreso com a minha tentativa
idiota de machucar Pietro. Pensei ter lido em seus lábios algo como “criança
tola”, mas preferi ignorar. Até o salvando, ele me desprezava agora. Suspirei
esperando as imagens sumirem e o Juiz retomar o julgamento.
​― Se apaixonou por ele, não foi, Suzanna?
​Meu estômago gelou ao ouvir aquela pergunta de novo e meus olhos
voaram na direção de Pierre; ele parecia pálido. Não vi o que acontecia na
imagem. Apenas Arthur, com as mãos ainda na frente do corpo, porém
apertadas, como se também se segurasse para assistir a cada cena.
​― Responda! – Exigiu Pietro.
​― Não importa! Solta ele! – Gritei de volta. Olhei na tela para ver o
quanto o olhar de Pietro estava irritado; as íris naquele tom vermelho sangue
dos meus pesadelos.
​― Responda ou eu juro que o mato.
​Cortaram a imagem e de repente eu estava ajoelhada diante de Pierre,
aos prantos. Ele sussurrava algo.
​― Vá embora, encontre ajuda e não volte para cá! E não acredite em
nada do que ele disser...
​― Nem que você a deixou sozinha quando seus pais morreram
porque é um anjo covardão? – Interrompeu Pietro. Ele estava acima de nós
na imagem, as asas negras, parecendo névoa, batendo fortes e impiedosas.
​― Saia daqui. – Arthur sentou, resmungando e tossindo. – Vá, corra!
​Mas não me movi, não queria deixá-lo sozinho, pois mesmo achando
que amava Pietro, não confiava nele.
​― Não vou te deixar sozinho. Eles vão te matar!
​― Vai logo, garota! – Arthur levantou, as asas estendidas, um dos
lados com penas esmagadas e ensanguentadas, o outro com penas escurecidas
e faltando. Eu não consegui tirar os olhos dele e me vi retrucando e me
levantando para ajudá-lo.
​― Não vou! Se sou filha de anjo, alguma utilidade eu tenho.
​Fiquei de costas para ele, seu semblante era de dor e confusão, ele
ergueu os olhos falando com Pietro.
​― Covarde não sou eu, irmão, e você sabe disso. Tire ela daqui e
acertamos nossa dívida.
​Protestei e logo a imagem sumiu para outra tomar seu lugar. Respirei
fundo, em dúvida sobre o que viria a seguir.
​― Não é possível que não tenha ninguém para nos ajudar, meu Deus!
– Eu sussurrava em lágrimas.
​Algo que eu não esperava surgiu diante de nós. A briga naquela
campina pareceu diminuta, a imagem correu e se expandiu, parecia a
quilômetros de distância. Anjos e demônios lutavam ferozmente entre si,
alguns caídos faziam uma barragem impedindo a passagem deles. Victória
estava entre eles, estava com o rosto todo ferido, o lábio sangrando e tinha
um demônio arrancando suas asas. Ela urrava de dor.
​― Não! – Sussurrei incrédula. Tanto ela quanto Pierre olharam para
mim.
​A tela escureceu e o Juiz voltou a falar, agora se direcionando a mim.
​― Você perguntou do socorro, eles estavam a caminho, mas você não
soube esperar, como veremos a seguir.
​Abri a boca para protestar, mas a imagem, juntamente com o som, me
calaram.
​― Deixe-o ir e eu vou com você.
​Pietro fez sinal para que o urubu e seus demônios fossem embora. Em
pouco tempo, eram apenas os três na imagem e Arthur se contorcendo ao
fundo.
​― Ele ficará bem, venha.
​― Prometa! – Ordenei.
​― Ele ficará bem, eu prometo, Suzanna.
​Arthur gritou, mas no dia eu não tinha conseguido escutar. As
imagens se mesclaram, ele e os anjos que lutavam aparecendo ao mesmo
tempo.
​Assim que Pietro prometeu, os demônios desapareceram, dando
passagem aos anjos que foram atrás de Pierre. Ele gritou com todas as forças
que ainda possuía: Atrás dela! Vão atrás dela!
​Mas, lembrava-me muito bem que ninguém foi atrás de mim, a não
ser Demétria, muito tempo depois.
​A tela escureceu e todos estavam apreensivos, me olhando. O Juiz
encarou Pierre.
​― Ficou claro que ela tentou protegê-lo?
​Franzi o cenho e encarei Victória, era uma das primeiras vezes que o
Juiz falava algo a meu favor. Pierre não se abalou.
​― Como ficou claro que ela não confiou em nós.
​Ele me encarou por um bom tempo, até que o Juiz o dispensou. Pierre
passou por mim, satisfeito em ter me feito parecer totalmente estúpida e
incrédula. O Juiz também estava satisfeito. Mergulhei na minha cadeira,
tentando em vão me fazer desaparecer do campo de visão de todos aqueles
anjos e demônios.
​― Senhor, posso observar algo? – Questionou Victória.
​― A testemunha foi dispensada. – Respondeu.
​― Apenas um comentário.
​Haddes levantou em protesto.
​― Se ela falar, que eu possa falar também.
​― Falem à vontade! – Ele abriu os braços e se sentou.
​― Creio que, na condição de criança e não adulto, a senhorita
Monteiro não tinha plena consciência de seus atos. Ela apenas tentou poupar
a vida de um anjo, colocando-se em sacrifício em seu lugar.
​― Sacrifício? – Sibilou Haddes, rindo. – Ora, sabemos que é pecado
comparar alguém a Ele! – Apontou para o trono. Ele estava sendo irônico. –
Ela só queria ficar sozinha com Pietro, para poderem dar uns amassos.
​― Protesto! – Ela gritou. – Ele está deturpando a imagem da Nefilin.
​― Aceito. Se não tem algo relevante a dizer, fique calado, Haddes. –
Cortou o Juiz. – Senhorita Monteiro, tem algo a dizer?
​Abri os lábios sem resposta alguma em minha cabeça. Eles tinham
razão, eu estava incrédula.
​― Vocês têm razão, eu não acreditei que alguém pudesse nos ajudar,
tanto que esta não foi a única vez que me questionei sobre o socorro. Eu não
sabia que havia demônios impedindo a ajuda de chegar até nós. – Sussurrei. –
Só achei estranho tantos demônios chegando e nenhum anjo. O Arthur ia
morrer!
​Houve silêncio. Pela iluminação da sala, eu sabia que estava perto da
hora do jantar e de dormirmos. O Juiz suspirou, parecia que acrescentaria
algo, porém não o fez.
​― Sessão encerrada, retornaremos amanhã às nove. Dispensados.
​Permaneci sentada, incapaz de me por em pé. Toquei o braço de
Victória, que me olhou estranhamente.
​― Desculpe-me, não sabia que machucaram você também. O bom é
que pararam de bater em vocês... – Sussurrei.
​― Suzanna, sempre acontecem lutas entre as potestades e nós; eles
constantemente atacam os humanos, anjos, qualquer um que esteja do nosso
lado, mas sempre vamos ao socorro, sempre.
​― Desculpe. – Murmurei mais uma vez.
​Ela me ajudou a levantar e, em seguida, fui escoltada para a minha
cela. Quando cheguei, vi que havia um novo guardião à porta, era Pierre.
Usava uma armadura de bronze sobre o peito e uma espada na bainha. Estava
de dar medo. Passei por ele de cabeça baixa e ouvi a tranca ser fechada duas
vezes.
​Não sei quanto tempo se passou depois que me banhei e vesti a
camiseta e o short que me deram alguns dias antes. Estava deitada de barriga
para cima, tentando entender tudo; ao mesmo tempo orando, pedindo a Deus
uma saída para a loucura que se tornou a minha vida, quando a porta foi
destrancada. Olhei na direção e vi Arthur colocar um prato de comida sobre a
mesa. Ele não me olhou, voltou para a porta e entrou novamente, agora com
suco. Eles nunca me davam suco.
​― Obrigada. – Sussurrei. Ele parou com o braço no ar depois de
soltar o copo na mesa. Por um segundo, achei que olharia para mim, mas, ao
invés disto, bateu a porta e a trancou.
​As lágrimas e os soluços se irromperam, tentei aplacar o som
afundando o rosto no travesseiro. Ele me odiava por deixá-lo sozinho e por
duvidar que mandariam o socorro. Tinha pedido para não cuidarem dele e
irem atrás de mim, mas apenas segundos depois soube que escolhi seguir
Pietro. Se tivesse aguentado mais um pouco, só um pouco, talvez ambos
estivéssemos a salvo e bem, agora.
​Cada vez que pensava nisso, as lágrimas se tornavam mais intensas e
os soluços altos, incontidos.
Capítulo 2

​ lguns dias se passaram e as coisas não se tornaram melhores para


A
mim. Estava na cela quando acordei sobressaltada, sentindo meu rosto
inchado por causa das lágrimas constantes; pelas sombras na cela, eram três
ou quatro da manhã. O céu estava iluminado pelo fato de que no Segundo
Éden sempre era dia, porém pairava no ar o cheiro fresco das madrugadas,
fazendo-me sentir quase em casa.
​Levantei, lavei meu rosto e andei na ponta dos pés até a porta,
espiando por uma fresta o guardião que me vigiava. Ele estava de costas,
observando a rua que estava vazia e, por sua silhueta e postura, eu sabia que
era Pierre quem estava ali. Suspirei e olhei para a comida mais uma vez
intacta sobre a mesa. O suco, o que se tornou uma constante, também. Bebi
apenas o líquido, lembrando-me das uvas que ele me deu a algumas semanas
e senti vontade de gritar.
​Ao tentar devolver o copo à mesa, ele escapou, caindo no chão. O
vidro se espatifou, espalhando o líquido por todo o piso branco. Reclamei
alto ao sentir um caco entrar no meu pé. Dando pulinhos entrei no banheiro,
arranquei o vidro e pressionei o corte com a toalha de rosto, gemendo de dor
e esperando estancar. Continuava chorando, pois, todas as vezes que tentava
parar, as lágrimas se tornavam mais intensas e dolorosas.
​― Burra! – Falei para mim mesma com a boca no joelho, observando
se o corte tinha parado de sangrar.
​― O que houve? – A voz de Pierre arrepiou meu corpo inteiro. Estava
sem emoção alguma e com seu olhar duro sobre mim. Meu coração saltou de
surpresa.
​― Derrubei o copo. – Expliquei. Quando ele viu o sangue,
imediatamente ajoelhou ao meu lado, afastando a espada do meu campo de
visão. Ele tirou a toalha e viu como estava profundo. Tornou a pressionar a
toalha e se levantou. – Aiii! – Reclamei.
​Ignorando a reclamação, ele me pegou no colo e me colocou na cama.
​― Não pise no chão, já volto.
​Minutos depois que saiu, uma menina limpou o chão tirando os cacos
de vidro e colocou novas toalhas no banheiro. Agradeci. Assim que ela viu
Pierre na porta, saiu silenciosa sem olhar para mim.
​ le puxou a cadeira e colocou meu pé sobre sua perna, abriu um kit de
E
primeiros socorros sobre a mesa e começou a limpar o machucado, me
olhando torto todas as vezes em que tentei puxar o pé ou reclamei por causa
da dor. Ao fim, senti um calor no corte e sabia que ele usava seus dons de
cura para cicatrizar o machucado. Acho que não quis admitir que usou seus
dons para me curar, por isso cobriu o corte com gaze e esparadrapo.
​Tentei não me iludir por ele cuidar de mim e agradeci depois por ter
me concentrado em não ser boba, pois, antes de ele sair, recebi um balde de
água gelada.
​― Cuidado com a louça da próxima vez. – Falou, trancando a porta
atrás de si. – E coma o que lhe é oferecido. – Falou, indo embora a passos
duros, deixando outro guardião em seu lugar.
​As horas demoraram a passar. Tentei não chorar mais e nem pisar no
chão. Também não conseguia dormir, mesmo rolando na cama de um lado
para o outro, à procura de uma posição que me fizesse sentir confortável o
suficiente para, pelo menos, tirar um cochilo.
​Ouvia as pessoas passeando do lado de fora. Mal sabiam que logo a
frente havia um prisioneiro, ou melhor, um demônio em julgamento que
talvez, em pouco tempo, fosse treinado para matá-las.
​Arrumei-me, tentando ignorar todas as vezes em que imaginei
tornando-me um demônio. Esperava continuar com a mesma aparência que
tenho; não queria um rabo, orelhas pontudas ou uma língua de serpente, pois,
mesmo que tivesse de fazer coisas ruins, preferia parecer comigo mesma.
Talvez, também quisesse me punir ao desejar uma coisa assim…
​Soltei um longo suspiro, voltando ao meu lugar.
​Estava já há algum tempo vestida, olhando para o teto – munida de
sandálias abertas para não ferir o machucado – quando finalmente ouvi
passos. Os homens se cumprimentaram e a chave foi colocada no trinco; após
dois giros, abriram a porta lentamente. Antes que pudesse me preparar, senti
a presença de Pierre. Encaramo-nos por alguns segundos, mas ele logo
desviou o olhar para o quarto, analisando alguma coisa, e saiu sem dizer uma
única palavra, deixando a porta aberta.
​― Começou de novo. – Sussurrei para mim mesma, pegando um copo
de água e bebendo lentamente para parar de tremer um pouco.
​Ao menos por três vezes o vi tão próximo; a primeira foi quando ele
próprio me trouxe para essa cela, a segunda quando cuidou de mim durante a
madrugada e agora, quando veio analisar meu quarto. Só não sei se estava
esperando ver um rabo pontudo e chifres na minha cabeça. Já sentia meus
olhos ardendo de novo quando ele irrompeu pela porta aberta e me puxou
pelo braço, impaciente.
​― Ei, não precisa me puxar!
​― Estou esperando há minutos, Nefilin. – Cuspiu a palavra como se
tivesse nojo de se dirigir a mim.
​Fingi não me abalar, andando alguns passos à frente dele e do outro
guardião.
​O nome do segundo é Noan; eu achava que era Nolan, mas ele mesmo
me corrigiu alguns dias atrás, quando agradeci pelo almoço. É moreno, alto e
forte, não pude ver muito porque não tenho coragem de encarar os anjos
neste lugar. Sinto como se fizesse algo errado e quase sempre o olhar de
Pierre está sobre mim, me reprovando. Confesso que preferia a distância que
ele estava mantendo antes. Sentir ele tão perto e saber que, na verdade, há um
abismo entre nós me deixa com o coração em pedaços.
​As ruas estavam um pouco vazias, mas os poucos anjos que
circulavam notavam a minha presença e percebi muitos deles me olhando
chateados. Talvez, todos saibam realmente o motivo de eu estar aqui desta
vez e que não sou bem-vinda neste lugar tão lindo.
​As casas, as ruas, as decorações, tudo lembra uma cidade comum,
com exceção da limpeza e brancura exageradas. A sala do Juízo fica em uma
casa térrea, à frente um enorme salão com quatro entradas, portas grandes em
cada extremidade. Sei que existem salas menores, mas nunca fui além do
salão principal para conhecer o local.
​Pierre me conduziu pelo braço, enquanto com o outro abria as portas
que ficavam para a rua onde estamos; são brancas e altas, provavelmente
medem mais de dois metros de altura, pois Arthur parecia menor ao passar
por elas. Noan ficou na entrada me observando tomar o lugar na tribuna.
​O anjo nem se despediu! Soltou-me na cadeira bruscamente e se
afastou. Ignorei seu gesto, desviando minha atenção para observar o local,
como faço todas as manhãs enquanto espero. Assim, não ficaria novamente
chorando por mais alguma atitude rude de Pierre.
​O Juiz estava aguardando nossa chegada, pois mal sentei, ele já estava
de pé, encarando-me com um ar não muito amigável. Após todos se
acomodarem, ele começou a falar.
​― Hoje será o último dia de interrogatório, depois farei um pequeno
recesso e darei o veredicto. – Ele olhou para mim com olhos de raposa. –
Diga-nos, Suzanna, quando Pierre lhe disse para não se deixar levar por seus
hormônios, você achou que ele estava lhe protegendo ou apenas com ciúmes?
​Fiquei rígida, algo me dizia que a resposta poderia colocar Arthur em
julgamento e não somente a mim. Olhei para Victória, que assentiu para que
me direcionasse ao Juiz e respondesse, mas não havia outra resposta a dar, a
não ser a verdade. Levantei com as mãos comportadamente na lateral do meu
corpo e respirei fundo para a voz não sair trêmula.
​― De início, não prestei atenção ao alerta, mas, quando me vi sendo
induzida por Pietro, entendi que era uma forma de me alertar para que não
caísse em uma armadilha. E ele estava certo. – Acrescentei no final.
​Continuei em pé, pois o Juiz não havia me liberado. Ele olhou além de
mim e eu tinha certeza que encarava Arthur; saber que ele estava bem atrás
de mim, a poucos metros de distância, fez meus olhos se encherem d’água.
Era horrível ter conhecimento de que agora ele me odiava de verdade e não
era apenas uma ceninha para se aproximar, como foi na escola.
​O Juiz continuou encarando além de mim, parecia se comunicar com
alguém e eu tinha quase certeza que era mesmo com Arthur. Foi Victória que
quebrou o silêncio.
​― Desculpe-me senhor, mas não há permissão para conversas
telepáticas dentro da sala do Juízo.
​O homem concordou, coçou a barba esbranquiçada e sorriu para nós
duas. Andou parecendo um advogado experiente até uma mesinha embaixo
da nuvem 3D e uma imagem daquele dia apareceu. Sabia o que viria. Pietro
avançando o sinal, perguntando se eu queria fazer amor com ele, pouco
tempo depois suas mãos percorrendo meu corpo com ousadia e meus suspiros
agitados por estar gostando de cada toque.
​Olhava para mim mesma naquele telão e só conseguia sentir nojo e
uma tristeza tão profunda, que precisei morder a parte de dentro da bochecha
para me manter calma diante de todos. Victória pareceu notar, manteve-se em
pé e com uma das mãos segurou meus dedos. Não retribui o aperto, tinha
medo de acusarem-na de algo se percebessem o quanto eu estava me ligando
a ela. Era a mãe que perdi cedo demais.
​A cena terminou comigo me levantando e descendo todas as escadas
da casa de Pietro para voltar à minha própria casa. Uma situação nova surgiu.
Quando sai deixando-o no quarto, Pietro balançou a cabeça revoltado e
quebrou o baú onde estava meu ursinho Toddy, balbuciou algo que não
entendi direito e reclamei comigo mesma por isto.
​ Senhor, pode voltar até a saída de Suzanna do quarto? – Pediu

Sophia, como se lesse meus pensamentos.
​O anjo olhou para Sophia e assentiu uma única vez. Haddes se
levantou, protestando.
​― Já viram tudo. Se não prestaram atenção, paciência. – Ele era rude
e não tinha a postura formal que a maioria dos que falam possuía.
​O Juiz lançou um olhar acusador a Haddes, que se sentou
rapidamente, resmungando. Em segundos, a cena estava passando
novamente. Eu recordando do que Arthur me falou, enquanto Pietro estava
distraído com o barulho que ouvimos; em seguida, me vesti e sai do quarto.
Conforme eu descia as escadas, a imagem voltou ao quarto, Pierre estava
nele, com um sorriso debochado e encarando Pietro.
​― O que você fez? Você sabe que não pode persuadir as escolhas
dela, Pierre! – Gritou irritado.
​― Não persuadi, apenas abri sua mente. Lembre-se, meu irmão, a
verdade liberta. – E saiu.
​A verdade vos libertará era uma citação bíblica e eu me lembrava
muito bem disso. Pietro se irritou ainda mais, a íris ficando vermelha
enquanto quebrava o baú.
​― A verdade liberta. – Desdenhou. – Ele vai sentir cada palavra.
​A tela escureceu novamente e o homem olhou para Sophia, que
agradeceu com um aceno. Todos os anjos do lado do Céu se vestiam de
branco e eu também, pois estava hospedada – se é que pode chamar uma cela
de hospedagem – com eles. Os demônios e anjos caídos vestiam-se como
humanos comuns, Haddes estava impecável em um terno azul-marinho.
Acreditei seriamente que a cor havia sido uma escolha proposital, para
demonstrar desdém pelo Céu.
​O silêncio permaneceu por alguns minutos, então o Juiz nos mandou
sentar, voltou à sua mesa onde fez anotações. Ao erguer os olhos, encarou
alguém atrás de mim. Como Victória e Sophia discutiam algo muito baixo,
acompanhei o olhar do senhor barbudo e encontrei o de Pierre. Meu coração
saltou e senti o ímpeto de correr até lá e abraçá-lo, porém a postura dele foi
fundamental para que me mantivesse no lugar.
​Notei que percebeu minha movimentação, pois seus ombros ficaram
tensos e seu olhar arregalado, como quem se esforça para não encarar.
Mantinha o maxilar trincado e fazia sinais com a cabeça como quem
concorda com algo. Estava lindo, todo de branco, a camisa com três botões
abertos no peito deixando aquela pele branca à vista, mais uma vez. Ele usava
sua velha forma, a do professor que eu já tinha acostumado a ver, e seus
cabelos estavam mais compridos e escuros. Suas mãos dentro dos bolsos,
porém, me permitiam perceber que estavam em forma de punho. Ele, com
certeza, estava irritado.
​Voltei a olhar o Juiz. Antes que alguém percebesse que me movi, o
homem mexia os lábios muito levemente, tinha certeza agora que estava
conversando com Pierre. Cutuquei Victória e deixei que ouvisse minha
mente.
​O Juiz e Pierre estão conversando. Falei e logo tratei de fechar meus
pensamentos para qualquer um. Ela assentiu e se levantou, fazendo um sinal
discreto para se aproximar do homem.
​Eles discutiram, mas não ouvi nada. Quando ela voltou à mesa, tinha
um sorriso sincero nos lábios, algo me dizia que as coisas poderiam mudar.
Esperava que sim, só queria voltar para casa, ver meus avós, a Bruna, Maria e
até a minha mantinha que ficou no armário. Ao sentar, acariciou meu joelho,
voltando a conversar com Sophia.
​A sala do Juízo era muito arejada, possibilitando-nos saber quando era
hora do almoço ou de qualquer outro recesso, pois o sol ficava mais forte,
atingindo a tela que parecia feita de nuvem. Já estava me acostumando à
rotina, por isso soube que o Juiz nos dispensaria.
​― Recesso para o almoço. Suzanna, Sophia e Victória, aguardem,
pois quero falar com vocês.
​Senti um frio na boca do estômago, mas não fraquejei. Olhei de
relance na direção dos anjos e vi que Pierre continuava sentado, sozinho,
como que aguardando alguma coisa. Nossos olhos se cruzaram e sustentamos
o olhar do outro, ambos sem expressar emoção alguma; porém, fui eu que
desisti primeiro ou começaria a chorar. Ficar nesse lugar tem me deixado
sensível demais.
​Notei pelo reflexo no canto do meu olho que ele foi o último a sair da
sala, pelas portas grandes à direita.
​― Senhoras, preciso lhes falar informalmente, posso?
​Ele puxou uma cadeira e sentou-se do outro lado da bancada. Olhei
para os olhos dele, notando que eram extremamente azuis, a íris se
expandindo conforme esperava nossa resposta. Eu concordei e elas seguiram
o mesmo gesto.
​― Sim, Paulo, fique à vontade. – Encorajou Victória.
​ ravei rapidamente o nome do anjo. Foi fácil, pois me lembrou
G
imediatamente o apóstolo que substituiu Judas. Sorri intimidada. Se tivesse
metade da inteligência do romeno, certamente estaria encrencada, porque, se
meus atos pela paixão infantil que tive por Pietro forem minha sentença, já
estou condenada ao Inferno, sem chances de perdão.
​― Quero abrir uma exceção e deixar que a menina fique hospedada
com você. Aquela cela não foi feita para uma criança. Você concorda,
Victória?
​Victória pareceu mais surpresa do que eu com a informação. Comecei
a balançar a cabeça, pois não queria ninguém inventando que ela me preparou
para as respostas ou me ajudou demais e que fosse prejudicada, mas ela
aceitou apesar dos meus protestos.
​― Acho justo e correto.
​― Então está feito, e que ninguém descumpra minha ordem.
​Quando falou mais alto, notei que o advogado de acusação ainda
estava lá. Não sei se propositalmente, mas sorri, pois Haddes não gostou
nenhum pouco da informação e saiu batendo a porta do outro lado da sala.
Uma faísca alaranjada o engoliu antes de se fechar, meu corpo todo se
arrepiou de medo.
​― Obrigada. – Sussurrei, voltando o olhar para o Juiz Paulo. – Aquela
é a saída para o Inferno? – Assim que perguntei tapei meus lábios, me
assustando, pois não devia falar nada além do permitido.
​― Sim, para os demônios e os caídos. – Respondeu, levantando-se.
Ele sorriu, o que era muito estranho, e sumiu atrás do telão.
​― O que eu fiz para merecer essa benção? – Perguntei, sentindo as
lágrimas que segurei o tempo todo deslizarem por meu rosto.
​Victória me abraçou estendendo um lenço, já acostumada a me ver
desabar a cada fim de sessão. Enxuguei meu rosto antes de chegarmos à
saída.
​Não era tratada como um réu da Terra, sendo algemada e levada à
cela por um meirinho, mas era acompanhada por Victória e Sophia até à cela
e depois trancada lá dentro; ou, em outras vezes, por algum sentinela. Hoje,
porém, seguimos outro caminho, um que me lembrava vagamente o dia em
que ela me acolheu para um banho e me alimentou quando os visitei pela
primeira vez.
​Ninguém falava nada, pois acredito que também não sabiam o que
dizer. Meu corpo estava quase recuperado dos machucados que sofri durante
os vários dias que fiquei afastada do mundo, sendo levada para cima e para
baixo por Pietro ou Pierre, mas ainda sentia muitas dores nas costelas, o que
me obrigava a andar mais devagar do que elas.
​― Venha. – Victória tocou minhas costas, fazendo-me acompanhar o
ritmo delas, forcei minhas pernas e não reclamei das dores.
​Elas ficaram uma de cada lado, amparando-me e conversando entre si.
​― Por que acha que ele fez isso? – Questionou Sophia.
​― Algo naquela imagem. – Sussurrou Victória. Ela parou de andar e
mandou que continuássemos. Quando olhei, notei Pierre aguardando-a de
braços cruzados na esquina.
​Sophia me fez entrar com ela na casa, mas permitiu que espiasse
através da cortina. Ele apontava para a casa incessantemente, seu rosto estava
vermelho, os lábios franzidos enquanto brigava com Victória. Percebi meu
nome pronunciado por seus lábios algumas vezes e meu coração ficou ainda
menor. Pelo que entendi da discussão, ele não queria que eu ficasse
hospedada aqui, provavelmente preferindo que ficasse sozinha naquela cela,
comendo a ração que me preparavam todos os dias, definhando de tristeza.
​Afastei-me da janela evitando as lágrimas, sentei em silêncio ao lado
de Sophia, aguardando alguma orientação ou o retorno de Victória. Ela não
demorou muito, mas não falou nada sobre o ocorrido com Pierre e me
controlei para não perguntar.
​― Vamos preparar o almoço juntas, Suzanna? – Perguntou com um
sorriso tão amoroso que me fez sorrir também.
​― Claro! O que posso fazer?
​Sophia nos beijou no rosto se despedindo quando me levantei para
ajudar na cozinha.
​― Encontro vocês na sala do Juízo. – Disse e saiu.
​― Achei que ela almoçaria conosco.
​Victória negou, fazendo-me segui-la até a cozinha; era bom fazer algo
diferente do que me sentar na cama, esperar o almoço que me levavam e
aguardar o horário de retornar.
​― Ela foi almoçar com o namorado. – Comentou.
​Arregalei os olhos, levando a mão ao coração, totalmente surpresa.
​― Vocês podem namorar? Não é... Pecado? – Sussurrei a última
palavra com medo de ser ouvida.
​― Ah não, anjos podem namorar entre si, nos casamos e temos filhos
que se tornam anjos. A prática só não é muito comum porque temos outras
prioridades, muitos deveres que tomam tempo.
​― Nefilins e anjos podem... ficar juntos? – Perguntei já sabendo a
resposta, ou não estaria na situação de agora.
​― É permitido, porém com ressalvas, depois que o Nefilin escolheu
seu lado.
​A resposta me pegou desprevenida e comecei a chorar de novo, sentei
na cadeira da cozinha me sentindo burra.
​― Então... Se eu tivesse escolhido o Céu e não o Inferno sem querer,
poderia namorar o A... – Mordi o lábio antes de dizer.
​― Sim e não. Ele não pode ter contato íntimo com um humano.
​― Mas, você disse...
​― Você teria de fazer uma escolha. Deixar a Terra e se tornar parte
do Céu enquanto é um Nefilin com vida. Deixar de ter contato com seus
amigos, familiares, qualquer ser humano que a conheça, tornar-se um de nós
literalmente.
​― Mas, por que ele agia como se estivéssemos errados, antes...
Antes... Não consigo falar. – Sussurrei.
​― Por que você ainda é humana, Suzanna, não é permitido.
​Ela estava de costas, colocando água em uma panela, eu não sei se
falou isso para me consolar ou para dar uma informação, pois até aquela frase
ser dita, acreditava piamente que já era um demônio. Pensei nas ressalvas,
mas acreditei serem o fato de precisar deixar toda a minha família para trás e
não a questionei.
​Victória percebeu meu silêncio e me encarou interrogativa, apenas
sorri com uma ponta de esperança que começava a aumentar dentro de mim.
Esperava realmente que pudesse reverter as coisas e, ao menos, tornar-me
parte do Céu, mesmo que jamais recuperasse a amizade ou o que quer que
fosse com Arthur.
​Levantei disfarçando meus pensamentos, peguei a polpa de tomate e
me distrai fazendo o molho para o macarrão, pois era uma das únicas coisas
que eu cozinhava muito bem sem precisar de auxílio. Victória se concentrou
no espaguete e, depois, ambas fizemos frango frito, tentando desviar das
bolhas de óleo quente que estouravam sem parar.
Almoçamos e conversamos muito durante a uma hora e meia que nos
deram de recesso. Não falamos do julgamento e evitamos tocar no nome de
Pietro ou Pierre. Ela apenas contava algumas situações divertidas que viveu
durante os séculos de aulas na Academia dos Anjos.
― Uma vez pedi para uma das minhas alunas fingir ser um demônio
para uma demonstração, a imagem foi tão perfeita que quase a mataram
realmente. Precisei defendê-la e mandar que desfizesse a imagem para que
acalmasse a turma, que nem tinha percebido que ela não estava entre eles.
Ensinei a percepção, a notarem além das aparências. Muitos aprenderam, mas
outros ainda são enganados facilmente, infelizmente.
― Entendo, não é fácil perceber quando alguém que parece perfeito
está mentindo.
Referia-me a Pietro e ela entendeu bem, porém era excelente em se
desviar dos assuntos. Estávamos terminando de arrumar o quarto onde ela me
hospedaria quando fomos chamadas. Soltei um suspiro cansado, prendi
novamente meus cabelos em uma trança, pois era a única forma dele ficar
comportado e retornamos. O silêncio voltando a nos fazer companhia.
​Sentei na cadeira central desta vez, tendo Sophia ao meu lado
esquerdo e Victória no direito. Pareciam ter programado algo para aquela
tarde. Aos poucos, o salão estava cheio novamente. Não vi quando a porta
dos demônios se abriu, mas o alvoroço ao meu lado esquerdo me alertou para
a chegada deles.
​Enquanto nada acontecia e esperávamos o Sr. Paulo, encostei o
cotovelo na mesa apoiando meu rosto na mão e olhei discretamente para eles,
tentando encontrar Pietro. Ainda tinha a percepção da presença deles e, por
isto, sabia que Pierre não estava no recinto.
​Respirei pausadamente quando os olhos rubros encontraram os meus.
Ele sorria divertido, mas para mim era claro seu incômodo. Quis perguntar se
estava arrependido, mas não podia e também não tinha vontade. Se ele fosse
honesto e o rapaz apaixonado que se apresentou na minha casa, eu não estaria
passando por nada disso. Se meus pais não tivessem me afastado de Pierre,
provavelmente não faria as escolhas erradas e nem seria enganada como fui,
mas eram águas passadas.
​O Juiz entrou na sala e Victória tocou meu braço para que ficasse em
pé. A sessão me lembrava muito os julgamentos que assisti em filmes e séries
de TV, com exceção da televisão em 3D, mostrando a todos cada segundo
íntimo e vergonhoso da minha curta vida.
​― Podem se acomodar. – Disse ele, mas não se sentou. Andou na
direção da mesa de Haddes, que estava vazia. – Onde está o acusador?
​A voz era tão familiar que meu estômago gelou ao ouvir Pietro.
​― Vou substituí-lo hoje, senhor. Houve um imprevisto em nossa...
Casa. – O tom dele me fez ter certeza que sorria irônico.
​Qual seria o propósito dessa mudança? Pietro conhecia todos os meus
passos e poderia facilmente manipular as informações para que parecesse
mais culpada do que já me sinto. Olhei para Sophia e Victória
alternadamente, sentindo meu corpo amolecendo na cadeira.
​― Fique calma. – Sussurrou uma delas, não distingui qual, apenas
apertei a mão na borda da mesa, me segurando. Sentir Pierre chegando
também não ajudou a me deixar calma.
​― Mudanças devem ser informadas com antecedência, Pietro. –
Respondeu Paulo. – A mesa ficará sem acusação esta tarde. – Deu-lhe as
costas, retornando ao seu lugar.
​Algo naquela situação me fez ter certeza de que ganhei algum ponto
com o Juiz, ou estava muito enganada novamente e eles queriam fazer-me
sentir segura para vir a cometer erros.
​Houve um novo alvoroço. Quando olhei, Pietro se sentava na cadeira
onde Haddes e o outro demônio ficavam todos os dias. O Juiz notou, ao
mesmo tempo que eu, e tive muito medo do olhar que ele lançou ao caído.
​― Não é porque nos conhecemos que lhe tratarei melhor, Pietro.
Volte ao seu lugar.
​― Meu pai, não quero honra nenhuma, apenas que leia nos altos que
já consto como substituto no caso de necessidade.
​Pai?!
Capítulo 3

​ ictória suspirou ao meu lado e apertou meu joelho carinhosamente,


V
enquanto Sophia folheava alguns papéis e sussurrava que ele estava certo.
Perguntei-me se elas também possuíam substitutos e quem seriam. Se fosse
Pierre, eu seria jogada daqui de cima direto para o Inferno em dois segundos.
​O senhor Paulo também folheou alguns papéis e soltou um longo
suspiro, fazendo um sinal de que Pietro poderia continuar ali. O sorriso do
anjo caído era vitorioso, dava impressão que queria mostrar esperteza ao pai e
não apenas me prejudicar. Queria saber como era possível um anjo chamar
outro anjo de pai, pois sempre imaginei que só podiam chamar a Deus de Pai.
A pergunta, porém não poderia ser feita, nenhuma delas, não durante o
julgamento.
​― Para iniciarmos, temos algumas perguntas rápidas para a senhorita
Suzanna. Fique de pé. – Pediu e rapidamente me levantei, encarando-o. – O
que se lembra de seu pai?
​― Referente a quê, senhor? Aparência?
​― Não, vou conduzi-la. – Disse impaciente. – Alguma vez ele se
referiu a sua condição de Nefilin com você ou sua mãe?
​Neguei lentamente, mas depois me lembrei da noite do acidente e o
encarei de novo.
​― Acho que sim. Eu me lembro da minha mãe perguntando quando
ele descobriu e meu pai respondeu que foi quando completou dezoito anos,
mas ela não falou exatamente “como você descobriu que era Nefilin”, apenas
perguntou como ele descobriu. Foi a única menção a algo parecido que eu
ouvi.
​― Lembra a data?
​Lembrava perfeitamente, respirei fundo piscando para não derrubar
nenhuma lágrima.
​― Cinco de dezembro de dois mil e três. – Respondi, quase nove anos
desde que eles me deixaram.
​O homem apertou os olhos, estranhando a minha certeza.
​― Andou estudando suas respostas, Suzanna?
​― Não senhor.
​― E como tem certeza que a data está correta?
​ Porque é uma data muito marcante para mim. É o dia da morte dos

meus pais. – Respondi sem me deixar abalar.
​O rosto dele ficou neutro, mas notei a percepção passar por seus
olhos. Ele assentiu e voltou para a mesa dele.
​― Correto. Pode se sentar.
​Respirei fundo algumas vezes até me acalmar.
​Paulo me lotava de perguntas, as quais eu respondia e era contestada;
não tinha mais noção do que me perguntariam, para mim já tinha respondido
mais de uma vez as mesmas questões.
​Victória folheava mais algumas folhas quando Pietro se levantou
pedindo para falar comigo. O senhor Paulo o fuzilou com o olhar por um
segundo e, logo, seus olhos estavam no tom azul calmo que ele manteve
todos esses dias. Pietro esperou a aprovação e então se levantou, vindo até a
frente da mesa onde estávamos.
​― Boa tarde, Suzanna. – Iniciou. Minha garganta ficou seca e não
respondi, permaneci com os olhos fixos nele, confrontando-o. – Diga-nos,
por favor, quando demos o nosso primeiro beijo na árvore do jardim dos
Santos, que, apenas como uma ressalva, ela invadia todas as noites sem
permissão dos donos da Mansão. O que eu lhe disse, antes do ato?
​Apertei meus punhos e meus lábios, decidindo naquele momento ir
para o Inferno, porque literalmente gostaria de matá-lo. Além de ter
manipulado meus atos, usou algo que nunca fiz por maldade para piorar as
acusações contra mim.
​Não sei como consegui me controlar, porém não me recordava da
resposta e demorei um pouco a me pronunciar.
​― É impressão minha ou a senhorita não se lembra? – Continuou
desdenhoso, mas com uma postura formal que me deixou um pouco mais
irritadiça. Sabia que ele estava tramando algo.
​― Infelizmente não me recordo, mas tenho certeza de que deseja
refrescar minha memória. – Alfinetei.
​Sophia me cutucou e vi em seus olhos que a resposta não seria boa
para mim. Quando olhei de volta para Pietro, ele sorria, voltando-se para a
projeção.
​Parecia muito nova naquelas imagens, sentia como se tivessem
ocorrido há meses e não dias atrás. Estava apreensiva na tela e o frio que
sentia na barriga naquela madrugada, eu senti novamente revivendo aquilo.
Comecei a me lembrar da provocação, como ele me tocou, como me virou
para ele, como foi sentir um homem intimamente pela primeira vez e, de
repente, entendi o que ele queria mostrar. Deitei a cabeça na mesa, fechando
meus olhos e me segurando para não gritar de raiva. As vozes do telão
começaram em seguida.
― Você é pura, Suzanna, não posso te tirar isso. Não me é permitido.
– Ele dizia.
​― Pietro, não vamos fazer aquilo! – Minha voz saia nervosa,
exatamente como me sentia agora.
​― Não estou falando nisso, Suzaninha. – Notei agora, ouvindo
novamente, como ele parecia falso ao me chamar de Suzaninha. Ergui meus
olhos para a tela, no ponto de o ver invadindo minha blusa, tocando minha
pele. Um arrepio passou por meu corpo ao olhar.
​― E do que está falando?
​― Não posso dar seu primeiro beijo. – Anunciou. Seus olhos estavam
fechados, porém havia um sorriso estranho naqueles lábios. Como não havia
notado antes? Como?
​― Por que não? Eu quero... Você não gosta de mim, é isso?
​Pietro gemeu, desviou os olhos dos meus e me lembro de tê-lo sentido
pela primeira vez. O olhar constrangido dele me deixou enojada.
​― Me desculpe...
​Ele tentava se desvencilhar de mim, mas como uma menina boba, o
provoquei. Tinha começado tudo exatamente como ele havia alertado na
praia: ele provocava e sua vítima devia dar o primeiro passo, o que eu
gentilmente fiz de muito bom grado. Olhei desolada para a tela; aquela
certamente era a minha sentença final. Quase me levantei pedindo para
pararem com a tortura, para me enviarem ao Inferno, como queriam desde
que cheguei, mas Victória segurou minha mão e me olhou duramente, não sei
se pelas cenas, mas fiquei quieta no lugar.
​― Suzanna!
​― Beije-me! Por favor...
​Então, tudo escureceu. Pietro me olhava com ar vitorioso. Antes de
falar alguma coisa, o Juiz se levantou.
​― Sente-se. Eu assumo daqui.
​Acredito que Pietro não gostou da ordem, pois perdeu o ar debochado
que carregava. Sentou olhando fixamente para a frente.
​― Sim, senhor. – Resmungou depois de sentado.
​― Muito bem, Suzanna. Ele realmente lhe alertou sobre não poder
beijá-la e a senhorita pediu que o fizesse. Por que não ouviu o alerta?
​― Posso perguntar algo antes? – Questionei temerosa.
​― Já perguntou, agora responda.
​Mordi a boca com raiva, entendendo de onde Pietro herdou toda
aquela arrogância. Respirei bem fundo antes de responder.
​― Honestamente, porque eu queria muito dar o meu primeiro beijo,
senhor, e não pensei que o alerta que ele deu fosse referente à minha alma e
não a um simples primeiro beijo.
​Ele assentiu, andou até a mesa de Pietro e, para surpresa de todos, o
questionou.
​― E por que o senhor não podia lhe dar seu primeiro beijo, Pietro?
​Olhei na direção dele para ouvir a resposta, mas um tumulto atrás de
mim desviou a atenção de todos para os anjos. Pierre havia se levantado,
jogou algo sobre a pequena mesa à frente deles e saiu pela porta, deixando
todos perplexos. Victória encontrou meu olhar e tinha o mesmo ar
interrogativo que a maioria de nós.
​― E então, Pietro? – O Juiz continuou, ignorando o barulho.
​Voltei a olhar Pietro, curiosa com a resposta. Ele riu, jogando a
cabeça para trás e se virou para mim.
​― Por que eu e ele tínhamos um acordo. – Apontou para onde antes
estava Pierre. – Não poderíamos tocá-la, a não ser que ela pedisse claramente.
Foi claro para vocês?
​Não consegui me controlar. Em um segundo, estava sentada atrás da
mesa, no seguinte tinha pulado por cima dela e avançado sobre Pietro. Estava
com tanta raiva que o agarrei pela camisa e comecei a socá-lo. Nem sabia
como socar alguém, mas meu punho ia na direção de seu peito, rosto, ombros
e ouvia minha própria voz ecoar aos berros pela sala do Juízo.
​― Você é um covarde! Um manipulador, isso é o que você é! Não
merece metade do que um dia senti por você! – Antes de um palavrão
escapar, fui puxada pela cintura. O aperto era firme, mas mesmo assim
continuei socando o ar com braços e pernas. Só me acalmei quando vi que ele
estava sério, abatido, me olhando. – Fingido! – Gritei antes de me carregarem
para fora da sala.
​― Calada.
​A voz masculina foi dura. Havia me pendurado em seu ombro como
um saco de farinha e me carregava entre as pessoas que nem se importavam
com a cena. Não reclamei, afinal tinha quase certeza de que acabei com todas
as minhas chances de ser declarada inocente. Deixei os soluços escaparem até
não haver mais forças em meus pulmões para chorar. O caminho parecia não
ter fim.
​Ao chegarmos, o homem abriu a porta da minha antiga cela e me
jogou na cama. Encolhi-me, tentando limpar o rosto com a barra do vestido,
mas, antes de poder enxergar quem me tirou de lá, ouvi a porta ser trancada.
Estava sozinha e de volta ao meu cárcere.
​Recolhi minhas pernas, abraçando-as, e voltei a chorar copiosamente,
escondendo o rosto entre os joelhos. O que seria da minha vida se eu tivesse
de seguir Pietro? Talvez, houvesse alguma utilidade em ser um demônio
como Havi. Não seria pecado odiar tanto o anjo que tinha me roubado a
inocência. Rugi baixo, mordendo meu braço para tentar conter o jorro de
emoções que brotaram de uma só vez, todas as perdas que vivi nas últimas
semanas. O lugar já me parece a antecedência do Inferno!
​A raiva nítida que Arthur tem de mim... Eu não tinha mais nada, nem
a esperança de rever os que continuam vivos, como vovô e vovó.
​― Não se machuque. – A voz do homem que me carregou soou baixa
no cômodo.
​Fiquei imóvel com medo de olhar. Estava tão concentrada na minha
própria dor que não percebi quem era antes e que continuava dentro do
quarto. Ergui os olhos lentamente e enxuguei o rosto, mas ainda assim não
conseguia enxergá-lo.
​O homem deslizou a mão pelo meu quadril, me puxando com
facilidade para junto dele, forcei meu corpo para trás, pois não queria novas
acusações e temia o que ele pretendia comigo. Conviver com a indiferença de
Arthur e com a distância que impôs era mais fácil do que estar assim tão
perto, sabendo que me odiava.
​Ele suspirou, levantando-se da cama. Limpei o rosto de novo e vi que
estava junto da porta, colocando a chave para destrancá-la. O clique da
primeira volta me deu coragem de falar.
​― Não... Sai.
​Arthur parou com a mão na chave, soltou-a e se virou para mim.
Encaramo-nos por alguns segundos e quase implorei para ele voltar para a
cama, voltar a me tocar.
​― Por que bateu nele? – Perguntou imóvel.
​Abri a boca, mas a resposta não vinha até meus lábios. Estava
paralisada, com medo de falar a verdade e ele não acreditar, como não
acreditou em nada até este momento. Desviei o olhar escondendo o rosto
entre os braços de novo, tomando coragem.
​― Por que ele me enganou desde o começo. A impressão que tenho é
que fez isso para atingir você. E eu achando que era amor... Que, depois de
tudo isso, ele tinha sido verdadeiro em algum momento, mas ele só queria me
expor e expor você. – Uma lágrima caiu no meu pé e antes que a enxugasse
os dedos de Arthur passaram ali, espalhando o líquido salgado na minha pele.
​Em seguida, ele deslizou os dedos entre os fios dos meus cabelos,
desfazendo a trança. As lágrimas vieram mais densas, mas controlei o som e
os soluços, pois não queria sua piedade. E já não aguentava mais chorar.
​― Você está certa. Ele queria me atingir. – Beijou minha cabeça e o
ato me derrubou, os soluços vieram violentos, vergonhosos. Encolhi-me
mais, tentando me controlar, mas não consegui. – Perdoe-me por não ter te
protegido disso, Violet.
​― Violet... – Balbuciei, respirando fundo algumas vezes e sentindo
ele me aninhar em seus braços enormes. Desta vez, não recuei e me deixei
levar, porém não soltei minhas pernas, não o toquei por vontade própria.
​Aceitei o lenço que gentilmente colocou entre os meus dedos e assoei
o nariz.
​― Você terá de voltar para lá logo, assim que descobrirem onde a
enfiei. – Falou alguns minutos depois. Em seguida, senti seus dedos em meu
rosto e apertei meus olhos. Não queria compará-los, mas o toque de Arthur
era morno, amável, enquanto o de Pietro sempre pareceu possessivo e
malicioso, era de dar raiva conseguir distinguir as intenções dele somente
agora, quando já era tarde demais.
​Limpei meu nariz e o rosto novamente e me desvencilhei dele, me
colocando em pé. Talvez, fosse apenas por dó ou por culpa, mas não
precisava que ele sentisse isso por mim. Iria enfrentar tudo de cabeça erguida.
​― Então, vamos. – Falei ajeitando o vestido, recolocando a sandália,
que não tenho ideia de como escapou dos meus pés, e refazendo a trança.
​Arthur continuou a me encarar, parecia inseguro, mas, de repente, seu
semblante endureceu como se percebesse pela primeira vez o que tinha feito.
Passou a mão no rosto e, exatamente como eu esperava, readquiriu a postura
distante e rígida que teve desde que nos reencontramos. Ajeitei o vestido
apenas para desviar a atenção das minhas próprias emoções e esperei que ele
me rebocasse de volta para o julgamento.
​― Certo, mas antes... – Ele se aproximou rapidamente, segurou meu
rosto entre as mãos, ficou a centímetros de mim, olhando nos meus olhos.
​Se fosse há alguns dias, acharia que ele queria me beijar ou que era
um momento romântico, ficaria suspirando toda boba e sentindo o estômago
revirando de ansiedade, mas desta vez o toque teve o efeito contrário, me
deixou com raiva.
​― Antes o quê? – Esbravejei, eu sabia que ele não tinha mais nenhum
sentimento além de desprezo, mas podia não agir tão carinhosamente. – Ficou
com dó de mim ou o quê? Quer ter certeza de que vou inteira para o Inferno?
​Toquei seu peito e o empurrei. Arthur soltou meu rosto negando com
a cabeça, mas nada disse. Destrancou a porta e a abriu.
​― Saia. – O tom implacável estava de volta e, com isto sim, eu
conseguiria lidar.
​Obedeci, andando à frente dele até a calçada, então esperei que
trancasse novamente a cela e se colocasse um passo atrás de mim, como
todos os sentinelas tinham feito antes. Não o olhei, nem mesmo quando
entramos na sala do Juízo e ele se afastou para sentar-se junto aos outros
anjos. Deslizei para a minha cadeira e fiquei em silêncio, fungando e
esperando.
​O Juiz veio na minha direção. Ergui meus olhos para esperar seu
desapontamento ser detalhado para todos os presentes, mas ele se inclinou
sobre a mesa, sussurrando.
​― Você está bem? – Pisquei confusa, mas logo fiz que sim. –
Precisam de um recesso? – Desta vez, ele direcionou a pergunta a Victoria.
​― Não, senhor. – Apertei os olhos por ela não me ter consultado. Por
mim, eu me esconderia naquela cela até ter de ir embora para o Inferno ou
para o treinamento de como ser um demônio nota A!
​― Muito bem. Suzanna, contenha seus impulsos e peça desculpas. –
Deu uma batidinha na minha mão e se afastou. Trinquei os dentes ao ouvir a
ordem dele, mas não tive tempo de retrucar. – A Nefilin tem algo a dizer. –
Ergueu o tom de voz para que todos ouvissem.
​Olhei para Victória, que parecia decidir se eu devia ou não fazer o que
ele mandou, por fim me levantei, decidida a acabar logo com tudo isso.
​― Exatamente! Quero pedir desculpas. – Comecei e, pela ironia,
Victória tossiu ao meu lado, talvez incomodada ou me alertando. Ignorei-a. –
A todos que perderam seu tempo vindo ao meu julgamento, pois já sabiam a
sentença antes de sentarem nessas cadeiras. – Virei-me para os anjos à minha
esquerda, procurando o olhar de Arthur. – Pierre, eu te libero da promessa
que fez ao meu pai. Você não precisa mais se preocupar com o meu futuro,
nem em como me manter salva. Tudo acontece como deve ser, mesmo que
tentemos ajudar nas escolhas de um ser humano para protegê-lo, ele precisa
aprender por si só e, infelizmente, nossa natureza é pecaminosa, é errante, e
poucos têm o privilégio de descobrir isso aos dezoito anos, ou antes que seja
tarde demais. – Apertei os lábios me virando para o senhor Paulo, esperei
para saber se poderia concluir e ele não fez objeções. Olhei Pietro. –
Desculpe-me, Pietro, por ser exatamente a garota sonhadora que você
esperava. Sonhadora e manipulável. Obrigada por ter causado o acidente dos
meus pais. – Finalizei, me sentando.
​Estava tão irritada que as palavras saíram antes que pensasse nelas.
Senti ter deixado todos mais tensos do que antes, quando soquei Pietro.
​― Suzanna, vou ignorar algumas coisas, pois é nítido que você está
abalada. Mas, responda com toda a sinceridade. Hoje, se tivesse de escolher
seu caminho, com o conhecimento de sua escolha, com seu coração, quem
você escolheria seguir?
​― Eu protesto! – Pietro se levantou exaltado, dando um murro na
mesa e me causando um tremor pelo susto.
​― Negado. Sente-se. – Ordenou o Juiz. Em seguida, olhou para os
anjos caídos e demônios. – Todos em silêncio. Eu disse todos! – A voz dele
soou como um trovão. O silêncio que se fez era quase mortal. – Pode
responder. – Disse em seguida, brandamente.
​Eu não precisava ponderar, já conhecia a resposta. Sustentei o olhar
dele, mas sem arrogância, e tentei responder acima do tremor que tomou meu
corpo.
​― Nem um e nem outro, escolheria a verdade. O bem. O Céu, se
assim preferir nomear.
​― Sua escolha é o Céu? – Reafirmou, e um novo burburinho se fez
atrás de mim.
​― Sim, senhor, é o Céu.
​Ouvi o som de algo se partindo, mas antes de me virar fui
arremessada para a frente, sobre o Juiz. Ele girou o corpo, deitando sobre
mim, me protegendo de coisas que caiam do teto. Pareciam quentes, pois a
sala começava a ferver à minha volta. Senti uma dor latente nas costas onde
fui atingida.
​― Fique imóvel! – Ordenou ele e ouvi quando gemeu, soltando o
peso em minhas pernas.
​ Senhor? Paulo? Paulo! – Resmungou ao me ouvir e aliviou a

pressão de seu peso. Em seguida, me fez virar de costas e engatinhar com ele.
​Um cheiro forte de queimado começava a nos atingir, junto com ele
fumaça e um calor excessivo. Olhei para trás e a cena me chocou. Os
demônios estavam com a pele avermelhada, seus chifres a mostra – coisa que
não aparecia durante o julgamento –, havia uma fogueira no lugar onde antes
era a arquibancada dos anjos e estes estavam lutando contra os caídos e os
demônios, alguns com as asas esticadas sobrevoando-os, outros usando o
próprio punho. Tentei localizar Pierre naquela bagunça, mas o Juiz me
empurrou para continuar em frente.
​O som da briga estava tão alto que mal ouvia meus pensamentos, mas
segui para a porta atrás da nuvem em 3D. Avançamos e, quando a parede nos
escondeu, ele me ajudou a levantar.
​― O que está havendo? – Perguntei assustada e tossindo muito.
​― Não há tempo para explicações. Pierre! – Ele gritou e vi a cabeça
de Arthur aparecer na abertura. – Leve-a daqui!
​Comecei a protestar. Era mais fácil ele desejar devolver-me àquela
confusão do que me tirar dali. E estava petrificada de medo. Quando Arthur
me segurou pelo pulso, me puxando, comecei a gritar histericamente.
​― A Vic! A Sophia! Não posso deixá-las aqui, Arthur!
​Tentei contorná-lo, lutando para voltar à sala do Juízo. Não via mais o
Sr. Paulo, provavelmente tinha retornado para lá. Arthur me bloqueou e
ajoelhei, passando por baixo de suas pernas, voltando a correr na direção
oposta.
​― Suzanna! – Ouvi-o, mas não parei até chegar na entrada da sala.
Quando olhei, não havia mais uma sala, as paredes estavam derrubadas, não
havia teto e vários outros anjos se juntaram ao grupo. Não consegui distinguir
quem eram anjos bons, quem eram maus. Vultos vermelhos e brancos se
misturavam numa velocidade impossível de acompanhar.
​― Victória! – Chamei, sufocando com o cheiro e a fumaça. Avancei,
mas fui puxada para trás. Debati-me e meu corpo foi chocado contra a
parede. Estava de volta à sala escondida atrás do telão.
​― Cala essa boca e vem comigo, A-GO-RA!
Capítulo 4

​ rthur estava transfigurado, seu rosto tenso e avermelhado, os olhos


A
num tom azul que nunca vi. Ele não esperou resposta, voltou a me puxar para
dentro da escuridão da sala; continuei tentando voltar, pois queria ajudar as
meninas, mas Arthur parecia ignorar que corriam perigo.
​― Elas são suas amigas, Pierre! Largue-me aqui, então, e vá ajudá-
las, não vou fugir! – Prometi.
​O anjo parou de me puxar e se voltou para mim, encarando meus
olhos.
​― Elas não precisam de mim e vão nos encontrar. É você que precisa
sair daqui e tem que ser agora, então, ou você me obedece ou eu deixo um
deles te levar. – Ele apontou para uma janela. Ao observar bem, notei que a
briga tinha ganhado proporções muito maiores. Anjos e demônios se
degladiavam do lado de fora.
​― Não seria mais fácil acabar logo com isso? – Andei na direção da
porta, mas ele me puxou para o seu corpo, me prendendo com os braços em
volta da minha cintura.
​― Nunca gostei do que é fácil, Suzanna. – A voz dele não passou de
um lamento, em seguida me jogou em seu ombro novamente e começou a
correr.
​― Eu posso andar! – Protestei, puxando o cabelo dele.
​Arthur nem resmungou. Ao mesmo tempo em que não sabia o que ele
pretendia, estava apavorada com a ideia de ser levada à outra cela ou direto
ao Inferno por ele mesmo, para ter certeza de que eu ficaria por lá.
​Uma luz forte me fez fechar os olhos e logo senti o vento sobre meu
rosto, algo roçava minha bochecha seguidamente e o ombro de Arthur ficou
tenso. Quando meus olhos se acostumaram à claridade, percebi que eram as
asas dele que batiam contra o meu rosto, estávamos voando.
​Somente para implicar, empurrei a asa e ele me escorregou para a
frente dele, segurando-me como a um bebê. A posição me lembrou de
quando voamos a primeira vez. Tinha medo de Pietro e não de Pierre, como
agora. Trinquei os dentes e desviei o olhar para o caminho que ele fazia.
​Abaixo de nós havia um misto de asas brancas, vultos negros e
vermelhos. Talvez, todos os anjos caídos possuíssem aquela névoa negra em
volta de si como Pietro; não consegui assimilar, era tudo muito bizarro para
ser real. Agarrei o pescoço de Arthur, começando a entender a dimensão do
que eu via.
​― Eles estão brigando por causa do que eu disse? – Voltei a falar.
​― Sim. – As asas ganharam rapidez e as imagens começaram a se
tornar borrões. Escondi o rosto no peito de Arthur, enjoando.
​― Eu peço desculpas... Não quero ninguém se machucando por
minha causa. – Pedi.
​― Não há porque pedir desculpas, isso devia acontecer.
​Meu estômago gelou quando começamos a descer. Ele fazia algumas
manobras me segurando mais apertado ao seu corpo, mas tive medo de falar,
de olhar a altura, ou saber de que tipo de criatura nós estávamos fugindo.
​Algo duro se chocou contra nós, mas Arthur me prendeu tão bem em
seu peito que mal senti quando fomos atingidos. Ele resmungou de dor. Abri
meus olhos a tempo de ver um vulto escuro e avermelhado vir na nossa
direção, Arthur virar de lado e confrontá-los, atingindo-os com o ombro.
Uma risada reverberou ao nosso redor. Era Persus e um caído que o ajudava a
estar no alto.
​― Dê-me a Nefilin.
​Lembrei imediatamente que ele conseguia persuadir os anjos, mas
que, de alguma forma, não me atingia. Comecei a sussurrar para Arthur
prestar atenção apenas na minha voz; não sabia o motivo, instinto talvez.
​― Tire-me daqui, Arthur, voe. Continue focado no seu plano. Vamos
embora.
​― A Nefilin, anjo! – A voz ecoou de novo, os braços de Arthur
relaxaram, me deixando apavorada.
​― Pierre! – Puxei sua camisa e ele me olhou confuso. – Voa!
​Nossos corações estavam batendo no mesmo ritmo acelerado.
Agarrei-me mais a ele e o vento voltou a ficar forte. Escondi o rosto em seu
peito ao perceber que ele não tinha sido dominado pelo poder do demônio.
​Ouvia muitas asas ao nosso redor, era perceptível que lutavam por
causa dos sons que se seguiam. Olhei sobre o ombro direito de Arthur e a
visão era mais aterradora que o barulho. À direita, uma neblina negra cheia
de rostos pálidos e olhos avermelhados sibilando e se chocando contra os
anjos, alguns se defendiam com o mesmo artifício que já vi Pierre usar: Bolas
de luz ou iluminando o próprio corpo, o que repelia os caídos.
​Abaixo, em terra, pessoas avermelhadas saiam de um buraco próximo
do que acredito deveria ser a sala do Juízo, lutavam corpo a corpo com os
anjos e aprendizes. Percebi que todos estavam em alerta, prontos para aquilo,
até aqueles que pareciam crianças aos meus olhos. Novamente senti-me
culpada e queria poder fazer mais do que ser apenas carregada para longe.
​Arthur puxou meu rosto para o seu peito e fechei os olhos, não
adiantaria protestar, por isso apenas aguardei o que ele pretendia comigo.
Passaram alguns minutos até ouvir apenas as suas asas batendo aceleradas.
​A respiração dele estava controlada, mas percebi como parecia
cansada. Havia feito muito esforço fugindo comigo, engolindo fumaça e
tentando fazer-me cooperar. Não sabia exatamente para onde estava me
levando, mas não tinha como protestar ou fugir e, por isto, relaxei. Por mais
que não quisesse, eu confiava nele.
​Minha própria alma.
​― Você está bem? – Perguntou-me algum tempo mais tarde.
Descíamos agora, mas não abri os olhos para ver.
​― Sem ferimentos, e você?
​― Talvez alguns. – Ouvi o sorriso em sua voz, era a primeira vez que
sorria em semanas.
​Senti seu corpo inclinar e logo ficar ereto. Tinha certeza de que
estávamos em terra firme. Passei os dedos pelo fuá que é o meu cabelo e, só
de tocar, tive impressão de que estava um ninho de passarinho. Murmurei
uma reclamação que fez Arthur rir.
​― Talvez, fiquemos seguros aqui por algumas horas, venha.
​Ele parecia de volta, Arthur, como se nada tivesse acontecido nas
últimas semanas. Aceitei a mão dele e o acompanhei. Não reconheci o local
onde estávamos, mas o cheiro era familiar, arenoso, chuvoso e um pouco frio,
diferente do calor que havia na sala do Juízo.
​― Arthur, elas estão bem? Vic e Sophia? – Perguntei um pouco
baixo, me sentindo culpada por tudo.
​Em silêncio, ele me guiou para um acumulado de árvores. Até agora,
havíamos passado apenas por uma quantidade enorme de mato. Adentrando
mais entre as árvores, reconheci a cabana. Era a casa dele.
​― Ninguém imaginará que eu te trouxe aqui, só um louco faria isso. –
Respondeu ao temor que via em meus olhos. – Confie em mim, Suzie, por
favor.
​― Eu não disse que não confio, só estou com medo. – Falei,
desviando o olhar para a porta que ele abria para que eu passasse.
J​ á dentro, me deixou sozinha no ambiente pequeno e saiu de novo,
desta vez eu tinha uma vaga ideia do que ele faria; a magia de fechar
qualquer fresta para que ninguém pudesse nos localizar ou ouvir dentro da
cabana. Quando voltou, eu tinha nas mãos um kit de primeiros socorros
empoeirado que encontrei no banheiro, água com sabão, uma toalha e uma
cadeira onde mandei ele se sentar.
​― Eu cicatrizo sozinho. – Anunciou quando comecei a limpar o
sangue do seu braço direito. Ele tinha um corte profundo no antebraço, vários
hematomas no rosto e uma mancha feia de sangue na camisa.
​― Então, você não respondeu se elas estão bem. – Sussurrei,
ignorando-o e continuando a limpar os ferimentos.
​― Acredito que sim, eu não senti a perda delas. – Respondeu
pensativo, depois me olhou. – É como no nascimento de um anjo poderoso.
Podemos sentir que algo novo aconteceu e, com o tempo, descobrimos o que
ou quem é; com a morte de um desses anjos a sensação é inversa, de algo
sendo arrancado de você. Quem é mais próximo geralmente adivinha quem
se foi.
​Concordei com a cabeça, estava surpresa com a resposta direta e
completa que ele deu, sem que eu precisasse forçá-lo a dizer. Foi espontâneo,
me deixando emocionada. Arthur tocou meu rosto, erguendo-o.
​― O que foi? – Perguntei piscando algumas vezes.
​― Você não tem culpa do que ocorreu lá em cima, Suzanna.
​― Não estava pensando nisso, mas... desde que decidi seguir o Pietro,
tudo virou de cabeça para baixo. Eu aceito a culpa e a correção Pierre, não sei
o que terei de fazer ou para onde vou, mas já me conformei com isso.
​― Aqui ó, você não limpou esse machucado. – Arthur apontou o
próprio lábio, estava inchado e com uma mancha feia de sangue. Senti meu
estômago gelado e ele riu divertido, olhando meu rosto. – É fácil distrair você
das coisas. – Argumentou. – Quando estivermos menos confusos, eu tento
explicar tudo, está bem? – Respondeu sério, mas algo nos olhos dele me
deixou temerosa.
​― Por que de repente você voltou a me tratar bem?
​Minhas mãos trabalhavam em seu lábio e ele fazia caretas,
respondendo com uma voz estranha por causa disso.
​― Algo que você falou no julgamento.
​― O quê? Eu passei dias entrando e saindo de lá e você me jogando
naquela cela e mandando as pessoas me matarem se eu quisesse sair. –
Explodi.
​Arthur ergueu uma sobrancelha, soltou um suspiro e concordou.
​― Até aquele momento, eu não entendia qual era o propósito do que
aconteceu comigo e com você, do motivo de ter falhado na minha missão de
te salvar de suas escolhas, mas hoje tudo ficou claro como água.
​― Você tinha que me salvar das minhas escolhas... Impedir-me de
escolher Pietro?
​Ele negou lentamente, fez outra careta e segurou meu pulso, olhando
diretamente nos meus olhos.
​― Não foi você que falhou escolhendo a ele. A escolha foi apenas
uma consequência dos meus passos errados, Suzie.
​Fiquei ainda mais confusa com a declaração dele. Arthur deslizou a
mão por meu braço e tocou minha nuca; meus olhos começaram a arder e a
vontade de chorar ficou presa na minha garganta. Levantei-me, deixando um
espaço enorme entre nós dois.
​― Quando estávamos nessa cabana, antes do Pietro me encontrar, o
que eu comi e por quê?
​― Hã? Como assim?
​― Responde!
​Ele coçou a barba mal feita, olhou novamente no meu rosto e seus
olhos se iluminaram, talvez entendendo que eu tinha dúvidas se era ele
mesmo ou Pietro na minha frente. Minhas mãos tremiam tanto que sentia
reverberar pelo meu corpo. Será que Pietro teve tempo de alterar a ilusão,
conseguir asas e me sequestrar de novo? Arthur não me tocaria sem receio,
tocaria?
​― Você comeu uma pêra porque estava passando mal, pensamos ser
uma crise de labirintite. – Respondeu. – Antes disso você desmaiou e eu... vi
seu sonho, tentei fazer você enxergar quem te tirou daquele carro. –
Murmurou.
​Seria possível que Pietro soubesse tudo isso? Se nos tivesse
monitorado o tempo todo, seria fácil saber que comi uma pêra, que passei
mal. Ajeitei meu cabelo de novo e uma nova pergunta surgiu, essa eu tinha
quase certeza que era impossível Pietro saber a resposta.
​― Quando precisei seguir o Pietro, naquele dia em que ele te
machucou... Antes de sair eu disse algo na sua mente, só para você, e eu sei
que ele não ouviu ou teria me matado. O que foi?
​Os olhos de Arthur se encheram de lágrimas, mas ele disfarçou bem.
Levantou-se e não senti que precisava me afastar, a reação era dele e não de
Pietro. Meu coração começou a bater mais forte conforme o espaço entre nós
ficava menor. Ele segurou em meu rosto, enroscando os dedos no meu
cabelo, acariciou meu lábio com o polegar e o mundo parou de girar, pois
seus lábios encostaram delicadamente nos meus.
​― Eu também amo você, Suzanna. – Sussurrou a resposta que esperei
ouvir naquela floresta.
​Uma lágrima grossa despencou dos meus olhos, agarrei a camisa dele,
puxando-o para junto de mim. Não precisava de nada mais, só do conforto de
seu peito. Nos abraçamos com força e em silêncio.
​Lamentei muito pela escolha que fiz sem querer naquele dia, sabia
que não teria chance alguma de ficar com ele agora, nem mesmo para
descobrir o que realmente sinto. Somos de lados opostos. Sendo humana, não
me era permitido amá-lo, só pensar nele deveria ser considerado a morte para
os quase-demônios.
​― Por que não respondeu antes? – Perguntei baixinho, escondendo o
rosto na curva entre o peito e o pescoço de Arthur.
​Ele deslizou os dedos por minha nuca, acariciando, parecia ter medo
de tocar minha pele, mas estava tocando, e isso era o mais importante para
mim nesse momento.
​― Estava muito fraco, não consegui. – Senti os lábios úmidos no meu
rosto, a respiração esquentando minha pele, me arrepiando toda. – E não
acreditei em você. – Confessou.
​― Agora acredita? – Não percebia o quanto estava apertando sua
camisa com as duas mãos. Arthur continuou percorrendo minha pele com os
lábios até chegar novamente nos meus.
​― Não sei. Tem momentos que parece que sim, em outros, eu acho
que você não sabe o que sente e, em outros, eu preciso ser realista. – Era um
menino amargurado diante de mim.
​Fiquei imóvel, sentindo a respiração dele nos meus lábios e o frio no
estômago que antecede qualquer toque que ele me faça. Falei bem devagar
para ele não precisar se afastar, pois sabia que, mesmo que fosse um mísero
beijo, eu o faria cair.
​― Às vezes, eu tenho medo de descobrir, Pierre. – Sussurrei.
​Para minha surpresa, ele pareceu entender, suas mãos aliviaram o
aperto e ele respirou bem fundo, afastando um pouco nossos lábios.
​― Mas, você mentiu?
​― Não.
​Puxou-me para junto dele. Nossos lábios se roçando em um pedido
desesperado de um beijo, agarrei seus cabelos envolvendo-o pela nuca e me
senti ser erguida, novamente era carregada como a um bebê. Ele se sentou no
sofá me colocando em seu colo, aproximou de novo dos meus lábios e assim
ficamos por um tempo interminável. Ambos acariciando um ao outro,
respirando o ar um do outro. Sentia meus olhos marejados e a culpa me
esmagando pouco a pouco, mas queria permanecer nos braços dele, com essa
proximidade errada, até que fosse obrigada a sair.
​― Seu pai estava certo – ele começou –, só a morte venceria o que eu
sinto por você.
​― Espero que a minha. – Sussurrei, negando-me a imaginar o mundo
sem ele.
​A tristeza em seu riso denunciava que estava tão triste quanto eu.
Afastei o rosto e ele fez uma careta em reprovação, em seguida abriu os olhos
me encarando.
​― Se depender de mim, você viverá muito mais do que espera.
​― Quanto tempo? – Perguntei com curiosidade.
​― Mais de mil anos. – Sorriu.
​Deslizei a mão por seu rosto, a barba estava crescendo, os pelos mais
grossos prendendo alguns fios de seu cabelo, que afastei concentrando-me
nessa tarefa para não pensar nesse milênio que ele me prometia.
​― No que pensa? – Perguntou ele de repente.
​― Que não quero voltar à realidade.
​Com um suspiro, ele me levou para seu peito, colocou a palma da mão
em meu rosto e ficou brincando com os dedos, fazendo círculos pequenos em
minha bochecha.
​― Logo tudo isso acaba, Suzie, e sua vida voltará ao normal.
​― Escola. – Afirmei.
​― Isso.
​Escola de nefilins-demônios, aprendendo a voar e enganar as pessoas
com os dons que adquirir, ou talvez a prever um futuro ataque de anjos e
salvar um milhão de demônios de serem aniquilados. Pensei.
​― O que mais te preocupa?
​― E se eu não me adaptar, Arthur? – Disparei. – Eles irão me matar,
na melhor das hipóteses! Irão me torturar, me mandar para o Lago de Enxofre
ou qualquer coisa assim!
​― O quê? Do que você está falando? – Ele me olhou.
​― Do Inferno! Não vou conseguir ser má, o Pietro vai se decepcionar
comigo, isso se ele já não me odeia! E irão me matar, tenho certeza.
​Ele me levantou e saiu de perto de mim. Ficou na frente da janela me
observando duramente, com aquela expressão que usava no Segundo Éden.
Desta vez, eu não queria Pierre de volta, mas Arthur, meu anjo quase
humano.
​― Você ainda se preocupa com isso? – Esbravejou.
​― Claro que sim!
​Olhei-o indignada sem entender, pois qualquer um em meu lugar
estaria agitado com a ideia de ir para o Inferno, de ter de maltratar pessoas ou
até induzi-las a morte de suas almas e corpos físicos. Eu tinha uma vaga ideia
do que me esperava lá.
​― Você quase... Quase me enganou.
​Pierre passou por mim sem expressão alguma no rosto, olhou pela
janela e voltou, pegando-me pelo pulso com violência.
​― Como assim, quase te enganei?
​Os poucos minutos que tivemos juntos, que praticamente nos
declaramos um ao outro se desfizeram como se não tivessem existido. Ele
abriu a porta da cabana e Pietro entrou.
​Corri para as costas de Arthur, mas ele saiu da frente, permitindo que
o anjo caído me puxasse para si e me envolvesse em uma nuvem escura, que
eu já conhecia bem. Fechou-me dentro de seu casulo e não ouvi mais nada,
além dos meus gritos por socorro.
Capítulo 5

​― Arthur! – Gritei a plenos pulmões.


​O som da risada de Pietro ecoou dentro da nuvem. Estava sufocando,
assustada, sem entender a reação de Arthur ao me deixar ser pega, porém
desta vez eu não seria tão indefesa. Senti o corpo de Pietro me pressionando
as costas, seu braço estava em volta da minha cintura, por isso usei toda
minha força e o acertei com o cotovelo na altura do que eu achava ser a
costela dele.
​Pietro praguejou e me soltou no ar, gemendo. A escuridão sumiu
rapidamente e a luz forte me deixou desorientada, tentava inutilmente me
segurar em algo, sentindo algumas coisas se emaranhando em minhas roupas
e cabelos.
​― Arthur! – Gritei novamente ao perceber que estava na altura das
árvores, minhas costas se chocaram contra um galho e fui arremessada para
outra direção, lágrimas deslizando pelo meu rosto. – Arthur! – Chamei com a
força que meus pulmões conseguiram.
​Braços quentes me envolveram, mas não relutei, apenas agarrei quem
quer que me estivesse segurando, ofegante. Abri meus olhos encarando
Arthur, sentia ambas as respirações pesadas. Agradeci mentalmente por ser
ele.
​Uma escuridão estranha começou a nos cercar, agarrei o pescoço de
Arthur e ele desviou a atenção para ela. Um grupo enorme de anjos caídos
nos rodeava, estávamos em uma clareira, na floresta onde Arthur vivia.
​― Entregue-me a menina. – Ordenou Pietro.
​Ele não parecia um anjo, menos ainda humano, tinha cicatrizes na
lateral do rosto, avermelhadas, talvez pelo combate que tiveram no Segundo
Éden.
​― Ela não quer ir com você. – Respondeu Pierre.
​Olhei-o confusa, não entendia o motivo de ele ter deixado Pietro me
levar e agora estar me protegendo. Continuaram se encarando com seriedade.
​― Suzanna escolheu ir comigo, não adianta chorar o leite derramado.
​― Você me obrigou! – Gritei.
​A escuridão ficava mais densa. Conseguia enxergar rostos entre eles,
todos desconhecidos, porém numa carranca uníssona, esperando apenas uma
ordem para atacar.
​― Não, você foi comigo por vontade própria, Suzaninha. – Riu. –
Você sabe que ela me pertence.
​Pietro se direcionou a Pierre, que também havia notado que estávamos
cercados e em muita desvantagem. Ele me olhou por um momento. Vi em
seus olhos que me entregaria ao anjo. Assenti uma vez, pois sabia que uma
hora teria de seguir este caminho.
​― Obrigada por cuidar de mim, Arthur. – Sussurrei e beijei a lateral
de seus lábios.
​Eu vou buscar você.
​Sussurrou em minha mente, em seguida fui lançada para o alto, senti
como se meu estômago batesse nas costas e precisei fechar meus olhos por
causa do vento forte, puxei o ar, mas meu corpo foi perdendo velocidade e
um zumbido se iniciou com a queda. Chamei por Arthur aos gritos, mas
minha voz saia falha por estar quase sem fôlego. Não esperava o movimento,
não tinha respirado direito e sentia muita dificuldade em puxar o ar. As
árvores voltaram a agarrar meus cabelos e o vestido, meu corpo foi lançado
como o de uma boneca, para todos os lados, até que me choquei em algo duro
e frio. A dor veio tão intensa que tudo escureceu.
​Despertei sentindo frio. Por um momento, acreditei ter morrido, mas,
se pertenço mesmo ao Inferno, não deveria estar com frio. Lentamente, eu
abri meus olhos e precisei fechar de novo por causa da náusea. Levantei a
mão para colocar na boca, mas uma mão quente segurou meu pulso,
impedindo-me. Soltei um grito de terror, abrindo imediatamente os olhos e
me sentando.
​Vários pontos de meu corpo latejaram, principalmente na coluna onde
se intensificou. Gemi de novo, perdendo por alguns segundos os sentidos.
Quando me senti melhor e minha mente começou a entender onde estava,
percebi que era na cabana de Arthur, imersa dentro de uma banheira vazia.
​― O que é isso? – Perguntei sob o fôlego, olhando para quem
segurava meu pulso. Ao notar que era Arthur, me joguei na direção dele,
agarrando seu pescoço, ignorando toda a dor que latejou por cada músculo
que movi. – Você está bem! – Sussurrei, abraçada a ele de mau jeito.
​― Calma, Suzanna... Shiuuuu... Estou bem, estamos bem, eles
desistiram. Por hora. – Avisou-me.
​― O que houve? Eu achei que você me deixaria com eles... Eu... Não
quero ir com eles, Arthur! Não quero! – Voltei a chorar e senti que ele me
pegou no colo. Estava tremendo de frio e só notei quando o calor do corpo
dele tocou o meu, me deitando na cama.
​― Você... Morreu. – Falou, e notando o meu choque continuou
falando. – Eu quase matei o Pietro por isso. Ele desistiu quando percebeu que
você tinha morrido, disse que iria aguardar sua alma.
​― O quê?! Eu morri mesmo? Minha alma foi para o Inferno?
​― Não, não... Calma, Suzanna! – Ele se deitou comigo na cama e
colocou uma manta pesada sobre nós. Encolhi-me junto ao corpo dele,
soltando reclamações por causa das dores. Ele, simplesmente, me uniu a ele,
usando o próprio corpo para me aquecer. – Você parou de respirar por um
minuto, eu acho, mas foi o suficiente para desistirem. Você está viva, logo
notarão.
​Balancei a cabeça sem conseguir me concentrar na explicação.
​― Eu morri, eu morri...
​― Você estava sem ar, mas vai ficar bem. Você tem sangue de anjo,
Suzie. Daqui a algumas horas não sentirá mais nada. – O anjo segurou meu
rosto, encostando os lábios na minha pele. Havia algo diferente no toque dele,
estava frio e trêmulo.
​― Você se machucou? – Perguntei de repente, fazendo-o se assustar e
afastar o rosto do meu.
​― Não.
​― Arthur, você está tremendo.
​Assentindo com a cabeça, ele deslizou a mão pela minha coluna até
minha coxa, depois seus lábios se uniram aos meus, pressionando-os. Senti a
respiração passar para os meus lábios, logo o beijo se iniciou, retribui quase
sem perceber o que fazia. Nossos lábios se moveram lentamente,
descobrindo-se e, quando a língua dele tocou a minha, gritei, empurrando-o
com força para longe de mim.
​Surpreso, ele caiu no chão com um baque, sentou ali mesmo me
encarando chocado. Demorei um pouco para conseguir recuperar meu fôlego,
mas estava preparando-me para começar a correr quando ele me fez perder a
vontade de fugir.
​― Perdoe-me, eu sei que você o ama, Suzanna, mas quase perder
você me deixou... enlouquecido. Isso não vai se repetir.
​― Oh Deus, não! Arthur... – Engatinhei até a ponta do colchão e o
puxei pelos cabelos fazendo-o vir até mim, não tinha forças para me levantar
sozinha. – Eu achei que era ele, o Pietro. Não te empurrei porque não queria.
Perdoe-me, por favor...
​Ele já estava perto, ajoelhado na beira da cama, o olhar confuso e
cheio de incertezas.
​― Você achou que era o Pietro de novo? – Sussurrou. – Por quê?
Estou te desrespeitando? Fiz algo que te magoou? Toquei você a força,
Suzanna? – Ele começou a ficar irritado, aumentando o tom de voz. Neguei
todas as vezes, falando ao mesmo tempo em que ele.
​― Tocou-me. Você nunca me toca! O Pietro sim... E ele já se passou
por você. Eu fiquei com medo de ser a sua imagem, mas ele por dentro. –
Gritei a última parte, pois ele continuava falando.
​Paramos de falar. Ele espremeu os lábios numa linha descontente.
​― Estou parecendo com ele. Isso não é nada bom. Não quero você me
confundindo com ele. – Havia amargura em sua voz, suspirei chateada e me
deitei embaixo da coberta novamente, dando as costas a Arthur. Ele nunca
tentava entender o que estava falando, tirando suas conclusões precipitadas
sobre qualquer atitude minha. Desisti de explicar e apenas sussurrei, mais
para mim do que para ele.
​― Passei por muita coisa, eu ando com medo de tudo, Arthur...
​Ele nada disse.
​O silêncio perdurou por quase uma hora, estava quase dormindo
quando ouvi a movimentação dele. Mexia com pratos, panelas, na geladeira
e, depois, uma música baixa começou a soar pela cabana. Soltei um suspiro
pesado, decidindo ajudá-lo com o que quer que estivesse fazendo.
​Levantei sorrateira. As dores já não me incomodavam tanto. Arrumei
o cabelo e parei ao lado dele, pegando a faca de sua mão e tomando seu lugar
para cortar a cebola. Passamos mais alguns minutos nesse silêncio incômodo,
até que Arthur abriu a torneira e jogou um monte de água em mim.
​― Eiiii! – Reclamei já rindo, segurei um punhado de cebola e joguei
nele também, já me distanciando e começando a correr com dificuldade por
causa das dores.
​Não tinha muito por onde escapar, por isso fui em direção ao sofá, me
joguei sobre ele, caindo com o rosto próximo da mesinha de centro, quase
perdendo o fôlego de tanto rir. Arthur já estava perto da mesa desde o
momento que saltei, rindo e me ajudando a levantar para, em seguida, passar
a mão molhada no meu rosto e ele próprio correr.
​Como Arthur é muito mais forte e muito mais alto, e eu continuava
um pouco debilitada, precisava de uma estratégia para pegá-lo. Olhei para a
torneira que ainda jorrava água, depois observei a direção que ele tomou, e,
antecipando seus passos, usei o que Pietro me ensinou, me concentrei na
água; fiz um gesto de longe como que pegando um punhado e joguei na
direção de Arthur. A torneira começou a esguichar a água nele como se
houvesse uma mão direcionando-a.
​― Como você fez isso? – Falou indignado, rindo. Seus cabelos
pingando, a camisa branca colando em seu peito. – Não vale usar seus
poderes, Suzanna!! – Advertiu divertido.
​― Tenho meus truques. – Dancei no meio da sala, movimentos
estranhos e desconexos. Arthur riu mais ainda. – E vale sim! Você é todo
fortão, eu tenho que ganhar de algum jeito. – Mostrei a língua.
​De repente, parou de rir e ficou sério. Estendeu a palma aberta para
mim, pedindo silêncio. Fiquei imóvel, sentindo o pavor me dominar aos
poucos, um arrepio subindo desde a ponta dos meus dedos até meu couro
cabeludo. Ele ficou com os olhos fixos em um ponto na parede por cerca de
dez minutos, depois abriu um sorriso voltando a ficar relaxado.
​― Temos visitas. – Avisou de um modo estranho que não me deixou
mais calma. Ele foi até o armário e vestiu uma camisa seca.
​― Boas ou ruins? – Já estava ao lado dele quando bateram na porta.
Encolhi-me, segurando na camisa dele e com o rosto esmagado em suas
costas.
​― Pode entrar. – Disse. Estávamos no local onde é a cozinha-quarto
dele.
​A porta abriu com uma rajada de vento e percebi os ombros rígidos de
Pierre, minha respiração passou de assustada para asmática em milésimos de
segundos. Duas figuras claras entraram na sala e a porta fechou num baque
forte.
​― Agradecemos a recepção, Pierre.
​Reconheci a voz quase que imediatamente e o medo desapareceu.
​― Victória! – Sai correndo na direção dela e a abracei pelo pescoço.
A surpresa quase nos derrubou no chão, ela começou a rir um pouco contida
e retribuiu o abraço – Desculpa. – Sussurrei, sentindo as bochechas
vermelhas.
​― Isso é saudade ou felicidade de não ser o inimigo?
​― Saudade. – Admiti. – Estava preocupada com vocês. – Abracei
Sophia também.
​Arthur estava sério, mas tinha um brilho no olhar. Senti uma ponta de
ciúmes, imaginando que era por Victória estar conosco.
​― Sentem-se. – Ele apontou para o sofá.
​Elas se acomodaram, porém permaneci em pé, inquieta. Tinha a
impressão que eles queriam dizer algo, pela troca de olhares.
​― Vocês vieram me buscar? – Adivinhei.
​― Sim. – Respondeu Sophia. – Viemos te buscar, pois controlamos o
problema no Segundo Éden e podemos voltar ao julgamento.
​Sentei-me na cama de Arthur, sentindo as pernas fraquejarem. Elas se
viraram na minha direção.
​― O Juiz quer dar a sentença o mais rápido possível. – Acrescentou
Victória.
​― Precisamos ir hoje? Está escurecendo... – Argumentei, temendo ter
que ficar longe dele cedo demais.
​Eles se entreolharam, mas foi Arthur que falou.
​― Se quiser, posso levá-la amanhã bem cedo.
​Victória ponderou e por fim assentiu, acredito que entendeu que
queria ter um tempo para me despedir dele sem muitas pessoas por perto.
​― Tudo bem, só não abusem. – Riu, deixando o clima mais ameno.
​― Querem beber algo? – Perguntei. Precisava distrair-me da
sentença, sentia um vazio no lugar da alegria que tinha vivenciado minutos
atrás, jogando água em Arthur. O rosto dele estava indecifrável, neutro, como
se não quisesse deixar-me perceber seus sentimentos.
​― Água. – Disseram as duas ao mesmo tempo.
​Passei por Arthur pegando dois copos na pia e abri a geladeira. Para
minha surpresa ele não tinha água gelada, por isso enchi os copos com água
da torneira mesmo e coloquei alguns cubos de gelo; a tarefa me deixou um
pouco melhor. Servi-as e, em seguida, voltei a me sentar na cama dele.
​― O que aconteceu lá? – Perguntei. O biombo atrapalhando um
pouco a visão.
​Elas se levantaram e decidimos nos esparramar na cama de Arthur
para conversarmos melhor; eu e ele, apoiados na cabeceira, e elas na ponta
extrema.
​Victória me observou em silêncio e quase perguntei se ela não podia
contar, mas finalmente começou a explicação.
​― Os anjos caídos e os demônios se rebelaram. Acreditamos que eles
planejavam um ataque, se aproveitando do julgamento. Quando escolheu o
Céu, eles viram uma brecha e começaram a nos atacar.
​― Algum motivo para o ataque?
​― Não sabemos. – Respondeu ela e novamente os três trocaram
olhares. – Mas agora, está tudo em ordem, estamos reerguendo a sala do
Juízo e outras casas que foram derrubadas, incluindo a escola. Em três dias,
no máximo, voltaremos à ativa.
​― Então, temos três dias para voltar? – Minha esperança cresceu um
pouco, mas ela negou.
​― Teríamos que levá-la agora, mas tenho alguns privilégios que me
permitem decidir se você vai fugir ou não e se posso confiar em você. E eu
confio, mas não abuse dessa confiança, está bem? – Ela pediu com um sorriso
sincero. Sorri também, porém não tão sincera, pois por dentro tinha vontade
de fugir, ao invés de ter que encarar a sentença.
​― Prometo que amanhã estarei lá, a não ser que o Pietro me sequestre
de novo. – Fiz uma careta.
​― Ele não vai se aproximar, ele não pode. – Sophia afirmou. Encarei-
a. – Todos estarão presentes para assistir a decisão do Juiz Paulo. Ninguém
pode impedir você de ser levada até lá ou atrapalhar o julgamento. A punição
pode ser pior que a morte. – Informou como se não fosse nada demais.
​Estremeci, imaginando os tipos de punições que sofrerei no Inferno.
Levantei-me para manter a serenidade no rosto, andando devagar até a pia e
pegando um pouco de água.
​― Você está bem, Suzanna? – Ela perguntou.
​― Humrum, estou com um pouco de dor. O Arthur falou que morri,
deve ser por isso a falta de ar constante.
​Até aquele instante, não tinha percebido como estava difícil respirar.
Sophia colocou a mão em minhas costas e a dor sumiu instantaneamente,
assim como a falta de ar. Abri um sorriso agradecido, mesmo sem saber
como ela conseguiu isso.
​― Melhor?
​― Muito melhor.
​― Parabéns, Sophia, acho que você já pode ser considerada uma
guardiã. – Victória a saudou.
​― Você ainda não é guardiã?
​― Sou aprendiz. – Ela tinha um sorriso triunfante por causa do
elogio.
​― Vamos preparar sua apresentação para depois do julgamento. Você
merece.
​ las se abraçaram e senti uma pontada de tristeza que embolou minha
E
garganta. Tossi baixo para a vontade de chorar sumir. Depois do julgamento,
ela viraria guardiã e eu destruiria vidas. Se um dia nos encontrássemos em
batalha, será que pouparíamos uma a outra? Suspirei afastando o pensamento
a tempo de perceber que elas estavam se despedindo de nós.
​― Até amanhã, Suzanna. – Sophia beijou meu rosto. Não protestei
por elas irem embora, apesar de gostar muito das duas, o que queria mesmo
era estar com Arthur na minha última noite como humana.
​― Até amanhã. – Victória me abraçou. – Não fique tão preocupada.
Deus enxerga o seu coração e não somente suas atitudes. – Beijou meu rosto
e saíram fechando a porta em seguida.
​Arthur me deixou sentada na cama e voltou a preparar a comida, o
cheiro da fritura abriu meu apetite e, mesmo querendo ajudá-lo, não me sentia
bem, não tinha vontade de levantar dali, parecia inútil fazer qualquer coisa
além de esperar o dia de amanhã.
​― Quer comer na cama mesmo? – Perguntou ele.
​― Onde você preferir. – Sorri para não preocupá-lo.
​Ele ajeitou os travesseiros atrás das minhas costas e me entregou um
prato com arroz branco misturado com legumes e a cebola que piquei, ao
menos a que não joguei nele. Um filé bem passado e algo que se parecia
muito com purê de batatas. Sorri agradecendo, esperando ele se acomodar ao
meu lado.
​Ambos agradecemos o alimento, um costume que havia perdido com
o passar dos anos, mas que parecia certo com um anjo sentado ao meu lado.
Quando experimentei a coisa amarela, descobri ser feita de milho; soltei um
som de deleite.
​― Você é bom em tudo? – Perguntei com a boca cheia, não havia
percebido o quanto estava faminta.
​Arthur riu se concentrando também em sua comida. Terminamos em
silêncio e ele colocou um copo de suco de uva na minha mão, levando os
pratos para a pia. O suco me lembrou da fruta que ele lavou para mim algum
tempo atrás, soltei um leve suspiro, imaginando se algum dia tudo isso
pareceria com lembranças distantes.
​― Não sou bom em tudo. – Respondeu, pegando o copo da minha
mão e deixando na pia, vazio.
​― Eu acho que é. – Sussurrei. Estava escuro do lado de fora, porém,
mesmo sabendo que Pietro não poderia vir atrás de mim, tinha a sensação de
que ele estava dentro da cabana, me vigiando, esperando apenas uma única
chance para me tirar da proteção daquelas quatro paredes.
​Olhei para Arthur, que estava lavando algo na pia, pensando em pedir
que deixasse a louça e ficasse perto de mim, mas me senti ridícula por pensar
assim.
​― Tem anjos rodeando este local, a uma distância que nos dê
privacidade. – Sussurrou como se lesse meus pensamentos. Só então percebi
que não me lembrei de fechar meus pensamentos desde que acordei naquela
banheira. Soltei um suspiro longo, envergonhada.
​― Privacidade? Isso é permitido? – Recordei imediatamente que
Victória sabia que não a queria aqui. Mordi o lábio, constrangida, fechando
meus pensamentos e envolvendo Arthur no escudo. Suspirei pesadamente ao
sentir a presença dele tão perto e palpável.
​Ele se virou para mim, não sei se percebendo o que fiz, mas não me
preocupei com isso, a sensação me deixou confortada e o medo diminuiu.
​― Suzanna, não é o tipo de privacidade que você imaginou, é
apenas... – Ele ponderou, depois continuou. – Como deixar você se sentir
segura sem se sentir vigiada.
​Concordei lentamente, entendendo.
​― Que saiba que estão aqui sem precisar vê-los.
​Ele deu de ombros, mas entendi que era exatamente isso. Levantei da
cama me fechando no banheiro. Depois de fazer minha higiene pessoal,
Arthur colocou uma camisa enorme por baixo da porta; vesti-a e saí com os
cabelos soltos e apenas a camisa que parecia com uma camisola velha de tão
gigantesca.
​― Imaginei que não ficaria sexy. – Concluiu ele, me fazendo corar,
em seguida ele se trancou no banheiro.
​Estava cansada e dolorida, mas não sentia mais falta de ar ou a dor
aguda na coluna. Sophia devia ser realmente poderosa. O cansaço consumia-
me aos poucos, deixando-me com dificuldades em manter os olhos abertos,
mesmo ciente que ainda não era hora de dormir. Escutei a água do chuveiro e
fiquei constrangida por não ter pensado em um banho; em breve, ele estaria
mais cheiroso do que nunca, e eu, fedida, suja e cheia de hematomas que
talvez o afastassem. Abracei o travesseiro dele com força, me acomodando
melhor na cama.
​Você não é fedida. – Sussurrou na minha mente e gemi constrangida.
​Para de ouvir o que eu penso. – Ri e escutei a risada dele ecoando no
banheiro.
​Não queria deixar de sentir a presença dele, o roçar fraco em minha
pele como se estivesse próximo, quase me tocando, por isso tentei não pensar
em nada constrangedor ao invés de expulsá-lo da minha cabeça.
​Primeiro, tentei contar quantas vezes o escutava rir e ele ria mais com
isso, depois quantas vezes a água do banho se chocava com mais força no
chão, imaginando que ele estaria enxaguando os cabelos, ele ria com isso
também, porém pensar no banho, na água e no shampoo me fizeram percorrer
o caminho da água por seu peito, abdômen e escorrer por todo seu corpo
totalmente nu. No mesmo instante, me senti sozinha, ele mesmo se afastou da
minha mente.
​Mesmo extremamente sem graça, percebi logo que é fácil deixá-lo
constrangido em meu lugar, comecei a rir bem alto para ele ouvir.
​― Aaaa, te peguei!
​Arthur abriu a porta do banheiro, munido apenas de uma bermuda. O
peito úmido, os cabelos molhados. Parei de provocar, percebendo que estava
de boca aberta olhando para ele.
​― Você devia controlar melhor seus pensamentos. – Disse com um
sorriso afetado.
​― É difícil... – Respirei fundo, fechando os olhos. – Coloca uma
camisa? – Pedi muito baixo. Não queria levá-lo comigo para o Inferno.
​A presença dele me alcançou de novo, entrando nos meus
pensamentos, roçando a minha pele e sorri, encarando-o. Não estava mais
com a mente bloqueada, ele voltou a perambular por ela, ouvindo tudo o que
eu pensava.
​― Vou vestir a camisa, mas só porque você insistiu.
​Apesar de ser incrivelmente agradável ter Arthur tão amigável e
amoroso comigo, algumas vezes sentia uma pontada estranha no peito, como
um aviso de que ele não estava agindo de forma coerente, condizente a ele
próprio.
​― Arthur... Por que você está agindo tão... diferente? – Perguntei
baixinho, observando-o vestir uma camiseta regata branca.
​Ele me abraçou, puxando em seguida o cobertor pesado sobre nós
dois. Sussurrou próximo ao meu ouvido.
​― Este sou eu sem máscaras.
​Repeti as palavras na minha cabeça, mas ainda assim era difícil de
entender. Abraçamo-nos, ele me fez deitar a cabeça em seu peito e começou a
cantarolar uma música. Não reconheci a melodia, mas era tão deliciosa e
baixa que adormeci quase de imediato.
Capítulo 6

​Acordei sentindo o peso de Arthur em meu corpo. Adormecemos


juntos, abraçados e, apesar de ele ser muito pesado, não tinha vontade
nenhuma de afastá-lo de mim. Ajeitei-me embaixo dele, deslizando a mão
por suas costas, sentindo a pele quente na ponta dos meus dedos, a mão livre
estava presa na curva de seu pescoço e dobrei o braço para acariciar seus
cabelos que estavam levemente úmidos.
​Percebi que ainda era noite porque a janela estava escura e o cabelo
dele não secou totalmente. Agradeci por não ter dormido a noite toda, pois
queria ter um tempo sozinha, no calor dos braços de Arthur, para me preparar
para o que viria.
​Será que é possível ser absolvida? Depois de tudo o que vi, já sei que
não. Não existe espaço para falhas e acho que meu pai também previu isso,
que, se eu seguisse o caminho e me apaixonasse por Pierre, estaria
derrubando não apenas a mim, mas a um anjo também. Permiti-me sorrir por
um momento.
​Consegui, papai. Pensei comigo mesma, como uma prece, um
agradecimento a alguém que sei que não pode ouvir. Não o levei para o
Inferno comigo. O senhor conseguiu, o Céu continua intacto.
​Beijei a têmpora de Arthur lentamente e seus lábios estavam tão
próximos, tão rosados e convidativos que quase os beijei também, porém
consciente de que não deveria. Olhava atentamente para seu rosto,
memorizando-o.
​Uma vozinha chata no fundo da minha consciência me chamava de
“fácil”, porque há poucas semanas eu amava Pietro e agora estava aqui,
sentindo comichões na boca do estômago, um desejo insano de beijar Arthur
e pedindo a Deus que essa fosse minha última lembrança e não o Inferno que
começaria amanhã, literalmente.
​Devagar, respirei e soltei o ar tentando não fazer nenhum barulho.
Enrolei a ponta dos dedos nos fios de cabelo de Arthur, raspando as unhas em
sua nuca levemente, ao mesmo tempo brincando em suas costas. Sentia a
respiração dele contraindo nossas barrigas e só então percebi como a
camiseta que estava usando enrolou-se toda na minha cintura, me deixando
praticamente com a calcinha à vista.
​ Para de pensar... – Ele sussurrou abrindo os olhos, cheguei a pular

com o susto e ele apenas sorriu, colocando a mão enorme em meu rosto.
​― Achei que você estava dormindo. – Desculpei-me, esperando que
ele não tivesse ouvido tudo, pois nem lembrava direito se havia pensado algo
constrangedor.
​Incrível como só o olhar dele me deixava sem ar. Meu coração, que já
estava disparado por tê-lo sobre mim, acelerou um pouco mais e todas as
sensações ruins que eu estava sentindo, até a voz acusadora no fundo da
minha mente, sumiram.
​Arthur fez menção de se afastar, mas cravei as unhas em suas costas
mantendo-o sobre mim, ele apertou os olhos soltando um som estranho da
garganta.
​― Suz, me deixe deitar ao seu lado. – Pediu baixo, colocando o rosto
no meu pescoço.
​― Eu gosto do seu peso. – Retruquei, aliviando a força com que o
segurava sobre mim.
​― Por isso mesmo.
​Não entendi, mas o libertei. Meus olhos marejaram, por isso os fechei
e me virei de lado assim que ele se deitou atrás de mim. Arthur encostou os
lábios nas minhas costas e foi descendo a camiseta, cobrindo meu quadril,
quase ao mesmo tempo em que me abraçava, moldando o corpo atrás de
mim, apertando minha cintura. Soltei um suspiro longo e desajeitadamente
aceitei o conforto do calor que ele exalava.
​Minha respiração ficou pesada porque sentia que ele não gostou de
ficar tão perto. Talvez tudo o que fizera, antes de ser levada ao Segundo
Éden, realmente tenha interferido em nossos sentimentos, apesar de não saber
exatamente o que ele sentia por mim. Assim que esse pensamento me veio,
lembrei-me das palavras: “Seu pai estava certo, só a morte venceria o que
sinto por você”.
​Sou eu que não sou confiável, e não ele.
​― Suzanna... Pare de pensar. – Pediu de novo. Abri um sorriso tímido
e ele me forçou a virar para ele na cama.
​Coloquei a mão em suas costas de novo, invadindo por dentro de sua
camiseta. Não me contentaria apenas em abraçá-lo, queria sentir a pele
quente, os nós em suas costas, de onde acredito que saem as asas. Ele fez o
mesmo, colocou a mão em minhas costas. Senti um vento frio subindo por
minhas pernas, me arrepiando, e me encolhi um pouco mais para perto dele,
que me ajudou puxando-me, fazendo nossas barrigas se unirem e se
espremerem quando respirávamos. Sorri, pois poderia não estar pesado, mas
estava perto de mim.
​― Eu não consigo parar de pensar. Por que não escuto você? –
Perguntei muito baixinho, passando meu rosto no dele, retribuindo ao mesmo
gesto que ele fazia no meu.
​― Quer ouvir?
​― Quero.
​O meu coração começou a bater ainda mais forte e percebi o quanto o
cheiro de Arthur se intensificou. Foi estranho começar a ouvir; na verdade,
ouvia e via as imagens que ele tinha em sua mente. Primeiro, um borrão e
frases confusas, mas me concentrando melhor, a imagem tomou forma e os
pensamentos também.
​Sua mão em minha cintura, a proximidade dos nossos corpos, a
sensação do calor do meu quadril contra o dele, minha respiração em sua
barriga, quase as mesmas sensações que eu estava tendo, mas intensificadas.
Minha mão roçou em suas costas e ambos fechamos os olhos. Não tinha
percebido como ele estava trêmulo até ver isso em sua mente, ver como meu
toque passava por todo seu corpo como um pequeno choque elétrico.
​Tirei a mão e ele reclamou baixinho.
​― Não é ruim. – Explicou. Sua voz foi tão baixa, macia e confiável,
que voltei a acariciá-lo lentamente.
​― Você não está pensando. – Comentei. Nossos rostos continuavam
colados, mas senti ele sorrir.
​― Se eu pensar mesmo, acho que te assusto. – E ouvi em seu
pensamento a palavra perceptiva.
​― Não vou me assustar. – Assegurei. – Façamos assim, você não me
expulsa da sua cabeça e eu não te expulso da minha, quero pegar você
distraído. – Rimos.
​― Tudo bem.
​Percebi que ele também estava lutando contra o sono, mas não queria
dormir. Era injusto demais obrigá-lo a ficar acordado comigo. Retirei a mão
de suas costas e passei a brincar com seus cabelos, ele tinha parado de roçar o
rosto no meu, mas soltou o peso da cabeça no meu rosto, o que me fez sorrir.
Ele me prendeu com uma perna, colocando sobre as minhas, e me puxou para
mais perto. A imagem que vi foi do pensamento de um homem e não de um
anjo. Ele queria mais, queria me sentir mais, e percebi que eu queria o
mesmo, mas ambos ponderamos ao mesmo tempo o que aquele ato implicaria
para o outro.
​― Não vou te deixar cair. – Sussurrei, e ele soltou um longo suspiro.
Não o quero como Pietro, perdendo suas asas, seus poderes, sua vida no céu,
por minha causa.
​― Não vou te deixar cair também. – Arthur respondeu.
​Ficamos imóveis, lutando contra os desejos dos nossos corpos, mas,
depois de um tempo, percebi como era fácil não ceder. Eu não queria o mal
dele, por isso não ia além do que acreditava ser permitido. Sorri com a
percepção e deixei o sono me atingir pouco tempo depois.
​Acordei sentindo um toque quente passando por minha coluna, os
lábios úmidos de Arthur estavam roçando os meus e ele ainda estava com a
mente aberta para ouvi-lo. A concentração dele em não me tocar de verdade
não o deixou perceber que despertei. Mantive a respiração pesada, soltando
alguns suspiros indicando que ainda dormia, tentei ao máximo não pensar,
não me mover, queria entender o que ele estava fazendo ou pensando a meu
respeito.
​E se ela tiver de ir com ele? O que vai ser de mim? Ele pensou e a
amargura também me atingiu. Não vou deixá-la sozinha naquela loucura...
Não poderia.
​Os lábios dele pressionaram os meus e eu os abri, recebendo-o.
Agarrei seus cabelos e o puxei para mim, a eletricidade que ele sentiu eu
também senti, não sei se por ter cada reação dele reprisada em minha cabeça,
mas gostei.
​Meu estômago estava gelado, parecia mais um sonho do que a
realidade. Beijamo-nos, porém sem roçar nossas línguas. Eu temia perder o
controle e ele também, mas sentir a maciez e a respiração era melhor do que
não ter nada para levar comigo, nenhuma lembrança de Arthur, como o
menino da escola ou o meu professor, por quem fui completamente
apaixonada.
​Ali, naquela cabana, me senti normal pela primeira vez desde que
perdi meus pais, sem a sombra dos olhos cinzentos que me colocavam medo,
sem os pesadelos com o fogo e o sangue.
​Ele puxou meu lábio inferior com os dele e meu estômago revirou
nervosamente. Arthur estava sobre mim, a camiseta enrolada na minha
cintura, a regata dele tinha sumido, imaginei que a tivesse tirado a noite. Ele
fazia questão de encostar a barriga na minha, mas não se movimentava em
mim como Pietro fazia, havia apenas o peso do seu corpo e a pressão de
nossas respirações afobadas.
​― Arthur... – Sussurrei quando a mão dele subiu mais para dentro da
camiseta e a imagem de um toque indecente me sobreveio, mas ele
continuou, chegou até os meus ombros e se segurou ali, com os braços atrás
de mim.
​― Suzanna... – Sussurrou de volta, começou a beijar meu rosto
passeando os lábios por meu pescoço lentamente. – Eles não estão ouvindo. –
Disse. – Nem vendo... – Continuou, agora mordiscando meu ombro nu, pois
puxava a gola da minha camisa para abrir espaço.
​― Eles foram embora? – Apesar de estar feliz com a noite longa que
estávamos tendo, senti medo de termos surpresas desagradáveis.
​― Não... Nos deram privacidade.
​Afastei-o e encarei confusa.
​― Podemos ficar juntos?
​Ele fez que sim com a cabeça, mas seus pensamentos diziam: Não.
​― Sim ou não?
​Novamente afirmou, mas seus pensamentos negavam, e outra palavra
surgiu: caído.
​Empurrei-o com força para longe, arrumando a camiseta e me
levantando da cama. Arthur balançou a cabeça ao se dar conta de que eu
podia ouvi-lo, parecia ter esquecido completamente disso.
​― Suzanna... – Ele começou, mas o interrompi indo para cima dele
com toda fúria que possuía. Empurrei-o até ele bater com as costas na parede
de madeira da cabana.
​― Você não vai cair, Arthur! Não vai me usar para isso! Eu não
acredito que pensei... Que pensei... – Tranquei-me no banheiro, deixando as
lágrimas rolarem por meu rosto.
​Que pensei que me amava. Mas o que quer é apenas ser como Pietro.
E por quê? Perguntei-me, mas a resposta era óbvia, porque ele me amava,
porque achava que sendo um anjo caído eu o amaria também, ou que talvez
assim pudéssemos ter uma chance de ficar juntos.
​― Suzanna. – Ele bateu na porta, a voz demonstrando todo seu pesar.
– Você não entendeu.
​ ― Entendi sim, você quer ser igual ao Pietro! – Levantei-me do vaso
e comecei a lavar meu rosto, limpando as lágrimas.
​― Não, eu não quero.
​Joguei a toalha contra a porta com raiva e a abri.
​― Ah não?! E por que eu ouvi “caído” saindo da sua cabeça?
​Ele me segurou pela cintura e me abraçou, havia lágrimas em seus
olhos, assim como nos meus. Suspirei tentando decidir se o abraçava também
ou se continuava brigando, porém havia claridade demais na cabana, uma
briga seria desperdício de tempo.
​― Não quero cair, eu só estava... Foi algo estúpido. – Admitiu.
​― Muito estúpido. – Rebati. – Eu não amo o Pietro, ele me usou, não
sei o motivo, mas aquilo não era amor. Talvez desejo, talvez uma bobagem
de adolescente, mas não amor. – Era a primeira vez que me dava conta disso.
​― Tudo bem... Não precisa explicar. – Sussurrou e beijou meu
pescoço, novamente enroscando-se em mim, braços em minha cintura, uma
das pernas entre as minhas.
​― Não estou explicando, só... constatando.
​Ele não acreditava em mim, mas não tinha como acreditar, se eu
mesma não entendia direito o que estava sentindo.
​― Vem... Quero mostrar uma coisa. – Disse depois de alguns minutos
de silêncio.
​― Para onde?
​― Você me deve um encontro.
​― O quê?
​Estávamos do lado de fora da cabana, o céu num tom cinza-claro, o
sol perto de nascer, a lua acima de nós, diminuta, quase sumindo. Arthur me
puxou para ele e abriu as asas, a visão fez meu estômago gelar. Senti-me
ansiosa em tocá-las novamente e abençoada por ganhar esta lembrança na
minha última noite como humana. Sorri apoiando a cabeça em seu peito sem
perguntar mais nada.
​O voo foi curto, ele me levou até o telhado da cabana, ali estendeu
uma manta que não tinha percebido que havia levado e se sentou, encostando
as costas na chaminé. Sentei-me entre suas pernas, de costas para ele,
apoiando meus braços em suas pernas. Ele afastou meus cabelos com
delicadeza e tocou com leveza os lábios na minha orelha. Sua voz, quando
falou, saiu rouca e baixa, deixando-me mais uma vez com a boca do
estômago gelada.
​― Violet, preste atenção ali. – Apontou para as árvores. Os pinheiros
se dividiram ao meio, abrindo espaço, se curvando para os lados. Lembrei-me
imediatamente de uma história na bíblia onde um mar se abriu ao meio para
pessoas passarem. Meu coração deu um salto, tão maravilhado quanto eu com
a imagem que me era apresentada. – O sol vai nascer naquela montanha.
​Segurei com firmeza nas coxas de Arthur, ansiosa, trêmula,
emocionada por ele ter lembrado. Arthur permaneceu com o rosto próximo
ao meu, observando também a montanha que ele havia apontado.
​A montanha era marrom em seu topo, o verde tornando-se mais
escuro na medida em que descia meus olhos, parecia longe de nós, talvez a
quilômetros de distância. Aos poucos, o céu ficou azulado em seu topo,
expulsando a escuridão da noite, a claridade do sol atingindo-a também,
como se nascesse de dentro dela. Foi lento, mas, em um momento, comecei a
sentir o calor atingindo meus pés conforme o sol tornava-se o dono absoluto
daquela imagem. O calor cresceu até me tomar totalmente. Soltei meu peso
no peito de Arthur, emocionada com a surpresa. Tons alaranjados e azuis,
misturados ao amarelo brilhante do sol, fizeram meus olhos arderem e vários
pontinhos de luz se espalharem na minha visão, mas ainda assim não os
desviei da paisagem. Em poucos minutos, já era dia.
​― Obrigada. – Sussurrei, dando conta que Arthur estava realizando
um sonho meu, a conversa na sala de aula, nossa redação parecia tão distante
que já tinha esquecido dela.
​― Isto sim é ver o sol nascer. – Comentou com um riso satisfeito. –
Com fome? – Neguei. – Com sono? – Neguei também.
​― E você?
​― Estou muito bem aqui, mas precisamos entrar.
​Como concordei, ele me pegou no colo junto com o cobertor e desceu
voando, entrou na cabana comigo ainda em seus braços.
​― Temos que ir, não é? – Perguntei aninhada ao peito dele,
praticamente me sentindo muito menor do que já sou.
​― Temos alguns minutos para um banho, nos arrumarmos, e talvez
até tomarmos café. Quer ir primeiro?
​― Não quero perder tempo tomando banho. – Tinha evitado pensar
no julgamento, mas a claridade na cabana era esmagadora, me trazendo a
realidade.
​Encolhi-me em seu peito, escondendo o rosto no vão de seu braço.
Arthur se sentou comigo na cama e me fez olhá-lo.
​― Suzanna, seja o que for que aconteça hoje, naquele julgamento, eu
tenho certeza de que tomaram todo o cuidado para não haver injustiça.
​― Eu acredito nisso, mas você viu como o Pietro inverte tudo! –
Choraminguei.
​― Ele quer você do lado deles, isso é totalmente esperado. Agora vai
tomar um banho, vista sua roupa enquanto eu preparo algo para comermos. –
Ele beijou minha testa e me fez levantar. Percebi que não o ouvia mais, mas
não reclamei, era visível que ele também estava perturbado pelo nascer do
sol. – Pode usar minha toalha. – Disse, depois que me tranquei no banheiro.
​Fui rápida no banho, ele estava certo sobre isto, não poderia
apresentar-me no julgamento suja e com o rosto abatido, que foi exatamente
o que vi quando me olhei no espelho. Uma menina extremamente assustada.
​Sai do banheiro vestida com as roupas que me deram no Segundo
Éden, estavam sujas por causa da forma que saímos de lá. Em meus cabelos,
fiz uma trança apertada. Estava ainda mais preocupada com o que
encontraríamos, de ser considerada culpada pelos estragos e, no fundo do
meu coração, tinha muito medo de voltar a ver Arthur frio e distante
novamente quando voltássemos para lá.
​Arthur me examinou com o canto dos olhos e se afastou da pia, sobre
ela havia uma bacia com vários tipos de frutas cortadas em cubinhos. Ele me
serviu um pouco em um copo de vidro. Sentei na cama para comer enquanto
ele foi para o banho.
​Arthur saiu vestido todo de branco, uma camisa com as mangas
dobradas até o cotovelo, três botões abertos como sempre. Os cabelos
estavam bagunçados e pingando, o perfume intensificado por causa da pele
quente. O fiz se sentar entre as minhas pernas, retirei o pente de suas mãos e
o penteei, depois baguncei propositalmente. Estava arrebatador de tão lindo.
​― Obrigado. – Ele beijou meus lábios, sorrindo. – Pronta?
​― Não. – Choraminguei.
​― Alguma hora, nós teremos que encarar isso. – Disse
carinhosamente, passando os dedos em meu rosto, voltado para mim, mas
ainda sentado entre as minhas pernas.
​― Eu sei, mas queria tornar essa noite eterna. Se eu for condenada...
Seremos inimigos para sempre. – Sussurrei.
​Ele me calou, colocando os lábios nos meus e me beijando de leve,
depois levantou, estendendo a mão para que o acompanhasse.
​― Vamos pensar nisso quando for a hora. Neste momento, você é
minha protegida e eu, seu guardião.
​Deixei o copo e a colher na pia e fomos para o lado de fora da cabana.
O céu estava totalmente claro e notei que as árvores tinham voltado ao lugar,
mas não tive vontade de perguntar como ele fez aquilo ou de dizer como tudo
foi perfeito. Esperei ele abrir as asas, me segurei em seu pescoço, apoiando o
meu corpo ao dele e com os pés sobre os dele fechei meus olhos, deixando-o
me levar para longe daquele sonho, daquela noite que eu sabia ter sido a
última lembrança boa da minha vida.
Capítulo 7

​Ouvir as asas de Arthur batendo era tranquilizador, mas não quando


percebi que mais outras se juntaram às dele. Abri meus olhos e constatei o
que meus ouvidos souberam antes: Estávamos cercados.
​Eles querem ter certeza de que vou para o julgamento? Perguntei a
Arthur.
​Não, mas que estejamos seguros até lá. Ele estava rígido, parecia me
tocar com receio, porém meus dedos deslizavam por sua nuca com uma
carícia proibida que eu não queria deixar de fazer. Ele também não me
impediu.
​Acha que nos atacariam? Victória disse que era proibido. Sussurrei
como se pudessem ouvir nossos pensamentos.
​Ela estava certa, mas fora da proteção da minha casa temos de ser
cuidadosos. Como sempre, não entendi qual era a diferença entre a casa dele
e estarmos a céu aberto, mas não perguntei mais nada. Suzanna, eu amo você,
e seja o que for que acontecer hoje, isso não vai mudar. Prometa que não vai
esquecer. Pediu, ergui meus olhos, mas seu rosto estava duro, como se não
houvesse sentimento algum ali, porém sua voz estava aflita.
​Prometo.
​Assim que respondi fui colocada no chão, não tive tempo de dizer que
também o amava, que o queria ao meu lado, nem me despedir ou abraçá-lo,
fui arrancada de seus braços e me empurraram para longe. Ele ficou parado
no meio da rua do Segundo Éden, com o olhar fixo no meu e os dentes
trincados.
​― Entre. – Um dos anjos que nos escoltou abriu a porta da cela, entrei
sem protestos. Havia uma roupa limpa sobre a cama e sapatos novos, iguais à
vestimenta que estava usando.
​Depois de ouvir a porta ser trancada, me vesti, arrumei melhor meu
cabelo, deixando-o com um coque bem firme, nem parecia o fuá rebelde de
horas atrás. E esperei um tempo que me pareceu eterno, até me buscarem.
​A porta foi aberta novamente. Victória e Sophia entraram e se
sentaram na cama comigo. Eu estava segurando o choro e evitando pensar em
Pierre para não desabar, mas, quando Vic tocou meu rosto, abracei-a furiosa,
jogando meu corpo para o dela como quem pede desesperadamente um colo.
​ Calma criança, se acalme! – Victória sussurrou, fazendo carinho na

minha cabeça, evitando sutilmente o coque. – Tudo ficará bem, não precisa
chorar.
​― Suzanna, não fique assim tão desesperada. – Sophia falou
docemente. – Nem tudo está perdido.
​― Não sei o que fazer com tudo isso! – Referia-me ao sentimento por
Arthur. Parecia me sufocar. As palavras dele e algumas atitudes daquela
madrugada de repente me deram a certeza de que ele faria qualquer coisa
para me acompanhar, para onde quer que me mandassem.
​― Isso o quê, criança? – Victória me encarou e Sophia me deu um
lenço que usei para limpar meu rosto.
― Isso tudo. Se eu for para o Inferno mesmo, o que vou fazer? Como
ficará Pierre? E vocês? Teremos de lutar uns contra os outros? Terei de
apoiar o Inferno? Não sei como fazer isso... Tenho medo pelo Pierre...
​― Suzanna, se for esse mesmo o seu destino, é porque sua escolha foi
verdadeira quando seguiu Pietro, mesmo que você negue a acreditar que foi.
Então, quando chegar ao Inferno, tudo fará sentido. É assim. Nós ficaremos
bem...
​― Mas, não pode ser! Eu não sou má. – Sussurrei.
​― Todo ser humano tem maldade e bondade dentro de si.
​Resolvi não falar mais, a conversa só estava me deixando enjoada.
Afirmei lentamente como quem concorda e fiquei em pé.
​― Bom... Então, espero que o Inferno aguente minha maldade,
porque, se eu for para lá, o mundo será pequeno demais para o Pietro se
esconder.
​― Não alimente o ódio dentro de você. – Orientou-me Victória.
​Parei à frente da porta esperando por elas. Quando abriram,
posicionei-me para ser escoltada. O amor que achei sentir pelo anjo caído, a
saudade dos beijos que trocamos e da temperatura confusa de sua pele
transformando-se em algo amargo. Ele tirou minha infância, tirou meus pais,
meus avós, e até Arthur, caso a escolha do Juiz fosse o Inferno. Ao menos,
algo bom tirarei disto, poderei me vingar.
​Imaginei a luz desde o alto da minha cabeça até a ponta dos meus pés,
me cobrindo, protegendo, deixando todos do lado de fora exceto Arthur, pois
era tão automático quanto respirar mantê-lo dentro da minha proteção
mental. Entramos em uma sala diferente, não notei nenhum estrago
no caminho que fizemos até lá, as ruas pareciam as mesmas, exceto pelas
poucas pessoas circulando por elas.
​A sala era mais simples e menor, os anjos estavam sentados em
cadeiras enfileiradas em três partes, da mesma forma que os caídos e os
demônios do outro lado. Seis cadeiras iguais, simples e de madeira estavam
logo à frente, três de cada lado, separadas por um corredor curto. Encontrei
Arthur sentado na ponta da primeira fileira e isto me encorajou, pois ele
sempre ficava quase ao fundo. Suas feições eram as mesmas, maxilar
trincado e o olhar duro, inflexível. Ele não me olhou de volta, o que era
exatamente o que eu esperava.
​Sentei-me na cadeira do centro, tendo Victória à esquerda e Sophia a
minha direita; do outro lado, estavam Haddes, seu ajudante e Pietro. Este me
encarou em júbilo, as marcas que vi em seu rosto há alguns dias haviam
sumido completamente. Imediatamente, desviei o olhar para o Juiz, ele estava
em pé atrás de uma bancada de madeira e folheava alguns papéis. Aqui não
havia nenhuma tela, minha vida não seria projetada, ao menos esperava que
não.
​Sr. Paulo tossiu e todos fizeram silêncio. Ele ergueu o queixo, olhou
para cada um presente e depois para mim.
​― Suzanna, fique em pé para receber sua sentença final.
​Meu estômago se revirou e senti uma pontada no coração quando ele
pediu. Levantei, tentando não demonstrar o quanto estava trêmula por dentro.
Queria olhar para Arthur, queria que ele estivesse ao meu lado e não Victória,
mas entendia o motivo da distância. O anjo estava de volta, entre os seus, eu
era apenas a ré a ser condenada.
​O Juiz continuou me olhando, soltei o ar lentamente e respirei fundo,
me preparando para o pior. De relance, percebi a inquietação do lado dos
demônios, apenas os acusadores pareciam inabalados: Pietro estava com um
sorriso estampado no rosto e Haddes com ar de tédio.
​Sr. Paulo desviou o olhar, encarou seus papéis, erguendo a voz ao se
direcionar a todos nós. Quando seus olhos se voltaram à plateia, ele parecia
concentrado em seu dever e me lembrou um daqueles juízes de seriados que
tem algo muito sério e determinante a dizer.
​― Encerramos os trabalhos aqui e tenho convicção de que escutamos
todas as testemunhas relevantes, e analisamos todas as provas necessárias. No
julgamento de Suzanna Monteiro, brasileira, dezessete anos, acusada pelos
crimes de abandonar um anjo ferido, escolher seguir um caído ao Inferno e
luxúria, decido conforme os fundamentos a seguir:
“​ Na data dos fatos e diante das circunstâncias analisadas, a ré obteve a
oportunidade de seguir por dois caminhos: permanecer ao lado do bem,
ficando do lado do anjo Pierre e aguardando o socorro, ou escolhendo o mal
ao seguir o anjo caído Pietro. A ré escolheu seguir com Pietro, escolhendo,
portanto, o mal. A escolha da ré foi feita por livre e espontânea vontade,
portanto, ela tinha plena consciência do que fazia. A punição por tal atitude é
a condenação ao Inferno, onde a ré estará ao lado do demônio que escolheu
seguir e seus semelhantes”.
​Fechei minhas mãos, apertando as unhas na carne para me aguentar
em pé, a introdução mais parecia a própria condenação. Eu seguiria para o
Inferno, agora tinha certeza. Ele continuou falando.
​― Pelas acusações a que é acusada a ré, é fato que sua escolha
ocorreu por sua própria vontade e essa tem discernimento suficiente para
tomar tal decisão, no entanto, é importante observamos as circunstâncias em
que tal atitude foi tomada. Ao decidir seguir o anjo caído Pietro, escolhendo
assim o Inferno, a ré não tinha ciência de que tal escolha queria dizer
implicitamente a escolha do Inferno, como bem observou a defensora
Victória. Em contrapartida, como demonstrado pelo acusador substituto
Pietro, Suzanna o quis e pediu para que esse fosse adiante com a relação
deles, fazendo assim sua primeira escolha sem ser influenciada pelo seu
poder de persuasão. Diante disso, profiro por fim a sentença a seguir:
​“A ré é menor de idade e é de bom senso observarmos que esta não
tinha condições de percepção da dimensão da sua decisão, além de não saber
as atitudes implícitas por seus atos”.
​“A defensora e o acusador trouxeram a esse tribunal suas
argumentações e, com base nelas e nas verdadeiras intenções da ré que
pudemos observar ao longo desse julgamento, eu a absolvo de todas as
acusações, já que não tinha a verdadeira intenção de escolher o Inferno ao
tomar suas decisões, agindo assim, sem dolo e em benefício do anjo Pierre,
com a intenção de protegê-lo. A falta de dolo justifica essa absolvição, já que
não há que se falar em condenação para um ato realizado sem a intenção de
assim o ser. Diante de todo o exposto, julgo inocente a ré das acusações
apresentadas”.
​Olhei para Arthur, atrás de mim, e sua expressão era a mesma que eu
imaginava estar estampada em meu rosto. Surpresa e alívio. Porém, antes que
me sentisse realmente aliviada, o Juiz voltou a falar.
​― Entretanto, acho necessária uma pequena providência em relação a
ré. Absolvo Suzanna da condenação apresentada, porém a condeno a passar
um período indeterminado de volta a sua vida na Terra, para que assim
possamos analisar seus atos a partir daqui tomados e nos certificarmos com
absoluta convicção de que a escolha de Suzanna é o bem. Para isso, designo o
anjo Pierre para ser seu guardião nessa tarefa, para ensiná-la tudo o que deve
saber sobre nossas regras, leis e consequências de suas futuras escolhas. A
pena deve começar a ser cumprida imediatamente. O julgamento está
encerrado.
​Pierre? Meu guardião? Vou voltar para casa? Para a minha casa?
Pensava enquanto sentia mãos me apertando, um sonoro alvoroço atrás de
mim, xingamentos vindos do lado dos demônios. Eu queria gritar, mas estava
paralisada no lugar.
​― Suzanna? – O Juiz estendia a mão para me cumprimentar, minhas
pernas falharam e alguém ajudou a me sentar.
​― Obrigada. – Sussurrei para ele, segurando sua mão, estava trêmula
e muito confusa. – Eles podem ir atrás de mim? – Puxei-o para mais perto ao
perguntar.
​― Sim, mas não podem tocá-la, você continua sendo humana, não
mais alguém com a alma marcada para ser recolhida pelo Inferno, mas pode
ser. Isto dependerá dos seus atos e das suas escolhas. – Advertiu. – Respeitem
minha decisão e saiam! – Ele gritou, erguendo o rosto para além de mim. –
Não vão destruir esta sala também.
​O Juiz se afastou e uma mão fria tocou meu ombro, eu saberia a quem
pertencia mesmo dali a um milhão de anos. Levantei-me, empurrando sua
mão para longe. Pietro estava tenso, o olhar fixo no meu.
​― Estou feliz pela sentença, Suzanna. Não me condene pelo que fiz,
eu não tinha escolha. – Ergueu os olhos para Victória, ela segurou seu braço
antes que ele saísse e o levou para longe de mim, agradeci silenciosamente
por isso, ou talvez a sentença fosse revogada, pois minha vontade foi de
enforcá-lo naquele momento.
​Arthur apareceu do nada ao meu lado, estava sério como os guardas
ficavam quando precisavam me escoltar, eu queria abraçá-lo, me juntar a ele,
chorar até ficar sem ar, mas não o fiz, porque, quando tentei, ele apenas me
encarou irritado. Parecia não ter gostado de ter que voltar à Terra e ainda ser
meu guardião. Ele não queria ser meu guardião, estava estampado em seu
rosto. Talvez, fosse mais importante do que um simples guardião, deduzi
chateada. Em menos de meia hora, o salão esvaziou, permanecendo comigo
apenas Sophia e ele.
― Vamos pegar suas coisas para você voltar para casa. – Disse ela
toda animada, me puxando pela mão na direção da saída. Pierre nos
acompanhou em silêncio e, quando paramos na porta da cela, ele ficou do
lado de fora, montando guarda.
​― Ele não gostou que fui absolvida? – Perguntei a Sophia.
​― Claro que gostou. – Garantiu – Ele é seu guardião, está apenas
fazendo seu papel.
​Balancei a cabeça um pouco confusa, ele não agia assim e Pietro
afirmara, no dia em que eu o abandonei, que Arthur era meu guardião.
Coloquei a mão na têmpora massageando-a, decidindo perguntar quando
chegássemos à Mansão dos meus avós, ele tinha a obrigação de me ensinar
tudo, essa seria uma forma de fazê-lo falar.
​Eu não tinha nada para levar comigo, nenhum pertence e Sophia sabia
disso, percebi que ela queria apenas se despedir e a abracei.
​― Obrigada pelo que fez por mim, por sua amizade e competência.
Jamais vou esquecer.
​― Oh, apenas tome conta de si mesma e volte para nós, Suzanna.
Você é importante, os dons que tem, que se manifestarão em você, são de
grande valia para ambos os lados, tome muito cuidado.
​― Vou tomar. Obrigada pelo aviso. – Ela beijou meu rosto e Victória
entrou na cela, se juntando ao abraço. – Você sabia da sentença? – Perguntei
quando me soltaram.
​― Não, mas desconfiei. Quando vimos aquela reprise do Pietro
quebrando o baú, ficou claro para todos nós que ele a influenciou. Ele
também será julgado, Suzanna. Condenado a não sair mais do Inferno, nem a
passeio.
​Mordi meu lábio com força. Por mais que pensasse em machucar
Pietro, na verdade eu não queria seu mau. Toquei na mão de Victória um
pouco constrangida pelo que iria dizer.
​― Eu não sei se ele mentiu realmente quando dizia estar apaixonado,
e ele me disse que não tinha escolha. Em alguns momentos, pareceu mesmo
estar me protegendo naquela praia. – A raiva ainda estava muito forte dentro
de mim, mas não queria ser injusta ou condená-lo sem a chance de se
explicar, como achei que fariam comigo. – É o que eu acho... Às vezes.
​― Não se preocupe com ele, o pior seria ele voltar para o Inferno
agora, sem você. Ele ficará por aqui, por hora.
​ lívio e tensão me dominaram com a informação. Não queria
A
imaginar o que seria dele voltando ao Inferno. Novamente me senti culpada
pela dor de outra pessoa. Por mais que achasse que ele merecia sofrer e
muito, não conseguia desejar isso de todo o meu coração, porém, por mais
que tentasse não pensar algo de ruim para ele, uma única frase ecoava na
minha cabeça.
​― Ele matou meus pais... – Pensei em voz alta. Ela segurou minha
mão e me fez olhá-la.
​― Suzanna, vá para casa.
​― Obrigada de novo. Quero que me visitem... – Pedi, abraçando-as,
ambas me levaram para fora da cela.
​― Tchau, Suzanna, boa viagem. – Falaram.
​Pierre apareceu ao meu lado, estendeu a mão e me ajudou a subir em
seus pés, abraçou minha cintura e abaixou um pouco para que o abraçasse
pela nuca.
​― Tchau meninas, obrigada. – Sorri, porque ter Pierre perto de mim,
mesmo carrancudo, me deixava feliz; não estava a caminho do Inferno como
pensávamos há poucas horas, mas para casa, com ele.
​― Até breve, Pierre.
​― Até, Victória. – Respondeu. Pela troca de olhar deles, ela sabia
exatamente o motivo dele estar sisudo.
​Imediatamente, recordei de quando estive aqui a primeira vez e soube
que ela já amou alguém e que era admirada por todos por ter conseguido não
ceder. Desejei ter a força dela para não prejudicar Pierre e a força dele para
me manter distante e decidi que faria de tudo para ele ser admirado também e
não cair como Pietro.
​― Pronta?
​― Sim.
​As asas surgiram mais brancas do que esta manhã, talvez por estarmos
aqui em um lugar tão iluminado. Agarrei firmemente quando começou a sair
do chão, sorri para as meninas que em poucos segundos pareciam formigas
abaixo dos nossos pés. O som das asas já me era familiar, mas não o caminho
que tomaria até a Mansão dos meus avós.
​Voamos com ele rígido, somente o vento e as asas quebrando o
silêncio. Depois de quase uma hora assim, ele respirou fundo, colocou a mão
esquerda no coque em meu cabelo e o desfez. Fiquei surpresa, pois não
estava esperando isso, cheguei a saltar de susto. Pierre nada disse, apenas
continuou acariciando minha nuca, massageando lentamente; parecia distante
em pensamentos. Fechei meus olhos aconchegando-me em seu peito, minhas
pernas doíam por ficar na mesma posição e imaginava como era para ele voar
praticamente em pé e não inclinado. Devia ser incômodo também.
​Pensei muito no que dizer. Por um tempo interminável, criei frases,
conversas, situações em que pudéssemos trocar algumas palavras, mas não
consegui pronunciar nada além de respirações rápidas como se fosse falar e,
depois, silêncio absoluto.
​Começamos a descer e abri os olhos, imaginando ver a Mansão dos
meus avós, mas, ao invés disso, estávamos de volta à cabana, no meio da
floresta.
​― Achei que iríamos para casa. – Sussurrei.
​― E viemos.
​Afastei o rosto, encarando-o, Pierre continuava sério, quase
carrancudo. Soltou-me no chão e esticou bem as asas, os braços e as costas.
Ouvi os estalos dos ossos, estava se alongando.
​― Estou pesada demais? – Perguntei em um tom azedo.
​― Não, mas estou cansado, meu corpo está. – As asas se fecharam em
um baque surdo, roubando todo o ar à nossa volta. Um segundo depois, a
corrente de ar voltou a correr.
​A menção dele sobre o cansaço me fez perceber o quanto eu mesma
estava cansada. Puxei-o pela mão, ignorando sua carranca e abri a porta, pois
não estava trancada. Assim que entramos, ele a empurrou com o pé e
abraçou-me com força, recostando-se nela. Sentia a respiração dele em meu
pescoço, estava rápida, estranha, e me puxou até apoiar meu próprio corpo ao
dele.
​― Arthur, você está bem? – Deslizei minha mão por sua nuca,
acariciando, sentindo o aperto dele ficar mais forte. – O que houve?
​― Estou bem, estou bem. – Garantiu. – E você? Não imaginei que
voltaria para cá com você...
​Você foi salva... Meu pai te ajudou! Eu não acredito que ele fez isso...
Ainda não consigo acreditar. É uma armadilha... Ele está me testando.
Tenho certeza que está.
​― Seu pai?
​Quando ele me encarou, percebi que ouvia seus pensamentos, que
algumas das imagens confusas que achei serem da minha própria desordem,
vinham dele, me recordando da noite.
​― Pietro e eu somos irmãos. – Arregalei meus olhos, me afastando
dele.
​― Irmãos?
​― Sim... Ele é mais velho do que eu. É um caído, mas ainda somos
irmãos. – Ele continuou lá, encostado na porta, parecia a ponto de desabar.
​― Por que nunca me contou?
​― Não houve oportunidade.
​Segurei a mão de Arthur e o puxei para a cama comigo, o sofá era
pequeno demais para o tamanho dele. O fiz deitar e, em seguida, tirei seus
sapatos e as meias. Sentei-me ao lado dele e fiquei brincando com
seus cabelos. Ele era irmão de Pietro e, na verdade, no fundo, eu sempre
soube disso. Desde que vi aquelas fotos dos irmãos na casa da família Santos,
só não tinha dado conta disso.
​― Eu acho que ele tentou contar.
​― Quando? – A mão de Arthur estava repousada na minha cintura e
ele de olhos fechados.
​― Na primeira vez que estive dentro da Mansão dos Santos, vi uma
foto de vocês.
​― Nossa? – Ele abriu os olhos, me encarando. – Não tiramos fotos.
Não aparecemos nelas. – Completou.
​― Então... Não sei quem eram as crianças naquelas fotos, mas
pareciam muito com vocês. – Beijei o rosto dele. – Você precisa dormir.
​― Deve ter sido uma brincadeira dele, ou a forma de compartilhar...
​Arthur voltou a fechar os olhos e as palavras pareciam embolar em
sua boca quando pronunciava, deixando-me preocupada. Decidi conversar
depois. Toquei-o no rosto, acariciando, me recordando da noite que tivemos,
do quanto estivemos próximos, do sabor de seus lábios junto aos meus.
Queria dormir daquele modo novamente, mas uma voz dentro de mim dizia
que não poderíamos mais, que seria tudo diferente. Constatei isso quando
Arthur me deu espaço na cama e deitou de costas, dormindo quase que de
imediato.
​― Bons sonhos, Arthur. – Cobri-o com a manta que antes usamos no
telhado, me encolhi perto dele e fechei meus olhos na tentativa de
acompanhá-lo.
​Ainda era dia quando despertei, sentindo um vento frio entrando pela
janela me fazendo encolher. Sentei sobressaltada, jogando o cobertor de lado
e saí em disparada para a floresta.
​ Pierre? Arthur? – Dei alguns passos na direção das árvores, minha

respiração presa. – Arthur! Ah Deus, por favor, que ele esteja bem! – Pedi
baixo, correndo em volta da cabana, chamando por ele mais algumas vezes.
​Corri por mais alguns minutos, me distanciando. Ele não respondia e
eu não o sentia por perto, não tinha o cheiro, a presença, absolutamente nada.
Comecei a tremer de medo. Se Pietro veio atrás dele durante o tempo que
dormimos e não vi nada, ele poderia estar morto em algum lugar ou pior, pois
eu não sabia ao certo o que acontecia com um anjo que morria. Será que
desintegravam? Eram enterrados?
​― Arthur! – Chamei a plenos pulmões, voltando na direção da
cabana, temendo perder-me entre aquelas árvores.
​No desespero, comecei a chutar a cabana, chamando por ele e
completamente insana com a ideia de ter passado por tudo aquilo e tê-lo
perdido no único momento em que realmente me senti segura em semanas.
​― Ei, ei, o que houve? – Mãos firmes me puxaram, afastando-me da
cabana. – Alguém te atacou? – Havia desespero na voz de Arthur. Virei-me e
o abracei com força. – Alguém esteve aqui? Te machucaram? Suzanna! –
Fez-me olhá-lo nos olhos.
​― Não! Atacaram você? – Devolvi a pergunta. – Você sumiu... Você
não estava na cama... – Senti minha garganta travar de medo.
​― Não Suzanna, só fui colher algumas uvas para você. – Me mostrou
uma bacia com alguns cachos.
​Sai de perto dele, batendo firme com os pés no chão. Entrei na cabana
e me joguei na cama com o rosto escondido no travesseiro. Tinha ciência que
era uma atitude infantil, mas estava envergonhada por ter chutado a casa dele.
Ele não entenderia meu motivo, me acharia uma criança louca.
​Senti a cama se mover quando ele sentou, seus dedos roçaram meu
calcanhar, subiram por minha perna, até que soltou o peso sobre o meu corpo,
fechei meus olhos com força quase agradecendo por aquilo.
​― Estamos bem... – Sussurrei. Arthur aliviou o peso e me fez virar de
barriga para cima.
​― Você ainda está assustada? – Perguntou num tom carinhoso,
parecia o homem da noite anterior.
​― Bastante. – Confessei, estava tremendo por achar que ele tinha sido
pego. – Achei que tinham pegado você. – Sussurrei.
​― Perdoe-me por te assustar.
​― Deixe um bilhete na próxima vez. – Pedi. Ele sorriu, beijou minha
testa e se levantou.
​― Prometo. Quer uva?
​― Não. – Puxei-o de volta pela camisa, ele riu um pouco
constrangido.
​― Suzanna, eu te trouxe aqui para conversarmos, mas estava
realmente exausto, por isso acabei caindo no sono... Esses dias não foram
fáceis para nenhum de nós.
​― Não tem problema ter dormido... – Senti um tremor passar por todo
o meu corpo. Ele se sentou mais perto e me sentei também.
​Aconcheguei-me em seus braços e deixei que me envolvesse.
Encostei a cabeça em seu ombro esperando pelo que ele tinha a dizer. Algo
me alertava que não seria uma conversa boa para nós dois. A expressão dele
estava mais para o anjo do que para o humano.
​― Não sou bom com enrolação, então vou direto ao assunto. –
Continuei em silêncio, ouvindo. – Eu sou um anjo, Suzanna, o seu guardião
novamente e, desta vez, não quero perder você, não quero colocá-la em risco
de morte e nem aqueles que você ama por causa da visão do seu pai ou
porque me distrai do meu dever.
​― Você não tem culpa de nada, Arthur...
​― Tenho. Desviei de meu caminho e não preciso explicar quais foram
as consequências, você foi a mais prejudicada. – Ele tocou meu rosto
puxando carinhosamente até que o olhasse. Estava prendendo o ar para não
chorar, antevendo o que viria. – Precisamos de algumas regras.
​― Quais?
​― Sem beijos, sem toques mais ousados, sem carícias... Não somos
namorados, não seremos. Sou seu guardião e você é minha aprendiz. Na
escola, serei seu colega de classe ou talvez seu professor, isto não foi
discutido ainda. – Arthur apertou os lábios, parecia ter dificuldade para
continuar, então toquei seu rosto, assentindo com a cabeça, pois entendia seus
motivos e não queria que ele se prejudicasse por minha causa. – Preciso que
me ajude nisso.
​― Sem problemas. Eu entendo, entendo perfeitamente e não quero
que você perca suas asas, que se prejudique novamente por minha culpa. –
Respirei fundo, apesar de sentir meu coração se rachando ao meio. Sentia
também alívio por ele exteriorizar o que eu vinha pensando. – Mas... Não
poderei nem te abraçar? Nem como estamos agora? – Meu tom foi tão baixo
que acreditei não ter sido ouvida.
​Ele não respondeu, apenas me abraçou e repousou os lábios no meu
ombro, em silêncio.
​― Suzanna, não sei se você entende as consequências. Para você, não
são graves, você é humana, mas, para mim... Já vi isso acontecer muitas
vezes, até com meu próprio irmão e não foi fácil. Não quero esquecer quem
eu sou porque...
​― Por minha causa. – Completei.
​― Porque te amo. – Finalizou.
​Meu coração quase parou quando ouvi. Desejei beijá-lo como fizemos
nesta mesma cama na noite passada, perder o controle e sentir de novo os
lábios dele de verdade nos meus, mas o alerta sobre as consequências me
deixou paralisada. Também tinha a dúvida de que talvez ele não acreditasse
em mim caso afirmasse que também o amava. Declarar-me só deixaria mais
difícil para ele ser apenas meu guardião, por isso fiz a pior coisa que se deve
fazer quando alguém diz que te ama, fiquei em silêncio, gritando por dentro
que também o amava, segundo após segundo durante o tempo interminável
em que o silêncio perdurou.
​Não queria me afastar dele, a minha vontade era continuar ali até tudo
passar, mas os minutos pareciam mais lentos que o normal. Arthur respirou
fundo, talvez se dando conta que eu não responderia. Pensei mais uma vez
que o amava profundamente quando ele afrouxou o abraço e me soltou.
Capítulo 8

​ Temos mais algumas coisas a combinar. – Disse tenso, pegando



um copo de água na pia e se virando para me olhar.
​Adquiri uma postura neutra, tentando guardar dentro de mim todos os
sentimentos estranhos e confusos que estavam me deixando à beira do
desespero. Quando o perdi naquela floresta, não achei que voltaria a me
sentir tão longe dele, mesmo estando a passos de distância.
​― Que coisas?
​― Vamos para a casa dos seus avós. Aproveitaremos o espaço para
alguns dos seus treinamentos, mas a maioria será aqui ou no Segundo Éden.
A primeira lição será manter em segredo tudo o que aconteceu com você
desde que sumiu. Seus avós foram informados apenas que você está em
treinamento e que não permitimos que entrasse em contato.
​― Anjos podem mentir? – Perguntei incrédula.
​― Não, mas não é totalmente mentira. Eles não perguntaram desde
quando, apenas aceitaram que foi desde que você sumiu.
​― Vocês manipularam a verdade! – Esbravejei, me levantando e indo
até ele. – Arthur, não vou mentir para os meus avós.
​Ele abriu um sorriso lindo, segurou em minha nuca e senti meu corpo
amolecer, apoiei-me em seu peito para permanecer em pé.
​― Primeira lição aprendida: não minta. Nunca. A mentira traz outras
e cada vez maiores, porém é importante que nenhum humano tenha
conhecimento sobre sua origem ou sobre nós. – Respirei fundo, ficando ereta
e sorri. – Sente-se bem?
​Toquei-o da mesma forma que fez em mim, mas ousei apertar sua
nuca. Estávamos muito próximos e quase da mesma altura, por ele estar
encostado na pia, nossos lábios a centímetros de distância. Passeei com o
olhar por seu rosto lentamente, sentindo de imediato a conexão entre nós
intensificar. De repente, ele soltou minha nuca e deu-me as costas, colocando
o copo na pia.
​― Segunda lição: Não toque. – Sussurrei em tom de brincadeira e ele
gemeu contrariado, depois sorriu e, ao se virar, beijou minha testa.
​― E se eu quiser? – Ele sussurrou. Nossos corpos estavam unidos,
mas sem malícia alguma. Senti meu estômago gelar com a pergunta.
​ Vai tornar tudo mais difícil. – Estiquei-me, encostando o rosto ao

dele. Suspiramos ao mesmo tempo.
​― Vamos embora. – Decidiu.
​― Temos que ir hoje? Não podemos ter mais uma noite aqui e depois
voltamos à realidade? – A sensação que tinha era que, a partir do momento
que colocássemos os pés para fora da cabana, eu não teria mais Arthur junto a
mim, apenas o guardião Pierre, distante e professoral.
​Ficamos em silêncio, ele brincando com a ponta dos meus cabelos e
eu passando o rosto no dele, sem pressa alguma de ouvir a resposta.
​― Como ontem? – Disse e eu quase sorri.
​― É. Mas dessa vez, sabemos que realmente é uma despedida. –
Acrescentei.
​Arthur soltou um muxoxo, afastou-me dele e beijou minha testa de
novo.
​― Podemos, quero dizer, não podemos, mas eu quero.
​Ele me encarou como quem quer falar algo mais, então o encorajei.
​― E... Tem mais coisa?
​― A minha casa é protegida. Depois que Pietro nos achou aqui, fiz
alguns ajustes. Ninguém pode nos escutar estando dentro da cabana. Não
podem escutar, nem ver. – Abri um sorriso, pensando nas possibilidades e ele
interrompeu meu pequeno momento feliz. – Mas, nada é oculto aos olhos de
Deus, por isso, mesmo aqui, tomaremos cuidado.
​Concordei com a cabeça bem lentamente. Era uma tortura estar
apaixonada por alguém com quem não posso ficar, porém me lembrei de que
Victória havia dito que poderíamos sim, ficar juntos ― se eu escolhesse o
Céu ― e eu o havia escolhido.
​― Arthur...
​― Não podemos. – Ele cortou. – Tem muita coisa em jogo.
​― Por que não? Victória me falou que poderíamos ficar juntos se eu
tivesse escolhido o Céu, ser como o Havi, mas para o Céu. – Murmurei.
​― Não é tão simples.
​― Nunca é. – Reclamei.
​― Suzanna... – Enquanto falava ele tomou meu rosto entre as mãos,
me olhando tão profundamente que minhas pernas amoleceram e precisei me
segurar nele para não cair. Ele usou uma das mãos para me apoiar,
colocando-a no centro das minhas costas. – Você tem muito para viver,
muito. Dezessete anos não são nada perto dos séculos que já vivi.
​ O que isso tem a ver... – Comecei, mas então entendi a questão

dele, meus olhos se encheram d’água. – Eu sei que sou imatura, você tem
razão. Toda razão. – Era óbvio que ele iria preferir uma mulher madura,
talvez até Victória fosse melhor para ele do que eu. Sorri debilmente,
tentando não demonstrar o quanto perceber isto me abalou.
​Ele riu, em seguida seus lábios estavam tocando os meus, porém o
toque foi tão sutil e leve que pareceu não ter acontecido. Arthur usou um tom
carinhoso ao falar novamente comigo.
​― Não por ser imatura. – Fiz uma careta e ele se corrigiu. – O que
você deixou de ser, um pouco. – Riu, mas seus olhos estavam sérios. – Mas,
porque você merece ter uma vida humana normal.
​― Não tem nada de normal na minha vida. Nunca teve.
​Arthur concordou, mas, pelo modo que me olhou, eu não o
convenceria do contrário. Desviei os olhos para a janela e o céu começava a
escurecer.
​― Está com fome?
​― Não, e você? – Abracei-o para quem não tentasse sair dali.
​― Também não. – Ficamos nos olhando, ele passando a mão no meu
rosto e eu enrolando a gola de sua camiseta no meu dedo, impaciente.
​― Arthur...
​― Hm?
​― Lembra da primeira vez que estivemos aqui? – Pelo sorriso que ele
me lançou, ele se lembrava bem. – Aquele beijo... Você foi prejudicado por
causa dele? Aconteceu alguma coisa?
​Ele negou lentamente, talvez pensando no que me responder.
​― Não, nem comentaram sobre isso. Acho que não teve
importância...
​― Hmm... Menos mal.
​― Por quê? – Questionou, encarando meus olhos de novo com aquele
tom cinzento que me faz perder o rumo.
​― Fiquei preocupada. – Disse, mas queria realmente dizer que queria
outro.
​Incomodado ele se mexeu, beijou minha testa – ele e sua mania de me
beijar na testa! – e foi até a geladeira se servindo de um copo de água,
estranhei a água gelada e descobri que ele retirava de um recipiente na porta
da geladeira, do lado de fora. Ergui a sobrancelha por causa do artigo de luxo
e ele riu.
​ Ganhei de Victória, pois eu sempre me esquecia de colocar água

para gelar. – Explicou. Sorveu todo o líquido e colocou o copo na pia. –
Suzanna, acho melhor irmos hoje.
​― Ué, por quê?
​― Temos muito tempo ocioso... – Murmurou.
​― Como assim?
​― Encha-me de perguntas. – Pediu, sentando na cama com as pernas
em forma de borboleta, eu puxei as pernas dele e me sentei entre elas,
aconchegando as costas ao peito dele.
​― Por quê? Você está estranho, falei algo que não gostou?
​Ele estava com um cacho dos meus cabelos entre os dedos, puxava os
fios e os enrolava de novo, me olhou e sorriu de lado.
​― Você é muito lerdinha, às vezes. – Arregalei os olhos diante da
alfinetada, mas ele riu. – Temos algumas horas até amanhecer de novo, muito
tempo sozinhos... É uma tentação que não precisamos forçar.
​― Forçar?
​― Por escolhermos passar a noite aqui. – Disse, como se isso fosse
me fazer entender.
​― Mas, nós quisemos, para nos despedirmos, lembra? – Ele fez que
sim, cheirou meus cabelos e depois voltou a soltar os fios e enrolá-los. –
Então, você não quer ficar aqui? Não precisamos, é só voarmos até em casa.
​― Eu quero ficar aqui.
​― Então, não entendi.
​Novamente ele riu, mas havia uma pontada de tristeza no fundo dos
olhos cinza, estavam opacos, sombrios.
​― Durante o julgamento, você parecia tão mais esperta.
​― Ai, essa doeu! Chamou-me de infantil, criança, lerda e agora de
burra. Obrigada, Arthur. – Fiz um bico e ele riu, seus lábios cobriram os
meus e senti meu coração na boca. Entreabri meus lábios me virando de lado
para um melhor encaixe, o braço dele me apoiou nas costas e levei a mão até
a nuca de Arthur, puxando-o para mim. Nossos lábios se moveram juntos
naquela sincronia que descobrimos ter na noite passada, sem toques
maliciosos, apenas a maciez do lábio um do outro e o hálito impregnando
minha boca, me fazendo suspirar muito baixo.
​Nossos movimentos eram calculados, quando ele movia os lábios eu
me retesava, concentrada em não beijá-lo de verdade, não roçar as línguas e
nem puxá-lo para junto do meu corpo, em seguida eu movia os meus lábios
sendo mais ousada que ele, puxando o inferior e soltando de leve depois de
chupá-lo. Arthur suspirou, apertou meus cabelos, puxou meu rosto para junto
do dele e senti a língua procurar pela minha.
​― Art... Não, Arthur... – Empurrei-o e, como quem sai de um transe,
ele me olhou assustado. – Você tem razão, devemos ir embora. – Sussurrei
quase sem fôlego. Minhas mãos estavam trêmulas e meu coração disparado.
​― Do que você tem medo? – Perguntou baixinho. – De não sentir o
mesmo de quando beijou Pietro?
​― Do que você está falando? – Por que trazia o Pietro a um momento
que era nosso? Fiquei séria, olhando para Arthur sem compreender.
​― Por que você não me beija?
​Ri de nervoso, toquei o rosto dele, parecia magoado comigo.
​― Tenho medo... De você cair, se... se... – Fiz uma careta mostrando
a língua para ele e falando ao mesmo tempo, as palavras saíram
estranhamente dos meus lábios. – A gente... Aí você perde as asas, entendeu?
​Ele demorou muito tempo para responder alguma coisa, minhas
bochechas estavam pegando fogo e só quis me afundar em algum lugar ao
lembrar que, ao invés de falar beijo de língua, eu mostrei a minha como se
mostrasse um beijo. Gemi, colocando as mãos no meu rosto.
​― Você tem medo de me beijar de língua e eu cair? – Ele riu de novo
e afundei o rosto nas mãos, grunhindo. – Só o toque dos nossos lábios já é
considerado errado. Na verdade, Suzanna, – ele gentilmente me fez olhá-lo –
o amor que sinto por você é o que de fato me condena. As ações só pioram
um pouquinho a situação, mas há um limite que, se eu alcançar, não tem
volta; foi o que aconteceu com o Pietro.
​― Qual limite? – Sussurrei, olhando para baixo.
​― Não sei. – Confessou. – O amor não morreu, mesmo depois de
tanto tempo... E eu continuo sendo um anjo. Então, acredito que o limite é
querer ser seu, mais do que desejar ser um anjo.
​― E você ainda deseja ser um anjo, não é? – Perguntei preocupada.
​― Só porque você não me ama também. – Suspirou chateado e eu
bati nele com força.
​― Não fala isso alto! Você quer ser um anjo porque você ama isso,
ama a Deus, ama seus amigos, ama cuidar dos humanos e lutar pelo bem.
Entendeu?
​Ele riu amargo e concordou devagar.
​― Exatamente isso.
​― E eu... Teamosim. – Falei rápido. Em seguida, me lembrei que não
deveria ter dito. Ele também não acreditaria, mas no fundo queria que, ao
menos uma vez, me ouvisse estando frente a frente com ele.
​― O que você disse? – Os olhos dele estavam fixos nos meus.
​― Ai, não me olha assim... – Pedi, tampando os olhos dele com as
duas mãos.
​― Repete.
​― Não me olha assim. – Repeti rindo.
​― Não, o que você disse antes disso.
​― Você ouviu.
​― Não ouvi direito.
​Destampei os olhos dele e mordi meu lábio com força. Neguei e ele
fez que sim com a cabeça, ficamos nessa briga silenciosa até que eu gritei.
​― Eu te amo, sim!
​Num minuto estávamos rindo e no outro o corpo dele estava inclinado
sobre o meu e nossos lábios se tocando, não consegui frear, não tive forças
para empurrá-lo. O beijo aconteceu da forma mais incrível que poderia ser. O
toque macio da boca dele na minha e de sua língua envolvendo a minha fazia
meu estômago gelar e sentia meu corpo tremer por completo depois do susto
inicial. Não paramos dessa vez, nem nos freamos. Senti meu corpo flutuar e
minha mente em sincronia com a de Arthur, nossos corações batendo
uniformes e nossas bocas, antes famintas uma pela outra, aos poucos
ganhando um ritmo carinhoso, repleto de uma ternura que fez meus olhos
lacrimejarem, misturando ao beijo o gosto salgado das minhas lágrimas.
​Arthur parou o beijo de repente, mas então voltou, talvez se dando
conta que o salgado era de felicidade por finalmente me sentir completa nos
braços de alguém. Poderia beijá-lo para sempre e, se assim ele desejasse, o
faria de bom grado. Mais uma vez os lábios dele capturaram os meus entre o
beijo, e ele sugou o inferior soltando um som ralo de quem gosta do sabor.
Uma luz forte me fez abrir os olhos. Pierre estava com uma fina aura branca
envolvendo-o e as asas estendidas sobre nós dois. Arfei, cortando sem querer
o beijo, admirada com a beleza do anjo.
​Ele me olhou confuso, seus olhos estavam banhados de lágrimas
também, lentamente as limpei, passando o polegar em seu rosto, vendo o
brilho se intensificar. Apertei os olhos para acostumá-los com a claridade e só
então o anjo percebeu o que eu via. Voou baixo para o centro da sala e ficou
observando as próprias mãos e seu corpo perder o brilho lentamente, era clara
a confusão em seu rosto.
​― Você é lindo... – Sussurrei com medo de quebrar o momento, e ele
me encarou atordoado.
​― Isso nunca aconteceu.
​Aproximou-se de mim quando o brilho se apagou, guardou as asas
lentamente e deitou ao meu lado, apoiando a cabeça em minhas pernas.
Comecei a brincar com seus cabelos, sem compreender o vinco em sua testa e
o ar de preocupação.
​― Algo errado?
​― Acho que descobrimos o limite. – Beijou minha perna e se
encolheu, fechando os olhos, aceitando o carinho que fazia nele.
​― A luz? As asas? Você estava lindo, Arthur... – Sussurrei, ainda
admirada com a visão, o rosto dele parecia iluminado depois da experiência.
​― Obrigado. – Sorriu e, mesmo sorrindo, o vinco em sua testa não
desapareceu. Suspirei e beijei o local.
​Talvez não devêssemos realmente nos beijar de língua. Pensei.
​Ele abriu um sorriso torto e riu, beijando novamente minha perna.
Ficamos em silêncio, eu brincando com os cabelos dele e ele acariciando meu
joelho, de olhos fechados. Vez ou outra, soltava um suspiro pesado e movia a
cabeça, pedindo mais carinho, o que me deixou meio boba, confesso.
​― Você falou sério? – Depois de quase meia hora de silêncio, ele
perguntou.
​― Em relação a quê?
​Seus olhos acinzentados fitaram os meus com carinho, ele segurou
minha mão e levou aos lábios, beijando.
​― Ao que sente. – Disse sem desviar o olhar.
​Pisquei timidamente, tinha certeza de que ele não acreditaria, nem eu
mesma, se não sentisse tão forte dentro de mim. Pensei em Pietro, em como
ele me envolvia quando estava perto, em como não conseguia parar de pensar
nele ou como me senti com ele cuidando de mim naquela praia e a sensação
não se comparava em nada ao que sinto por Pierre. Respirei fundo, pois não
sabia exatamente se era amor, apenas tinha certeza de que algo tão forte só
poderia ser.
​― Acho que sim. – Sussurrei.
​Ele riu e mordeu minha barriga.
​― Você não existe, Su.
​Não havia mágoa na voz dele, mas compreensão e um carinho tão
imenso que me senti culpada por, numa hora, ter certeza e na outra ficar
confusa. Não esperava tanta compreensão e lhe devolvi um sorriso sincero.
​Percebi o cair da noite, mas não queria me mover. Minhas pernas
estavam dormentes pela posição e Arthur dormia profundamente, recebendo
meus carinhos.
​Observei cada traço de seu rosto perfeito para guardar na memória.
Ele estava com a barba bem ralinha, dourada como o sol, apesar de seus
cabelos serem escuros. Tracei seus lábios com a ponta dos dedos, com medo
de acordá-lo, são cheios e rosados, e sempre quentes. Ele suspirou quando
passei a tocar a sobrancelha grossa e escura, seus olhos tremeram e me
assustei ficando imóvel.
​― Continua. – Murmurou sonolento. Depois de um longo suspiro,
voltou a dormir.
​Sorri, mas também fiquei preocupada, pois ele parecia cansado
demais e não achava ser comum a anjos. Temi tê-lo prejudicado de alguma
forma com aquele beijo. Enquanto traçava novamente as linhas de seu rosto,
imaginei como seria para um anjo cair. Será que ele brilhava e depois sentia
um sono profundo como Pierre? Ou as asas caiam? Balancei a cabeça,
afastando os pensamentos ruins e, com jeitinho, apoiei meu corpo na
cabeceira da cama, sem parar em nenhum momento de tocar nele.
​― Suzanna? – Ouvi uma voz me chamando, parecia aflita. Abri meus
olhos assustada e constatei que tinha dormido. Meu corpo todo estava
dormente, todos os meus músculos contraídos. Estiquei-me, soltando
pequenos gemidos, parando assim que encontrei os olhos atentos de Arthur
me encarando.
​― Aconteceu alguma coisa?
​Ele fez que sim e colocou o dedo na boca pedindo silêncio. Fiquei
imóvel sentindo o coração martelando como se estivesse na garganta,
observando cada passo dele. Ainda era noite.
​Arthur parou na porta e me chamou com o dedo, fui descalça, pé ante
pé. Tinha certeza que meu semblante estava apreensivo. Ele me puxou pela
mão, me colocando atrás de suas costas e abriu a porta rapidamente.
​― Mostre-se. – Ordenou.
​Um brilho azulado clareou a frente da casa, um homem estava com as
asas estendidas e nos olhava com certa admiração e pesar. Percebi Arthur
ficar tenso no mesmo instante e deu espaço para o anjo entrar na cabana.
​Ele era mais velho, cabelos e barba grisalhos, da minha altura, porém
com o corpo sarado como de um jovem. Seus olhos azuis varreram a cabana
ao entrar e pararam na bagunça da cama. Meu estômago gelou ao imaginar
que poderia acontecer algo de ruim com meu anjo. O visitante encontrou meu
olhar e o sustentou por vários segundos. Quando ouvimos a porta ser fechada,
ambos encaramos Arthur.
​― Criança. – Ele sussurrou com tanto carinho que me senti abraçada,
mas a palavra era direcionada a Arthur.
​― Como me achou, papai?
​Pisquei algumas vezes até reconhecer o Juiz, sem o terno branco e a
tez irritada. Não parecia em nada com a mesma pessoa, mas as feições
estavam ali, escondidas pela fina luz azulada.
​― Senti que precisava de mim. – Sr. Paulo me lançou um olhar
cúmplice, que não entendi e se sentou no sofá. – Achei que a esta altura a
senhorita Monteiro estaria com seus avós. – Observou.
​Fiquei muda, como poderia explicar que queria um tempo sozinha
com seu filho? Ou pior... Que achava estar apaixonada por ele?
​Mordi meu lábio, sentindo um medo absurdo de Pierre ser castigado
por fazer minha vontade ao ficarmos na cabana.
​― Precisava descansar. – Explicou-se Arthur. – O que realmente faz
aqui?
​Permanecíamos à porta, olhando para o senhor no sofá. Ele sorriu e
fez um sinal para nos acomodarmos. Arthur se sentou ao lado do pai e eu no
encosto do sofá, ao lado de Arthur. Ele colocou o braço sobre a minha perna,
se apoiando. Se não fosse um anjo, o gesto não pareceria tão comprometedor
como eu sentia que era.
​― Pressenti isto. – Apontou justamente para o braço de Arthur em
minha perna. Ele se encolheu ao perceber também. – Filho, coloquei-o como
guardião da Nefilin porque sei que você é forte. Não seja como o Pietro. –
Alertou.
​Senti meus olhos arderem. Se tivesse como deixá-los sozinhos, faria,
mas a cabana não possuía nem um segundo cômodo para me esconder.
​― Papai... – A voz de Arthur estava embargada, ele tossiu e falou
com firmeza. – Não sou o Pietro, não se preocupe.
​O homem me encarou, seus olhos estavam tensos, parecia suplicar a
minha ajuda, por isso me intrometi.
​― Não vou deixar que o senhor passe por isso de novo, é uma
promessa.
​Ambos me olharam, mas apenas o Juiz sorriu.
​― Você tem um coração bom, Suzanna, por isso a absolvi, mas, se
levá-lo ao extremo de novo, terei de enviar um substituto. Não vou perder
outro filho.
​Concordei lentamente, sentindo o estômago doer. Arthur também
assentiu e levantou junto com o pai.
​― Ela não fez nada, papai. – Disse baixo, porém ouvi e protestei atrás
dele, deixando claro que eu tinha culpa também. O homem apenas assentiu.
​― O amor é uma dádiva divina, saiba como usá-lo. Vocês dois. Deus
é amor e não confusão ou destruição. Quando algo traz peso ao seu coração –
ele colocou a mão no peito de Arthur e apertou carinhosamente –, é porque
não é abençoado e com toda a certeza lhe trará problemas. Saibam como usar
o que sentem para se fortalecerem. Agir como crianças apaixonadas, se
esconder em uma barraca protegida por poder, não é a atitude mais sensata.
​Apertei meus lábios me sentindo culpada por desejar nunca mais sair
desta cabana. Arthur deixou os ombros caídos, provavelmente sentindo o
mesmo que eu.
​― Obrigado, pai, sei que o senhor está certo. Não sei como lidar com
isto, apenas. – Confessou e percebi o quanto Arthur era vulnerável.
​Prometi a mim mesma ser mais forte do que ele, sempre.
​O Juiz me encarou e não sei se ouviu meus pensamentos, não me
lembrava de tê-los fechado, mas ele sorriu, depois colocou a mão no ombro
de Arthur lhe dando força.
​― Saberás. Tudo tem seu tempo certo no Céu e na Terra. – Beijou-
nos no rosto e abriu a porta. – Fico feliz de ter chegado a tempo. Senti sua
força sumir, Pierre... Há algumas horas. – Era um alerta e me lembrei
imediatamente do brilho do anjo quando nos beijamos. – Mas, vejo que está
tudo bem aqui.
​― Pai. – Chamou e o encarou à porta da cabana. – Como é cair?
​Franzi o cenho, confusa, ele disse que já tinha visto muitas vezes
acontecer, como perguntava isso?
​O Juiz sorriu, tocou o rosto de Arthur e novamente percebi como ele
parecia indefeso.
​― Você recebe dois alertas, o terceiro é a queda.
Capítulo 9

​ enhum de nós tinha algo a dizer, por isso o anjo se despediu e voou
N
para longe. Pierre não se mexia, estático, olhando para onde antes esteve seu
pai. Entrelacei meus dedos aos dele e o puxei para dentro da cabana. Parecia
em choque e me perguntei se anjos podiam morrer por problemas no coração
ou sustos extremos.
​Ajudei-o a se deitar na cama, o cobri e fiquei atrás fazendo uma leve
carícia em suas costas, sentindo o nó nas omoplatas. Ele parecia ter
adormecido de novo, por isso me senti bem por me aconchegar a ele.
Esperava que isso não provocasse nada, nenhum alerta, nenhum problema
para Arthur. Tinha quase certeza que o acontecido de horas atrás tinha sido
um aviso, só podia ser, já que ele parecia completamente desorientado e
fraco.
​Arthur puxou meu braço, fazendo-me envolver sua cintura e ficou
com a minha mão nos lábios; desprevenida, deixei, encostei o rosto nas
costas dele e permaneci em silêncio absoluto, acompanhando a respiração
dele para não perturbá-lo.
​― Suzanna, posso fazer uma pergunta? Está acordada? – Perguntou
baixo, a respiração batendo na minha mão que continuava em seus lábios.
​― Estou acordada, pode perguntar.
​― Você não se lembra do acidente? Ainda não se lembrou de tudo?
​Falar sobre isso me deixou em alerta, ele sentiu e começou a beijar
minha mão, talvez para que eu falasse, não sei. Fechei meus olhos,
encostando a testa nas costas dele.
​― Não sei se me lembro. Ainda não vi você me pegando no carro, só
vejo o Pietro. Por quê?
​― Porque, às vezes, eu sinto que você não confia totalmente em mim.
​― De onde surgiu isso? – Perguntei, visivelmente confusa. Ele me
olhou por cima do ombro e se virou para mim, colocando a mão em meu
rosto, carinhosamente.
​― Só estava pensando. Quer ouvir a minha versão dos fatos?
​― Quero.
​― Vou contar desde o início. – Ele se acomodou e me levou ao seu
peito. Deitei ali e fechei meus olhos com medo de lembrar, mas, se Arthur
precisava falar sobre isso, eu ouviria sem reclamar. – Eu e o Pietro
possuíamos um ou dois séculos de vida, não me recordo bem. Não tínhamos
permissão para vir à Terra com tanta frequência como faço hoje. Fomos
designados a guardar uma família e a criança era especial. Naquela época, as
pessoas não sabiam cuidar de crianças especiais, elas eram maltratadas,
apanhavam, os pais não tinham cuidado. Muitas eram consideradas
demônios, filhos nascidos do pecado dos pais. Minha missão era cuidar para
que os religiosos não a matassem, pois isso era bem comum, e a de Pietro era
manter a menina sã. Ela possuía dons especiais, adquiridos por causa do
autismo; podia nos ver, sentir a presença de qualquer anjo ou demônio. – Ele
respirou fundo, parecia distante, em séculos atrás. – Eu não percebi, pois o
Pietro era cuidadoso, e a menina não podia dar a ele algo físico, mas ele se
apaixonou por ela. Passava semanas sem voltar ao Céu, sem fazer seus
deveres ou adorá-Lo nos horários certos. Parecia um humano abatido quando
o forçávamos a sair do lado dela. Ele dizia que era seu dever. – Meu coração
ficava menor a cada palavra de Arthur, sentia como foi difícil para Pietro ter
se apaixonado por alguém que não tinha como retribuir. – Ele estava
obcecado por ela. Começou a ensiná-la a usar seus dons de cura para levá-la à
realidade, mas isso só complicou tudo, não podemos intervir tanto.
​Suspirei, fazendo um leve carinho no braço dele, ele beijou meu rosto
e continuou.
​― Um dia, quando voltei da minha ronda matinal, ela apontou para
mim na frente dos pais dela e disse que tinha visto um anjo, comentou que
era lindo. A menina tinha ainda muito do autismo, falava enrolado, mas não
ficava mais distraída em pensamentos, interagia bem com seus pais e as
outras pessoas, porém Pietro não gostou dela ter me elogiado. Foi a primeira
vez que eu a vi consciente com a realidade. Os pais dela, é claro, não nos
viam. Acreditavam que ela inventava as coisas. – Ele respirou fundo e, então,
me olhou. – Eu acredito que esse foi o primeiro alerta que ele recebeu. Pietro
foi tomado por um ódio cego e avançou sobre mim, rolamos pelo estábulo
nos debatendo, eu sem entender o motivo e ele rosnando blasfêmias. Quando
consegui que se acalmasse, ele abriu as asas e gritou de dor, várias penas
haviam enegrecido e um cheiro forte de queimado saia delas. Olhamos com
cuidado, tentei usar meu dom para curá-lo, mas nada modificou a cor ou a
sensação de queimadura nele. Um dos pecados capitais que o fez ter seu
primeiro aviso. A ira. Hoje, eu entendo... – Afaguei o rosto dele que estava
mais tenso do que jamais vi, ele beijou a palma e voltou a olhar para o nada.
– O segundo aviso eu não vi, mas presenciei a queda. Foi quando a menina
morreu. Ela tinha oitenta e três anos, morreu de velhice, ele sabia que
aconteceria e todos tentaram afastá-lo. Quando aconteceu, Pietro amaldiçoou
a Deus. No mesmo segundo, suas asas queimaram até as omoplatas, a pele
perdeu o brilho natural que nós temos e demônios começaram a subir da
terra, puxando-o para baixo com suas garras. – Lágrimas banhavam o rosto
de Arthur. Só notei por sentir uma delas deslizando por meu ombro. Tentei
tocá-lo, mas não permitiu. – Não pude fazer nada por ele. Em segundos,
havia sumido como se fosse um espectro, sugado para a terra. Sentimos a
queda, todos nós. Foi como ter um pedaço de carne arrancado. Por mais de
um século não o vi, não sentia sua presença, nada. Quando me designaram a
minha primeira experiência com Nefilin, o reencontrei. Ele chegou antes na
garota, que já havia cometido dois pecados capitais: Gula e luxúria. Ele
sempre usou a luxúria contra as mulheres. – Sussurrou e eu senti um aperto
no peito ao me lembrar de ter sido uma das vítimas. – Ela era linda e tentei
alertá-la, me aproximando do modo errado, revelando tudo de uma única vez.
Nossa guerrinha começou aí. Ele sempre antecipando meus passos, chegando
a meus protegidos antes, os arrancando das minhas mãos. Todas aquelas
almas que deveriam ser boas, se tornaram más. Havi foi o último.
​― Arthur... – Ele me olhou. – Não entendi direito. Você e ele
começaram a brigar por Nefilins e almas?
​― Os que tinham potencial de se tornar parte de nós, nos ajudar.
Acredito que ele nunca deixou de ter raiva pela menina ter dito que eu era
lindo e isso o faz agir como se fôssemos inimigos e não irmãos.
​― Achei que se odiavam porque ele era um caído.
​Arthur negou, as lágrimas estavam secas em suas bochechas.
​― Eu o amo, Suzanna, mas conheço a maldade nele e isto me deixa
nervoso. – Pareceu pensar se continuava ou não, esperei ansiosa. – Seu pai
foi um dos mais poderosos e um dos que consegui salvar. Nós sentimos o seu
nascimento, Suzanna como se você fosse parte de nós. Um anjo. – Olhei-o
atordoada. – Porque há em você muito pouco do gene humano. Seus dons
apareceram logo, mas foram reprimidos por seu pai. Não sei como ele fez
isso, mas sei que tudo está esquecido dentro da sua cabeça, talvez
adormecido.
​― Achei que vocês vissem e soubessem de tudo. – Sussurrei confusa.
– Como vou recordar isso?
​― Só Deus é assim. Nós temos acesso a informações, mas não todas.
E... Eu realmente não sei.
​― Continue, eu estou confusa mesmo.
​Ele concordou.
​― Com o passar dos séculos, as buscas de Pietro se tornaram ataques.
Ele tentava fazer eu me apaixonar por elas, as ensinando como agir, as
manipulando na minha frente. No começo, eu ficava atordoado tentando
ajudá-las, vendo se afundarem cada vez mais em luxúria, desejos, inveja,
ganância e rancores, sem conseguir resgatá-las. Sentia-me cada vez mais
ligado àquelas almas e cada perda me fazia querer desistir de ser o que eu
sou. Ainda me sinto assim quando não consigo resgatar alguém. – Ele
pausou. – Quando você completou dois anos, seu pai me convocou, mas ele
me negou ser seu guardião, dizia que causaria um mal enorme à anjinha dele.
Demorei anos para descobrir que mal era este. O Pietro soube antes de mim.
Ele se aproximou de sua família como se fosse amigo, um Nefilin. Seu pai
nada sabia e foi enganado. Pietro conviveu com seus avós e sua família por
anos até que eu soubesse. – Suspirou, eu estava tão perplexa que nem ao
menos me movi. – Ele articulou tudo cuidadosamente, talvez sabendo que, se
eu a perdesse, seria a minha queda. – Ele riu amargo. – Acredito que tudo
isso não passa de desejo de vingança, talvez ele mesmo não entenda mais os
motivos dessa guerra sem sentido entre nós, ou então a condição de demônio
já engoliu todas as suas qualidades.
​― O que você causou para que fosse preciso tirá-lo do seu posto? –
Perguntei de repente, ele pareceu voltar a si e retomou o assunto.
​― Seu pai percebeu que me apaixonei no momento em que coloquei
meus olhos em você. Você não tinha nem dois anos ainda, mas era esperta,
tinha uma risada que fazia meu estômago gelar. Ficava ansioso para seu pai
me deixar cuidar de você, quando eles precisavam se ausentar. Sei que era
um bebê, mas sempre foi a sua alma que me chamou, como... Um... Ah, eu
não sei. – Ele escondeu o rosto nos meus cabelos. – Só sei que ele teve uma
visão e Pietro a contou para mim. Disse que perdi o controle e a levei para o
Inferno comigo. E houve a queda de mais anjos depois de mim, ele nunca me
revelou a visão completa.
​― Arthur, não tem como se apaixonar por um bebê! – Interrompi-o e
Arthur fez uma careta, constrangido.
​― Não foi algo carnal, Suzie, mas era como se minha alma
pertencesse a sua. Uma ligação tão profunda que mesmo longe, jamais
consegui desligar.
​― Será que ele te contou a verdade? – Meus olhos encheram d’água
com a afirmação dele, de nossas almas serem ligadas. Porém, como aceitar
algo tão lindo diante de uma situação tão confusa?
​― Acredito na versão do Pietro.
​Pensei por um momento, negando sem ter resposta. Ficamos em
silêncio por um tempo.
​― De que vale ver o futuro se não se pode mudá-lo? – Perguntei.
​― Seu pai mudou...
​― Talvez não. Estamos aqui, não estamos? E se o que ele viu foi
justamente por ter decidido te afastar de mim quando eu tinha dois anos? E se
ele não tivesse feito isso? A convivência talvez me fizesse te enxergar como
um irmão mais velho... Quem sabe.
​Arthur concordou pensativo, depois respirou fundo.
​― Mas, eu não cai e não vou te levar comigo. – O tom pareceu uma
promessa.
​― E eu não vou te deixar cair.
​― Acredito em você. – Sussurrou. – Tem mais... – Encostei a cabeça
em seu peito, esperando que ele continuasse. – Quando Pietro descobriu que
estava obcecado por uma menina, me procurou e jurou que faria sentir o
mesmo que ele. Não sei se o ciúme ou se a perda, mas de qualquer modo
confirmou que falava sério quando chegou até sua família sem que
percebêssemos. Até hoje, não sei como ele enganou seu pai ou seus avós. Seu
avô só me reconheceu por causa dos charutos.
​― Que charutos?
​Ele riu.
​― Os que prometi dar a ele se ganhasse o jogo de xadrez.
​Sorri e afaguei as mãos dele que estavam em minha cintura.
​― O que os charutos têm de importantes?
​― Eu os comprei de seu avô há muitos anos, a mesma caixa que citei
em sua casa. Ele soube no mesmo momento que eu queria ajudar. Depois, o
procurei e expliquei tudo, exceto sobre Pietro, pois não queria deixá-lo
alarmado.
​― Meu Deus! Meu vô sabia de você e nem me contou!
​― Sua vó não acreditou em mim, por isso seu avô ficou inseguro de
confiar. É muita coisa, Suzanna, e acho que já falei demais por hoje. A visita
do meu pai reacendeu lembranças que eu estava evitando.
​― Não precisa parar ou se desculpar, é bom conhecer seu passado... E
o meu. – Sussurrei pensando em mim mesma com dois anos. Gordinha, sem
dentes e com covinhas.
​― Você era esperta e linda. Tão linda e esperta quanto é hoje.
​― Obrigada... Mas... – Ele me olhou. – Você iniciou essa conversa
falando sobre o acidente. O que aconteceu?
​Ele estremeceu, mas não pareceu que voltaria atrás, começou um
relato que eu conseguia ver com clareza em minha mente.
​― Seu pai me proibiu de ser o seu guardião, isso você já sabe. –
Concordei. – Mas, como tinha permissão para passeios curtos, como um
período de férias, por exemplo, usava para te ver. Sabia que era errado, que
estava me portando como o Pietro, que alimentava algo que não deveria
sentir, mas a verdade é que eu não tinha forças para ficar longe. O maior
período que estive distante foi quando ele conseguiu se aproximar a primeira
vez, passei três anos sem vê-la.
​― Por quê?
​― Porque Victória me convenceu que um dos meus deveres era te
manter a salvo do meu sentimento.
​― Mas, em que você me prejudicaria?
​― Talvez em nada, mas sempre acreditei que te faria um mal terrível
estando perto. Ocupei-me com tantas coisas que, quando percebi, você faria
oito anos. – Tinha uma seriedade dolorosa em seu semblante, fiquei em
silêncio. – Era cinco de dezembro quando me dei conta disto. – Fiquei
imóvel, a mesma data da morte dos meus pais. – Não os encontrei na casa em
Sorocaba, então decidi seguir o rastro para São Paulo, imaginando que
comemorariam o Natal com seus avós. Sempre senti você, por isso foi fácil
encontrá-los na rodovia, fácil e rápido. O trânsito estava horrível, nunca vi
algo daquele jeito. Os carros não saiam do lugar, parecia um grande
estacionamento ao ar livre.
​― Verdade... – Murmurei.
​― Sobrevoei vocês o tempo todo, desde manhãzinha. Queria me
aproximar, ver você, por isso usei meus dons para me ocultar e sobrevoei o
carro mais de perto, me colocando ao lado da janela traseira. Seu pai e sua
mãe começaram a discutir, ele pressentia algo, você estava dormindo e ele
comentando com ela que precisavam chegar logo, pois ele sentia que seria
naquele dia. Eu decidi perguntar se poderia ajudá-los quando você despertou,
olhou para o outro lado da janela. Seu pai apontou uma pracinha, te
distraindo com as luzes de Natal. Eu vi você olhar diretamente nos meus
olhos e depois apontar um homem todo de preto, perto da árvore que
continha o maior número de luzinhas na praça. Você via um S de Suzanna.
​― Não me lembro de ter visto você... – Sussurrei, meus olhos
estavam marejados.
​― Sei que não. Ele apagou isso também.
​― Apagou? Quem?
​― Entrei no seu campo de visão propositalmente, queria saber se me
veria mesmo oculto e você viu. A mim e a Pietro, mas ele não me via.
Quando você apontou, seu pai também o viu e tentou acelerar o carro. Eu não
sei como, mas ele pressentiu o perigo. – Continuou a contar a história e
ignorar a minha pergunta. – De repente, tudo ficou livre para seu pai seguir o
caminho, não tive tempo de avisá-lo ou ajudar. Em um segundo, o caminhão
saiu da pista inversa e houve o acidente.
​― Era um caminhão? – Sussurrei, não lembrava direito.
​― Eu sou um anjo, Suzanna, mas tenho massa corporal, fui
arremessado para longe e demorei a voltar a mim. Quando despertei, o
acidente já havia acontecido. Você estava desacordada e Pietro ainda na
praça, apenas observando. Não sei o que ele pretendia ou se aconteceu
exatamente como o planejado. Não pensei, precisava te tirar dali. Voei
sentindo as asas chamuscarem com o fogo, ainda oculto a olhos humanos, e
te puxei um pouco antes que abrisse os olhos. Percebi que queria olhar para
os lados e ordenei que olhasse para mim. Você obedeceu. – Sorriu pesaroso.
– Então, as sirenes começaram a surgir de longe e a explosão aconteceu às
minhas costas. Não consegui tirar seus pais do carro, apenas você.
​― Eles estavam vivos? – Sussurrei. Arthur me olhou, beijou minha
testa e, ao invés de responder, apenas negou com a cabeça. – E por que então
queria tirá-los do carro?
​― Achei ser importante você poder visitá-los num cemitério... Ter o
que velar.
​Engasguei ao me recordar que os caixões foram vedados porque era
impossível reconhecê-los.
​― Obrigada pela intenção... E por ter me salvado.
​― Não saberia existir sem você. – Ele arfou e me encarou. – É isso!
​― Isso o quê? – Ele se levantou e começou a andar de um lado para
outro na cabana.
​― Ele queria que eu te perdesse. Acho que foi isso que seu pai viu,
você explodindo com o carro e eu desistindo de ser anjo por não te salvar. Ele
disse que meu amor passaria com a morte. Ele disse!
​― Com a minha morte? – Murmurei.
​― Não, Suzanna, com a minha.
​― Você pode mesmo morrer?
​― Posso, mas não era da morte física que seu pai falava, mas da
espiritual. Ir para o Inferno seria como a morte para mim. – Ele parecia
revigorado com a descoberta.
​― Mas, não morri, então ele tentou me levar com ele. – Raciocinei.
​― Isso.
​― Ele quer que você sofra com a morte ou a perda de alguém que
você ama, assim como ele sofreu com aquela autista... – Sussurrei. – Por quê?
​― Acho que porque Veronique disse que eu era lindo. Ciúmes. Não
vejo outro motivo. Talvez queira apenas que eu me junte a ele.
​― Quem? – Arregalei os olhos.
​― A menina autista. – Explicou.
​― O nome dela era Veronique? – Ele confirmou com a cabeça, meus
olhos se encheram d’água. – Pietro me chama de Veronique.
​Arthur me encarou parecendo assimilar a informação. Para mim, a
sensação era de que Pietro via em mim o amor que tinha por ela. Teria
mentido mesmo sobre o que sentia? Comparar-me a ela não seria uma forma
de demonstrar seu amor por mim?
​ ― Quando ele te chamou assim? – Arthur questionou se
aproximando mais, talvez notando minha inquietação.
​― Quando me contou uma história. Nós estávamos na árvore e ele
contou sobre uma princesa que foi atropelada por um cavaleiro e eles se
estranharam. Ele nunca terminou a história.
​― Ele contava histórias para ela, eles ficavam horas sentados aos pés
dos vinhedos da fazenda dos pais dela e ele inventava histórias mágicas para
ela. Sempre a usando como personagem principal. Isso a mantinha no mundo
real, saber identificar quem era ela nas fantasias que ele inventava.
​Estremeci.
​― E por que ele me compararia a ela?
​Ele deu de ombros, mas estava nítido no seu olhar calórico que ele
sabia a resposta. Encarei-o, tentando fazê-lo falar, mas se deitou na cama e
me puxou para junto dele.
​― Chega de lembranças por hoje, precisamos dormir um pouco.
Daqui a uma hora amanhecerá.
​Foi taxativo. Tentei protestar, mas ele me embalou, seus lábios
passeando pelo meu rosto possessivamente. Algo o perturbou em saber sobre
o nome. Por fim, desisti e deixei que dormisse.
Capítulo 10

​Acordamos enroscados um ao outro. Arthur pesando sobre mim, com


a boca entreaberta e soltando sua respiração em meu rosto. Nossas pernas
entrelaçadas e o braço dele envolto na minha cintura, tão apertado que tive a
sensação que ele temia que eu fugisse se afrouxasse um pouco. Meus braços
estavam em torno do pescoço dele e meu rosto tão perto que conseguiria
acordá-lo com beijos se eu pudesse.
​Por alguns minutos eu o observei, tentando decifrar o motivo de não
ter respondido duas das minhas perguntas: Sobre quem apagou o quê e o
motivo de Pietro me chamar de Veronique. Queria saber se, de algum modo,
parecia com a garota.
​No sonho curto que tive, vi imagens de Pietro cuidando de mim, era
autista, ficava me balançando para frente e para trás e só me acalmava
quando ele me levava àquele mundo de fantasias, criado somente para mim.
Era tão carinhoso que eu também o amava, dependia dele para estar lúcida,
para me sentir parte do mundo.
​Agora acordada, sentia um vazio por saber que ele caiu por causa do
amor e não por ser uma pessoa ruim. Estava com um aperto no peito e sentia
saudade, tanta que meus olhos lacrimejaram e uma lágrima escapou caindo
no colchão. Limpei o rosto e percebi que Pierre me olhava atentamente, seus
olhos num tom azulado que só vi no Segundo Éden, quando ele estava muito
bravo comigo.
​― Tudo bem, Suzanna? – Tocou meu rosto. Seu hálito noturno era
bom, não parecia igual ao meu fedido de quando acordo. Para não responder
tão perto, afastei um pouco o rosto e fiz que sim. – Mesmo?
​― Mesmo.
​― E por que está chorando?
​― Não estava chorando... – Desconversei.
​― Primeira lição?
​― Não mentir... – Respirei bem fundo. – Deixe-me só ir ao banheiro,
aí te respondo?
​― Deixo.
​Beijei seus lábios e me tranquei no banheiro. Não tinha escova de
dentes e mais uma vez usei o dedo para fazer minha higiene. Sai de lá
renovada, cabelos com uma trança, sem remela nos olhos e com hálito quase
fresco. Ele estava do mesmo jeito, descabelado e largado sobre a cama.
​― Você me beijou. – Alertou. – Bem aqui. – Tocou os lábios e eu o
encarei assustada, não tinha nem reparado.
​― Desculpe-me, eu... Ai, merda!
​Ele me puxou pelo quadril, rindo, e pressionou os lábios nos meus, me
deitando no colchão.
​― Não tem problema, assim – ele me deu um selinho –, eu acho que
não faz mal. Mas, não podemos na frente de ninguém, só quando estivermos
sozinhos e protegidos.
​― Está bem, desculpe. – Só um selinho já me deixava com vontade
de mais, por isso me sentei, afastando as mãos dele de mim.
​― Você se parece tanto com um humano, que às vezes esqueço o que
você é.
​― Isso é bom ou ruim?
​― Ruim. – Sussurrei. – Porque posso perder meu autocontrole.
​― Por isso estava chorando?
​Fiz uma careta por ele se lembrar. Arthur sentou na cama e me
posicionei entre as pernas dele, em pé, mexendo em seus cabelos
bagunçados.
​― Não, porque saber da história do seu irmão me faz pensar que ele
não mentiu para mim. – Admiti. O olhar de Arthur se tornou triste e tão vazio
que quis retirar cada palavra. Mas, eu queria falar, precisava. – Só não
entendo o motivo de alguém que diz que o ama querer levá-lo para um lugar
tão ruim quanto o inferno.
​― Isso, só ele poderá responder. – Arthur beijou minha barriga e
ficou com o rosto pressionado nela. Em seguida, suspirou. – Temos que ir.
​― Eu sei.
​― Meu pai está certo, tenho que manter o foco. Vamos nos arrumar e
voltar à casa dos seus avós, temos muito a fazer.
​― Tipo o quê? – Perguntei, me afastando, pois ele começava a
arrumar a cabana. Ajudei-o a recolher a bagunça enquanto
falávamos.
​― Seu aniversário é daqui a alguns dias, certo?
​Parei para pensar nos dias e só então me dei conta que passara a data
da morte dos meus pais nessa loucura de vida Nefilin e nem fiquei de luto.
Segurei o máximo que pude para não chorar, mas a resposta saiu tão baixa
que Arthur parou para me olhar.
​― É. – Emendei quando notei o jeito que me olhava. – Dezoito anos é
uma grande coisa, não é?
​― Sim. É sua maioridade. E seus dons não terão mais controle,
mesmo com o que quer que seja que seu pai fez para bloqueá-los.
​Arrumei os lençóis na cama dele e o encarei, ele estava com uma
mochila nas mãos, colocando algumas roupas dentro, a cena me fez sorrir.
​― Vai se hospedar em casa?
​― Vou tentar convencer seus avós a me permitirem ficar mais perto
para protegê-los. – Ele olhou de lado e sorriu.
​― Ajudo você nisso. – Só de saber que ele ficaria perto, me animei
para voltarmos. Lavei a louça e ele continuou arrumando as roupas na
mochila. – Ainda bem que as férias escolares começaram. – Comentei.
​― Por que ainda bem? – Ele riu.
​― Se não a Bruna tem um treco por saber que você mora comigo. –
Ri. – Ela ficava dançando e gritando “HOT HOT HOT” da primeira vez que
nos vimos.
​Arthur me olhou e sorriu, não parecia achar engraçado. Ele se
aproximou e tocou meu rosto.
​― Vamos?
​― Falei algo errado?
​― Não. – Sorriu e novamente o olhar dele me cortou o coração.
​― Você quer que mandem outra pessoa para me ensinar, Arthur?
​― Nunca! Não. Eu não quero! E não peça isso, a não ser que você
queira.
​― Não quero e não vou pedir. Só não quero que você... Como vou
dizer isso? – Respirei fundo. – Sinta-se mal perto de mim.
​― É pior longe. – Deixou escapar e já começou a se mover para a
porta da cabana.
​As palavras dele, por mais tristes que fossem, me deram um novo
humor, me revigoraram. A tristeza que estava no meu peito amenizou
consideravelmente. Corri até ele e me joguei em suas costas, rindo. Surpreso,
Arthur derrubou a mochila para me segurar, fiquei pendurada nele, dando
beijos divertidos em seu ombro e bochechas.
​― O que foi isso? – Ele riu confuso.
​― Nada demais, você só me deu uma ideia.
​― Que ideia?
​ le me segurou em suas costas, confirmou se as janelas estavam
E
trancadas, apagou a luz e pegou a mochila, me levando para fora com ele.
Trancou a cabana e me colocou no chão.
​― Vou escrever um livro! Eu sempre soube que deveria sofrer para
conseguir escrever. Você é um gênio! – Ele arregalou os olhos, me encarando
perplexo.
​― Perdi-me nesse seu raciocínio.
​Não é só você que está sofrendo por amor. Pensei, mas não disse
nada, apenas sorri e pisei nos pés dele. Ele colocou a mochila em meus
ombros e me abraçou.
​― Pronta?
​― Não, mas vamos. – Sorri. Ele me fez apoiar a cabeça em seu peito
e senti nossos corpos flutuando no ar. A sensação de voar era sempre incrível.
Nos braços dele, eu me sentia como uma criança protegida.
​― Explique-me a parte em que fui elogiado. – Riu.
​― Vou escrever um livro, você até me deu o enredo. Sabe como o
personagem principal vai se chamar?
​― Pietro? – Perguntou sem me olhar.
​Mordi-o no peito. Rimos os dois.
​― Não, né! Será... Violeto.
​Ele gargalhou, jogando a cabeça para trás.
​― Violeto? Não existe masculino para Violet, Suzanna! – Olhei no
rosto dele, o vento estava bagunçando seus cabelos. Sou pesada e, mesmo
assim, ele parecia não fazer esforço algum e sorria, o que me deixou feliz por
conseguir distraí-lo um pouco.
​― Sei que não, mas um escritor tem liberdade poética, sabia? Se eu
quiser Violeto, será Violeto. – Ri.
​― E sobre o que será a história do Violeto?
​― Um rapaz de profundos olhos cinzentos que se apaixona por uma
garota inalcançável; ao mesmo tempo, ela se apaixona por ele, mas acha ele
inalcançável.
​― Conheço essa história. – Sorriu brando, pensativo.
​― Maaaas, nas histórias fictícias, eles podem ficar juntos por um
milagre divino. – Acrescentei, tentando animá-lo.
​― Qual milagre?
​― Bem, ele será um anjo, como você. Claro! – Ele concordou. – E
ela, uma humanazinha sem graça, magrelinha, desequilibrada e atrapalhada.
​― Igual a você?
​― Não pode ser igual, senão todos vão saber que é nossa
autobiografia. – Tentava falar de um modo divertido, para mantê-lo sorrindo.
O sorriso de Arthur era um bálsamo nas sensações desesperadoras que
começavam a me incomodar. Voltar para a Mansão era o mesmo que rever
Pietro em cada pétala de rosa nos jardins, até em meu quarto. Estava
apavorada por não saber como iria me sentir. – E eu não sou totalmente um
desastre. – Ele riu.
​― Então, você será feia no livro?
​― Feia?
​― Não é possível existir alguém no mundo mais linda que você,
mesmo em ficção.
​― Ah, você é um bobo! – Suspirei e ele riu. – Então, sabe qual será o
milagre?
​― Não faço ideia.
​― O amor deles será tão verdadeiro e puro que será permitido que ele
vire humano para passar sua mortalidade ao lado dela.
​― Você andou assistindo muito o filme Cidade dos Anjos.
​― Nãoo! Ela não vai morrer, poxa!
​― E nem você. Não permitirei. – Olhou-me profundamente e depois
sorriu de lado, galanteador.
​Precisei respirar bem fundo para me concentrar em continuar
segurando nele.
​― Continuando... – Ele riu. – Eles ficarão juntos, mas antes vai haver
um terrível julgamento e ele será condenado.
​― Por quê? O que ele fez?
​Sussurrei para dar mais drama à história.
​― Porque ele a beijou. – Ri como o Papai Noel, mas ele pareceu não
achar graça, respirei fundo e fiquei séria. – Desculpe. Só queria te animar.
​― Eu sei, princesa. Seu livro vai ser muito lindo, eu prometo comprar
um.
​― Você não vai comprar. – Afirmei.
​― Claro que vou! Não vai me deixar ler?!
​― Você vai, mas eu vou te dar o primeiro exemplar, autografado e
com beijinho de batom na capa.
​Novamente ele riu e me senti feliz por esse momento de paz, sem
preocupações ou aquela terrível vontade de ficar mais perto dele que me
rondava o tempo todo.
​Fomos interrompidos quando ele começou a descer, era dia ainda e
me preocupei de alguém nos ver voando para o jardim da casa dos meus
avós, mas, como se lesse meus pensamentos, ele sussurrou.
​― Não se preocupe, ficaremos ocultos até tocarmos o solo.
​Sorri para ele e seus pés tocaram a grama, estávamos perto da árvore
onde brigamos há poucas semanas e ele me chamou de burra. Desvencilhei-
me dele e fiquei encarando o jardim, pensando naquele dia. Se o tivesse
ouvido, talvez tudo fosse diferente hoje.
​Arthur acompanhou meu olhar e sussurrou algo, virei para ele sem
entender.
​― O que você disse?
​― Burra!
​― Idiota! – Devolvi.
​― Burra!
​― Você só sabe esse xingamento? – Provoquei e ele riu. – Estúpido!
​― Burra!
​Ambos rimos com a lembrança, mas era evidente nos olhos dele a
preocupação e a responsabilidade aflorando. Em breve, Pierre estaria ali, o
guardião, e eu teria de me concentrar em ficar longe.
​― Suzanna! – Ouvi uma voz aguda me chamando. Olhei para cima e
vovó estava debruçada na janela de um dos quartos.
​Meu coração bateu forte e, sem pensar, comecei a correr na direção da
casa, querendo encurtar o espaço entre nós duas. Amava minha vó, mesmo
ela me tratando tão duramente algumas vezes.
​Senti que Arthur estava perto, me seguia, mas não emitia nenhum
som, era como se estivesse flutuando. Cheguei ao saguão junto com vovó, me
lancei em seus braços, chorando e recebendo seu abraço acolhedor e quente.
​― Vó! A senhora está bem? E o vovô?
​― Oh minha filha, você ainda nos mata do coração! Onde esteve? A
polícia toda estava a sua procura!
​Afastei-me bruscamente.
​― A polícia? Por quê?
​― Filha, você está desaparecida há quase um mês. – Ela me puxou de
volta, tinha lágrimas nos olhos.
​Logo comecei a ouvir mais pessoas se aproximando, suspiros
aliviados, exclamações de surpresa e mais mãos me puxavam e abraçavam. E
eu só queria enxergar Arthur no meio daquela recepção toda.
​― Você esta bem? – Perguntou Maria com a manta da minha mãe nas
mãos. Peguei o objeto e a abracei com força.
​― Estou, obrigada.
​Ouvi um tumulto e olhei na direção da porta da cozinha, vovô estava
correndo de braços abertos, mas, quando chegou perto, me pegou pelos
ombros e me chacoalhou com tanta força que deixei a manta cair.
​― Você está louca de sumir assim e não dar satisfações? O que
aconteceu, Suzanna?
​Fiquei tão chocada com a reação dele que comecei a chorar. Senti a
mão quente de Arthur envolver minha cintura e ele me puxou para seus
braços, me abraçando. Foi ele que respondeu.
​― Ela foi sequestrada, julgada e absolvida. Fui designado para cuidar
de vocês e de Suzanna e ensinar tudo a ela. Não houve oportunidade para
darmos noticias, mas a culpa não foi dela, senhor Alfredo, mas nossa. Não
acontecerá novamente. – Ele usava um tom formal enquanto falava, mas seus
braços estavam tão protetores que não me importei e, então, entendi que o
que me disse na cabana foi um teste, eles não haviam contado que estava em
treinamento.
​― E quem é você? – Vovô perguntou. Encarei-o confusa.
​― Pierre, senhor. Guardião Pierre.
​Apertaram as mãos e, então, um brilho de reconhecimento passou
pelos olhos de meu avô.
​― Você não é o Pierre. – Encarou-me assustado.
​― Senhor, o Pierre que conheceram não era o verdadeiro, ele enganou
vocês. Ele se chama Pietro. Eu sou o guardião de seu filho, o verdadeiro
Pierre.
​Vovô apertou a cabeça com as duas mãos e fez um sinal para irmos
para a biblioteca. Os empregados se afastaram, nos deixando sozinhos com
ele e vovó.
​― Quero a história completa. Tivemos uma visita semana passada,
um Mensageiro dizendo que Suzanna fora condenada a servir o Inferno.
Vocês imaginam como ficamos?
​― Não enviamos Mensageiro algum. – Arthur comentou inseguro e,
em seguida, olhou para meus avós. – Vamos explicar tudo, por favor. – Ele
fez um sinal para que nos sentássemos.
​Eu queria muito ficar mais perto dele, mas ele delicadamente me
sentou em uma poltrona mais afastada, deixou a mochila comigo, que eu
abracei rapidamente. Arthur contou tudo aos meus avós, omitindo a parte
onde Pietro me sequestrou, me fazendo escolher o Inferno. Comentou que
escolhi o Inferno para protegê-lo de um ataque, mas não deu muitos detalhes.
Ao fim, relatou o julgamento em que fui absolvida, mas que precisava passar
pelo treinamento, pois tinha muito potencial, assim como meu pai.
​― Ela é obrigada a isso? – Perguntou vovó.
​― Ela aceitou a sentença, por isso não há como revogá-la. Apoio a
decisão dela de participar do treinamento, aprender mais sobre seus dons,
pois não quero que passe por dificuldades por não ter conhecimento do que
pode ou não fazer. Suzanna ficará mais segura quando aprender tudo.
​― Eu quero aprender, vovó. A senhora não sabe metade do que
passei... Não quero mais passar por nada disso.
​― E o Mensageiro? Quem era? – Vovô se intrometeu na conversa.
​― Não sei senhor, mas creio que não era nenhum dos mocinhos.
​Estremeci ao pensar que meus avós também ficaram em perigo.
​― Como posso confiar em você? – Era vovô, ele se colocou de pé e
ficou encarando Arthur.
​― Os charutos. – Intrometi-me. – Se não acreditar, pense em papai.
Ele confiava no Pierre.
​― Não muito, afinal ele o fez se afastar de você. – Retrucou.
​Fui obrigada a concordar, olhei para Arthur que nos fitava pensativo,
ele suspirou e tirou a camisa, dando as costas a meu avô.
​― Veja.
​As asas se abriram lentamente, brancas como a neve. Tomavam quase
todo o cômodo em sua extensão. Vovô tocou as penas cuidadosamente. Senti
inveja dele, pois desejava muito fazer o mesmo, então de repente, ele puxou
uma pena e ouvi Arthur gemer de dor e esconder as asas nas omoplatas, uma
gota de sangue pingou no chão.
​― Satisfeito, senhor?
​― Essa é a sua cara verdadeira, Pierre? – Vovô parecia mais aliviado
ao constatar que as asas eram verdadeiras.
​― Sim, senhor. Arthur era uma imagem mais jovem de mim mesmo.
– Sorriu.
​― Ainda quero aqueles charutos.
​― Eu venci o jogo. – Lembrou.
​Vovô sorriu, mas ainda havia uma tensão no ar, vovó sussurrou o que
eu começava a pensar.
​― Lindas as suas asas, Pierre, mas por que nosso filho o mandou se
afastar? Não o quero ensinando a Suzanna, nós podemos fazer isso.
​Arthur respirou bem fundo.
​― Senhor, seu filho viu que... – Ele me olhou, mas ergueu o queixo
falando com firmeza. – Que me apaixonaria pela Suzanna e pediu que me
afastasse, mas não deixei de ser seu guardião e amigo. Apenas respeitei sua
vontade.
​― Foi ele que me salvou do acidente. – Acrescentei.
​Os três me olharam.
​― Que acidente? – Vovó perguntou.
​― Dos meus pais. Ele me tirou do carro. Foi ele.
​Eles se olharam e vovô assentiu.
​― Tudo bem você ensiná-la Pierre, mas, no primeiro sinal de perigo,
eu peço para te substituírem. – Avisou. – Agora suba Suzanna, tome um
banho, descanse. Finalmente está em casa! – Ele me abraçou carinhosamente
e senti meu corpo tremendo. Estava com mais medo de não aceitarem que
Pierre ficasse conosco do que da bronca por ter sumido.
​― O Pierre vai ficar conosco. – Informei, os beijei no rosto e puxei
Arthur comigo sem esperar a reação deles.
​Ouvi os protestos, mas não sei exatamente como consegui abafar as
vozes na minha cabeça e não escutei as palavras. Arthur me acompanhou em
silêncio até o quarto de hóspedes que fica em frente ao meu, no final do
corredor. Abri a porta e o levei para dentro, fechando-a atrás de mim, soltei o
ar sentindo as pernas moles, ele me amparou.
​O quarto era claro, as paredes gelo, móveis da cor de marfim e uma
cama de casal bem ao centro. Na parede em frente à porta, uma janela dando
para o jardim da casa.
​― Você anda corajosa. – Disse, pegando a mochila da minha mão e
se afastando quando percebeu que já estava recuperada.
​― Virar quase um demônio faz as pessoas ganharem coragem de
enfrentar tudo.
​Ele sentou na cama, retirou um caderno de dentro da mochila e me
chamou. Aproximei-me, ficando entre as pernas dele, mas em pé. Desta vez,
ele pareceu ficar incomodado, mas nada disse ou fez.
​― Esse é meu caderno de anotações, quero que leia e guarde as
informações na sua cabeça. Tem muito de nossas leis aqui. Foque-se no
conteúdo sobre os dons. Amanhã, vamos começar o treinamento.
​Peguei o caderno, a capa era de couro, que estava gasta, as páginas
amareladas, algumas dobradas e fiquei imaginando há quanto tempo ele
possuía o objeto. Abracei-o contra o meu peito e sorri.
​― Tudo bem, vou estudar o caderno.
​Ficamos nos encarando por um momento, até que ele fez um sinal
leve com a mão e a porta do quarto se abriu sozinha.
​― Pode começar.
​― Você está me expulsando do quarto?
​― Sim, pode ir.
​Arthur se levantou, pegou uma das toalhas que estavam sobre a cama,
provavelmente a empregada não tinha guardado a roupa de banho ainda.
Jogou a peça no ombro e se trancou no banheiro, me dando a nítida
impressão de que o que vivemos nos últimos dois dias ficaria na cabana para
sempre.
​Como não queria que ele achasse que gostei do tratamento, bati a
porta com força antes de deixar o quarto e entrei no meu, repetindo o gesto.
Era uma atitude infantil, mas não me importei, já começava a sentir
dificuldade por ser obrigada a estar longe dele, parecia muito pior do que o
que senti quando descobri que Pietro mentia para mim. O julgamento
revelara muito sobre suas mentiras, sobre seu caráter duvidoso e, sempre que
me lembrava de como quase me entreguei a ele, sentia meu estômago
embrulhado.
​Joguei-me na cama sem prestar muita atenção ao meu quarto, não
sentia falta de nada ali, nem mesmo do meu notebook e das minhas histórias.
Incrível como a vida real parecia mais interessante agora.
​Chorei por um tempo, talvez pelo cansaço do corpo, por tudo o que
passei nas últimas semanas. Tentava me enganar, dizendo a mim mesma que
era por estas coisas e por estar novamente em casa, mas no fundo eu sabia
que a tristeza esmagadora do meu peito possuía um nome e olhos
acinzentados hospedados na porta da frente.
​De repente, senti uma presença estranha; não era Pierre e nem Pietro.
Os pelos dos meus braços ouriçaram e senti um calor passando por mim,
como uma respiração rápida. Abri a porta do meu quarto e corri para o de
Arthur, entrando sem bater. Ele ainda estava no banho e bati na porta
assustada, a sensação de alguém muito próximo não passava e o ar quente
vinha e voltava num espaço curto de tempo.
​ Suzanna? O que houve? – Ele estava enrolado na toalha, o corpo

todo molhado, pararia para admirar mais se não estivesse certa que havia
alguém mais dentro do quarto.
​― Sente isso? Tem alguém na casa ou... Ou aqui!
​Ele me puxou, colocando-me atrás dele, falou alguma coisa em uma
língua que não entendi e a respiração que eu sentia em meu rosto diminuiu
lentamente, até sumir. Arthur se virou para mim, segurando a toalha com uma
das mãos.
​― Melhor?
​― Quem estava aqui?
​― Você já leu alguma coisa do caderno que te dei?
​― Não, por quê? Já era para ter lido?
​Ele negou, um sorriso brincou nos lábios dele e soltou um suspiro.
​― Deixa eu me trocar que te explico, vai... – Dessa vez, foi mais
brando ao me expulsar do quarto.
Capítulo 11

​ sperei sentada na minha cama, estava nervosa ainda, sentindo meu


E
corpo todo trêmulo. A sensação estranha e quente voltou algumas vezes, mas
sumia de repente como se quisesse me deixar apavorada.
​Ouvi alguém bater na porta e o perfume dele me atingiu antes mesmo
da voz.
​― Suzanna, sou eu, posso entrar?
​― Pode.
​Arthur estava de calça larga e camisa, ambos brancos, mas descalço e
com os cabelos molhados e bagunçados, senti um frio no estômago e um
desejo louco de tê-lo em meus braços, arrumar seus cabelos e pedir que
dormisse abraçado comigo, mesmo ainda sendo dia. Ele fechou a porta
lentamente e se aproximou, talvez notando meu olhar aturdido.
​Olhou o caderno jogado na cama e o pegou nas mãos, desenrolando
um barbante da capa e o folheando enquanto se sentava perto de mim, mas
longe demais para as minhas vontades. Com um suspiro baixo, ele ergueu
apenas os olhos, falando baixo.
​― Feche a mente, por favor.
​Em seguida, seu olhar voltou para o caderno. Meu coração bateu
acelerado ao perceber que tudo o que eu pensava ele estava ouvindo.
Rapidamente imaginei a luz me cobrindo, fechei meus pensamentos e por
precaução tentei ignorar o cheiro dele, o calor e como estava tão fácil de me
aproximar.
​― Pronto, me desculpe.
​O silêncio prevaleceu por alguns momentos e aquela respiração
estranha em meu rosto voltou, prendi o ar e me encolhi com vontade de
agarrar Arthur e me esconder nele.
​― Você sentiu? – Perguntou, sem se importar com meu estado de
espírito. Parecia aquele Arthur da escola há muitas semanas.
​― Senti.
​Estendeu-me o caderno de couro e apontou uma folha, estava escrito a
mão em uma letra desenhada, mas corrida, masculina. Quis perguntar se era a
letra dele, mas preferi o silêncio. Retirei o caderno de suas mãos e comecei a
ler o que ele indicou.
​Anjos Guerreiros:
​Percebi que, quando eles estão me vigiando, sinto sua presença e,
quando estão curiosos com a minha mente, sinto a respiração em minha nuca
ou em meu rosto. É sempre igual, mesmo quando me lembro de fechar meus
pensamentos. Como são vigias, estão sempre rondando, a espreita de algum
perigo. Não me incomodo como antes, mas preciso me lembrar de não
pensar nela.
​― Pensar em quem? – Perguntei sem me conter.
​Ele puxou o caderno da minha mão e leu, pareceu exasperado, apertou
os lábios e o fechou com um baque.
​― Ninguém que eu me lembre, foi escrito há muito tempo.
​― Eu nem era nascida? Você já gostou de outra. – Constatei, sentindo
meu coração pequeno.
​― Não, Suzanna. Escrevi isto quando precisei vivenciar uma luta, eu
não tinha experiência com anjos guerreiros. Esse caderno existe há anos, mas
o estou constantemente atualizando. – Ele se levantou. – Entendeu a lição e
que não precisa temer?
​Apenas balancei a cabeça positivamente. Em seguida, o caderno caiu
em meu colo e ele bateu a porta, me deixando sozinha.
​Peguei-o nas mãos e fitei a porta pensativa. Ele estaria falando a
verdade ou apenas tentando me fazer acreditar que fui a única em seu
coração? Era muito egoísmo pensar que fui a única, já que ele não foi o único
para mim, pois quase me entreguei ao Pietro algumas vezes. Porém, queria
ser única, queria ter o coração dele só para mim.
​Suspirei confusa e ao mesmo tempo ávida por aquela preciosidade
entre meus dedos. Era um caderno de lições, de seus aprendizados, mas
continha suas memórias e, talvez, mais informações sobre “ela”.
​Abri-o na primeira página, tocando a letra fina, desenhada nas folhas
macias e amareladas. Suspirei, sentindo como se entrasse na intimidade dele,
um medo bobo fez meu coração disparar, mas a curiosidade me deu coragem
de começar a leitura.

​Pierre – Guarda Celestial


​Inicio das memórias: 1980 D/C

​ o olhar a gravura na primeira página, me dei conta de que ele iniciou


A
os escritos apenas a trinta e dois anos. Talvez tivesse escrito depois de
conhecer meu pai e ser designado como seu guardião, meu coração bateu
ainda mais acelerado. Na página seguinte, havia um desenho quase perfeito
de um anjo de costas, duas asas acima das omoplatas, pareciam escuras e a
palavra sentinela estava escrita logo abaixo. Virei a folha e estava recheada
de palavras, talvez lembranças ou aprendizados. Deitei-me de bruços na
cama, devorando a leitura.

​Sentinelas
​Anjos guardiões. Possuem asas um pouco mais escuras que as dos
guardiões terrestres como eu, conseguem se camuflar em qualquer lugar,
tem dom de cura como todos nós, captam com facilidade o perigo, são
extremamente ágeis e rápidos no voo.
​Uma curiosidade: é difícil captá-los quando estão presentes, são
quase invisíveis aos sentidos.

​ lhei para cima, pensando se havia algum anjo sentinela por perto,
O
teria de tomar mais cuidado com as minhas atitudes perto de Arthur, não
queria de modo algum prejudicá-lo. Voltei meus olhos para as palavras,
muitas estavam jogadas aleatoriamente nas folhas, algumas frases e desenhos
pequenos também.

​ rilho amarelado, pele translucida. Quando estão lutando, exalam


B
um aroma de chuva e algumas vezes já notei que chove.

​― Que legal! – Sussurrei.


​Havia desenhos e rabiscos sem sentido em um canto e, em volta de
outro anjo de costas, algo parecendo uma áurea. Uma seta me levou até um
minúsculo comentário.

​Ele tem características de sentinela.

​ avia vários círculos em volta da frase, como se quisesse destacá-la a


H
fim de se lembrar depois. De quem Arthur estaria falando?
​Não percebi as horas passando, estava concentrada nos desenhos e no
que as anotações dele tinham a me ensinar. Por isto quando vovó bateu na
porta do quarto e entrou, me levantei assustada, pronta para brigar.
​― Está tudo bem, Suzanna?
​― Oi vó, está sim. Desculpe. – Ajeitei a roupa e escondi o caderno
embaixo do travesseiro.
​― Você ainda não tomou banho para o jantar? – Ralhou. – Já está
pronto e servido! Arrume-se e desça.
​― Isso que é saudade... – Sussurrei depois que ela fechou a porta, o
relógio beirava às sete horas da noite.
​Corri para o meu armário e retirei um vestido rosa bebê, de malha
leve e decote quadrado, duas alcinhas finas prendendo-o ao ombro. Respirei
fundo, pensando se Arthur me acharia bonita nele, mas corri para afastar o
pensamento, já que era errado pensar nele agora. Separei um salto alto para
agradar a vovó e, quando estava prestes a entrar no banheiro, alguém bateu na
porta.
​― Entra. – Continuei em pé próxima ao banheiro. Arthur colocou a
cabeça para dentro do quarto e depois entrou, parecia confuso. – Aconteceu
alguma coisa?
​― Não... Hm, sim. – Ele coçou a nuca, mordeu o lábio e se
aproximou mais. – Sua vó me chamou para o jantar, mas eu tinha esquecido o
quanto eles são formais. Estou bem assim?
​Ele estava com uma calça escura, sapatos sociais e uma camisa branca
por dentro da calça, o cabelo alinhado e todo perfumado. Abri um sorriso
irônico, minha chance de devolver a má educação de mais cedo estava ali.
​― Desde quando precisa da minha ajuda para se arrumar? Inseguro
agora?
​Ele me olhou surpreso com a resposta, entreabriu os lábios e depois
riu.
​― Sua amiga Bruna talvez não se importe em me ajudar com as
roupas.
​E saiu.
​Ponto para ele de novo.
​Entrei no banheiro batendo a porta. Fui rápida no banho, pois não
queria que a vovó voltasse a me chamar. Prontamente as sete e trinta, eu
descia as escadas. Meus cabelos soltos e cacheados, os tic tacs bem presos na
franja, estava com o mínimo de maquiagem, o salto alto fazendo um som
mágico contra o piso que fez todos os olhos se voltarem para mim.
​Aproveitei a deixa, ergui o queixo e deslizei como uma verdadeira
rainha, pisando cuidadosamente e com a mão no corrimão. Ao final, fui
surpreendida por Arthur, que estendeu a mão para me acompanhar.
​― Obrigada. – Fui forçada a dizer, já que ele tinha adquirido uma
postura formal.
​Ele abriu um sorriso divertido, o que me deixou um pouco mais
irritada. Esse treinamento seria mais complicado do que imaginei. Ao
chegarmos à sala poucos passos à frente da escada, vovó me olhou enviesado
e o vovô encarou Arthur com um olhar não muito amigável. Achei que ele
fosse me largar, mas não o fez, apenas me conduziu para uma poltrona e
ficou em pé ao meu lado.
​― O que está acontecendo? – Perguntei.
​― Você demora muito. – Vovó alfinetou e eu suspirei, fazendo um
bico.
​Com um riso divertido, Arthur abaixou até a minha orelha e
sussurrou.
​― Estamos esperando algumas pessoas.
​― Que pessoas?
​― A Bruna é uma delas.
​Olhei para ele que, na frente dos meus avós, mudou sua forma para o
Arthur da escola: cabelos negros e compridos, olhos mais escuros e a pele
quase avermelhada. Arfei, afastando o rosto para olhá-lo. Não me lembrava
do quanto ele era lindo como Arthur.
​― Pelo visto, você está a fim de impressionar a minha amiga. –
Trinquei os dentes, sem conter o ciúme.
​― Ela me acha quente. – Respondeu num tom malicioso e baixo,
somente para que eu ouvisse. Fuzilei-o com o olhar e a campainha tocou.
​Vovó correu para atender e um alvoroço se iniciou.
​Acompanhei-os até a recepção, muitos dos meus colegas de classe
estavam ali, cumprimentando meus avós, e seus pais com eles. Assim que
coloquei os meus olhos na Bruna, senti as lágrimas molharem minhas
bochechas. Ela começou a pular e correu na minha direção. Estava radiante,
com um vestido branco e sandálias baixas.
​― Suzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!
​― Que saudade desse seu grito! – Abracei-a e ambas começamos a
rir, pois odiava quando ela me chamava dessa forma.
​Eu senti Arthur mais próximo e um frio incômodo na boca do
estômago. Afastamo-nos e olhei na direção em que ele estava, em seu rosto
havia uma máscara formal, mas seus olhos pareciam distantes e estavam
cravados em mim.
​― Conte-me tudo! O que aconteceu com você? Você está linda, Suz,
linda! – Ela gesticulava e falava alto, meus colegas nos cercando para me
ouvirem, eu não fazia ideia do que deveria dizer, para meus avós era a
verdade e para eles?
​Limpei meu rosto das lágrimas e encarei Arthur, abrindo minha mente
apenas para ele, havia certo desespero se apossando de mim.
​O que eu digo? Seus olhos ganharam foco e ele respirou assustado
quando me ouviu. Olhou-me pensativo e pareceu uma eternidade o silêncio
que se seguiu.
​Diga que não pode contar. Não minta, mas não revele. Sua voz
pareceu me preencher por inteira, porém sorri com desdém, já que a resposta
não me ajudava muito.
​― Não posso falar, mas agora estou bem, estou aqui, certo? – Disse
para eles que não gostaram muito da resposta.
​― Você me contará depois. – O olhar de Bruna era taxativo.
​Tentei argumentar, mas outros braços me envolveram. Não me
lembrava do nome de todos, pois sempre fui muito fechada, mas os abracei,
cumprimentei e sorri como uma boa anfitriã deve fazer. Vovó nos guiou para
a sala de jantar, que dispunha de duas mesas retangulares, fiquei surpresa ao
ver como couberam e ainda sobrava espaço para andarmos em volta delas.
​Os adolescentes se sentaram na extremidade da direita e os adultos à
esquerda, Arthur e eu nos sentamos um de frente ao outro, com a Bruna ao
meu lado. O barulho me incomodou um pouco, já que passei muito tempo
confinada naquela cela ou entre árvores sendo arrastada para cima e para
baixo, mas era bom me sentir um pouco normal, entre amigos.
​― O jantar pode ser servido. – Alertou vovó e logo duas empregadas
nos serviram, uma de cada lado das mesas.
​Havia salada de tomates, folhas verdes e queijo branco, meus
preferidos, em seguida um caldo fraco de legumes e, como prato principal,
carne assada ao molho madeira e arroz branco. Deliciei-me, pois Maria
cozinhava muito bem e a saudade do gosto da comida de casa não me
deixava regular na quantidade. Vi várias vezes minha vó ralhar com o olhar,
mas continuei. Meus amigos me seguiram, devorando o alimento como se
fosse sua última refeição.
​Estava me divertindo com as histórias que contavam sobre o final das
aulas e como perdi algumas das provas.
​― A professora Sandra fala direto da redação de vocês. – Comentou
Rafael, um dos garotos mais bonitos da nossa turma. Quando era mais nova,
tinha uma quedinha por ele, nem me lembrava.
​Ele estava de boné, o que certamente vovó desaprovou; o cabelo loiro
escondido por ele. Seus olhos verdes varriam a comida como quem se
prepara para pegar mais. Sua pele tão branca que era possível enxergar as
veias, mas ele era forte e alto, o goleiro da escola.
​― E por que ela fala da redação? – Intrometi-me.
​― Acho que ela sente saudade desse aí. – Apontou Arthur com o
ombro, todos do nosso lado da mesa riram.
​Encarei Arthur, que estava se divertindo com a situação.
​― Bom saber. – Respondeu e alguns o encararam com nojo, já que a
professora era considerada velha demais para eles. Arthur deu de ombros e
seu rosto ficou todo vermelho. Ri por dentro pela gafe dele.
​― Então, Suzanna, o que houve com você de verdade? Ele te
sequestrou, foi? – Rafael perguntou, limpando os lábios no guardanapo e
apontando para Arthur.
​― Eu sabia que ele era badboy no dia em que chegou à escola. Não
saía de perto de vocês duas. – Acrescentou um rapaz ao lado dele. Pelo
suspiro da Bruna, ela estava gostando desse agora. Tinha o mesmo porte de
Arthur, porém mais baixo e de cabelos castanhos.
​― Ele não me sequestrou e não é badboy. – Defendi. – Já disse que
não posso falar sobre isso. – Tentei encerrar o assunto, mas uma enxurrada de
teorias começou a brotar de todas as bocas ao mesmo tempo.
​― Você está grávida, não está? – Uma menina ruiva perguntou.
​― Do badboy? – A amiga dela riu e ambas olharam para Arthur como
se fosse um deus grego.
​― Já sei, você não queria fazer as provas, estava com medo. Fugiu de
casa! – Edilene, a mais estudiosa da classe questionou, fazendo todos
olharem para ela, já que quase ninguém conversava com a menina.
​― Não, gente! Nossa. Não estou grávida e nem fugi de casa. Só sumi
por alguns dias, mas estou de volta e bem. Isso que importa, certo?
​― Certo. – Alguns balbuciaram e respirei fundo.
​Maria e suas ajudantes tiraram os pratos e, em seguida, serviram taças
de sorvete, deixando diversas coberturas no centro da mesa. Estendi a mão
para pegar a de chocolate e a mão de Arthur envolveu a minha. Aquela
sensação gostosa de ter a pele dele fez meu estômago gelar de novo, ergui os
olhos e ele estava me encarando.
​― Primeiro as damas. – Soltou a cobertura.
​ ão respondi, já que tinha certeza que minha voz sairia falha.
N
Terminei de me servir, mas a cobertura foi arrancada das minhas mãos e foi
passeando de mão em mão até me devolverem. Olhei para Arthur e estendi o
frasco; pelo peso, sabia que, ou estaria vazio, ou com pouquíssima cobertura
para o sorvete dele.
​Ele sorriu, piscou e, então, uma calda suculenta e com um leve vapor
começou a descer do potinho para o sorvete. Abri os lábios assustada com
aquilo e olhei em volta, ninguém a não ser eu mesma prestava atenção. Ele
fechou o recipiente e me devolveu.
​― Obrigado.
​Abri a garrafinha de calda e apertei, estava completamente vazia e
gelada; era impossível ter tanta calda e ainda por cima saindo vapor.
​― Como... Que... Você...
​Multiplicação. Falou na minha mente, colocando uma quantidade de
sorvete generosa na boca. Arrastou a taça na minha direção e com a boca
cheia, sussurrou: Experimenta. – Com a boca cheia.
​Não resisti, peguei um pouco com a minha colher e levei à boca, o
chocolate tinha o mesmo sabor do meu, mas estava quente, derretendo o
sorvete. Gemi satisfeita e quase troquei minha taça com a dele, porém a
arrastei de volta para ele que voltou a comer, fazendo questão de mostrar a
satisfação que teve por não ficar sem chocolate. Decidi que ainda aprenderia
esses truques.
​― Vocês estão ficando? – Perguntou a Bruna ao meu lado, me
fazendo desviar do olhar de Arthur. Meu rosto queimou de vergonha no
mesmo segundo.
​Como responder sem mentir? Perguntei-me.
​Respirei bem fundo, tomando coragem para negar, quando ele se
inclinou sobre a mesa e capturou a mão de Bruna, fazendo-a prender o ar ao
meu lado.
​― Por que a curiosidade, Bruh? – O tom que ele usou me fez ter
vontade de levantar da mesa e correr para o meu quarto. Ela ruborizou e me
olhou de lado, como quem aceita que minha resposta seria não.
​― Porque não é concebível um cara tão gato estar sozinho no mundo.
– Respondeu piscando para ele. Meu estômago embrulhou e deixei a colher
na taça, desistindo do meu sorvete.
​Ficar longe é uma coisa, dar em cima da minha melhor amiga é outra
totalmente inaceitável.
​Pedi licença e me retirei da mesa, indo na direção da varanda onde, há
apenas poucas semanas, o Pietro esteve comigo e tudo parecia maravilhoso
na minha medíocre vida.
​Debrucei-me, olhando o jardim dos Santos e também o nosso. Parecia
o mesmo, intocável e com as flores vivas abaixo de mim, a lua minguante
deixando um breu de inúmeras sombras cobrindo-as. Suspirei, engolindo o
bolo no estômago e ajeitei os cabelos, enquanto tentava não pensar em
Arthur.
​Como e quando me tornei tão dependente e ligada a ele? Não
conseguia me lembrar, nem precisar o tempo, mas era óbvio para mim e as
lágrimas que queriam cair, que eu estava apaixonada por ele. Justo por ele,
que meu pai morreu tentando me proteger de amar. Seria tão simples se eu
amasse o Pietro, ele ficaria comigo... Nem tão simples, eu seria parte do
Inferno agora.
​Resmunguei para mim mesma e senti um vento gelado soprar na
minha nuca, mas não quis olhar se alguém chegou ou se eram apenas as
sensações estranhas que viviam me atormentando agora.
​― Ficou brava comigo, Suz? – Bruna choramingou às minhas costas,
eu neguei, incapaz de olhá-la.
​Ela encostou ao meu lado e ficou brincando com os dedos, debruçada
como eu sobre o parapeito da varanda.
​― Como você está? – Perguntei baixinho, olhando o vento arrastar as
árvores para lá e para cá, como varetas.
​― Melhor agora que encontraram você. Desculpa por aquilo lá
dentro, ele é tão lindo que...
​― Não se preocupe. – Cortei-a. – Você sabe como ele é, faz isso com
as garotas. Não acho que sou a única que, enfim... Passou no último ano? E a
formatura como foi?
​― Vocês ficaram? – Ela ignorou as outras perguntas, me olhando
com olhos curiosos. Suspirei confirmando lentamente com a cabeça. – Ahh,
eu sabia! – Gritou.
​― Shiuuu! Cala a boca! – Pedi, quase sufocando com a vontade de
chorar. – Mas, não vai mais acontecer. – Resumi todo o problema.
​― Por que não? Ele é lindo, Suzanna. – Falou sonhadora.
​― Mais que lindo, Bruh. Ele é saído de um conto de fadas. – Fiz
biquinho e ela me abraçou. – Mas, a vida nunca é justa e eu pedi tanto para
sofrer de amor, que acho que Deus resolveu me conceder esse privilégio.
​Ela riu e me encarou, nos soltamos.
​― Tão dramática!
​Mal sabia que era ainda pior do que eu dizia.
​― Então, a formatura? – Cortei o clima estranho com um sorriso
aberto.
​ Não teve ainda. Nós pedimos para adiarem até você voltar, afinal

você é a segunda melhor aluna da turma e ninguém tinha clima para festa.
​― Vocês ficaram tão preocupados assim? – Surpreendi-me.
​― Claro! Suzanna, eu sou sua amiga e, acima de tudo, eu amo você e
fico agradecida por estar bem. O que aconteceu?
​― Eu também te amo, Bruh, obrigada por isso... Mas olha, não me
pergunta mais porque realmente não quero falar sobre isso.
​― Muito traumatizante?
​― Muito. – O que não era em nada uma mentira.
​Vovó nos interrompeu, chamando para entrarmos na sala, quis
perguntar sobre quando seria a formatura, mas não tive tempo, meus colegas
estavam se despedindo. Abracei todo mundo, reclamando por terem de ir tão
cedo, já que não queria voltar para a realidade. A última a se despedir foi a
Bruna que estava de carona com o Rafael e seu amigo.
​― Fica bem, tá? E me liga. Vamos sair muito nessas férias e, depois,
fazer a matrícula na faculdade.
​― Faculdade... Nem me fale. – O rapaz revirou os olhos.
​― A formatura será quando?
​― Não me lembro, te falo amanhã.
​Despedimo-nos mais uma vez e eles se foram. Fiquei um tempo ainda
na porta de casa olhando o portão lá embaixo, ouvi meus avós entrarem e
resolvi andar pelo jardim. Precisava cansar para conseguir dormir e, aos
poucos, os desenhos no caderno de Arthur voltavam a povoar meus
pensamentos.
​O jardim estava iluminado por uma luz amarelada da varanda, mas,
conforme meus passos avançavam, a escuridão se tornava assustadoramente
sombria. Passei pelas flores, o perfume estava forte como o de um cemitério,
andei mais até chegar ao muro que separa as propriedades. O local onde eu o
pulava para invadir a casa da família Santos. Debrucei-me sobre ele e fiquei
admirando a minha árvore de longe, parecia a mesma, exceto pelas flores que
agora pendiam acima em seus galhos.
​Não demorou muito para a presença de Arthur se tornar forte, mas,
por ele estar em casa, não dei muita importância até ouvir ele tossir atrás de
mim.
​― Deixe-me sozinha. – Pedi sem olhar para ele.
​Ouvi seus pés se arrastarem e ele começou a se distanciar, encarei
suas costas e, por pouco, não pedi para ele voltar e ficar comigo, mas me
contive. Era melhor me acostumar de uma vez.
​Passada quase meia hora, decidi voltar para o meu quarto, pois o
cheiro estranho de cemitério ficava mais forte com o avançar das horas.
Respirei fundo, me afastando do muro e fazendo o trajeto de volta para a
casa. Um barulho, porém, me fez recuar e parar de andar.
​― Suzanna. – A voz ecoou baixa, vindo abaixo de mim como se a
pessoa estivesse deitada no chão – Suzanna. – Sibilou meu nome mais uma
vez.
​Meu coração martelou no peito e senti meu corpo amolecer tamanho o
medo que me submeteu.
​― Quem é? – Perguntei procurando o dono da voz.
​― Eu vou reivindicar a sua alma.
Capítulo 12

​ enti meus pés travarem e meu corpo totalmente rígido com aquelas
S
palavras, um calor estranho se apossou de mim e, quando percebi, estava
ajoelhada na grama, com as mãos na barriga, apavorada de medo.
​― Quem está ai? – Sussurrei, não queria chamar atenção de ninguém.
​― Ora, não me reconhece mais?
​― Pietro?
​O homem tocou meus cabelos e ouvi quando os cheirou, a repulsa me
embrulhou o estômago. Virei meu rosto na direção dele e uma fumaça negra
se desfez no lugar onde estaria. Por isto, me corrigi.
​― Havi.
​O sorriso em sua voz era de deleite pelo meu reconhecimento.
​― Você se lembra, isso é razoavelmente bom, mas lembra também
que, se não vier comigo, seu namoradinho vai morrer?
​Apertei os olhos, confusa, pois acreditava que isso tivesse ficado no
passado, que, com o julgamento, Pietro ou Havi não pudessem mais me
ameaçar. Olhei para onde aquela fumaça flutuava.
​― Vocês não podem tocá-lo, eu fiz a minha escolha.
​― Ainda pode mudar de ideia. – A voz dele passou pelo meu ouvido
como se a boca estivesse ali, recuei alguns passos e as asas negras
começaram a cortar o vento enquanto ele tomava distância. – Pense bem,
Suzanna, você pode vir comigo por bem ou...
​Então, a sensação estranha de frio, medo e o cheiro de cemitério
sumiram imediatamente. Fiquei encarando o céu para onde o urubu voou,
incrédula de que esse pesadelo fosse começar de novo.
​O que ele quis dizer com posso mudar de ideia?
​Voltei para casa trêmula, sentia meu corpo mole e as pernas
demoraram a responder, porém, quando cortei a recepção e comecei a subir
as escadas, já me sentia melhor para não demonstrar meu nervosismo.
​Subi segurando com firmeza no corrimão, a casa estava silenciosa
demais, o que me fez crer que todos já haviam se recolhido. Passei pelo
quarto dos meus avós e todos os de hóspedes até chegar aos dois últimos, o
meu e o do Arthur; a porta do quarto dele estava aberta e a luz apagada. Parei
na entrada, pensando se devia contar a ele sobre a visitinha de Havi, mas ele
parecia em paz, adormecido sobre a cama, a luz prateada da lua – vinda da
janela – passeando por seu rosto tranquilo, deixando-o ainda mais lindo.
Enxuguei o rosto, notando as lágrimas e sai em silêncio, fechando a porta do
meu quarto para não atrapalhá-lo com a luz. Não conseguiria dormir de luz
apagada depois desse susto.
​Troquei de roupa lerdamente, por mais que negasse a mim mesma,
estava apavorada. Reivindicar minha alma, matar Arthur... Na certa, não era
uma ameaça infundada. Devia ter lido mais os livros que meus avós me
emprestavam para conhecer melhor sobre anjos, demônios e Nefilins.
Suspirei frustrada, encolhendo-me embaixo das cobertas, munida com meu
pijama branco de bolinhas pink e um capuz grosso de lã, inútil para os sons
estranhos da casa estalando ou do vento do lado de fora.
​Eu tinha a opção de virar um anjo e lutar com todos eles, mas como
deixaria toda a minha vida para trás?
​O pensamento me fez lembrar o caderno embaixo do meu travesseiro
e também do meu celular que, com toda certeza, está sem bateria, enfiado
dentro da minha mochila em algum lugar. Levantei-me em silêncio para não
perturbar o Arthur do outro lado do corredor, abri meu armário e localizei
minha mochila, que certamente Maria tinha guardado para mim. Encontrei o
carregador e levei tudo para a minha cama. Enquanto procurava o aparelho,
coloquei o carregador na tomada. Meu celular era daqueles sem frescuras,
somente para mensagens, chamadas e alguns ícones da internet que eu
raramente usava. Dourado e com teclinhas brancas, meu xodó.
​Localizei-o no fundo da mochila, estava totalmente sem bateria.
Rapidamente conectei ao carregador e esperei ligar para ver quantas pessoas
me mandaram mensagens ou tentaram me ligar. A tarefa estava funcionando
bem para me distrair de Havi ou dos bafos quentes que, de tempos em
tempos, pareciam entrar no meu quarto, me olhar e sair. Não sei como Arthur
aguentava se sentir vigiado o tempo todo e não sei como os anjos sentinelas
não haviam notado a presença de Havi no meu jardim.
​Mesmo sabendo que o celular vibraria quando as mensagens
começassem a chegar, dei um gritinho assustado quando ele tremeu na minha
mão. Mordi o lábio me achando ridícula, já tinha passado por coisas muito
piores para estar tão assustada com uma conversinha idiota. Nervosa, joguei
um dos travesseiros longe e deixei o celular no chão, vibrando à vontade
enquanto as mensagens não paravam de chegar.
​Olhei o quarto mais uma vez e, na verdade, pela primeira vez com
atenção desde que retornei. O rosa das paredes havia sumido e um tom gelo
as cobria, a janela onde costumava olhar o jardim fora derrubada e estendida
como um mezanino com uma pequena cama retangular, várias almofadas e
uma vidraça enorme dando a visão mais absurdamente linda para a noite
estrelada.
​― Como não vi isso antes? – Perguntei-me indo até lá, arrastando o
cobertor em volta do meu corpo e com o caderno pressionado em meu peito.
Aconcheguei-me encolhida, olhando para a visão da frente do casarão,
vislumbrada.
​Havia pedido essa alteração muitas vezes aos meus avós, o sumiço
com certeza amoleceu o coração deles para as mudanças. Novas lágrimas
deslizaram pelo meu rosto, eu não estava acostumada a chorar tanto, sentia-
me uma menina indefesa no meio de um mundo louco que ganhou um
pequeno agrado do universo com esse sofázinho.
​Abri o caderno de Arthur, desistindo de olhar para as sombras do lado
de fora, estava com o cobertor dos pés a cabeça, uma lanterninha nas mãos e
com o caderno entre os joelhos. Folheei as páginas até chegar onde tinha
parado de ler. O caderno estava repleto de desenhos de anjos, asas ou círculos
em palavras-chave. Esta folha não era diferente, no canto superior direito
havia uma data – 23/02 – e a palavra “sentinela” embaixo. Apertei os olhos,
confusa com aquilo, era a segunda vez que a palavra estava destacada como
se se referisse a algo ou alguém.
​Arrastei os olhos superficialmente sobre as folhas para ver se
encontrava alguma outra notinha familiar. Algumas folhas à frente, outro
rabisco.

​ s vezes não sinto quando ele se aproxima, quando quer saber se


À
desisti mesmo dela. Talvez, eu esteja certo, é essa a designação.
​“Ele quem? E por que ele rabiscou essa palavra... Dela?”. Perguntei-
me, folheando com gula por mais vestígios. Meu coração novamente
disparado, mas por ter quase certeza sobre o que ele escrevia.
​Avistei uma data escondida embaixo de mais rabiscos, vinte de
dezembro, tenho quase certeza que é isso. É a data do meu aniversário...
​Li cada letra escrita, afundando-me nas palavras em busca de algum
consolo ou informação importante para minha nova condição como menina-
Nefilin-confusa.

​Potestades
S​ ão parte do exército de Lúcifer, demônios que atacam tanto no ar
como na terra, servem para confundir decisões dos humanos, retardar anjos
Mensageiros e Guerreiros, usam de artimanhas para serem adorados no
lugar de Deus. São traiçoeiros como todos os demônios. Não podem ouvir os
pensamentos, nenhum demônio tem esse poder, somente anjos caídos
conseguem, se o humano os deixar sem proteção.

​Um desenho estranho estava depois das palavras, não fazia nem ideia
do que era isto, mas me arrepiei ao imaginar que tipo de demônio era Havi e,
ao mesmo tempo, senti um alívio por saber que eles não podem me ouvir.
​A casa deu um novo estalo de repente, fazendo meu coração martelar
mais uma vez. Arrastei-me para a cama, apaguei a luz e me encolhi de costas
para a janela para não ver as sombras. Escondi o caderno embaixo do
travesseiro e comecei a orar em pensamento, pedindo que nada de ruim
aconteça a Arthur ou a minha família.
​Demorei muito para me sentir calma de novo, só consegui mesmo
quando me foquei em Arthur no outro quarto, tentei lembrar o semblante dele
enquanto dormia na cabana e do calor dos seus braços ao meu redor e me
senti mais confortada quando seu cheiro almiscarado brincou nas minhas
lembranças. Adormeci, imaginando-o comigo, me protegendo ou apenas
sendo ele novamente.

​ m breu me cercava e não conseguia enxergar nada à minha frente,


U
dando a impressão de estar presa em algum lugar ou de olhos fechados.
Estendi as mãos tentando alcançar algo, mas parecia um lugar aberto, sem
paredes ou correnteza de ar. Meu estômago estava gelado e ouvia meu
coração ecoando em meus ouvidos, retumbando insistentemente a fim de me
lembrar do quanto estava amedrontada. O som da minha respiração cortou o
silêncio e, corajosa, tentei dar o primeiro passo para dentro da escuridão.
Meu pé ficou enroscado em algo pesado e gosmento, precisei segurar a
perna e puxá-la para conseguir avançar.
​Com dificuldade, dei alguns passos, mesmo não enxergando nada e
nem ouvindo som algum além dos meus próprios barulhos; sentia uma
presença esmagadora perto de mim, a espreita, como se aguardasse um
único deslize. De repente, meus passos se tornaram menos dificultosos e o ar
quente ficou penetrante, ardido quando passava por minhas narinas.
​Pisquei e enxerguei uma luz alaranjada e a silhueta de um homem a
alguns metros de mim. Andei mais rápido tendo quase certeza de que era
Arthur, chamei-o, mas não tinha voz. Comecei a correr, a textura gosmenta
no chão me prendendo e o homem se distanciando como o zoom inverso de
uma máquina fotográfica. Quando meus olhos se acostumaram à iluminação,
notei haver um buraco no chão, estávamos cercados por lava de vulcão, mas
a lava não me queimava e nem a ele e não sentia frio ou calor, apenas um
pavor me envolvendo como chamas.
​― Arthur! – Gritei e dessa vez minha voz obedeceu, ele se virou, seus
olhos em um tom vermelho sangue, seu semblante amargurado como se uma
dor profunda o atingisse. Um sorriso amargo passou por seus lábios antes de
me virar as costas, dar mais um passo, despencando para o abismo à frente
dele. – Não! Arthur!
​Finalmente alcancei a borda. Abaixo, havia apenas uma lava grossa
e quente. Sem pensar duas vezes, atirei-me atrás dele.

​― Suzanna! Suzanna! Acorda!


​Puxei o ar com força, abrindo meus olhos e agarrando o vulto à minha
frente, sentindo os soluços que me escapavam da garganta e as lágrimas
descendo como cascatas de meus olhos.
​― Não, Arthur... – Sussurrei, braços envolveram meu corpo e uma
mão carinhosa passeou por meus cabelos.
​― Shiuu, calma, foi só um pesadelo. – A voz masculina soou
preocupada.
​― Ele se jogou... Eu não acredito que ele... Não acredito! – Agarrei-
me à roupa dele, me encolhendo o máximo que consegui naqueles braços
quentes que me aconchegavam, tirando o torpor em que me encontrava.
​― Suzanna. – Ele se afastou, tocou meu rosto erguendo meu queixo,
pisquei várias vezes tentando desembaçar os olhos. – Olha para mim,
Suzanna. Você só estava tendo um sonho ruim. – Senti os lábios mornos na
minha testa e ele arfou. – Como você pode estar quente desse jeito? Vem,
deita de novo. – Encolhi-me mais ainda, não queria deitar, não queria fechar
os olhos e me lembrar de Arthur pulando naquele abismo.
​O homem me soltou ao notar que eu não o largaria e senti sua
presença se afastar, usei a blusa do meu pijama para limpar os olhos das
lágrimas insistentes e me vi em meu quarto, ainda era noite. Concentrei-me
em respirar lentamente, então percebi que estava sonhando e Arthur
provavelmente dormia do outro lado do corredor. Respirei aliviada,
guardando o rosto nas mãos para novas lágrimas me balançarem.
​ Suzanna, bebe isso. – Dei um pulo ao ouvir a voz de Arthur e

identificar que era ele que estava comigo antes. Ergui meus olhos e ele
estendia um copo.
​― Obrigada.
​Bebi o líquido que tinha um leve sabor adocicado, minhas mãos
tremiam tanto que ele me ajudou a virar o copo e, quando terminei, tirou-o da
minha mão e me fez deitar.
​― Foi só um sonho ruim. – Repetiu, passando os dedos nas lágrimas
em meu rosto.
​― Sonhei com...
​― Eu sei, eu vi... – Cortou-me. Inclinou-se, beijando minha testa e me
encarou. – Tente dormir, amanhã conversamos sobre isso, está bem?
​― Não vou conseguir dormir, Arthur... – Respondi chorosa, não
estava mais preocupada em ficar na defensiva, só não queria que ele se
jogasse de novo naquele buraco.
​Ele suspirou, esticou o braço, colocando o copo sobre a escrivaninha e
se voltou para mim.
​― Suzanna, você não vai ter outro pesadelo, eu prometo. Ninguém
vai perturbar seu sono.
​― Eu sei que vou, eu sinto que vou, eu não quero dormir. – Não
queria ficar sozinha, nem fechar os olhos, pois, mesmo com eles abertos,
continuava vendo a silhueta de Arthur, seus olhos vermelhos e a queda.
Apertei bem os olhos, tentando mudar a visão e, ao abri-los, os olhos cinza do
anjo estavam diante dos meus.
​― Isso não vai acontecer porque só foi um pesadelo. – Seus dedos
estavam passeando por meu rosto, mas seus olhos estavam como duas
chamas peroladas, transmitindo toda a sua preocupação. – Tente dormir. –
Beijou minha testa e se levantou, mas eu o segurei pelo braço.
​― Fica aqui?
​Esperei que revirasse os olhos ou me respondesse com alguma ironia,
mas, ao invés disto, ele assentiu, olhou em volta a procura de algo que não
consegui identificar e, por fim, apagou a luz, deitando-se em seguida sobre o
cobertor e me puxou para o seu peito.
​― Dorme, meu anjo. – Sussurrou e, poucos segundos depois,
começou a cantarolar uma melodia leve, muito baixa e tranquilizadora.
​Eu o abracei, afundando o rosto em seu peito, sentindo o cheiro dele
me acalmar e o calor das suas mãos, mesmo com o cobertor atrapalhando, me
envolvendo. Em minutos, o sono me levou novamente.

​Despertei com a luz do sol batendo em meu rosto e reclamei baixinho


até me dar conta de que dormi quase a noite toda. Sorri, abrindo lentamente
os meus olhos e constatando que Arthur já não estava mais comigo,
provavelmente havia despertado mais cedo. Sentei-me com uma pontada de
tristeza e me arrastei até o banheiro para fazer minha higiene pessoal.
​Aos poucos, a lembrança dos motivos dele me ter socorrido de
madrugada voltaram como uma enxurrada a me perturbar. Meu peito se
apertou. Seria somente um pesadelo ou mais um aviso, assim como meu pai
soube de Arthur, antes mesmo que eu pudesse me apaixonar?
​Limpei as lágrimas, irritada por estar chorando mais uma vez e entrei
no box, deixando a água morna limpar os medos e carregá-los ralo abaixo.
Quando estava quase terminando, foi que me toquei da visitinha inapropriada
que meu corpo me enviou.
​― Ah, ótimo! – Exclamei, enrolando-me na toalha e retirando um
absorvente da gaveta do gabinete do banheiro. – Cólica, treinamento e TPM,
tudo para deixar o dia mais que perfeito! – Vesti minha roupa, um moletom
escuro e blusão, já sentindo as dores familiares na altura do ventre. Minha
vontade foi voltar para a cama e ficar ali, encolhida até os sete dias se
passarem. – Que raiva! Será que anjas têm esse probleminha mensal?
​― Anjas têm que problema mensal? – Arthur perguntou da porta do
meu quarto.
​Acabava de sair do banheiro, não tinha tido tempo nem de ajeitar o
fuá do meu cabelo. Dei um grito e joguei o travesseiro nele.
​― Sai, sai, sai!
​Sem entender nada, Arthur fechou a porta me deixando sozinha.
​Com pressa, fiz uma trança, pois era a forma de deixar meus cabelos
arrumados mais rápido, vesti um tênis de corrida, porque tinha quase certeza
de que treinaríamos hoje e fui até a porta para saber se ele ainda estava por lá.
​― Arthur?
​― Ei. – Apareceu na porta do quarto da frente, tinha um sorriso
divertido nos lábios e me olhou de cima a baixo como se me examinasse.
​― Desculpe – Apontei para dentro do quarto. – É que, enfim... Você
queria falar comigo?
​― Queria saber se está melhor.
​Algo no sorriso dele e no olhar não combinavam, apertei os olhos
meneando a cabeça antes de responder.
​― Acho que estou... Obrigada por esta noite, só que você me parece
perturbado.
​Com um gesto rápido de cabeça, ele me convidou para o seu quarto.
Entrei e ouvi a porta se fechar, o que me levou a uma lembrança não muito
distante quando ele fez o mesmo na cabana e, assim que a porta se fechou, ele
me prensou contra ela, me abraçando e dizendo coisas lindas, fofas e que
estava com saudade de mim. Confesso que esperei o mesmo, mas, ao invés
disso, Arthur foi até a janela e ficou olhando para o jardim dos fundos.
​O quarto dele era muito parecido com o meu, referente à disposição
dos móveis e ao banheiro, as cores eram neutras e claras. Ele abriu a cortina e
ficou em silêncio, não sei se esperando que eu dissesse algo, mas não fiz, só
me aproximei tocando suas costas carinhosamente, sentindo o tecido leve da
camisa de algodão que ele estava vestindo.
​― Você está bem? – Insisti.
​― Sim, Suzanna, apenas preocupado. – Num gesto simples, ele
abraçou minha cintura e beijou minha testa. – Você dormiu bem?
​― Dormi, muito obrigada, e você? Está preocupado com o quê?
​― Dormi muito bem. – Ele riu e eu quis perguntar o motivo da risada,
mas, parecendo ler meus pensamentos, respondeu. – Você falou a noite toda.
​― Eu o quê? – Arregalei os olhos, sentindo as bochechas corando.
​― Falou. Você não falou nenhuma das outras vezes que... – Ele
pausou, respirou fundo e deu um sorriso de lado. – Vigiei seu sono, mas esta
noite você falou bastante.
​― Que vergonha! – Gemi, escondendo o rosto com uma das mãos. –
O que eu falei?
​― Meu nome... O nome terreno. – Ele riu. – E, em outras vezes,
balbuciou algumas frases.
​― Que frases?
​― Para de fazer perguntas que eu não quero responder. – Ele riu de
novo e eu tive a certeza de que era algo constrangedor.
​― Ai, Deus! O que eu falei, Arthur? – Implorei com os olhos e logo
emendei. – Se bem que se for muito constrangedor eu prefiro não saber. –
Nem me lembrava de ter sonhado algo depois que ele me socorreu, era
estranho ter falado dormindo. O sonho deve ter realmente me perturbado.
​Nossos rostos ficaram a centímetros de distância, mas quando ele foi
responder, vovó abriu a porta do quarto e nos viramos assustados.
​ ― Sabia que te encontraria aqui. Ou era aqui ou naquela árvore
estúpida. – Ralhou sem ao menos dizer um oi, eu mordi meu lábio,
constrangida por Arthur assistir a isto. – Vocês vão descer ou não?
​― Vamos sim, senhora. – Ele se antecipou.
​Já havíamos nos soltado, por isso eu apenas o segui para o andar de
baixo, porém ele fez questão de me olhar algumas vezes e rir, não sei se por
minha vó ou por lembrar-se de algo que falei dormindo. Assim que ela se
afastou, puxei-o pela camiseta.
​― Você vai me contar, nem pense que se livrou disso.
​O puxão o pegou de surpresa e, quando vi, estávamos tão próximos
que foi inevitável que meus olhos observassem os lábios dele. Soltei-o e ele
se arrumou. O brilho que tinha no olhar – mesmo estando levemente vago –
se apagou totalmente.
​― Bom dia, senhor Alfredo. – Cumprimentou meu avô que apertou a
mão de Arthur. – O senhor está bem?
​Sentei-me numa cadeira depois de beijar o rosto do vovô e Arthur
sentou ao meu lado, observando-me ao mesmo tempo em que conversava.
​― Estou bem agora que ela voltou. – Respondeu e eu sorri
constrangida. – E você, Pierre?
​― Bem, obrigado. Preciso de um favor. – Nós três o encaramos com
curiosidade. – Preciso treinar a Suzanna e, para isto, nós precisamos ficar em
um lugar seguro.
​― Aqui é seguro. – Vovó se antecipou.
​― Seguro para outros como eu ou como Pietro.
​― E você tem um lugar em mente?
​― Aqui mesmo e minha cabana na floresta, mas, para deixar o
casarão seguro, vou precisar fazer algumas coisas, se não se importarem.
​― Como o quê?
​― Orações, ofertas, sacrifício...
​Fiz uma careta ao imaginar um animal morto no meu quintal. Arthur
me olhou enviesado, respirou fundo e continuou aguardando uma resposta de
meu avô.
​― Precisa que façamos algo?
​― Fechem seus pensamentos, sei que vocês sabem como, e não
deixem ninguém mais passar para os fundos do casarão, pois será purificado.
E Suzanna – ele me encarou –, você vai ajudar a purificar seu quintal. –
Sorriu.
​― Eu hein, como se faz isso? Omo dupla ação?
​― Não brinque com coisa séria. – Respondeu, mas vovó e vovô já
estavam rindo.
​Sorri para ele sem me importar.
​― Ajudo sim. Agora, coma seu cereal.
​Vovó havia preparado dois pratos com cereal e leite para nós dois.
Arthur começou a comer depois de agradecer o alimento. Eu sempre me
esquecia disso, então comi também logo depois, ambos em silêncio, ouvindo
meu avô conversar sozinho sobre alguma coisa que lia no jornal.
​Lavamos nossos pratos e nos despedimos indo para os fundos da
Mansão. Lá, Arthur se sentou no chão e esperou que me sentasse à frente
dele. A grama estava molhada, eu naqueles dias e de calça de moletom, fiquei
pensando um pouco se me sentava ou não, seria um desastre total, fora que o
gelado da manhã me traria sérias cólicas mais tarde, enquanto ponderava ele
retirou a camisa, dobrou ao meio e colocou no chão.
​― Senta logo, Suzanna.
​Sentei-me totalmente constrangida sobre a camisa branca dele,
respirei bem fundo depois de dobrar as pernas em forma de borboleta e o
encarei.
​― Então, vamos fazer que tipo de mandinga?
​Ele revirou os olhos.
​― Eu não sabia como explicar a seu avô, por isso usei aqueles termos.
Oração e adoração são algo constante para um anjo, deveria ser para um meio
anjo também, mas já notei que isso tem começado a acontecer para você. –
Apertei os olhos sem entender, mas ele não me deu chance de perguntar. –
Então, esta parte foi apenas explicativa, a purificação vem da mente.
Enquanto estivermos aqui – ele esticou os braços, mostrando todo o quintal –
devemos tentar controlar nossos pensamentos e nos focar em nossas tarefas.
Longe daqui também, mas aqui devemos prestar atenção a isto.
​― Certo.
​― Nossas tarefas são...? – Fez um gesto para que eu respondesse e
neguei, não fazia ideia de quais eram. – A minha é ensinar tudo o que puder e
a sua, prestar atenção e aprender.
​― Ah, tá certo. E a parte do sacrifício? – Emendei a pergunta.
​Os olhos dele se focaram nos meus, sem brilho algum e, rápido
demais, ele os desviou para a grama.
​― Isto é por minha conta, mas não vou matar nenhum animal, não se
preocupe.
​― Vai se matar? – Imediatamente o vi se jogando naquele buraco em
meu sonho.
​― Claro que não, Suzanna! – Arthur pareceu impaciente. – Não
haverá nenhuma morte. Sacrifícios nem sempre são relacionados a uma
oferenda como no antigo testamento, na Bíblia. Algumas vezes, o sacrifício
pode ser uma atitude ou se privar de alguma coisa.
​― Jejuar? – Questionei.
​― É um tipo de sacrifício. – Sorriu em aprovação. Em seguida,
levantou-se e me ajudou. Até então, eu não tinha reparado no abdômen dele,
respirei bem fundo, desviando o olhar para a árvore atrás de Arthur, ele
pegou a camiseta do chão, que para o meu alívio não estava manchada e
vestiu, mesmo úmida. – Vamos trabalhar juntos, ta bem?
​― Está bem.
​― Protectionem et Purificacionis. – Ele torceu a língua enquanto
falava e eu o encarei. – Significa proteção e purificação. Repete a frase:
Protectionem et Purificacionis.
​― Protectio et Purifica... O quê?
​Repeti a frase até ter a pronúncia igual à dele. Então, ele me levou até
o muro que separava nossa casa da rua e começou a me mostrar como fazia.
​― Repete essa frase em pensamento mesmo e sinta a brisa, o cheiro
das folhas, a textura da relva, cada mínima coisa da natureza que você
enxergar. A conexão entre seus dons com os elementos e a proteção que
precisamos está em fazer isso direito.
​― Ah, obrigada por me fazer sentir que vou estragar tudo! –
Reclamei.
​― Se fosse, você não teria chegado até aqui viva, Suzanna. Confie
mais em você mesma. – Ralhou. – Agora, eu vou para aquele lado e você fica
aqui. Ande devagar, sem pressa. Quando chegarmos ao centro, acabou.
Estaremos sozinhos e protegidos.
​― Tá.
​Ficamos por cerca de uma hora e meia andando em volta do quintal,
demos várias voltas e ele não dizia que acabou. Achava estranho ficar
repetindo aquelas palavras em latim e pensando nas folhas, árvores e no
vento, mas chegou um momento em que senti uma paz tão grande que era
quase como meditar.
​A repetição daquela frase parecia como uma reza e, apesar de me
incomodar um pouco, livrou meus pensamentos de todos os medos que tive
desde que me descobri Nefilin.
​Senti uma espécie de coceira na palma da mão depois da terceira hora
nesse ritual, um calor no estômago e, de repente, a imagem à minha frente
mudou, não estava mais no quintal, mas de volta àquela casa na praia, onde
Pietro me fez cativa.
​Um alvoroço se fazia à minha esquerda, uma brisa forte bagunçou
meus cabelos e precisei afastá-los para enxergar. Pietro, Arthur e mais um
exército de anjos estavam em terra, acima deles um enxame de pontilhados
brancos que, pelo pouco do conhecimento que adquiri, achei serem anjos
guerreiros ou sentinelas. Virei o tronco ao sentir um calor do lado direito e
afastei alguns passos ao ver Haddes e Havi à frente de um numeroso exército
de demônios e anjos caídos. Eles me olhavam com expectativa, como se
esperassem algo de mim.
​― Suzanna? – Arthur estava me segurando nos braços, eu estava
caída no chão.
​― Eu vi de novo. – Murmurei e ele respirou fundo, assustado. – Vi a
casa onde Pietro...
​― Não precisa falar, eu vi também. – Explicou. – Consegue ficar de
pé? – Fiz que sim e ele me ajudou a levantar. Sentia-me trêmula e fraca, por
isso não soltei a mão dele. – Desta vez, eu acho que foi seu dom. – Sussurrou,
olhando-me de perto.
​― Eu acho que o sonho também. – Refleti. – Como isso se manifesta?
​― Você estava com a mente limpa, por causa do ritual. – Explicou. –
Você fez muito bem, sabia?
​Percebi que ele não havia negado sobre o sonho e que, nas duas vezes,
me impediu de falar em voz alta; só então, entendi o motivo e abri um sorriso
enorme para ele.
​― Eles podem ouvir, é isso? Os demônios. Se eu falar em voz alta
eles podem ouvir! – Ele sorriu concordando.
​― Podem e os anjos também, já que você fechou sua mente ontem.
​― Mas, você viu.
​― Quando seus amigos chegaram, você me fez uma pergunta e
esqueceu de me tirar da sua cabecinha. – Ele bateu o dedo na minha testa e
riu, mas ainda parecia com o olhar vago e perturbado.
​― Verdade... – Lembrei e logo comecei a tentar recordar se pensei
alguma coisa constrangedora enquanto ele esteve perto de mim, minhas
bochechas já estavam coradas.
​― Não se preocupe, sou discreto. – Ele riu. – Vamos, nós acabamos
aqui e você precisa almoçar. Sua vó vai chamar... Agora.
​― Suzanna! – Ela gritou da cozinha. – Pierre! O almoço está na
mesa! – E sussurrou alguma coisa que não ouvi.
​― Como você sabia?
​― Ela pensa muito alto. – Explicou com uma careta. – Vamos?
​― Mas... Ela não deveria estar com a mente fechada? – Perguntei,
achando estranho.
​― Sim, mas deve ter se esquecido de cumprir o que pedi.
​― Entendi, mas, sinceramente, não estou com fome. Estou
preocupada com essas visões, Arthur, queria tanto entender... O que eu posso
fazer para ajudar? O que será que tenho de fazer? Não é possível que eu
possa ver algo, mas não tenha um objetivo nisso.
​Observei suas costas enquanto ele se afastava para entrar na casa pela
porta da cozinha, bufei e o segui. Ele já estava respondendo, mas em minha
mente.
​Não tenho todas as respostas, tem coisas que só Deus sabe. Mas na
hora certa, você vai descobrir o que tudo significa e tudo fará sentido e terá
um porquê.
​Mas, Arthur... Você caiu naquele buraco de lava. Respondi também
em pensamento.
​Lavamos as mãos na pia mesmo e nos sentamos à mesa, sendo
servidos de um prato de arroz, feijão, bife e batata frita.
Isto, eu acho que foi só um sonho, Suzanna. Um sonho manipulado.
​― Como assim? – Não me lembrei de perguntar por pensamento e ele
me olhou despreocupado.
​Você estava preocupada comigo e um demônio se aproveitou para
lançar ideias ao seu consciente. Já viu aqueles desenhos onde um demônio
fica em um ombro e um anjo no outro ombro? – Fiz que sim. – É quase a
mesma coisa, ele sopra frases como se fosse seu próprio pensamento, para
enganar, manipular, desviar os humanos da verdade ou da solução que
procura. São traiçoeiros. Se seu consciente aceita a sugestão, é quase certo
que terá um pesadelo ou alguma coisa que acontecer fará com que acredite
que o pensamento ruim era uma verdade.
​Entendi, acho. Olhei para ele, que parecia distante encarando o jardim
pela porta que ainda estava aberta. Então, eu acho que você vai cair, por isso
sonhei?
​Exatamente. Ele suspirou e virou o rosto para me olhar. Não queria
que se preocupasse tanto, Suzanna. Prometo para você que não farei a
escolha errada.
​E se você não tiver chances de escolher? Lembrei-me de quando eu
achava que só seguindo Pietro faria que Arthur continuasse vivo.
​Há sempre duas opções. Sempre. Novamente, seu olhar pareceu vago
e ele voltou a comer, ficamos em silêncio, até em pensamentos, talvez cada
um com sua própria preocupação.
Capítulo 13

J​ á passava das duas horas da tarde. Arthur havia me obrigado a sentar


embaixo da árvore no meu jardim – eu trouxe um banquinho – e a ler o
caderno dele. Pediu que lesse e perguntasse, caso tivesse alguma dúvida,
enquanto ele havia estendido uma toalha no meio do gramado e estava
deitado tomando sol. A imagem não estava ajudando em nada a me
concentrar naquela coisa de mente pura. Suspirei pela milionésima vez,
voltando os olhos para o caderno.
​Procurava as pequenas frases, indícios de que Arthur anotava suas
descobertas ali também, quando vi que a borda da página estava dobrada.
Desdobrei devagar, apesar de estar ansiosa, pois imaginava que as folhas
poderiam se rasgar, pareciam bem frágeis. Havia um pequeno rasgo no lugar,
como se ele tivesse usado a borracha demais para apagar o que quer que
tenha escrito ali. Frustrada, continuei a leitura dali mesmo.

​ s Guerreiros são, em sua essência, anjos de luz, estão em constante


O
aprendizado e sempre alertas. Quando um humano precisa de socorro, eles
são enviados em quantidade suficiente para combater o inimigo, porém são
muito temperamentais. Lembrar-me de aceitar suas sugestões.

​ ― Arthur. – Chamei, ele abriu os olhos e me olhou. – Aceitar


sugestões de quem?
​― Que parte você leu? Leia para mim.
​― Os guerreiros são, em sua essência, anjos de luz, estão em
constante aprendizado e sempre alertas. Quando um humano precisa de
socorro, eles são enviados em quantidade suficiente para combater o inimigo,
porém são muito temperamentais. Lembrar-me de aceitar suas sugestões. –
Recitei.
​― Dos anjos Guerreiros.
​― E por que disse isso? Alguma situação que viveu?
​Ele fez que sim, apoiou os cotovelos no chão, erguendo o tronco, e
ficou olhando à frente, na direção do jardim dos Santos.
​― Estava precisando de ajuda e dois Guerreiros foram enviados para
me apoiar, eles já tinham a estratégia em mente, mas eu também, pois já
estava no meio do problema, discutimos por quase meia hora e fui
literalmente obrigado a fazer do jeito deles. – Ele riu, subiu a barra da calça
onde havia uma cicatriz pequena no calcanhar. – Ganhei um corte de espada
celestial.
​Ergui a sobrancelha, surpresa com a informação, nunca imaginei que
eles possuíssem características tão humanas.
​― E ele não foi punido ou coisa assim?
​― Temos hierarquia e eu não a respeitei, o errado era eu. – Deu de
ombros, deitou novamente com os braços atrás da cabeça e fechou os olhos. –
Leia.
​― Mais uma coisa. – Ele me olhou. – Vocês ganharam a batalha?
​― Ganhamos. Se fizessem do meu jeito, teríamos sido mortos, os três.
– Comentou e voltou a fechar os olhos, apontando para o caderno.
​Hierarquia. Eu, com certeza, devo ser do mais baixo escalão e ele está
se aproveitando para mandar em mim. Literalmente. Na verdade, não estava
me importando com isso, a distância estava insuportável, mas a presença
dele, mesmo desta forma, acalmava as coisas dentro de mim.
​Tentei prestar atenção nas próximas palavras, mas não achava posição
para amenizar a cólica, então virei no banquinho, apoiando meu corpo de
lado contra a árvore, voltei a ler com o caderno apoiado nos joelhos.

​A Victória não suporta ratos. S. Rosa.

​ i duas vezes a última parte sem entender o que isso significava, seria
L
um nome?
​― Arthur? – Continuei na mesma posição esperando ele me atender,
olhei por sobre o ombro e ele estava me encarando. – O que é S. Rosa?
​― O quê?
​― S. Rosa. É o sobrenome da Victória?
​Ele riu, negando.
​― Não, anjos não possuem sobrenome, só nome e patente. Deixe-me
ver. – Levantou e andou até mim, retirando o caderno dos meus dedos.
Abracei minha cintura, apertando discretamente a barriga para aliviar a cólica
um pouco, enquanto ele lia.
​― Não sabia que vocês não tinham sobrenome.
​― Que S. Rosa? – Perguntou e eu apontei com o dedo. Nunca vi
Arthur ficar tão branco e tão rápido. A cor fugiu de seu rosto, até os lábios
ficaram brancos e os olhos dele encontraram os meus. Tive a nítida impressão
que ele falaria algo importante. – Você só pensa nessa cólica?
​― Hã? – Fiquei com o rosto vermelho e abaixei os olhos, tímida. –
Estou com dor, Arthur... – Sussurrei quando percebi que me esqueci de
fechar meus pensamentos de novo, mas o olhei e ele continuava branco,
folheava o caderno como se procurasse algo. – Arthur. O que é S. Rosa? –
Insisti.
​― Suzanna. – O tom dele era de quem dava o assunto por encerrado,
coloquei a mão sobre o caderno até que ele me olhou e deixei bem claro que
eu queria a resposta. Arthur respirou bem fundo e o fechou se virando para
mim. – Eu esqueci que tinha colocado coisas pessoais aqui. – Coçou a nuca,
me olhou e depois desviou o olhar guardando o caderno no cós da calça. – S
de Suzanna, Rosa... Sua cor preferida.
​Fiquei boquiaberta com a resposta, tão constrangida e encantada que
nem sabia o que dizer. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas ele já
estava andando de volta para a casa, sem me dar a chance de falar nada a
respeito. Corri atrás dele, a cozinha estava vazia, a biblioteca e a sala
também, por isso me direcionei para o quarto, ignorando as pontadas que a
cólica me faz sentir quando me apresso.
​Arthur estava sentado na cama, lendo o caderno. Parecia em choque.
Bati na porta e entrei, fechando-a atrás de mim.
​― Arthur... – Ele fechou o caderno e sentou em cima dele. – Não vou
pegar o caderno de você. – O silêncio permaneceu e ele nem olhou para mim,
por isso parei na frente dele. – Desculpe ter insistido, eu não imaginei que
fosse algo assim... Mas, rosa não é mais a minha cor preferida. – Tentei
amenizar o clima tenso, mas ele apenas fingiu um sorriso.
​― Sente aqui. – Pediu e obedeci, não me lembrava de tê-lo visto tão
angustiado. Fiz uma nota mental de não fazer mais perguntas sobre as coisas
estranhas que via no caderno e fiquei em silêncio, esperando o que ele queria
me dizer. – Eu burlei regras ao fazer isso... Escrever esses lembretes no
caderno, coisas sobre você, de quando era criança. Eu não devia ter feito, não
me lembrava disso. – Toquei a mão dele e então me olhou.
​― Não vou contar para ninguém.
​― Eu sei que não. – Segurou minha mão e beijou. – Não é isso. Eu
tinha esquecido... – Respirou fundo e uma lágrima rolou pelo rosto de Arthur,
eu o puxei para os meus braços e o abracei, não sei se era apenas
constrangimento, mas a dor no rosto dele fez doer em mim também.
​Fiz carinho nos cabelos dele e nas costas, tentando acalmá-lo e
segurar as lágrimas, porque era muito difícil saber que causei e ainda causo
tanto sofrimento a ele. Queria poder mudar isso, mudar tudo, saber como meu
pai achou que deveria ser, e seguir esse caminho.
​― Desculpe-me... – Sussurrei, mas ele apenas me apertou um pouco
mais.
​― Não me arrependo, Suzanna. – Confessou com o rosto no meu
pescoço. – Sei que deveria, mas não me arrependo.
​― Do caderno?
​― Do que sinto.
​Mordi meu lábio, sentindo meu coração disparado no peito. Eu
também não me arrependia, não por mim, mas ver o quanto ele estava mal
por causa de um caderno me fazia pensar o quanto ele já esteve mal durante
todos esses anos. Beijei o rosto dele e me afastei com um pouco de
dificuldade.
​― Vou me comportar, prometo. Sem pesadelos de madrugada ou
perguntas idiotas. – Soltei o ar bem lentamente.
​Arthur beijou a minha testa e me estendeu o caderno.
​― Estude e ignore os meus comentários. – Pediu. – Ou melhor... Eu
te explico tudo e você anota em outro lugar. – Retirou o caderno dos meus
dedos e eu quase o puxei de volta.
​― Como preferir.
​Ele colocou o caderno de lado e se levantou entrando no banheiro,
imaginei que fosse lavar o rosto ou algo assim, mas ouvi o chuveiro e fiquei
na dúvida se saia do quarto ou não. Por fim, me levantei e sai, fechando a
porta do quarto dele. Desci as escadas para procurar meus avós e encontrei
Maria fazendo o jantar.
​― Oi, Maria.
​― Olá, Suzanna, como você está? – Perguntou sorridente.
​― Bem... Viu meus avós?
​― Saíram e pediram para não esperarmos por eles.
​― A senhora sabe onde eles foram? – Ela negou. – Obrigada... E
obrigada por ter arrumado minhas coisas.
​Abracei-a e, quando a soltei, ela me segurou; seu olhar estava duro,
então desisti de sair da cozinha e me sentei, sabia que queria conversar.
​― Filha, o que aconteceu com o outro rapaz? O que me dava
calafrios... Quem é esse que você trouxe para esta casa? Tem certeza que é
quem diz ser? Eu vejo como ele olha para você. – O tom dela era áspero, mas
com um toque de preocupação.
​― O Pietro não era uma boa pessoa. – Comecei. – O Arthur que me
ajudou, ele me salvou, dona Maria. – Sussurrei por causa da emoção que essa
lembrança me trazia. – Ele me salvou de todas as maneiras que uma pessoa
pode ser salva. Da morte e também da vida.
​― Você confia nele?
​― Confio totalmente.
​― Tome cuidado. Às vezes, os nossos sentimentos nos confundem
em relação às pessoas, Suzanna.
​― Não estou confusa em relação a ele, Maria. Eu sei que ele é uma
pessoa boa. O Pietro não era, me enganei com ele e sobre o que achava que
sentia. Na verdade, eu só queria mesmo era um namorado e aceitei o primeiro
que apareceu. Fui bem burra... – Suspirei.
​― E essa história dele ter mudado de forma para se aproximar de
você na escola, isso não te deixa desconfiada?
​― Não, nem um pouco. Você está desconfiada?
​― Estou, não gosto dele e seu avô também não.
​― Maria, ele é um anjo de verdade, não um caído como o Pietro. Um
anjo de verdade não pode mentir e ele... Ele está cuidando de mim, me
ensinando as coisas para que eu não faça mais burrices. Sabe... – Adiantei-me
quando ela tentou falar. – Eu ia para o Inferno, mas o pai dele me absolveu e
me deu uma chance de aprender direito desta vez e andar na linha certa. O
Arthur aceitou me ensinar, mesmo depois de eu tê-lo magoado e ferido de
várias formas. Você não imagina o quanto eu o faço sofrer e, mesmo assim,
ele está aqui. Ele tinha a opção de negar e mandar outro anjo me ensinar ou
sei lá, deve ter alguma escola para isso, mas ele aceitou e está aqui. Eu vou
continuar confiando nele até eu morrer e depois da morte. Se tiver alguma
coisa depois, ainda vou acreditar em tudo o que ele me disser ou me mandar
fazer.
​Respirei fundo, estava exaltada por saber que eles não conseguiam ver
o quanto Arthur fazia por mim. Dona Maria sorriu de lado e fez carinho na
minha cabeça.
​― Vou confiar, então. – Resolveu e se virou, voltando ao jantar.
​Deitei a cabeça na mesa da cozinha, pois não tinha vontade de fazer
nada com a cólica e os pensamentos insistentes, nem ler ou escrever estavam
me agradando no momento. Senti uma mão quente tocar meu ombro e,
quando olhei, Arthur estava me convidando a sair dali.
​ egui-o até a entrada da frente e nos sentamos na escada. Ele estava
S
com os cabelos molhados ainda, vestido de jeans e camiseta preta com o
emblema de alguma banda de rock que não identifiquei e tênis. Ficamos em
silêncio, olhando o céu escurecer até que precisei levantar.
​― Já volto.
​Fui até o banheiro, aproveitei para tomar um remédio para a cólica e,
ao voltar, me sentei um pouco mais longe do que da primeira vez. Arthur me
olhou de lado.
​― Ficar no gelado faz doer mais? – Fiz que sim sobre a cólica e ele se
levantou. – Vamos lá para dentro então.
​Acompanhei-o e nos sentamos no sofá da sala, próximos, porém sem
nos tocar, ambos nostálgicos, pois, pelo semblante dele, tinha certeza que as
palavras no caderno ainda o perturbavam. Quanto a mim, tentava não pensar
na cabana. Os acontecimentos iam e vinham sozinhos em minhas lembranças,
sem que eu pedisse ou forçasse. Demos um suspiro ao mesmo tempo e olhei
para ele.
​― Você está melhor?
​Arthur fez uma careta, confirmando com a cabeça. Parecia
envergonhado ainda, tão humano que, às vezes, me esquecia do quanto ele é
poderoso.
​― Suzanna, qual seu lugar preferido no mundo? – Perguntou de
repente e acrescentou. – Quando você era pequena, você gostava de um
parquinho perto da sua casa. Lembro-me que insistia com seus pais para te
levarem lá.
​― Nossa! Verdade... Nem me lembrava disso. – Respirei fundo com
as emoções que esse comentário me trazia, então pensei na questão e só uma
resposta me vinha à mente “a cabana”. Olhei para ele de lado e dei de ombros
querendo passar a imagem de quem não sabe. – Sei lá. – Respondi. – E o seu?
​O olhar dele estava azulado. Tinha notado que, nos últimos dias,
constantemente os olhos dele ficavam desta cor, mudando do cinza para o
azul conforme o humor dele. Franzi a testa, tentando recordar que eram
verdes quando não estavam cinza e senti um frio na barriga, estranhando.
​― Eram verdes na imagem do humano que quis passar para você, mas
meus olhos ficam azuis quando estou muito irritado, isso acontece com quase
todos os anjos.
​― Você está irritado?
​― Não... Fortes emoções os deixam azuis. – Ele suspirou.
​― É estranho, às vezes me perco na sua imagem, não sei se penso no
Arthur ou na sua atual aparência de Pierre. Se penso em seus olhos cinza ou
azuis... Isso é confuso.
​― Você pensa em mim, é? – Brincou, mas logo se deu conta que a
brincadeira era a mais pura verdade e sussurrou. – Obrigado por me defender.
– Apontou para a cozinha.
​Demorei um pouco a me dar conta de que ele tinha ouvido a conversa
que tive com a Maria e senti minhas bochechas corarem, estava se tornando
uma constante me sentir envergonhada na frente dele.
​― Não precisa agradecer. Então... Como será o treinamento? Só
leitura?
​― Não, já fizemos algumas coisas e você nem reparou. – Ele riu – A
conexão que você teve com seu dom ao limpar a mente foi uma lição.
​― E eu fiz direito?
​― Sim. Só precisamos descobrir uma forma de você não perder
totalmente o controle das suas funções motoras quando tiver uma visão.
​Fiz uma careta e ele sorriu.
​― É só isso? Vou aprender a ter as visões e acabou?
​― Não... Você tem um dom especial, Suzanna, que deve ser usado
para benefício da humanidade.
​― E o que há de benefício em uma guerra entre anjos e demônios?
​― Por enquanto, suas visões não são a respeito de tragédias mundiais
ou alguém que precise de nossa ajuda, mas são em relação às suas escolhas.
A chave de tudo, mesmo que vençamos qualquer batalha, está no caminho
que você escolher seguir.
​― O Céu ou o Inferno.
​― Quem será beneficiado com seus dons. O Céu ou o Inferno.
​― É claro que é o Céu! – Fiz um bico, cruzando os braços.
​Arthur me olhou profundamente, parecia um pouco irritado.
​― Suas atitudes vão dizer a sua escolha, por enquanto é o Céu,
amanhã você pode estar odiando tudo isso e escolher diferente. Você tem o
livre arbítrio ainda. A sentença só foi a absolvição porque viram que você
não decidiu pelo Inferno por escolha própria, você se arrependeu de verdade
de seguir o Pietro, mas o coração humano é corrupto por natureza e tudo pode
acontecer.
​Arregalei os olhos e fiquei em silêncio, remoendo ter sido chamada de
corrupta.
​ Até quando eu tenho que decidir isso? Não posso ir lá e falar “oi,

quero ser do bem”?
​Ele riu e negou lentamente, pensativo.
​― Até sua vida terrena findar você pode mudar de ideia.
​― Vou ficar para sempre então nessa angústia? Tomando cuidado
com cada mísero pensamento meu?
​― Por ser Nefilin, você terá uma escolha a fazer e não está longe dela
ser proposta a você, mas, enquanto humana, o livre arbítrio te dá liberdade de
mudar de ideia quantas vezes quiser, porém todas elas terão consequências,
como tudo na vida.
​Respirei fundo, assimilando o que ele disse. Tinha mais perguntas,
mas estava cansada de pensar nisso, de me focar em não pensar nele, de
manter distância, por isso relaxei no sofá e fechei meus olhos, mas a pergunta
saiu dos meus lábios sem nem me dar conta disso.
​― Que proposta?
​O silêncio dele me obrigou a abrir os olhos, ele estava sério, talvez
ponderando sobre a resposta.
​― Já falamos sobre isso e, se não me engano, Victória falou para você
também. Lembra que contei que o Havi era um Nefilin e ele escolheu ser um
demônio?
​― Lembro.
​― Você terá o mesmo privilégio.
​― Ser um demônio? – Sentei assustada, olhando para ele.
​― Não... De escolher. – Arthur suspirou, passou a mão no rosto e se
levantou.
​O dia parecia cansativo para ele também, eu me sentia em suspenso,
como se algo grande estivesse para acontecer e nós apenas esperássemos por
isso. Ele me olhou pensativo, em seguida saiu para a varanda. Observei-o
estendendo as asas e no segundo seguinte ele já não estava mais lá. Invejei-o
por poder voar e entendia sua vontade de ficar o mais longe possível de mim.
​Subi para o meu quarto e peguei o celular que tinha esquecido
carregando, fui até a minha nova janela e me sentei no sofá com as pernas
esticadas para verificar as mensagens de texto e ligações perdidas. Havia
mais de cinquenta mensagens, entre elas, informando ligações recebidas que
não atendi. A maioria era dos meus avós e da Bruna, e havia uma do celular
em que Pietro me ligou quando ainda estava na escola. Abri a mensagem e li
as palavras.
​Suzanna, onde você está? Volta. Amor, P.

​Respirei e apaguei a mensagem, ele nem sabia o que era amor para
assinar desta forma. Tive vontade de jogar o celular longe, mas me contive,
lendo uma a uma as mensagens da Bruna, que variavam entre me xingar e
choramingar o meu sumiço. Li todas as mensagens enviadas por colegas de
classe, me surpreendendo por ser tão querida por eles, pois nem sabia que me
notavam.
​Enquanto lia, recebi uma nova mensagem da Bruna e rapidamente a
abri.
​Ei, posso te ligar? Bruh.

​Respondi rapidamente.

​Pode.

​ m dois minutos, meu celular vibrou novamente e atendi. Imaginava


E
qual era o assunto e, mal a cumprimentei, já disparou a falar.
​― Suzzzzzzzzz, me conta tudo! Quero saber o que houve com o
gostosão número um para você estar agora com o HOT do Arthur! Ui.
​― O Pietro não sentia nada por mim. – Limitei-me a dizer.
​― Ahh, para! Tenho certeza que sentia... Mas, o Arthur é mais bonito
e tem a nossa idade. Você gosta dele?
​― Ele é legal.
​― Você gosta ou não gosta? Porque se não gostar, o quero para
mim! – Riu.
​Revirei os olhos. Se fosse outra situação, eu a deixaria ganhar o rapaz,
mas, sendo o Arthur, eu não conseguia conceber a ideia, mesmo ele não
podendo ficar com nenhuma de nós duas. Só de me lembrar da forma que
eles se olharam ontem, meu estômago embrulhou.
​― Eu gosto dele. Desculpe. – Respirei bem fundo, mas já queria
mudar de assunto, por isso trouxe outro à tona. – Ontem, tive a impressão de
que você está a fim do amigo do Rafael.
​― Ahh, ele se chama Diogo, lindo né? A gente saiu, mas ele beija
mal.
​― Já ficou com ele? Bruna, tome cuidado... Não vai fazer besteira.
​― Nãoo! Meu corpo é sagrado, eles só podem cultuá-lo, admirá-lo,
mas sem tocar. – E riu.
​ pesar de sentir saudade da Bruna, não via mais tanta diversão em
A
falar sobre garotos, namorados ou com quem perderíamos nossa virgindade.
Minha preocupação estava nas atitudes dela e em como poderia se machucar
no futuro, ficando com tantos rapazes diferentes.
​― Bruh, você pode se magoar assim. Por que não espera e namora de
verdade alguém que goste de você e não queira apenas popularidade e te
tocar inapropriadamente?
​― Porque gosto de beijar. Sou curiosa, quero saber como eles
beijam! Você devia tentar, é divertido. E se quiser tanto assim um namorado,
você pode escolher o que beija melhor.
​Tivemos esse tipo de conversa diversas vezes e sempre achei
engraçado o modo dela encarar a vida, mas me senti estranha desta vez, não
conseguia me imaginar beijando mais alguém além de Pierre, mesmo os
beijos trocados com o Pietro pareciam distantes demais agora, esquecidos ou
adormecidos nas minhas lembranças.
​― Certo... Então, algo de novo? – Mudei de assunto.
​― Você está estranha. Está tudo bem?
​Eu queria contar tudo a ela, desde o aparecimento do Pietro até o
julgamento, e agora a sentença de que não posso nem me aproximar direito
do meu guardião, mas a ordem era clara em não revelar nada aos humanos.
​― TPM. – Resumi.
​― Ah... Quer dormir aqui em casa? Eu coloco uma bolsa térmica na
sua barriga, a gente toma chá e você me conta tudo o que aconteceu nesse
mês que você sumiu.
​― Uma bolsa térmica seria bem-vinda. – Ri. – Mas não, obrigada.
Logo, tudo melhora e eu te faço uma visita, está bem?
​― Tá certo. Quando quiser conversar, tem meu número. Beijinho.
​― Beijo.
​Desligamos.
​Olhei pela janela e avistei um vulto branco no céu, a abri, constatando
que Arthur estava voando. Sabia que era ele, apenas por conhecer seus traços,
mas acredito que qualquer um que observasse o mesmo que eu acharia que
era uma ave muito grande dando rodopios e em queda livre.
​Ele estava subindo, parecia querer tocar a nuvem mais alta, sua
silhueta se misturando às nuvens acinzentadas. Em seguida, suas asas se
fecharam e ele despencou. Arfei e levei as mãos à boca para não gritar, não
sabia se era um costume dele, mas uma sensação horrível começou a subir
pela minha espinha me arrepiando inteira. Estava me debruçando no batente
da janela quando senti um vapor quente na nuca e soube que era um anjo
sentinela.
​― Ajuda ele. – Sussurrei como uma prece, pois de longe parecia
apenas uma brincadeira, mas ele continuava caindo.
​O calor sumiu e um clarão como um raio cortou o céu indo na direção
de Arthur. Em seguida, as estrelas e as nuvens voltaram a pontilhar a
paisagem, intocadas. Meu coração estava a mil por hora e me vi debruçada de
tal forma que por pouco não cai da janela. Ouvi um estrondo como de um
raio e grossas gotas de chuva começaram a cair. Arfei, agora temendo de
verdade por ele. Se não estava enganada, anjos Guerreiros, quando lutavam,
costumavam causar chuva.
​Não sei quanto tempo se passou, mas meu corpo não desacelerou as
batidas e nem as mãos pararam de tremer. Vovó e vovô não chegavam,
portanto, estava completamente sozinha, pois tinha certeza que Maria já não
estava mais no casarão.
​Um vento forte passou por mim e, em seguida, senti a presença de
Arthur. Virei-me para o quarto e ele estava lá, com a camisa rasgada, as asas
estendidas, os olhos aturdidos, parecia em choque com alguma coisa. Tentei
me aproximar e ouvi uma voz estrondosa atrás de mim.
​― Não se aproxime do guardião.
​Girei na direção da voz, me deparando com um rapaz magro. Estava
de cócoras sobre o parapeito da janela, seus cabelos negros esvoaçando com
o vento apesar de parcialmente molhados pela chuva, usava jeans rasgado nas
coxas, uma regata branca e estava descalço, sua imagem parecia não ser real,
me lembrando a hologramas de filmes com uma áurea azulada ao seu redor.
Seus olhos amendoados me observaram com a mesma curiosidade que eu.
Não senti medo, mas temor. Ele sorriu e uma fileira de dentes brancos
reluziu. Notei suas feições orientais um pouco depois dele passar por mim
como um raio e segurar Arthur, que desmaiou caindo em seus braços.
​― O que houve com ele? – Sussurrei a pergunta, correndo na direção
deles para ajudar.
​― É surda, Nefilin? Não se aproxime do guardião! – Ralhou,
colocando Arthur na minha cama.
​Estanquei no lugar, não sabia exatamente o que sentir ou o que estava
acontecendo. O anjo cortou o quarto em um segundo, fechando a janela, e já
estava ao lado de Arthur de novo quando percebi o movimento dele.
​― O que aconteceu? – Insisti.
​― Nada demais, uma briga.
​Arregalei os olhos assustada e recuei alguns passos até me sentar no
sofá da janela. O anjo nem se importou com minha respiração assustada ou a
tentativa de formular uma pergunta coerente, ele riu dando tapinhas no rosto
de Arthur até que as pálpebras dele se mexeram. Rapidamente o japonês se
pôs de pé, os ombros estavam tensionados e as mãos à frente do corpo como
se aguardasse um ataque.
​Arthur levantou num átimo, as asas estendidas e o rosto endurecido.
Chocou-se contra o outro anjo e, a partir daí, só enxerguei vultos e os sons de
suas reclamações e das minhas coisas se quebrando.
​― Parem!! – Gritei quando meu notebook foi parar no chão – Parem!
– Fui avançando, tentando localizá-los e ambos pararam quando encostaram
em mim. Levei as mãos ao rosto com medo de levar um soco, mas tudo ficou
em pausa, eles com os punhos para o alto, Arthur com o rosto em fúria e o
outro achando graça. – Que droga, por que estão brigando?
​Meu anjo recuou alguns passos, passou as mãos no rosto enquanto o
outro apenas endireitou o corpo, o sorriso debochado ainda posto nos lábios.
Ergui o queixo, exigindo explicações deles.
​― Fala aí, cara, não lido com mulher de TPM, não. – Manifestou-se o
japonês e me senti corar pela indelicadeza dele.
​Encarei Arthur e ele parecia mais calmo, um pouco, pelo menos.
​― Ele me atacou, só revidei. Afinal, por que me atacou? – Perguntou
Arthur, parecendo um pouco atordoado.
​O outro riu, balançou os cabelos lisos respingando água para todos os
lados e seguiu para a janela, abrindo-a.
​― Ela mandou, eu fui.
​― O quê?! – Agora, eu é que estava nervosa. – Eu pedi para que
ajudasse ele e não que o atacasse!
​― E eu ajudei, ele está ai, são e salvo. Mas, podia me divertir um
pouco, não?
​― Ajudar-me com o quê?!
​― Divertir-se? Você bateu nele! – Estava revoltada.
​― Foi divertido, não foi, Guardião Pierre? – Questionou, meu sangue
ferveu.
​― Obrigado. – Arthur respondeu e apontou para a janela – Pode
voltar ao seu posto, Teruy.
​ le riu, me fez um aceno e o raio novamente cortou o céu; a chuva já
E
havia parado e o cheiro forte das flores adentrava meu quarto. Virei-me para
Arthur, procurando alguma informação. Ele se sentou na minha cama, em
seguida deitou, fitando o teto. Aproximei-me lentamente e sentei na ponta da
cama, olhando para ele.
​― O que foi tudo isso?
​― Ele é brincalhão, treinamos juntos quando fomos da Guarda
Celestial há alguns séculos.
​― Percebi que ele é brincalhão, mas brincadeira de mão dói! – Arthur
parecia destruído, uma pena de suas asas, que agora estavam guardadas,
pairava sobre o lençol. Recolhi-a e fiquei passando os dedos devagar,
sentindo a textura leve e reconfortante.
​― É verdade, brincadeira de mão dói. – Ele riu sem humor. – Não sei
o que aconteceu, mas perdi a força das asas. Se não o tivesse enviado, eu
talvez estivesse muito mais machucado agora. – Explicou.
​― Como assim, perdeu as forças? – Perguntei, olhando para ele aflita.
​Ele deu de ombros, mas eu sabia que havia algo de errado e que ele
sabia o que era. Insisti, fazendo com que me olhasse.
​― Não insista. – Foi duro e, depois, se sentou na cama.
​― Vou insistir, Arthur, aconteceu alguma coisa porque choveu.
Alguém te atacou?
​Ele me olhou enviesado, soltou o ar com força erguendo o queixo,
estava aceitando o desafio de olhares que impus a ele.
​― Está tudo sob controle.
​Resolvi mudar de assunto, pois sabia que ficaríamos nessa discussão
sem sentido até um dos dois desistir, e seria eu.
​― Ele era um Guerreiro?
​― Sim. Como descobriu? – Havia um sorriso de aprovação nos lábios
dele, o que fez meu estômago gelar de um jeito bom.
​― Primeiro, senti um bafo quente. Quando pedi para ele te ajudar, um
raio cortou o céu em horizontal. Como li no seu caderno, os anjos Guerreiros
trazem chuva às vezes, então imaginei que trouxessem raio com eles quando
se movem. Foi isso.
​― Muito bom. Parabéns!
​― Por que ele é meio holográfico?
​Antes de responder, ele respirou fundo, parecia distante.
​― É uma camuflagem, para se manter oculto. Você o viu porque ele
quis assim.
​― A pele dele é assim mesmo?
​Arthur negou.
​― É como a minha, mas mais resistente. O corpo físico de um anjo é
diferente do humano, é mais resistente a temperaturas, machucados...
​― Entendi.
​Levantei-me da cama quando percebi que não sabia mais o que
conversar e fui sentar na janela novamente, com a pena entre meus dedos. A
textura era suave, ela era longa não como as penas de aves comuns, mas um
pouco maior que meu antebraço e a haste bem resistente. Quis cheirar e sentir
a textura nos lábios, mas me contive ao recordar que ele estava no quarto e
possivelmente vendo tudo o que eu fazia. Encostei a lateral do corpo na
parede, jogando as pernas para fora da janela, em silêncio, observando a lua
pairar sobre a casa dos Santos.
​Não passou muito tempo quando o ouvi se mexer, olhei por sobre meu
ombro e ele estava entrando no meu banheiro. Fiquei imaginando se anjos
precisavam usar o banheiro, mas não perguntei. Se podem ter filhos, pode ser
que sejam bem mais parecidos conosco do que imaginava. Ouvi a torneira se
abrir e cinco minutos depois ele voltava. Deitou na minha cama, me dando as
costas.
​― Você está se sentindo bem?
​― Estou. – Respondeu seco. – Quer que eu saia?
​― Não. – Respondi rapidamente e os ombros dele cederam como se
relaxasse.
​Ele estava estranho. Virei de costas para a janela e o observei
silenciosamente, quem olhasse de longe teria certeza que ele estava tentando
dormir, mas não faria isso na minha cama, sabendo que não podemos ficar
juntos. Segurei a pena, colocando nos meus lábios e relaxei com o corpo
recostado lateralmente na parede. A cólica estava mais leve por causa do
remédio que tomei mais cedo, mas a melancolia ainda estava presente e meus
olhos se encheram d’água ao constatar o quão fácil seria me aproximar.
​― Suzanna? – Chamou sussurrando.
​― Oi.
​― Feliz Aniversário.
Capítulo 14

​ lhei no relógio do despertador na escrivaninha, era exatamente


O
meia-noite do dia vinte de dezembro. Meu estômago gelou por ele ter sido o
primeiro a desejar felicidades, por estar aqui, por ter lembrado. Sorri para
mim mesma, passando a pena nos lábios como um beijo roubado.
​― Obrigada, Arthur-Pierre. – Sorri.
​― De nada. – Percebi que havia um sorriso em sua voz. – Desculpe
não ter um presente adequado.
​― Não preciso de presente.
​Ele se virou me encarando, rapidamente afastei a pena dos lábios e
sorri forçado, trêmula.
​― Claro que precisa. Dezoito anos não se fazem todos os dias.
​Dei de ombros e Arthur se levantou vindo até mim, tocou meu rosto e
beijou minha testa. Percebi que ele parecia distante, como se não estivesse ali
realmente. Ele esticou o braço, murmurou a frase de proteção e fechou a
janela do meu quarto. Encarou-me com certo pesar e fez um sinal grave para
que eu ficasse em silêncio e no mesmo lugar.
​O anjo sumiu do meu campo de visão, ouvi janelas sendo fechadas,
portas e os sons característicos de quando ele se mexe com rapidez ou bate
suas asas. Meus instintos estavam certos, havia algo errado e bem no início
do dia do meu aniversário! Ele retornou pouco tempo depois e me obrigou a
ir com ele até seu quarto, fechou a porta e me puxou para seus braços,
apertando-me em um abraço forte.
​― Ei, algo errado? – Perguntei assustada, mas ele apenas negou,
enroscou os dedos em meus cabelos, os puxando para trás, a trança se desfez
um pouco com o gesto. Encarei o anjo com surpresa, não esperava que ele
fosse se aproximar desta forma de novo.
​Meu coração estava pequeno, disparado, minhas mãos apoiadas em
seu peito na vã tentativa de freá-lo. Ele me encarou com olhos febris e eu
sabia o que ele queria, porque eu também queria. Nossos lábios se
encontraram segundos depois, timidamente, minha mente fervendo entre o
certo e o que eu gostaria naquele momento, ele pareceu frear também quando
sentiu o toque e ambos nos afastamos ao mesmo tempo.
​― Desculpe. – Sussurrou, passando os dedos abertos pelos cabelos.
​ Arthur... – Ele me olhou, havia tristeza e cobrança em seus olhos,

seu semblante estava abatido. Aproximei-me tocando seu rosto e sussurrei
carinhosamente. – Não vou deixar você cair, nem se machucar ou se perder
por minha causa.
​Ele beijou minha mão e me abraçou mais uma vez, cheirou meu
cabelo e ouvi sua voz em minha mente, era urgente.
​Tenho uma surpresa para você, mas vou precisar que continue me
ajudando como fez agora. Sussurrou como se pudessem nos ouvir, fiz que
sim e ele voltou a falar em voz alta. – Preciso do seu som.
​― Meu som?
​― Sim. Posso removê-lo do seu quarto?
​― É mais fácil usar o notebook, se vocês não quebraram. Quer ouvir
música?
​Concordou e em seguida me direcionou até o quarto. Peguei o
notebook do chão e o liguei, demorou pouco mais de dois minutos, mas logo
soubemos que não havia sido danificado. Ele olhou o computador na minha
escrivaninha e retirou as caixinhas de som, depois pegou o note da minha
mão e descemos para o jardim dos fundos. Continuei estranhando por meus
avós não estarem em casa, mas ao mesmo tempo estava feliz de ter apenas
Arthur comigo.
​Estava chovendo forte agora, mas não parecia ser obra de algum anjo
Guerreiro, apenas da natureza. Ele ligou o note com as caixinhas de som,
colocou um CD e a música clássica começou a soar alta por causa das
caixinhas. Gemi preocupada em acordar os funcionários e ele abaixou só um
pouco o volume. O notebook estava protegido pela varanda acima de nós,
mas Arthur me arrastou para a chuva, me puxando pela mão.
​― Está chovendo! – Reclamei mais por causa da cólica e do meu
cabelo, o anjo apenas sorriu, parou no centro do jardim, segurou minha mão
direita no alto, tocou minhas costas com a livre em uma pose perfeita de valsa
e novamente gemi. – Não sei dançar! Você não quer dançar comigo!
Arthur...!
​― Não seja chata, é seu presente de aniversário!
​― Dançar uma valsa?
​Ele riu e eu continuei reclamando, tentando desfazer a pose de dança,
mas ele me prendeu firmemente.
​― Sobe nos meus pés, igual quando vamos voar. – Instruiu e eu
desisti de lutar, já estava encharcada. Por isto, pisei descalça em seus pés que
também estavam descalços e ele me prendeu melhor, envolvendo minha
cintura, obrigando-me a apoiar o rosto ao dele. – Pronta?
​― Não...
​Novamente ele riu e dessa vez o segui, pois rodopiou, me prendendo a
seu tronco. Uma sensação boa de liberdade se enroscou em meus sentidos.
​Começamos a nos mover como em uma dança lenta, a valsa ao fundo
se misturando ao som da chuva. A respiração do anjo estava fraca, próxima
ao lóbulo da minha orelha, causando-me arrepios, e a mão quente firmemente
posta em minhas costas, dando-me segurança. Em um momento, ele girou,
deixando meus pés na grama e me fez rodar, segurando apenas uma de
minhas mãos, comecei a rir e, quando parou, nossos corpos estavam unidos
novamente.
​― É fácil dançar. – Disse-me. Encaramo-nos, Arthur segurou minha
mão contra seu peito, abrindo um sorriso lento.
​Outra faixa do CD começou a soar e permanecemos do mesmo modo,
ofegantes, nos olhando e movendo apenas os troncos, deixando a chuva
esfriar a vontade humana de nossos corações.
​Meu cabelo estava pingando gotas grossas de chuva em meu rosto.
Aos poucos, a tempestade havia parado e uma fina garoa nos mantinha
molhados. Tirei a mão do ombro de Arthur para limpar meu rosto e isto
quebrou a conexão do nosso olhar. Ele sorriu, tocou minhas costas
delicadamente e entendi que deveria subir em seus pés. Obedeci e em dois
segundos as asas dele estavam esticadas, tão alvas que clarearam o noturno
jardim. Arfei com a imagem, tão linda que não conseguia parar de olhar.
​Estiquei a mão devagar para tocá-las, mas elas se moveram antes, era
apenas um espasmo e continuei até roçar uma das penas. Arthur encostou o
rosto no meu e ouvi sua respiração ficando diferente, mas não parei, a textura
de várias juntas era grossa, forte, ao mesmo tempo delicada como uma
pluma. Passei os dedos devagar para não machucá-lo e os dedos de Arthur
me apertaram um pouco mais. O ouvi ressonar e tirei a mão.
​― Machuco você?
​Ele negou, beijou meu pescoço, tocou minha mão e a empurrou para
suas asas de novo. Voltei a tocar com maior cuidado, passando a ponta do
indicador sobre uma delas e deslizando até a ponta. Ele me abraçou pela
cintura e senti como um soluço balançar seu corpo. Parei novamente e
ameacei afastar-me, mas Arthur não permitiu. Moveu-se lentamente, suas
asas se expandiram e começaram a bater, tirando-nos do solo.
​ Arthur? – chamei-o um pouco preocupada, mas ele não afastou o

rosto do meu pescoço.
​Subimos até a altura das árvores do meu jardim, não ouvia mais a
música, mas ele começou a dançar no ar, comigo em seus braços. Rodando
devagar, balançando apenas o tronco em outro momento. Quis olhá-lo, mas
não me permitiu, por isso escondi o rosto em seu pescoço em silêncio,
agradecendo mentalmente por ter esse momento ao menos por algumas horas
do meu aniversário. Não sabia se seriam os últimos, mas tinha a nítida
impressão que não haveria mais tréguas na imposição que fizemos a nós
mesmos antes de vir para cá.
​― Está com frio? – Perguntou de repente. Neguei, mas senti uma das
mãos dele em meu braço e só então percebi que estava tremendo.
​― Na verdade, estou.
​Arthur desceu para o jardim e cedo demais recolheu suas asas, mas
não me soltou, ficamos mais alguns segundos abraçados, ouvindo mais uma
faixa do CD que ele havia colocado.
​― Agora entendi porque tem uma vaga de anjo sobrando no Céu. –
Ouvimos e, com o susto, nos afastamos bruscamente.
​Segui o som da voz, mas não precisava olhar para saber a quem
pertencia. Antes que me pronunciasse, Arthur o fez.
​― O que você faz aqui, Pietro? – As asas já estavam abertas e ele
avançou na direção do caído, que estava nos sobrevoando, com asas negras
bem abertas atrás de suas costas.
​Antes que Arthur pudesse encostar em Pietro, um anjo voou na
direção dele não permitindo a aproximação.
​― Acalme-se, Pierre.
​Era Victória, ela estava protegendo Pietro e seus olhos transmitiam
muito mais do que saia de sua boca. Havia preocupação e repreensão, só não
soube se era pela atitude de atacar Pietro ou se por nos ter vistos abraçados há
poucos segundos. ― O que ele faz aqui? – Gritou Arthur, apontando
para Pietro.
​― Vim ajudar você, já que é obvio que não teve sucesso na sua nova
missão. – Desdenhou Pietro e senti meu sangue ferver.
​― Vá embora de uma vez, Pietro! – Gritei. – Você não é bem-vindo.
​Ele voou até alcançar o chão, mas não encostou na grama, ficou me
encarando com um sorriso divertido e espaçoso nos lábios. Quis socá-lo para
tirar aquele ar vitorioso dele.
​― Quer mesmo que eu vá, Suzaninha?
​O tom que ele usou era o mesmo que usava quando nos conhecemos,
com carinho e ao mesmo tempo misterioso, respirei bem fundo fechando
minhas mãos em punho.
​― Quero.
​Ele sorriu e pisou na grama. Pietro fechou os olhos, respirou fundo e,
quando os abriu, sussurrou na direção de Arthur.
​― Protectionem et Purificacionis. – Sorriu e me olhou. – Há tantos
séculos que não conseguia identificar um ritual, tinha saudade disso e nem
sabia. – Suspirou. O tom dele estava diferente, parecia a ponto de
derramar lágrimas, mas dessa vez não me deixei enganar, continuei
encarando firmemente.
​― Como? – Arthur virou para Victória. – Como ele possui asas de
novo? – Esbravejou.
​Só então me dei conta das asas que não deveriam estar lá, mas sim a
fumaça negra que antes o envolvia. Dei vários passos para longe, tremendo
de medo. Pietro me seguiu, tinha um sorriso sinistro nos lábios e seus olhos
estavam num tom tão claro que quase não os reconheci.
​― Explicamos lá dentro. – Informou Victória, pousando ao meu lado
e me puxando para a casa. Ela olhou para o meu notebook, onde a música não
havia parado e virou o rosto para encarar Arthur, que continuava com o
maxilar trincado, enfrentando-os. – Desligue isso e entre, Pierre.
​Estremeci com o tom dela. Dentro da cozinha, ela se afastou para me
olhar e soltou um longo suspiro.
​― O que está acontecendo? – Perguntei, antes que mais alguém nos
seguisse.
​― Vá trocar de roupa e explico tudo, aos dois.
​Concordei e corri para me trocar, sentia minhas pernas bambas e,
mesmo aos tropeços, não parei até estar trancada dentro do meu quarto,
sentindo-me segura, mesmo que isso fosse apenas uma fantasia da minha
mente, já que Pietro estava no andar debaixo e poderia facilmente colocar
minha porta abaixo. Uma mistura de sentimentos fez lágrimas banharem meu
rosto, não conseguia dar um passo a mais, por isso deslizei na porta até me
sentar no chão, escondendo o rosto entre os joelhos.
​Suzanna, abra a porta para mim.
​A voz de Arthur adentrou minha mente. Era um sussurro preocupado.
Estiquei a mão e destranquei a porta, afastando meu tronco apenas para que
ele pudesse entrar. Assim que vi seus pés dentro do quarto e o ouvi encostar a
porta, estiquei a mão e a tranquei de novo.
​Você sabe que isso não pode detê-lo, não sabe?
​Fiz que sim, estava com o rosto nos joelhos novamente. Arthur
colocou algo na minha cama e se aproximou de mim, abaixando-se na minha
frente.
​― O que ele faz aqui?
​― Não sei... Mas, não quero você doente, por favor, troque de roupa e
vamos descobrir. – O tom dele parecia calmo, porém ao olhá-lo percebi que
estava tão perturbado quanto eu.
​― Está bem.
​Levantei com sua ajuda e em seguida ele saiu, talvez planejando se
trocar também. Tranquei a porta novamente assim que ele entrou no outro
quarto e me afastei, abrindo o armário e retirando de lá outro conjunto de
moletom, cinza escuro. Decidi não demorar mais, precisava enfrentá-lo,
mesmo que isso causasse todos os tipos de sensações, desde medo à saudade.
O que era um absurdo total, já que eu tinha certeza, a menos de cinco
minutos, que queria passar o resto da minha vida ao lado de Arthur.
​Usei o banheiro, tomei outro remédio para a dor e em poucos minutos
estava vestida e com a trança refeita. Respirei fundo com a mão na tranca e
destravei, abrindo a porta lentamente, decidida a não demonstrar nada, nem
medo, ansiedade, ou deixar que Pietro reparasse como conseguia me
desestruturar.
​Arthur estava a minha espera, encostado na porta do quarto de
hóspedes, seu rosto brando como se não sentisse nada, mas eu sabia que era
apenas uma máscara, pois seus olhos e o queixo contraído demonstravam
tudo o que o silêncio não estava dizendo, a gravidade da situação no andar de
baixo.
​― Pronta?
​Dei um riso nervoso ao me lembrar que ele perguntou a mesma coisa
sobre a dança e mais uma vez neguei. Desta vez, porém, não teria seus braços
acolhedores ao meu redor, ele não podia me proteger de tudo, por isso ergui o
queixo e comecei a andar. Ouvi seus passos atrás de mim, ao menos não
estávamos sozinhos, tínhamos a presença um do outro.
​Antes de colocar o pé no último degrau, senti um frio me subindo pela
espinha. A presença de Pietro me invadiu e tive a sensação de ser observada.
Era a constatação de que ele estava realmente presente. Involuntariamente,
meu estômago gelou e minhas pernas perderam o rumo. Segurei no corrimão,
respirando fundo e senti a mão de Arthur me firmar.
​Agradeci muda, mas seus olhos estavam distantes e ele não me
encarou de volta.
​Fomos lado a lado até a sala onde Victória, Sophia e Pietro nos
aguardavam sentados no sofá maior. Sentei-me na poltrona, sabendo que não
conseguiria me manter em pé, a sensação de fraqueza causada pela cólica e a
labirintite me trazendo de volta à realidade da minha frágil humanidade.
​― Vai se sentar, Pierre? – Perguntou Victória, quebrando o silêncio.
Ele negou e ela se levantou do sofá, iniciando o que parecia ser um longo
discurso. – O Pietro está aqui para nos ajudar, está na mesma situação que a
Suzanna, em análise para sabermos como será seu desempenho.
​― Como assim em análise? – Arthur a cortou, mas Victória
prosseguiu sem dar importância.
​― Ele foi julgado e, por algumas decisões que tomou enquanto
Suzanna esteve aos seus cuidados, ele recebeu o perdão, porém com reservas.
– Ela acrescentou quando Arthur fez menção de falar novamente. – Lhe
foram devolvidas as asas, negras para que não se esqueça de que uma única
falha lhe mandará de volta ao Inferno. Seus dons estão limitados, de resto
vocês irão descobrir junto com ele.
​― Meu Deus! – Deixei escapar, levando a mão ao lábio, tentando
assimilar o que aquilo significava.
​― É, Suzaninha, agora sou seu aliado. Não vou sair do seu lado, nem
um minuto mais. – O tom dele era provocativo e, de certa forma, malicioso.
Ergui os olhos assustada, mas no momento certo para ver Sophia segurar
Arthur que já avançava sobre ele.
​Pietro apenas riu, divertindo-se com a situação.
​― Ele pode fazer isso? Provocar e falar desse jeito? – Acusei.
​― Não. Pietro, comporte-se. – Ralhou Victória.
​― É de minha antiga natureza, estou tentando. – O olhar dele foi para
o chão, parecia genuinamente arrependido, não fosse pelo sorriso discreto no
canto de seus lábios.
​Arthur estava na saída da sala, de costas para nós e com uma das mãos
nos cabelos, parecia tentar se concentrar em não matar Pietro. Quis acalmá-
lo, mas precisava primeiro me acalmar para ter sucesso.
​― Então, fomos designados para proteger a Suzanna e prepará-la para
seu dever. – Retomou Victória, no mesmo tom neutro de antes.
​― Que dever? – Questionei.
​― Ele não vai ficar aqui! – Gritou Arthur. Sophia novamente o
segurou e eu não sabia mais como reagir, já que Pietro agora estava me
olhando fixamente, sem se abalar com a reação de seu irmão.
​― Vai sim. – Victória estava ficando impaciente e Sophia mantinha
as mãos firmemente no peito de Arthur, impedindo-o de avançar.
​Levantei furiosa, apontando para Pietro enquanto me ouvia perguntar.
​― Se nem vocês confiam nele, por que eu vou confiar de ele ficar
dentro da minha casa? – Victória me olhou confusa e Arthur riu, não sei se
por entender meu raciocínio, mas continuei. – Deram asas negras para
diferenciá-lo e poder ficar de olho caso ele cometa um erro. Por que, então,
vou confiar depois de tudo o que ele me fez passar? – Já estava exaltada,
avançando na direção de nossa superior. – Ele matou os meus pais! – Gritei a
última frase, tremendo.
​― Não matei seus pais, Suzaninha. – O tom de desdém foi a gota
d’água para perder meu autocontrole. Havia tantas cenas se repetindo na
minha cabeça, tantas sensações dolorosas e confusas que não tive forças para
ser racional. Voei na direção de Pietro e desferi um tapa em sua face direita.
​― É Suzanna para você! E sim, você os matou! – Gritei, apontando o
dedo no rosto dele.
​Mãos firmes me puxaram para trás e não dificultei, recuando até me
sentarem novamente no sofá. Pietro estava com a face avermelhada, mas o
sorriso não havia sumido, continuamos nos encarando enquanto ouvíamos
mais argumentos de Victoria.
​― Eu sabia que seria difícil, mas não tanto. – Desabafou ela. Seu
toque suave em meu rosto me fez desviar os olhos de Pietro e encará-la, desta
vez quem tinha o maxilar trincado e o olhar duro era eu mesma, podia sentir
isso. – Ele cometeu seus erros e se arrependeu verdadeiramente ou não teria
essa chance, Suzanna. Você precisou de uma segunda chance, por que outra
pessoa não a merece?
​― Por que ele matou os meus pais... – Balbuciei vencida.
​― Isso é um absurdo total! Nunca vimos isso! Um caído receber
redenção? Desde quando isso é possível? – Esbravejou Arthur às minhas
costas.
​― Calado, Pierre! – Ordenou ela e um silêncio mortal se fez no
ambiente – Você confia em mim? – Questionou, olhando-me com ternura,
apesar de ser nítido seu nervosismo.
​― Confio. – Respondi a contragosto.
​― Então, você vai aceitar a decisão de anjos mais experientes que
vocês. É nosso dever apoiar alguém que se redime por vontade própria. O
Pietro não é nem de longe um anjo correto, mas ele pagou por seus crimes,
não cabe a nós condená-lo mais.
​― Pagou como? – Perguntei, desviando o olhar para ele. Esperei que
Victória respondesse, mas foi Pietro que começou a falar.
​― Perdi tudo o que mais amava no mundo. O contato com meu pai e
meu irmão, o amor deles. Perdi a confiança das pessoas e o privilégio de
entrar no Céu sem precisar de convite ou escolta. Perdi a conexão com meus
iguais e com o próprio Deus, e viver no Inferno não é tão agradável quanto
parece. – Piscou.
​Abaixei a cabeça totalmente confusa, queria odiá-lo, pois tinha quase
certeza que o acidente aconteceu porque ele provocou, ou então meus pais
estavam fugindo dele e de seu bando para me colocar em segurança, o que
acaba sendo culpa dele também. Possuía muitas teorias a respeito e todas
terminavam com Pietro como culpado.
​― Não temos tempo para aceitação. Será assim. – Findou Victória. –
Pierre, vamos conversar lá fora.
​― Não acredito que vou ter que aceitar isso! – Resmungou ele.
​― Agora!
​Respirei fundo e me levantei assim que eles começaram a se afastar
para o corredor da cozinha, não queria ficar sozinha com Pietro, mesmo com
Sophia por perto. Quando estava com a mão no corrimão para subir as
escadas, o ouvi.
​― Suzaninha, vamos conversar.
​Olhei por sobre o ombro, notando que ele mantinha um sorriso
debochado nos lábios. Como podia ter recebido o perdão com atitudes tão
irritantes? Bufei, dando-lhe as costas e em poucos segundos me fechei em
meu quarto. Meu aniversário tinha começado bem, parecia o melhor de toda a
minha vida, mas sempre tem que haver algo para estragar tudo.
Capítulo 15

​ eitei na cama, abracei meu travesseiro e o mordi para poder abafar


D
os gritos de raiva que prendi até agora. Tudo parecia em paz, acreditava
cegamente que os problemas por ser uma Nefilin agora se resumiam a não
amar Arthur, mas estava tolamente enganada! Ter Pietro por perto de novo
não estava nos meus planos e esperava sinceramente nunca mais vê-lo.
​A vida é injusta e as circunstâncias me mostraram isso desde que
perdi tudo que mais amava no mundo. Com isto, aprendi a não me apegar a
nada e ninguém. Os únicos que conseguiram acesso fácil ao meu coração
foram meus avós, porque eu já os amava antes do acidente, porém cada dia
dessa nova vida só me fazia ver quantas pessoas eu deixei chegarem perto
demais e quantas eu não gostaria que se afastassem, e nem de perder. Arthur
e Bruna estavam entre essas pessoas.
​Quando finalmente os gritos e as lágrimas cessaram, o cansaço me
venceu e cai na inconsciência de um sono agitado e profundo.
​Acordei sobressaltada, sentindo a presença imortal de Pietro dentro do
meu quarto, sentei na cama me encolhendo num canto contra a parede e varri
o quarto com os olhos. Não havia nem sinal dele, mas ainda assim não
consegui relaxar, eu o sentia mais perto do que gostaria.
​― Pietro? – Chamei, mas não houve resposta. Chamei mais algumas
vezes até que senti sua presença se afastar e soltei o ar lentamente para
retomar minhas forças.
​Deslizei na cama até me deitar de novo e vi que a janela do meu
quarto estava aberta. Tinha certeza que estava fechada antes de descermos
para o jardim. Meu coração deu um novo pulo, Pietro podia voar agora e
facilmente entraria no meu quarto e se esconderia entre as minhas coisas.
​― Está com medo de um anjinho, Suzaninha? – Ele se materializou
na minha cama, estava sentado a dois palmos da minha cabeça.
​― Saia do meu quarto! – Gritei, sentando-me e arrastando meu corpo
para o mais longe que podia.
​Pietro interceptou meus movimentos e me puxou pela cintura para
mais perto dele, seus olhos adquiriram um tom cinza escuro e me encaravam
com tanto fervor que estremeci.
​― Você não quer realmente que eu saia.
​― Quero. – Fui firme e o empurrei, usando toda a força do meu
corpo.
​ Claro que não quer. Tá fazendo carinho no meu peito, isso sim. –

Riu baixo, prendendo-me com mais força. A esta altura, senti minhas pernas
próximas às dele e, com um gesto rápido, ele me colocou em seu colo. Arfei,
pois já há algum tempo eu não o sentia desta forma e Arthur tomava todo o
cuidado para que não encostássemos tão ousadamente um no outro. – Falei
que estava com saudade. – Sussurrou, levando meu corpo para frente, junto
ao dele. Amoleci quase que de imediato.
​― Você não pode mais fazer essas coisas... – Balbuciei.
​― Realmente, então se você sente saudade disso, é porque quer
mesmo, Suzanna. Não estou usando de artifícios demoníacos para que me
deseje.
​O tom de certeza e orgulho que ele usou me deixou em dúvida sobre
minhas reações. Já não tentava mais me desvencilhar, ao contrário, meu
corpo desejava permanecer ali. Levei um minuto para perceber que não era o
corpo dele que eu queria junto do meu. Com isto, forcei meu tronco para trás
e sai de seu colo, ficando a um metro de distância, na porta do meu banheiro.
​― Fica longe de mim! – Ordenei.
​Pietro riu, encostou as costas na parede da minha cama e ficou me
olhando intensamente, passeando seu olhar por todo meu corpo.
​― Você está mais madura. – Comentou. – Por falar nisso, feliz
aniversário.
​Meu quarto pareceu pequeno de repente, quente demais mesmo com a
janela aberta à minha direita. Pietro ficou de pé e no segundo seguinte me vi
em seus braços. Tentei me desvencilhar, mas ele me prendeu com força,
mantendo-me no lugar.
​― Fica deitada, você desmaiou.
​Parecia genuinamente preocupado, seus olhos estavam num tom
escuro, febril, ouvi ao longe chamar por Pierre e estranhei ele pedir pelo
irmão, sendo que havia uma competição palpável entre eles. Novamente
quando abri meus olhos, uma nova cena se fazia diante de mim, Arthur estava
me pegando nos braços e me colocando em minha cama, encostei a cabeça
em seu peito que estava gelado e fechei meus olhos, tentando desanuviar
minha mente. Minha cabeça parecia rodar sem parar.
​― Suzanna, o que você está sentindo? – Perguntou e minha resposta
não saiu.
​O chão faltar ou a respiração falhar eram mais comuns anos antes,
quando o acidente com meus pais era mais recente. Tinha tonturas constantes
ou sensações de desmaio e esperava por elas com ansiedade, pois tinha visões
lindas de quando meus pais estavam vivos. Sonhos quase reais.
​― Suzanna? – A voz de Arthur cortou meu devaneio mais uma vez,
abri meus olhos e dois pares de olhos cinzentos me encaravam, quase
idênticos, não fosse pela intensidade deles.
​Pierre estava comigo nos braços e seu olhar era de uma preocupação
tão intensa que temi ter morrido. Já Pietro parecia preocupado, porém com
um quê de irritação, parecia a ponto de explodir. Respirei fundo e sorri para
ambos.
​― Estou bem... O que houve?
​― Você desmaiou. – Anunciou Pietro.
​― O que ele fez para você desmaiar? – Inquiriu Arthur, olhando
enviesado para Pietro e colocando o ombro no seu campo de visão para que
ele não me olhasse. Se não fossem irmãos, eu me sentiria lisonjeada de ter
dois homens lindos com ciúmes de mim. Suspirei pesadamente, ouvindo
Pietro negar que tenha feito algo.
​― Ele não fez nada. Só entrou no meu quarto e apareceu do nada. –
Reclamei. – Ele pode fazer isso?
​― Pare de dizer o que posso ou não fazer! – Pietro parecia um
menino no modo de falar, levantou e ficou me encarando por sobre a cabeça
de Arthur. – Eu só dei feliz aniversário para a garota. – Olhou em outra
direção e segui seu olhar, encontrando o rosto de Victória que estava tenso.
​― Alguém pode curar ela logo dessa labirintite?
​― Posso. – Sussurrou Arthur que ergueu o rosto, encarando os três
que estavam no quarto. – Deixem-me sozinho com ela.
​Meu estômago gelou, pois não sabia se queria ser curada de algo que
adquiri depois do acidente, era como uma lembrança de que sobrevivi.
Depois que todos saíram e a porta foi fechada, ele relaxou e ajoelhou ao meu
lado na cama.
​― Você levou bronca? – Perguntei e, vendo que ele não entendeu,
emendei a pergunta. – A Victória te chamou lá fora.
​A risada dele foi baixa, mas não havia humor em seus olhos, suspirei
ainda me sentindo fraca.
​― Levei, mas nada grave, não se preocupe. Feche os olhos e não abra
até que eu mande, está bem?
​― Não gosto de saber que levou bronca por minha culpa.
​― Não foi sua culpa. – Os dedos dele passearam lentamente por meu
rosto e me vi presa em seu olhar mais uma vez, com um suspiro ele tocou
meus olhos os fechando. – Não abra até eu mandar.
​― Ok, mandão. – Sorri.
​― Quietinha. – Havia um sorriso em sua voz.
​Arthur tocou meus ombros e ouvi o som de suas asas se desenrolando.
Mesmo sem olhar, conseguia lembrar perfeitamente de sua imagem como de
gelo, da textura ao meu toque e do cheiro que elas possuem, impregnadas da
presença dele, tão fortes que saberia se são dele, caso mais alguma se
desprendesse. Mordi meu lábio para controlar meus pensamentos e o ouvi
murmurar uma palavra em outra língua, mas não consegui identificá-la. Um
clarão me obrigou a apertar meus olhos, uma sensação como fogo queimando
minha cabeça começou na base da minha nuca. Não doía apenas incomodava,
porém ela foi descendo gradativamente até sumir na ponta dos pés.
​A claridade se desfez, dando vazão a um ponto iluminado nas minhas
pálpebras, como quando olhamos por muito tempo diretamente para uma
lâmpada, e lentamente desapareceu.
​Respirei fundo e senti a mão de Arthur em meu rosto, temi
desobedecer abrindo os olhos, por isso os apertei um pouco, controlando
minha curiosidade. A voz dele veio sussurrada.
​― Abra os olhos.
​Obedeci, encontrando os olhos cinzentos me encarando. Abri um
sorriso tímido e fui contemplada com um toque suave de seus dedos em meu
rosto, mais uma vez.
​― Acabou?
​― Acabou.
​Olhei além dele, as asas estavam guardadas, não havia nem sinal
delas. Suspirei um pouco frustrada.
​― Obrigada. – Lembrei-me de dizer, já que certamente eu não teria
mais tonturas ou desmaios vergonhosos na frente dos dois.
​― Não por isso. Não fiz antes porque precisava de permissão. –
Explicou, então falou ainda mais baixo. – O que ele fez para você passar mal?
​― Lembrou-se do meu aniversário. – Senti minhas bochechas
corarem com a resposta, mas não queria esconder nada de Arthur.
​O rosto dele ficou descontente e quis imediatamente retirar minha
resposta. Arthur levantou e o segui.
​― Você precisa dormir. – Lembrou.
​― Não sinto sono. – Olhei para o relógio ao lado da minha cama,
passava da uma da manhã.
​― Mas, você precisa descansar. – Ele passou os dedos por meu rosto,
beijou minha testa demoradamente, mas não deixei que se afastasse. Abracei-
o pela cintura e o puxei para mais perto.
​― Arthur, eu não sei se consigo lidar com ele tão perto.
​― Pietro? – A respiração dele foi longa.
​― Humrum.
​― Eu também não gosto dele tão perto, mas acredito que vocês dois
logo se entenderão, não se preocupe tanto. – Afastou-se, obrigando-me a
deitar.
​― Não quero me entender com ele. Essa coisa de ter uma segunda
chance não entra na minha cabeça. E se ele estiver fingindo? Fez de propósito
porque sabia que seria trazido para cá... Estou com medo, Arthur. – Minhas
palavras saiam cada vez mais baixas.
​Ele ponderou por um momento, suspirou mais uma vez e me encarou.
​― É o coração que é julgado e não as atitudes, ele não teria como
fingir o que está em seu íntimo, as intenções de sua alma.
​― Tem certeza? – Sussurrei. Arthur ajoelhou à minha frente
novamente.
​― Tenho, Suzanna, e percebi isso agora também. Se deram essa
segunda chance a ele, é porque a merece.
​― Tá certo... Mas, eu não queria ficar sozinha, mesmo confiando no
que você me falou. Ele me arrastou por aquela floresta, me colocou para ser
vigiada por um demônio, provocou o acidente dos meus pais... Tenho medo
dele!
​― Tem certeza de que tem medo dele? – Apertei os olhos sem
entender o que ele quis dizer com a pergunta. Para mim, era óbvio que estava
com medo, por isso apenas assenti com a cabeça. Lembrando-me também da
visitinha de Havi. – Vou resolver isto.
​Dez minutos mais tarde, ele retornou para o quarto, tinha um colchão
debaixo do braço, roupa de cama no outro e Sophia a tira colo. Não sei por
que imaginei que ficaríamos juntos como na cabana.
​Precisava parar de olhar para ele desta maneira.
​Arthur colocou o colchão no chão, perto da janela, arrumou a roupa
de cama, o travesseiro e, em seguida, mostrou a Sophia onde ela poderia se
trocar.
​― Ela dorme?
​― Às vezes, precisamos... Mas, ela vai vigiar, para te deixar mais
tranquila. – Ele olhou na direção do banheiro e, como a porta ainda estava
fechada, se ajoelhou na minha frente. – Me faz um favor?
​― Claro. – Sussurrei.
​Feche a sua mente. Sussurrou na minha cabeça, beijou minha testa e
saiu.
​Ta bom. Bons sonhos, Arthur. Pensei, imaginando que ele pudesse
ouvir. Em seguida, fiz o ritual de colocar o escudo em meu corpo todo, desta
vez sem imaginar Pierre dentro dele.
​Era ruim me sentir tão fria com a presença dele longe, eu nem tinha
reparado que não havia fechado minha mente até ele pedir. Não me lembrava
de tê-la liberado...
​― Posso apagar a luz? – Perguntou Sophia, saindo do banheiro. Fiz
que sim e ela desligou a energia. Em seguida, foi se deitar no colchão.
​― Boa noite, Sophia.
​― Boa noite, Suzanna.
​Fiquei aliviada por ela não querer conversar, não estava muito
animada para isso, precisava mesmo era pensar um pouco. Há dias, não me
sentia mais perdida como quando fui sequestrada ou presa para ser julgada,
tudo parecia tão calmo que estes acontecimentos pareciam há anos de
distância ou apenas um sonho ruim que nos deixa arrepiados ao nos
lembrarmos. Ter Pietro no andar de baixo me trazia para o mundo real, um
em que eu precisava lembrar que não queria o mesmo fim para Pierre, que ele
não precisava viver o que Pietro viveu com Veronique.
​Repassei algumas memórias para me recordar de quem eu sou e de
onde vim. Tentei lembrar-me do rosto do meu pai, mas só o via realmente em
sonhos, agora era um borrão disforme de olhos azuis e feição preocupada. O
mais nítido em minha mãe eram os cachos quase perfeitos de seus cabelos,
pois queria muito tê-los herdado, assim não precisaria de tanto tempo para me
arrumar de manhã. O que estaríamos fazendo agora se eles ainda estivessem
vivos? Será que meu pai teria contado o que eu sou ou me ensinado as regras
de ser um Nefilin? E que regras seriam estas? Precisava me lembrar de
perguntar isto diretamente a alguém.
​Virei de costas para a janela, cobrindo todo o meu rosto com o
edredom. Imagens de Pierre povoaram minha mente quase que
imediatamente e depois Pietro, com seu toque masculino que me faz desejar
que continuasse me tocando, mas sabia que não estava certo querer os dois,
mesmo que fossem de maneiras tão distintas.
​Lembrei-me de fechar minha mente de novo quando a imagem de
Arthur comigo na cabana inundou minhas lembranças; aquele último beijo, o
único que guardarei para sempre como o bem mais precioso da minha vida.
Suspirei, sentindo as lágrimas rolando por meus olhos. O agito das aulas não
permitiram superar a separação forçada e agora, com a presença de mais
anjos, precisaria me lembrar com mais frequência de manter distância. O
problema é que talvez só tenha sucesso se me reaproximar de Pietro e confiar
nele novamente.
​Enxuguei o rosto rapidamente ao me dar conta de que Sophia estava
no quarto e talvez estivesse ouvindo as fungadas do meu nariz. Encolhi-me
um pouco e fechei meus olhos na vã tentativa de dormir. Conhecia meu corpo
e se antes, sem nenhum acontecimento importante, eu dormia pouco, agora
menos ainda.
​Virei mais uma vez e dei de cara com o anjo me olhando, ela estava
sentada no colchão, com as costas apoiadas no sofá da janela. Quando
percebeu que a encarava, abriu um pequeno sorriso.
​― Sem sono?
​― Sem nenhum. – Confirmei e, desistente, me sentei na cama,
desfazendo a trança que ainda estava úmida e a refazendo.
​― Quer conversar?
​― Sobre o quê?
​― Não sei, talvez queira desabafar ou então tirar alguma dúvida sobre
o nosso mundo.
​Entortei os lábios, ela era tão prestativa e educada que me fazia sentir
ainda mais próxima, como parte de sua família. Levantei e fui me sentar ao
seu lado no colchão. Sem receio ela abriu espaço embaixo do cobertor;
ficamos lado a lado, ambas olhando na direção do banheiro.
​― Faz tempo que você é um anjo? – Perguntei.
​― Algumas décadas, ainda estou em treinamento.
​― E você é filha da Victória?
​Ela riu, negando lentamente, então se virou para mim pensativa,
parecia escolher as palavras que usaria.
​― Fui uma Nefilin, mas, na época em que vivi, não havia tantas
tentações no mundo como hoje. Fui criada por uma família muito religiosa.
Na maioridade, quando Victória me procurou, não foi difícil saber que
caminho seguir, também não tive problemas de paixões, pois queria ser
freira. – Fiz uma careta e ela riu. – Hoje, sou a favor do relacionamento,
porque, depois de décadas sozinha, fiquei muito feliz em ter encontrado o
Josué.
​― Você também possuía poderes? Por isto, ela te procurou?
​Sophia confirmou, aproximou-se mais de mim, sussurrando.
​― Persuasão. Tenho grande influência sobre as pessoas, mas aprendi
a controlar e usar somente quando é muito necessário, mas, quando era
menina, eu não entendia e sempre me metia em confusões, das quais meu
anjo da guarda me tirava.
​― Você conheceu seu anjo da guarda? – Perguntei curiosa.
​― Sim. Seu nome é Josué.
​― Seu namorado?
​Novamente ela confirmou e vi suas bochechas corando, mordeu o
lábio com força e em seguida falou em tom confidencial.
​― Sempre o amei, mas não podíamos, pois ele era um anjo. Ele me
disse há pouco tempo que não sentiu nada por mim enquanto era Nefilin, fico
aliviada com isso.
​Meus olhos encheram d’água com a informação. Sophia pareceu
desconcertada ao perceber, mas pisquei algumas vezes até a sensação passar.
​― Achei que Nefilins e anjos não pudessem ficar juntos.
​― E não podem. Como Nefilin, você é considerada impura. Humana.
É um pecado imperdoável.
​Respirei bem fundo, desviando o olhar novamente para a porta do
banheiro, tossi para limpar a garganta e a voz não sair falha.
​― E como você pode namorar agora?
​― Porque somos anjos. Corpo e alma celestial. – O sorriso dela me
surpreendeu e vi que não me contava aquilo como uma fofoca, mas porque a
deixava feliz em compartilhar.
​Concordei lentamente, desejando ser como ela algum dia da minha
vida. Novamente, meus olhos marejaram e senti os dedos dela sobre minha
mão.
​― Suzanna, você está bem? Quer se deitar novamente?
​― Queria ser mais forte. – Comentei.
​― Em relação a quê? Você é forte, precisa apenas descobrir seus dons
e poderes e do que seu corpo é capaz.
​ orri, quase soltando uma risada por ela não ter entendido meu
S
comentário, minhas mãos estavam embaixo da dela, o toque parecia fazer
cócegas em minha pele. Observei por algum tempo, antes de tomar coragem
e falar em voz alta o que estava sentindo.
​― Se eu fosse mais forte, o Pierre não teria se prejudicado tanto por
minha causa. Da primeira vez em que estive no Segundo Éden, ele teve
problemas por estar próximo a mim. Lembro-me bem do olhar da Victória o
condenando, de como o Pietro o subjugou por causa de um sentimento que
não nos é permitido ter, mas na época eu não sabia, era muito mimada para
entender. – Respirei fundo, encontrando o olhar de Sophia. – E agora que eu
sei de todas as consequências, simplesmente não consigo me manter longe e,
cada oportunidade que tenho de ao menos tocar nele, aproveito... Daí, de
novo ele levou bronca por minha culpa.
​― Suzanna, não se culpe. O Arthur sabia que levaria alguns puxões
de orelha pela forma que vem agindo, a culpa não é sua.
​― A bronca foi feia?
​Os lábios dela se apertaram, eu sabia que ela não podia mentir, mas
que talvez estivesse lutando contra a verdade para não me preocupar.
Suspirei, quando ela lentamente confirmou com a cabeça.
​― Mas, ele mereceu.
​― Você pode contar?
​― Não vejo porque não, é bom que assim você se comporta também.
– Encolhi os ombros, sentindo-me ainda mais culpada. – Pierre é seu
guardião e não está agindo como tal. Quando chegamos, vocês estavam tão
próximos que pareciam até um casal, e ele estava voando a céu aberto poucos
minutos antes, vimos suas asas. Ele não se preocupou nem em escondê-las a
olhos humanos, está distraído e foi imprudente. Um dos Guerreiros nos
informou que ele foi atacado a poucos quilômetros daqui e, mesmo assim,
agiu impulsivamente minutos depois do ocorrido. Ele precisava ser corrigido.
​― Espere, me explica direito. Ele foi atacado? Onde e quando?
​Ela apontou para a janela atrás de nós, repetindo as palavras a poucos
quilômetros daqui. Pensei na informação e não consegui acreditar que Pierre
e o anjo japonês haviam escondido algo tão importante de mim.
​― Estamos aqui por causa do ataque, estávamos tentando passar pelas
potestades, por isso demoramos tanto. Deveríamos ter chegado ontem
mesmo.
​― Quer dizer que os demônios atacaram o Pierre e vocês, aqui perto?
Eles estão vindo para cá?
​Mal terminei de falar e uma chuva dourada com sons como de fogos
sendo lançados à meia-noite do ano novo soou do lado de fora. Sophia correu
para a janela e a abriu, contemplamos ao mesmo tempo um ataque terrestre
de demônios. Eles faziam bolas de fogo e jogavam contra Pietro, que os
sobrevoava com uma aljava de flechas pendurada em seu ombro.
​― Leva ela daqui! – Gritou ele, puxando outra flecha e atingindo
certeiro no coração de um homem. Ele possuía a pele avermelhada, os olhos
dourados como duas chamas acesas, sibilou e explodiu em cinzas no ar. –
Vai, Sophia!
​― Tenho que ajudar vocês! – Informou acima do barulho, mas Pietro
voou até nós, lançando um olhar duro para ela, usou as asas para nos afastar
da janela e puxou o trinco com força, fechando-nos dentro do quarto.
​― O que está acontecendo? – Não tinha forças para obedecer e não
podia culpar a labirintite. Era pavor.
​― Veste o tênis e vem comigo.
​Quando olhei, ela estava com uma calça jeans e a camiseta branca que
usava quando chegou, nos pés uma sandália parecida com as que usei no
Segundo Éden. Terminei de calçar o tênis e vi a pena de Arthur perdida sobre
o meu travesseiro, nem me recordava de tê-la colocado ali, peguei-a, enfiando
numa bolsa pequena que coloquei enviesada no corpo e, em seguida, fomos
para a porta do meu quarto. Assim que a abrimos, ouvi os estalos do fogo no
andar debaixo.
​― Meu Deus! Meus avós!
​― Eles não estão na casa. – Disse. – Sabe onde estão?
​Neguei, sentindo um alívio enorme por não estarem ali, não queria ser
culpada pela morte deles. Sophia fechou a porta ao perceber a presença de
outro demônio, mas ele a derrubou com facilidade. Sem pensar, joguei meu
cobertor sobre ele. Surpreso, o demônio recuou e pudemos desviar e correr
para o andar abaixo.
​― Onde estão os outros? – Perguntei, mais preocupada com o Arthur.
​Ouvi um sibilo atrás de mim e apertei os passos, o calor do demônio o
precedia e sabia que estava cada vez mais perto. Na sala, pude perceber que
os estalos vinham dos móveis que queimavam, talvez atingidos pelas bolas de
fogo que os demônios atacavam em Pietro. Sophia me levou até a cozinha e
me lembrei dos humanos que moram comigo.
​― Eles estão fora também. – Respondeu, como se ouvisse minha
preocupação. – Por aqui. – Depois de olhar para o jardim, ela abriu caminho
para que eu saísse. Por incrível que pareça, o jardim dos fundos, onde eu e
Pierre fizemos o ritual de proteção, estava vazio e intacto, só não sabia por
quanto tempo.
​― O que vamos fazer? – Questionei aturdida.
​― Você fica aqui e eu vou ajudar os outros.
​― Não posso ficar só olhando, Sophia!
​― Não há nada que você possa fazer contra eles, ou prefere seguir o
Havi e dizer que foi para poupar nossas vidas? – O tom dela não parecia de
ataque, mas senti como um soco na boca do estômago. O anjo suspirou,
ordenando em seguida. – Não saia daí.
​― Não tenho opção. – Resmunguei e a vi abrir as asas, quase tão
grandes quanto as de Arthur, porém mais brancas, e com um brilho azulado
bem discreto sobre elas que, logo percebi, rodeava todo o corpo da mulher.
Imediatamente, percebi que deveria ter compartilhado a visitinha de Havi
mais cedo, assim estariam desconfiados de que seríamos atacados por ele.
Grunhi, irritada com minha burrice.
​Quando ela sumiu do meu campo de visão, quis chamar por Arthur,
mas tive medo, pois tinha certeza de que ele largaria qualquer coisa para me
socorrer se achasse que estava em perigo.
​Um grito feminino me fez correr para junto da árvore na tentativa de
me esconder, outros gritos se seguiram e em seguida um sibilo alto, sabia que
era de um anjo e um demônio se enfrentando. Sentia-me ainda mais inútil por
estar escondida. Corri até a outra ponta do jardim, rodeando a casa e me vi a
alguns metros da porta de entrada, separada deles apenas pelo jardim
principal. A cena era aterradora, anjos sobrevoando o jardim de flores,
demônios no chão e um caído enfrentando Pietro um pouco além do jardim.
Ouvia os socos de onde estava.
​O que eu faço, Deus?
​Senti um calor sugar todo o ar à minha volta e, quando me virei na
direção, Havi estava a me encarar com um sorriso debochado. Atrás dele,
Haddes e uma mulher que me lembrava muito a Cruela dos filmes dos Cento
e Um Dálmatas. Os cabelos estavam metade brancos e metade negros, os
olhos esbugalhados e um sorriso sarcástico segurando seus lábios em uma
curva estranha. Ela se aproximou, tão magra que pensei não ser real, até que
o cheiro de podridão me atingiu, embrulhando meu estômago.
​― O que vocês querem? – Questionei, dando alguns passos para trás.
​Eles avançaram, porém percebi que ficaram no limite entre a lateral
da casa e o jardim onde eu e Arthur fizemos a purificação do ambiente.
​― Ah, isso é simples, Suzanna. – Começou Havi, seu olhar colérico
sobre o meu.
​Eles falaram ao mesmo tempo.
​― Sua alma.
Capítulo 16

​― Pois vão ter que fazer muito mais para conseguir isso! – Gritei.
​Corri na direção contrária, sem olhar para trás. Escalei o muro que,
apesar de alto, possuía algumas falhas, me possibilitando colocar os pés e me
firmar, e saltei para o outro lado sem muita dificuldade, voltando a correr
imediatamente.
​A rua estava deserta por causa da hora avançada, parcialmente
iluminada por uma luz amarelada vinda de alguns postes muito acima da
minha cabeça. Não parei para pensar, nem para descobrir se era seguida,
precisava realmente saber para onde ir. Agradeci mentalmente por estar de
moletom e tênis e com minha bolsa a tira colo, sabia que teria ali algumas
coisas de que precisava, ao menos até conseguir contato com meus avós e
descobrir onde eles estavam e se estavam em segurança.
​Ouvi um estalo atrás de mim e me apressei, atravessando a avenida
para adentrar uma das ruas paralelas. O Museu do Ipiranga ficava a algumas
quadras e me lembrei imediatamente do caminho feito com Pietro há algumas
semanas, de repente decidindo para onde ir. Minha respiração estava pesada,
mas não sentia a corrida, era como se meu corpo soubesse que precisava ser
forte.
​Uma viatura passou por mim e o policial soou a sirene, fazendo-me
olhar em sua direção. fez um sinal para que parasse de correr, mas, antes de
obedecê-lo, olhei para trás, não queria colocar nenhum deles em perigo.
​― Tudo bem, senhorita? Alguém a está seguindo? – Perguntou o
motorista, estacionando próximo a mim e saindo da viatura com a mão sobre
o coldre da arma.
​Parei para respirar um pouco, arquejando, e fiz que não, tentando abrir
um sorriso que certamente soaria falso.
​― Correndo. – Falei por sob o fôlego, ele e o colega trocaram olhares
e se aproximaram mais.
​― A senhorita parece assustada. – O outro falou. Eram parecidos,
ambos loiros, corpo atlético e olhos atentos.
​― Estou bem, obrigada, mas preciso ir.
​― Isso não é hora para uma garotinha estar na rua. – O motorista
retomou a palavra e, pela proximidade, consegui ler o sobrenome colado
acima do bolso em seu uniforme: Rodrigues.
​― Policial Rodrigues, não preciso de ajuda, mas obrigada pela
preocupação. Realmente, preciso ir. – Havia uma sensação crescente de
perigo, uma presença imortal se aproximava, ou mais de uma, já que o calor
em meu estômago se tornou quase insuportável e meu corpo foi tomado pelo
suor em poucos segundos.
​Virei-me para me distanciar e assim não colocá-los em perigo, mas fui
atacada pelas costas. A criatura puxou meu cabelo, sibilando enquanto
tentava prender minhas mãos para trás. Chutei e me movi o mais
violentamente que consegui, mas era forte e quente demais.
​― Não tente lutar, será pior. – A voz era do policial Rodrigues.
​Gemi por não ter notado que era um demônio, dei uma cotovelada em
sua costela e, quando arqueou o corpo, aproveitei para correr, não precisava
esperar para saber que ele tentaria me pegar novamente.
​― O que houve, Rodrigues? Deixe a menina! – Ouvi o outro policial
dizer. Em seguida, seu grito vazou para a escuridão noturna. Mais uma morte,
e por minha culpa!
​― Suzanna, você não tem para onde correr! – Desdenhou muito
próximo. A ladeira não estava fácil de subir e, mesmo sem a labirintite para
me atrapalhar, minhas pernas começavam a latejar pelo esforço.
​Passei pela guarita de um segurança noturno e pedi mentalmente que
ele não saísse de lá. Um clarão passou por mim, atingindo uma árvore logo à
frente, parei de correr e desviei do fogo. Olhei rapidamente para trás e o
policial continuava em meu encalço, porém andava naturalmente com um
sorriso vitorioso nos lábios.
​Lembra, lembra Suzanna, lembra!
​Dizia a mim mesma, tentando recordar de alguma coisa falada por
Arthur e que pudesse me ajudar a me camuflar ou a vencer aquele demônio.
​Eu posso manipular os elementos! Sorri ao me recordar, porém não
havia manipulado fogo ainda.
​Olhei para as chamas tremeluzindo em tons alaranjados, amarelos e
vermelhos e, em seguida, virei o rosto para o policial que agora tinha
companhia, mais três demônios o seguiam, todos em suas feições naturais,
pele vermelha, olhos perdidos, chifres e uma longa calda. Tentando usar meu
instinto, parei de correr, uma brisa leve aliviava o calor forte vindo das
chamas. Imaginei-a envolvendo as labaredas, formando uma bola de fogo e,
então, joguei a mão na direção dos quatro demônios, mas nada aconteceu.
​ Ahh! – Gritei frustrada e, sem pensar, olhei a chama e ordenei que

se chocasse contra eles. – Vai! – Joguei a mão na direção deles mais uma vez.
O fogo se deslocou com uma rapidez incrível e engoliu cada um dos
demônios como uma boca faminta. Os quatro se tornaram cinzas em poucos
segundos.
​Arquejei com a surpresa, mas não esperei para saber se eles se
materializariam novamente. Corri aos tropeços, pois minhas pernas estavam
bambas.
​Atravessei mais uma rua, seguindo ladeira acima, sabia que logo
avistaria o Museu. Não estaria segura ali, mas talvez conseguisse me
esconder e Pietro pensasse em me procurar nos lugares que mais amo em São
Paulo. Esperava que ele se recordasse disso.
​O frio noturno novamente me envolveu, era bem-vindo, já que o calor
significava demônios em meus calcanhares. Não aliviei o ritmo quando
avistei a entrada do monumento, envolvi as mãos nas grades e escalei, minha
sorte é que sempre gostei de escalar as coisas e não havia obstáculo que não
conseguisse traspassar, só esperava que, como na noite que estive aqui, não
houvesse um alarme silencioso disparando em algum lugar devido à invasão.
​Esgueirei-me entre as sombras até ganhar as árvores abaixo do prédio
principal e me sentei no penúltimo degrau da escada. Precisava entender o
que aconteceu na minha casa e pensar no que fazer. Abri a bolsa e encontrei a
pena, dinheiro que eu estava guardando para tirar a carteira de motorista, uma
identidade falsa que usava para entrar nas baladas com a Bruna e dois
absorventes internos que deveriam estar ali há muito tempo, pois não me
lembrava deles.
​― Ótimo. Esqueci meu celular. – Reclamei, devolvendo tudo à bolsa
e ficando com a pena entre os dedos.
​Passei em meus lábios ao pensar que não vi Arthur em nenhum
momento da confusão em minha casa, não sabia se ele estava no quarto de
hóspedes ou do lado de fora enfrentando os demônios. Recordei de Pietro
com aquele arco e as flechas, parecia um anjo da morte, as asas negras tão
brilhantes que me fizeram suspirar ao lembrar.
​Foco. Ordenei a mim mesma, erguendo-me e terminando de descer os
degraus.
​Varri o local com olhos atentos para qualquer movimentação estranha,
mas não esperava me deparar com tantas sombras, o medo se instalou em
mim e já não tinha tanta certeza de ter escolhido o lugar certo para me
refugiar. Além de estar a céu aberto, as árvores poderiam muito bem esconder
qualquer intruso, assim como me escondiam.
​Lembrei-me de uma casinha que fica na extremidade oposta a que
estava e decidi chegar até ela, pois era apenas uma casa cenográfica e
ninguém pensaria que haveria um humano ali. Contava com isso.
​Antes de me deslocar, olhei em volta novamente, guardei a pena na
bolsa e a prendi junto ao corpo para não ficar balançando. Comecei a correr
encurvada, porém, quase ao final do caminho, lembrei que a casinha fica na
parte debaixo do Monumento, depois dos altos portões que separam a parte
superior da inferior. Olhei para o portão com o misto de frustração e
coragem, as grades pintadas de verde, seriam fácil de escalar. Atravessar a
rua e pular para a parte inferior do museu é que seria complicado, pois ficaria
exposta demais.
​Uma luz clara percorreu as flores e árvores à minha esquerda.
Encolhi-me entre a vegetação baixa, virando o tronco na direção dela, era a
lanterna de um dos seguranças do Museu. Ele avançou silenciosamente entre
o emaranhado de roseirais e outros tipos de flores, apontou a lanterna para
além das grades, iluminando o outro lado e ouvi um longo chiado, parecido
com o de um rádio amador.
​― Não tem ninguém aqui. – Disse.
​O chiado soou novamente e uma voz dura e distorcida preencheu o
silêncio.
​― Vi nas câmeras de segurança, alguém pulou o portão. Cheque
novamente.
​Encolhi-me mais, teria de pular sem chamar atenção, mas, agora que a
segurança sabia da minha entrada, não teria como me esconder na parte baixa
do Monumento. Esperei silenciosamente até o segurança se afastar – o que
pareceu demorar uma eternidade. Quando sumiu do meu campo de visão, fui
para junto do cercado, coloquei o primeiro pé na barra esverdeada e parei
bruscamente, sentindo a presença de alguém às minhas costas. A sensação
quase familiar de formigamento subindo desde meus pés até a nuca.
​Ao me virar, notei que não havia alma viva em canto algum, portanto
apenas estava próximo o suficiente para que o sentisse. Voltei a me
concentrar em pular quando ouvi asas batendo freneticamente acima da
minha cabeça.
​― Não te disse que ela estaria no Museu? – A voz de Pietro pareceu
ressonar em todos os cantos, cortando gravemente o silêncio que me protegia.
​ omo uma reação natural, escondi-me entre a vegetação, prendendo o
C
ar dentro dos pulmões para emitir o menor som possível.
​O bater de asas ficou mais próximo e, então, uma mão firme e quente
me puxou pelo pulso para fora do esconderijo, saltei as flores tentando me
equilibrar, mas logo me firmei e encarei quem me puxava.
​― Arthur! – Joguei-me nos braços dele. – Sabia que você me
encontraria! – Sussurrei.
​Pietro pigarreou e o vento de suas asas fez meus cabelos, que já
estavam bagunçados, voarem para as minhas costas. Encarei-o.
​― Na verdade, eu te encontrei. – Vangloriou-se.
​Afastei-me de Arthur, observando a ambos, que lado a lado, tinham
traços realmente parecidos, principalmente agora com o vinco de
preocupação instalado em ambas as testas.
​― Então, obrigada. – Sussurrei.
​― Não há de quê. – Pietro avançou, me puxou pela mão e me abraçou
pela cintura. – Vamos sair daqui, não é seguro.
​Apoiei minhas mãos em volta de seu pescoço, meus pés estavam
soltos no ar, mas meu tronco estava amparado por seu braço, prendendo-me
firmemente a ele. As asas negras se estenderam fazendo sombra e ele
começou a ganhar altura, gradativamente, como se eu não pesasse
absolutamente nada.
​Virei o rosto para localizar Arthur, ele voava atrás de nós e não vi
sinal de Victória e Sophia. Pietro se moveu bruscamente em queda e precisei
me agarrar a ele ao me assustar, o anjo riu e me encarou, estávamos tão perto
que foi impossível não sentir o estômago gelar.
​Resolvi manter o foco.
​― O que houve? Alguém sabe dos meus avós? E as meninas?
​― Calma! Uma pergunta por vez. – Sorriu. – Já sabíamos que haveria
um ataque no dia do seu aniversário, só não sabíamos em que momento. A
sorte é que chegamos antes deles. – Novamente se vangloriou. – Mas, sua
casa ficou um pouco estragada.
​― Alguém se machucou? – Sussurrei com receio da resposta.
​― Ninguém do nosso lado.
​― Seu lado é qual mesmo? – Desdenhei, não aguentando os modos
dele.
​― Sempre o seu, Suzaninha. – Revirei meus olhos.
Arthur avançou um pouco, ficando lado a lado conosco.
​― Por que nos atacaram? – Perguntei a ele.
​― Querem você a qualquer custo.
​― Mas se escolhi o Céu, eles podem fazer isso?
​Pietro pigarreou, indicando que responderia minha pergunta, mas
Arthur tentou se adiantar iniciando a resposta, foi calado por uma rajada de
vento contra seu peito, que certamente Pietro jogou nele.
​― Parem com isso, vocês dois, parecem crianças! – Reclamei. –
Alguém me responde, porcaria!
​O sorriso de Pietro indicava que ele nem se abalou com minhas
palavras, apenas me apertou um pouco mais junto dele antes de responder.
​― Podem. Eles não jogam limpo e você sabe bem disso. O senhor do
Inferno quer você e ofereceu um prêmio substancial a quem conseguir sua
alma.
​― E quanto custa a minha cabeça no Inferno?
​― Não sua cabeça, mas sua alma. – Estremeci com a resposta dele. –
E uma bagatela chamada liberdade. – Sussurrou. – Liberdade e proteção do
próprio Lúcifer.
​Arregalei os olhos e olhei Arthur. Por que investiriam tanto em uma
garota que nem sabia que era Nefilin?
​― Suponhamos que eles consigam me pegar, o que garante que vou
servir ao Inferno?
​Desta vez, Arthur se intrometeu, o voo ficava cada vez mais alto e
apenas um vento fraco passava por nós.
​― Eles podem corromper sua alma a força... Como vou explicar? –
Ficou pensativo e Pietro continuou.
​― Enquanto você não pertencer a nenhum lado, eles podem te
marcar.
​― Marcar como gado no pasto? Caramba, eu já escolhi o Céu! É o
que eu sempre quis! O bem...
​― Você daria uma linda vaqui... – Arthur o interrompeu.
​― Seus dezoito anos são cruciais em sua escolha. Até hoje, você
poderia oscilar sem graves consequências, pois uma criança é considerada
pura aos olhos de Deus. Mesmo que tome as decisões erradas, tem grandes
chances de obter o perdão, mas a partir de hoje todas as suas escolhas são
consideradas adultas e, dependendo da forma que as fizer, nós a perdemos. É
muito difícil uma alma corrompida ser resgatada depois.
​Fiquei pasma, não sabia nem o que dizer, já que não me imaginava
cometendo algum erro gravíssimo que alterasse minhas escolhas como sendo
o Céu e nenhuma outra. Respirei fundo algumas vezes e encarei Pietro.
​― Você esteve lá, quais são as estratégias deles?
​― Basicamente: enganar, destruir, roubar, denegrir, confundir,
chantagear... Minha tentativa foi um dos pecados capitais, pois você tinha
horror a se apaixonar, mas loucura para dar o seu primeiro beijo.
​― Como você sabe? – Arregalei meus olhos e ele sorriu sarcástico.
​Notei que Arthur se afastou de nós, tinha o olhar vago.
​― A monitoramos por algum tempo, na verdade quase não sai de
perto de você, desde que soube que ele se apaixonaria. – Explicou. – As
conversas que tinha com a Bruna, seus amigos, ou até seus livros deixavam
claras algumas particularidades suas. Como o fato de ser altruísta. Usei isto
quando vi que não iria comigo por vontade própria.
​― Ou pecando. – Reclamei.
​― A luxúria é um dos pecados mais praticados no mundo. – Sorriu. –
Só tentei dar um empurrãozinho.
​― Você é muito desonesto.
​― Era. – Respirou fundo e olhou em volta. – Sim, vamos para lá. –
Respondeu olhando para Arthur. Quis perguntar sobre o que falavam, mas
Pietro voltou com a conversa. – Ganância, status social... Existem muitas
formas de fazer um humano perder sua alma. Desejos carnais, frustrações,
doenças na família, depressão, culpa. Estas são só algumas.
​― Então, eles destruíram minha casa só para tentar me fazer pecar?
Isto não faz sentido.
​― Não, destruíram sua casa para chegar até você. Devem estar
desesperados, pois o ataque físico é a ultima estratégia.
​― Desesperados para que eu escolha o lado de vocês. – Afirmei.
​O anjo apertou meu corpo e seu rosto ficou a centímetros do meu, me
intimidando.
​― Deles. O lado deles. – O tom era baixo, mas as palavras saíram
pesadas como se estivesse cansado de repeti-las.
​― Desculpe. Desesperados para que escolha o lado deles. – Corrigi –
Mas, como farão isso?
​― Você não cansa de perguntar, não? – Suspirou, voltando a sua
atitude normal.
​― O arrogante era o Arthur e não você. – Lembrei e ambos rimos,
mas notei que Pierre tomava ainda maior distância de nós. Constatei naquele
instante que não estava mais com medo de Pietro e desviei o olhar,
envergonhada.
​― Sou bipolar. – Brincou e, então, se tornou mais sério quando
começamos a sobrevoar uma floresta. Tentei reconhecer o local, mas a
escuridão não permitia, Pietro voltou a falar, me fazendo olhá-lo. – Não sei o
motivo exato de por que a querem no Inferno, mas nunca houve tanta
comoção em relação a uma única alma. Desde o Cristo, é claro. – Suspirou. –
Ele costuma se importar em roubar almas que já se decidiram pelo Céu, se
concentra especialmente nos humanos que tentam levar uma vida correta,
sem pecados, e que seguem religiosamente suas crenças, pois acha divertido
e, sempre que um desliza, diz que todos possuem uma fraqueza, só basta
descobrirmos qual. – Respirou, parecendo focalizar o assunto. – Eu não sei
por que ele quer você, mas sei que não vai desistir.
​― Qual é a minha fraqueza? – Sentia meu corpo tremendo com a
certeza de que não desistiriam de me perseguir.
​― Altruísmo. Mas, tome cuidado, não estaremos sempre por perto e
não quero que eles vençam.
​Assenti algumas vezes para tranquilizá-lo, mas estava mais
preocupada com minha fraqueza, para me preparar para ataques mais diretos.
Mexi-me um pouco, sentindo a perna dormente e, sem perguntas, Pietro
puxou minhas pernas me carregando no colo, deitei a cabeça em seu ombro e
ficamos em silêncio absoluto, imersos em pensamentos.
​― Tudo bem.
​Ouvi a voz de Pietro me despertando. Ele e Arthur estavam
conversando baixo, sentados em volta de uma mesa. Demorei um pouco para
perceber que tinha adormecido e que estávamos dentro de uma casa. Sentei e
ambos desviaram a atenção para mim, ruborizei no mesmo instante.
​― Está melhor? – Perguntou Arthur, rudemente.
​― Do quê? – Passei a mão no rosto, cansada. – Estou bem... Quero
saber dos outros. Onde estamos?
​― Você desmaiou. – Pietro sentou ao meu lado e me puxou para o
seu peito, me aconcheguei sem prestar atenção ao ato. – Lembra-se da casa
de vidro?
​― Que casa de vidro?
​― Essa aqui. – Deu de ombros. – A casa onde te hospedei da última
vez.
​― Ah, sim, me lembro. O meu último cativeiro, você quis dizer. –
Alfinetei.
​― Não, Suzanna, tentei te proteger. Posso ser mal, ter começado tudo
isso com a intenção mais perversa do mundo, mas quando a trouxe para cá foi
à revelia.
​Procurei o rosto de Arthur para saber se era verdade e ele assentiu.
Algo no olhar dele me deixou com vontade de chorar. Parecia desolado. Se
pudesse ajudar de alguma forma e liberá-los de serem minhas babás, faria
rapidamente, mas eu não confiava em ficar sozinha, não depois de ver minha
casa sendo destruída.
​― Você desobedeceu ao Diabo? – Perguntei e ambos me encararam
como se eu tivesse falado um palavrão. – O que foi?
​― Nada... – Pietro riu e afagou minha bochecha. – É que a maioria
dos humanos tem medo de falar esse nome, mas, respondendo a sua pergunta,
eu me rebelei sim. Era para te levar direto para aquela entrada para o Inferno,
mas sabiamente você não pulou.
​Demorei um pouco para me recordar do portal iluminado que ele
atravessou, antes de alguns anjos me encontrarem e levarem presa para o
Segundo Éden. Sorri por ter feito a coisa certa ao menos uma vez.
​― Obrigada por me ajudar, então.
​― Foi porque eu quis, não porque você merecia. – Dei um tapinha no
ombro dele que riu divertido.
​Arthur se levantou da cadeira e saiu para a praia, era madrugada ainda
e pude observá-lo se afastando da casa a passos apressados. Em seguida, suas
asas se estenderam. Alçou voo e desapareceu. Soltei um suspiro e me encolhi
nos braços de Pietro, não podia fazer muita coisa e me lamentar por amar um
anjo não ajudaria em nada.
​― É... – Apertei meus lábios – A Demetria estava do nosso lado? –
Preferi focar em coisas que não envolvessem Arthur.
​― Estava do seu lado, mas, quando percebeu que eu também estava,
parou de me manipular. – Riu. – Mas, agora já não sei. Ela sumiu.
​― Será que alguém a machucou?
​― Espero que não.
​Ergui meus olhos e encontrei os de Pietro, ele sorriu e piscou para
mim, galanteador. Sorri também.
​― E o que fazemos agora?
​― Esperamos.
​― Pelo que?
​ Ainda não sei. É a primeira vez que me vejo numa situação assim,

correção, é a segunda, porém não estava diretamente envolvido.
​― Explique-me direito.
​― Seu pai era muito poderoso, quase como um anjo. Alguns dizem
que ele era noventa por centro anjo, o que o qualificava como anjo e não
Nefilin. – Arregalei meus olhos, encarando Pietro. – Não sei se eram apenas
boatos, mas ele escolheu a vida humana e não o Céu como era esperado.
Escolheu a sua mãe.
​― Nossa, que fofo meu pai... – Sorri admirada, mas Pietro balançou a
cabeça.
​― Quando um anjo escolhe um humano, o que acontece com ele?
​Demorei um pouco a entender e, para ajudar, Pietro fez o mesmo
gesto que um dia o vi fazer para Arthur, mas desta vez não havia desdém. Ele
ergueu a mão e a desceu indicando queda. Levantei-me, dando um grito de
horror e levei a mão aos lábios.
​― Ele... Você está mentindo! – Acusei. – Meu pai... Meu pai... Ele...
– Recuei alguns passos até sentir minhas costas na mesa.
​― Ele caiu. – Pietro deu de ombros.
​― E isso quer dizer que ele mora no Inferno? Ou morava... Tanto faz.
​― Isso.
​― Por isso, ele estava fugindo para São Paulo? – Sussurrei a
pergunta, mas Pietro negou.
​― Ele estava fugindo de mim. – Inclinei a cabeça de lado, confusa e
acusatória, ele continuou. – Porque fui designado para ensinar você a ser um
demônio.
​― Isso está ficando esquisito! Como assim me ensinar a ser um
demônio? – Gritei, mas, ao contrário de mim, Pietro parecia bem calmo ao
explicar.
​― Quando seu pai foi amaldiçoado, ele perdeu a maioria de seus
dons, mas, assim como eu, manteve outros e adquiriu alguns como presente
por sua escolha. Escolhendo a humanidade, automaticamente estava banido
do Céu. Ponto para o Inferno. – Explicou. Sentei-me na cadeira onde antes
Arthur estava e fitei o chão, tentando assimilar o que estava ouvindo. – Mas,
ele não sabia que seria um caído por escolher sua mãe e que sua herdeira
poderia ser reivindicada pelo Inferno.
​A presença de Arthur me atingiu com força e me virei para a porta, ele
estava parado à frente dela, de cabeça baixa. Percebi que balbuciava algo e
lentamente ergueu a cabeça para me encarar. Estava com os olhos marejados,
a musculatura travada como quem está se contendo. Ele assumiu a palavra,
como previ.
​― Ele não sabia por que não o alertei. – Murmurou.
​― E por que não o alertou? – Perguntei baixinho. – Eu sou um...
Demônio? – Sussurrei a última palavra.
​Arthur negou lentamente enquanto respondia.
​― Porque estava afoito com uma das visões do seu pai, me deixei
envolver. Estava tão distraído que não percebi o que estava para acontecer.
Falhei em proteger seu pai e sua mãe. E não, você não é um demônio, mas
filha de um... Filha de peixe, peixinho é. É o ditado. Também falhei,
acreditando que a escolha de seu pai era o Céu, e não o alertei quanto a
possuir maioridade angelical em seu sangue...
​― Que visão? – Perguntei com medo da resposta.
​― Não quero falar sobre isso. – Sussurrou. – O que importa é que sua
família morreu por minha culpa. – Ergueu os olhos me encarando e vi a dor
neles, quis abraçá-lo, mas não podia, então cravei minhas unhas nas palmas
das minhas mãos e me mantive no lugar.
​Pietro pigarreou e se levantou do sofá.
​― Você pode ser um anjo. – Começou e Arthur protestou. – Quer
cometer o mesmo erro de novo? – Gritou Pietro, olhando para ele.
​― Ela não tem um humano para escolher. – Devolveu.
​Ergui meus olhos para os dois, totalmente confusa com aquela
discussão. Pietro avançou na direção de Arthur, falando baixo, porém firme,
deixando-me emudecida e tremendo de medo.
​― E você acha que só um humano faz um anjo cair? Você é um
imbecil! Está cego! Não vê porque prefere se encolher na sua bolha de
amargura! Não sei como não foi substituído ainda!
​― Eu não estou fazendo nada disso! – Arthur avançou com o olhar
colérico.
​― Ah, não? E acha que não vejo como a olha? Acha que não sei o
que pensa? Não preciso ouvir seus pensamentos para saber.
​― Arthur... Pi...
​― Quieta, Suzanna. – Pietro nem me olhou ao dizer, senti que estava
com os olhos arregalados, temi que começassem a brigar de socos ali, diante
de mim. – Você acha que não sei como você se sente, mas eu sei exatamente!
Eu vivi isso! Eu caí, Arthur. Eu caí.
​ Eu sei! – Arthur gritou de volta, havia um brilho fino em sua pele e

sabia que era porque ele estava irritado, perdendo o controle, mas Pietro não
parou de falar e eu não sabia como cortar a conversa.
​― Amei duas vezes na vida, da primeira ela escolheu você e da
segunda também. Como acha que me sinto?
​― O quê? Do que você está falando? – Sibilou Arthur, precisei
estreitar os olhos para continuar olhando.
​― Veronique e Suzanna.
​Arthur avançou com a mão em punho para socar Pietro, mas ele
desviou rapidamente, deixando o anjo se desequilibrar e quase cair com o
rosto no chão.
​― Nenhuma delas me escolheu. – Resmungou Arthur, virando para
ele ao se firmar novamente. – A Veronique amava você, ela era uma criança
autista, apenas ficou impressionada com uma criatura voando no seu quintal.
​Pietro trincou os dentes, apertou os olhos e respirou bem fundo.
Troquei de cadeira, desviando do caminho deles, não queria que brigassem,
mas não sabia como pará-los.
​― Ela te amou, Pierre. – Havia tanta dor na voz de Pietro que senti
meus olhos ardendo e as lágrimas embaçaram a visão. – Você não estava lá,
não viu, eu sim. Todos os dias ela olhava na direção em que viu você e
apontava, esperando que aparecesse. E, quando chegava, ela se iluminava,
sorria, parecia feliz. Senti-me traído, agi irracionalmente, desejei sua morte
tantas vezes que perdi as contas. Quando minhas asas queimaram, agradeci
pela dor, porque ela me distraiu do que senti quando ela partiu.
​― Pietro... Ela não me amava. – Arthur parecia mais calmo agora,
não brilhava e tinha um olhar compreensivo para o irmão.
​― Ela morreu olhando na direção do jardim onde você apareceu
naquele dia. Apontou, soltou um lamento e fechou os olhos, já sem vida.
​― Oh, meu Deus! – Exclamei, colocando as mãos nos lábios, nenhum
deles prestava atenção a mim.
​― Irmão, ela não me amava. – Balbuciou Arthur, vencido, era nítido
que ele não tinha mais certeza em suas palavras. Mas, Pietro não tinha
acabado.
​― Então, caí, fiz todo o possível para ser punido no Inferno, mas nem
as punições que vivi lá me ajudaram a parar de sentir. A deixar de desejar ter
morrido com ela ou não ter visto que seu último suspiro foi para outro. –
Arthur ameaçou falar, mas Pietro o repreendeu, erguendo uma das mãos. –
Aprende a escutar, porra! – Respirou fundo, fechando os olhos e voltou ao
tom melancólico. – Séculos depois, fui designado a ensinar uma alma pura a
ser um demônio e, por mais que eu fosse um deles, tinha princípios e me
neguei, mas o senhor do Inferno sabe bem a fraqueza de cada súdito dele e
me convenceu com uma única informação: Essa alma pura e infantil é amada
por meu irmão... Sabemos que sempre te persegui, que arranquei o máximo
de almas que pude das suas mãos... Esse só foi um incentivo a mais.
​― Eu sabia que era de propósito. – Comentou Arthur com um
lamento sofrido.
​Os dois sorriram, cúmplices, mas não havia humor, apenas uma
constatação dos fatos. Pietro continuou a explanação e parecia distante dali,
no passado.
​― Vigiei a família da Suzanna de perto, o caído se negava a aceitar
sua nova condição e conseguiu por algum tempo ser protegido. Você sabe,
ele tinha a influência do sangue humano.
​― Como assim? – Questionei.
​― E por alguns anos não consegui me aproximar, então apenas vigiei,
a vi crescer, até ajudei em alguns momentos quando ela precisou. Sentia-me
seu anjo da guarda. – Ignorou minha pergunta, porém olhou na minha direção
e ruborizei. – Lembrei-me do meu propósito quando era um anjo de luz. Ela
não mudou apenas a mim, mas a muitos depois de mim, que foram enviados
no meu lugar. Nenhum conseguiu resgatar seu lugar no Céu, mas não
aceitaram mudá-la ou incentivá-la a ser má. Alguns até mudaram seus
padrões, negando-se a maldades extremas.
​Estava boquiaberta ouvindo aquilo, queria entender, mas as palavras
pareciam absurdas demais.
​― Você quer dizer que... – Começou Arthur, olhando para mim
também. Ergui os olhos sem entender.
​― Ela é pura.
​― E influente.
​Ambos se encararam boquiabertos.
​Queria saber, mas percebi que não adiantaria perguntar, estavam
alheios a mim, o que restava era ouvir e esperar.
​― Influência... Acho que você tem razão. – Comentou Pietro,
olhando-me de viés, depois pareceu lembrar que estava contando uma
história. – Fiz algo que não deveria quando nenhum outro a vigiava junto
comigo, invadi seus sonhos na tentativa de descobrir mais de seus segredos. –
Tanto eu, quanto Arthur, soltamos exclamações repreensivas. Pietro deu de
ombros, continuando. A esta altura, estávamos os três sentados, ele no sofá e
nós dois em volta da mesa. – Este é um dom que consegui manter com
treinamento e muita insistência. Percebi que Suzanna tinha sonhos com você
e foi assim que descobri que também a vigiava, porque não era possível que
ela sonhasse com alguém que nunca viu. Acabei ganhando foco com isso e já
não agia mais como um demônio com princípios, mas como um irmão ferido
que queria vingança. – Confessou. – Aceitei o trato de ensiná-la a ser um
demônio e passei dois anos influenciando sua mente, tentando confundi-la,
invadindo seus sonhos para dar pesadelos e assim ela se distrair e cometer
pequenos pecados como murmurar, mentir, se esquivar, mas foram poucas as
vezes que deu indícios que estava tendo sucesso na minha empreitada.
​“Quando ela completou sete anos sabíamos que seria a primeira
chance de a resgatarmos. Lúcifer convocou o pai de Suzanna para o Inferno e
relatou que ele teria de deixar a menina aos meus cuidados para que
aprendesse a ser imortal. Não deu opções, apenas comunicou sua decisão. –
Direcionou a informação a mim. Estava tão perplexa que apenas assenti com
a cabeça – Mas, ele não era homem de abrir mão da esposa, não seria do tipo
que abriria mão da filha. Ele fugiu”.
​― E você provocou o acidente. – Comentei.
​― Não foi proposital. – Sussurrou. – Na verdade, não era nesse ponto
que eu queria chegar quando comecei. – Suspirou, passando a mão nas
têmporas e esfregando. – Apesar de querer prejudicar o Pierre e fazê-lo
sofrer, não queria que você fosse levada para o meu mundo, ali não existe
trégua, apenas dor e sofrimento. Você vê seus órgãos queimando e se
refazendo, para queimar de novo. Não queria compartilhar isso com você,
então procurei seu pai, relatei um plano absurdo e, mesmo a contragosto, ele
aceitou, mas, no último momento, desistiu, talvez por não confiar em mim.
​― Que plano?
​― Forjar o desaparecimento de todos vocês.
​― E o que deu errado? – Perguntei.
​― Ele fugiu. Fugiu de mim e do Pierre, porque ele sabia que seu
futuro estava marcado se ele estivesse por perto, aquela visão de que vocês
cairiam caso ficassem juntos. – Suspirou cansado. – Ali, eu vi mais uma vez
que não adiantaria esforço algum, no fim, você seria dele, assim como
Veronique foi dele. – Parecendo se lembrar do que estava confessando, Pietro
virou para Arthur. – Não é fácil simplesmente perdoar e esquecer que amei
duas vezes e duas vezes fui rejeitado porque você é muito melhor do que eu;
então, meu irmão, não cometa os mesmos erros que eu cometi. Não guarde
rancores, não se isole. Sabe qual foi o meu terceiro delito para que minhas
asas queimassem e eu me tornasse um caído?
​― Amaldiçoou a Deus. – Afirmou.
​― Também. – Pietro respirou bem fundo. – Odiei você, me irei, quis
matá-lo com as minhas próprias mãos.
​― Pecado capital... – Percebi.
​― Sim. – Pietro virou-se para mim e percebi que seus olhos estavam
banhados por lágrimas, me levantei e me lancei em seus braços, o abraçando
com todas as minhas forças. – Mas, de que vale odiar se a vida me tiraria
momentos como esse? – Ele sussurrou, afagando meus cabelos e me
aninhando em seu colo como a um bebê.
​― P, eu te amo! Não se condene dessa forma... Sei que você tem um
bom coração, agora eu sei, e também sei que, como eu, a Veronique também
te amou, ela só não sabia como dizer. – Sussurrei, Pietro começou a limpar as
lágrimas do meu rosto e beijou meus olhos, depois a bochecha e, quando foi
chegar aos lábios, desviei minimamente, sentindo mesmo assim o calor da
sua respiração neles.
​― Você me ama, Suzanna? – A voz saiu grave e novas lágrimas
escorreram por meu rosto, ouvi um lamento que não sabia se saiu de mim ou
dele.
​― Amo. – Confessei. – Fiquei com raiva por tudo, mas... Não consigo
guardar rancor. Eu te amo, Pietro. – Arrastei o nome dele e senti os lábios
colarem aos meus, demorei a perceber que entendeu da maneira errada e me
afastei delicadamente, abrindo meus olhos e tocando sua face com uma das
mãos. – Realmente te amo, mas não como você espera. – Lamentei.
​Uma lágrima grossa despencou dos olhos dele, que sorriu apesar de
ver a dor no fundo de suas pupilas.
​― Eu sei. – Ergueu o rosto e franziu o cenho. – Cadê o Pierre?
​De repente, percebi que Arthur estava assistindo a tudo e, se não
ouviu até o final, com certeza acharia que não o amo, que apenas o usei como
válvula de escape. Gemi chorosa, me levantando.
​― Deve ter voado. – Conclui. – Se ele ouviu só até a metade... –
Comecei.
​― Vou encontrá-lo. – Pietro beijou minha testa e disparou porta a
fora, não o vi pelas paredes de vidro, talvez por suas asas serem negras como
a noite.
Capítulo 17

​Fiquei estática por algum tempo, sem nenhuma reação, mas então
percebi que não adiantaria ficar olhando para a porta, esperando que eles
entrassem a qualquer momento. Na verdade, precisavam conversar a sós,
colocar os pingos nos is, e eu estava atrapalhando a reconciliação deles.
Preocupava-me com Arthur, mas tinha certeza absoluta que tudo se
resolveria, afinal sabíamos que ele não queria perder suas asas. Apeguei-me a
isto quando comecei a procurar o que cozinhar para o café da manhã. Estava
faminta e o sol despontava no horizonte.
​Os armários estavam repletos de alimento, como se alguém realmente
morasse ali, perguntei-me se não era a casa do Pietro. Assim como Arthur
tinha uma cabana na floresta, ele poderia muito bem morar aqui, na praia.
​Havia preparado ovos mexidos, panquecas, leite, café e suco natural
de laranja. Beliscava uma panqueca quando entraram pela porta da cozinha.
Corri até Arthur e o abracei com pressa, sentindo meu coração quase saltar
pela boca. Ele demorou a retribuir o abraço, mas o fez com um suspiro
cansado.
​― Para de sair sem avisar, você me deixa preocupada! – Reclamei.
​― Sei me cuidar. – Afastou-me e foi na direção dos quartos. – Vou
dormir um pouco, você vigia?
​Pietro me olhou e depois confirmou com a cabeça.
​― Vigio.
​― Come alguma coisa... – Sussurrei chateada pelo modo frio que me
tratou.
​Ele olhou na direção da mesa, depois me encarou. Seus olhos estavam
distantes, apagados. Umedeceu os lábios e elevou os olhos como quem
procura o que dizer.
​― Anjos não comem isso. – E saiu, sem mais nem menos.
​Fiz um bico, segurando o choro. Em menos de dois segundos, Pietro
estava à minha frente, levando-me para sentar junto à mesa.
​― Eu como, deve estar delicioso. – Sussurrou. Após me colocar
sentada, acomodou-se ao meu lado e cortou um pedaço da panqueca que eu
beliscara antes, fez um som aprovando o sabor e me beijou no rosto. – Você
cozinha como um anjo!
​Precisei rir.
​― Isso significa que está comível?
​― Essa palavra existe? – Ele riu. – Está sim, uma delícia, Suzaninha.
​― Acho que existe. – Duvidei, mas sorri pela tentativa dele de me
animar. – O que anjos comem? – Pietro estava diferente, não sentia mais um
peso no peito quando estava por perto, era fácil conversar com ele, fácil tocá-
lo, fácil sorrir para ele, ao contrário de Arthur, que me fazia sentir pisando em
ovos o tempo todo. Suspirei e não percebi que estava encarando Pietro até ele
estalar os dedos perto do meu rosto.
​― Terra chamando Suzanna! Terra chamando! Você nem ouviu a
minha resposta.
​― Sobre o quê? – Ri sem graça.
​― Anjos se alimentam da natureza: frutas, legumes, luz solar... Essas
coisas. – Sussurrou.
​― Podemos sair? – Cortei. Olhava além dele, para a paisagem. A
praia estava iluminada, o sol alto no horizonte, as ondas quebrando
preguiçosamente na orla.
​― Claro. – Lançou um olhar na direção dos quartos e se levantou,
colocando mais um pedaço de panqueca na boca. – Só vou avisá-lo. – Falou
de boca cheia.
​― Tá.
​Andei atrás dele tentando não fazer barulho, queria ouvir o que Arthur
diria sobre sairmos. Pietro deu um soquinho na porta e entrou, o anjo havia se
instalado no quarto em frente ao que era o meu quando fui cativa.
​― Vamos andar na praia, quer ir?
​Houve um resmungo e Arthur puxou o ar com tanta força que pude
ouvi-lo.
​― Não vou segurar vela. Podem ir.
​― Cara, já falamos sobre isso. – A porta se fechou e a voz dele foi
abafada, espremi a orelha contra a madeira para ouvir. – Eu a tinha sob
encantamento, ela não estava apaixonada por mim, ela ama você. Só um cego
não vê isso.
​Encantamento? – Pensei. – Então, é por isso que de repente não senti
mais nada... – Conclui espantada.
​― Ela falou que te ama. – Resmungou Arthur.
​― Como amigo. Você só pode ter problema. – Irritou-se Pietro. – Não
vou ficar aqui aguentando suas reclamações. Eu a amo, sei que ela não me
ama, mas não estou me escondendo dentro de um quarto, deixando que outro
possa conquistar seu coração porque me fiz ausente. Diferente de você, eu
luto pelo que eu quero.
​― Quer dizer que vai reconquistá-la? – O sussurro saiu alguns tons
acima do normal, me permitindo ouvir.
​― Não, meu irmão. Vou conquistá-la de verdade, pela primeira vez.
​Percebi que a voz ficou mais forte e sabia que abriria a porta. Saí
correndo para a sala e me sentei no sofá, perdendo o fôlego. Pietro apareceu e
piscou para mim, estendendo a mão como um convite.
​― Avisou? – Disfarcei.
​― Ele nos desejou um bom passeio. – Mentiu.
​― Achei que anjos não pudessem mentir.
​Saímos da casa de mãos dadas, estava muito quente do lado de fora,
mas, como não tinha outra roupa a não ser o moletom que estava vestindo,
não reclamei.
​― Tecnicamente, não menti, já que você sabe a verdade porque ouviu
atrás da porta. – Ele riu. – Mas, podemos mentir. Só não devemos.
​― Ah... – Ruborizei. – Desculpe.
​― Eu também sou curioso, não precisa ficar envergonha. –
Entrelaçou os dedos aos meus, guiando-me pelo caminho que fizemos da
última vez, olhei em volta e as marcas da luta estavam ainda nas árvores.
​― E aquele demônio que tentou usar você e a Demetria? Ele não virá
atrás de mim?
​― Persus?
Confirmei.
– Talvez.
​― Então, por que viemos para cá?
​― É o lugar mais seguro no momento e quase ninguém sabe que
moro aqui. Além do mais, é protegido. Dificilmente alguém que não saiba
deste local o encontra.
​― Já encontraram antes! – Lembrei, paramos de andar porque eu
havia parado e gesticulava muito enquanto falava, me sentia a beira de um
colapso.
​― Ei, ei, o que há? Acalme-se Suzanna! – Ele estendeu as palmas
para cima e foi se aproximando, parei de chacoalhar o corpo e encarei aqueles
olhos escuros.
​― Está tudo uma verdadeira bagunça. – Murmurei.
​ le me envolveu e abraçou, e da forma que o nervosismo chegou, de
E
repente, foi embora.
​― Só queremos protegê-la, prometo que daqui alguns dias você terá
sua vida de volta.
​― Não prometa o que não sabe se vai cumprir.
​― Eu sei que vou morrer tentando. – Sussurrou com a boca em meus
cabelos.
​Por que ele não podia estar aqui me acalmando, ao invés de Pietro?
Perguntei-me angustiada, abraçando o anjo com um pouco mais de força.
​― Não queria que ninguém se machucasse por minha causa. –
Choraminguei. – Deve haver algo que eu possa fazer para acabar com isso.
​― Hoje é seu aniversário, não se preocupe demais.
​Ri baixinho, ele tinha razão, ainda era meu aniversário. Respirei fundo
e me afastei, estendendo a mão para segurar a dele. Voltamos a andar sem
pressa e não muito próximos ao mar, chegamos quase ao fim, num
aglomerado de rochas, e nos sentamos.
​Ele se sentou e me convidou. Imediatamente, fui levada à lembranças
na árvore no jardim dos Santos e acredito que ele pensou o mesmo, pois abriu
as pernas batendo no chão a frente dele. Sentei-me entre elas, de costas, e
deixei que me acomodasse a seu peito. Não namorava ninguém para me
sentir culpada por aceitar o aconchego. Observei o mar, sentindo o carinho
que me fazia nos cabelos e no rosto e senti uma vontade louca de chorar, mas
contive, me focando a arrumar algum assunto para quebrar o silêncio.
​― P.
​― Oi, gatinha. – Riu.
​― Bobo... – Dei um tapinha em sua perna. – Por que você disse ao
Arthur que eu estava sob encantamento? – Antes que respondesse, emendei. –
E por que você era gelado, sendo que era um caído?
​Ele riu e tocou minha bochecha com o polegar, acariciando.
​― Vamos por partes, curiosa. Todos os seres inferiores são gelados,
mas, quando ficamos nervosos ou estamos usando nossos dons, ficamos
quentes. Os anjos geralmente têm a temperatura de um humano. – Balancei a
cabeça, entendendo a informação. – Sobre o encantamento... Hmm, os
demônios ou anjos caídos tem uma espécie de magnetismo que atrai o
humano para si, sendo homem ou mulher. Ele pode usar desse artifício para
ganhar confiança e conquistar sua presa, alguns nem precisam fazer isso, pois
a pessoa já está predisposta a fazer o errado, não precisa nem de um
empurrãozinho.
​― Caramba.
​― Pois é. A humanidade está em decadência. – Sussurrou pesaroso. –
Quando a vi no jardim, usei esse... Ann... Charme, para que você não
corresse de medo. Nem era para ter me notado para começar, mas você é
praticamente um anjo, então não fiquei oculto o suficiente por ser um caído
na ocasião. Imediatamente nos ligamos. Depois, foi fácil manipular seus
sonhos, ter acesso livre aos seus pensamentos e desejos. Você é um livro
aberto.
​― Mas... Eu me sentia realmente apaixonada, mesmo depois que
Arthur me ensinou a bloquear os pensamentos.
​― A sugestão que usei em você foi muito forte, somente um amor
verdadeiro para quebrar, mesmo que eu não estivesse mais por perto para
influenciar você.
​Abri a boca surpresa e olhei instantaneamente para a casa,
perguntando-me quando tinha me dado conta que amava Arthur e quando
esse amor se tornou tão verdadeiro que desfez o encanto com Pietro.
Parecendo ler meus pensamentos, ele respondeu.
​― Só ele não percebeu ainda, mas eu sabia, desde que você fugiu de
mim no meu quarto. Você queria dormir comigo, mas não fez, as palavras
dele eram mais fortes no seu inconsciente. – Olhei para o Pietro, espantada. –
Sabe Suh, nós nos deixamos influenciar por quem amamos e geralmente a
opinião desta pessoa pesa mais em nossas decisões. – Explicou.
​― Meu Deus... – Olhei novamente para a casa, o sol não me
permitindo enxergar dentro e saber se Arthur deixou o quarto. Encarei Pietro.
– Quer dizer que eu já amava o Arthur e nem sabia?
​― Geralmente é assim. – Tocou meu nariz com a ponta do dedo e
sorriu. – Mas, preciso te alertar de uma coisa.
​― Tá bom. – Soei temerosa.
​― Ele não vai ceder, não porque não te ame, ao contrário, é
justamente porque te ama. Está amargo. Acha que você me ama e que deve
sair do caminho para que você seja feliz e perceba o que sente.
​― Mas...
​― Eu sei que ele está errado e queria muito que estivesse certo. –
Acrescentou.
​Baixei o olhar, triste por saber que qualquer que fosse a minha
escolha, sempre um deles sofreria por minha culpa. Encostei o rosto no peito
de Pietro e suspirei profundamente.
​― De qualquer modo, não podemos ficar juntos mesmo. – Amassei a
camisa dele com uma das mãos ao precisar sentir mais aquele abraço. Pietro
me envolveu e começou a rir. – O que foi?
​― Vocês dois são muito burros. – Encarei-o confusa. – Você notou o
que descobrimos hoje? – Fiz que não. – Suzanna! – Ele riu mais ainda.
​― Fala Pietro, você está me deixando zonza!
​― Você é...
​Mas, ele não concluiu. Um zunido alto cobriu a voz e uma sombra
pesada nos fez olhar para cima. Levantei-me, cambaleando para trás ao ver
diante de mim a visão que tive semanas antes. Um exército de vultos negros
nos sobrevoava, corri os olhos na direção da casa e vi Arthur abrindo as asas
e voando na nossa direção, comecei a correr para interceptá-lo e senti Pietro
me seguindo. Encontramo-nos no meio, assombrados e sozinhos diante
daquele exército.
​― O que é isso? – Gritei acima do som.
​Arthur gritou algo que não consegui ouvir, mas acompanhei o olhar
assustado de Pietro. Atrás da casa, surgia Havi, um exército de crianças-
demônio e demônios com pele vermelha e rostos transfigurados.
​Era praticamente a visão que tive semanas atrás, mas tinha que
acontecer no meu aniversário e quando estávamos totalmente isolados do
mundo, sem ninguém para ajudar.
​Arthur me puxou protetoramente para o seu lado, usando uma das
asas para cobrir minhas costas e o braço à minha frente. Ele e Pietro gritavam
instruções numa língua que não compreendi, mas parecia de anjo, era cantada
e não falada como o português.
​Estávamos cercados.
​Havi se adiantou à frente das crianças, fez um sinal com uma das
mãos e o som alto, que estava me deixando surda, cessou imediatamente. O
silêncio era tão grande que ouvia minha respiração acima das ondas.
​― Enfim, encontramos a ovelha desgarrada. – Apontou para Pietro,
que estava às costas de Arthur, posicionado para lutar.
​― O que quer, Havi?
​― Duas coisas insignificantes. – Enumerou nos dedos. – A menina e
você. – Sorriu.
​Estremeci por completo e senti Arthur enrijecer. Por conhecê-lo,
imaginei que duvidava ainda da mudança de Pietro e quase o soquei quando
ele me afastou do anjo discretamente. Pietro ou ignorou ou não reparou,
fixando os olhos em Havi.
​― Quem está no comando? – Questionou.
​― Ora, duvidas que fui elevado?
​― Não duvido, apenas sei que ele não é tolo. És bem capaz de
rebelar-se a usurpar o trono. – Desdenhou. – Quem está no comando? –
Repetiu.
​Havi tinha os lábios repuxados, raivoso. Olhou adiante onde estavam
os anjos caídos envoltos em suas neblinas. Arthur e eu nos viramos na mesma
direção e Persus surgiu à frente deles, sendo elevado pela neblina de dois
caídos. Abri os lábios, aflita com a visão.
​― Então... – Começou Persus com desdém. – Finalmente, conseguiu
se juntar ao fracassado do seu irmão, Hyelijah?
​― Não use esse nome! – Alertou Pietro, percebi que tanto ele quanto
Arthur prenderam o ar ao ouvi-lo.
​― Já sou um condenado, meu amigo, não há o que temer.
​― O que você quer? – Gritou Arthur às minhas costas.
​Persus fez um gesto cansado com as mãos e balbuciou um blábláblá
preguiçosamente, depois encarou-nos com olhos vermelhos como fogo.
​― A menina e o garotão. – Riu de alguma piada que só ele entendeu.
– Hyeljjah.
​― Você sabe que não pode dizer nossos nomes na frente de humanos.
– Advertiu Arthur com um rosnado.
​― Você vê algum hu-ma-no aqui? – Silabou.
​Pietro me lançou um olhar rápido e compreendi o que ele dizia; eu
não era humana, mas Nefilin, e eles tinham um nome de anjo que não era
Pietro ou Pierre, como acreditei todo esse tempo. Não houve tempo para
assimilar a nova informação. Persus deslizava para a areia da praia como se
aquela neblina densa pertencesse a ele e o obedecesse. Imaginei que dava
ordens telepaticamente a seus subordinados. Ele deu alguns passos e nós três
recuamos, os anjos me mantendo entre eles e suas asas, eu mal enxergava
através das penas negras e acinzentadas.
​Um borrão vermelho, porém, me fez parar de recuar. Senti a aspereza
das penas roçando meu rosto, mas não via nada, era como um dos sonhos
onde o cinza-nublado se tornava rubi como sangue e o vento gelado fazia-me
sentir tonta. Não vi mais nada, não havia praia ou um lugar onde estivesse
realmente. A música rebateu em meus tímpanos e sabia que estava na festa de
gala que sonhei há quase um mês. Tentei chamar um dos meus guardiões,
mas minha voz estava presa, minha boca seca e pastosa, uma mão fervendo
roçou meu quadril e me puxou violentamente.
​― Você me pertence, Nefilin, não tente reagir. – Não reconheci de
imediato, mas a respiração sensual me fez imaginar o demônio que me
prendia a ele. O cheiro de enxofre começou a adentrar minhas narinas, me
deixando completamente zonza.
​― Solte-me!
​― Dance. – Ordenou.
​A imagem se desfez para a sala que vi em meu sonho, borrões de
pessoas dançando, olhos cinzentos me encarando de perto, uma força
sobrenatural me obrigando a mover os pés numa valsa estranha, em câmera
lenta. O toque dele ardia, queimando meu vestido e minha mão, onde ele
tocava. Tentei me desvencilhar, mas fui presa com fúria contra seu corpo
febril.
​― Solte-me! – Gritei de novo.
​Suzanna, é uma ilusão, lute para voltar à praia! Ouvi a voz de Arthur
em minha mente, mas parecia ecoar no recinto. O demônio alheio a ela.
​Pensei na praia e na luta que certamente acontecia e que
provavelmente estaria desacordada, atrapalhando meus anjos de lutarem.
Usando todas as minhas forças mentais e físicas, afastei Persus de mim e o
arranhei no rosto. Imediatamente o barulho ensurdecedor dos caídos me fez
notar que voltei para a praia. Eles estavam lutando e, como previ, tanto
Arthur quanto Pietro tentavam me proteger, lançando bolas de luz contra os
caídos que tentavam avançar para nos matar.
​De pé, gritei acima do som.
​― Obrigada! – Arthur me olhou e sorriu pesaroso, mas havia
admiração em seu olhar.
​Uma bola de fogo quebrou nossa concentração, pulei para trás e vi
quando Arthur e Pietro saltaram para lados opostos, ambos imediatamente se
virando na minha direção.
​― Cuidado, Suzanna! – Um deles gritou e, ao me virar, outra bola de
fogo estava se aproximando.
​Recebi-a e devolvi imediatamente, lembrando-me dos jogos de vídeo
game que jogava com a Bruna quando éramos mais novas. A ação, por mais
impensada que fosse, deu certo e me vi contra-atacando o exército de Havi.
​Surpresa, quase não reagi quando ambos gritaram, incentivando-me a
lutar.
Capítulo 18

​ gi sem pensar, reagindo para me proteger das investidas, tanto dos


A
demônios quanto dos anjos caídos. Talvez por ter assistido inúmeros filmes
sobrenaturais, havia algo em minha mente me impulsionando a fazer tudo o
que tantos personagens aprenderam na teoria. A diferença é que era a vida
real e era a minha vida e das pessoas que eu amava que estavam em perigo.
​Havi fez um gesto brusco com o braço e as crianças-demônio
avançaram para nós, corri na direção deles também, não tinha habilidade
física para pular ou rodopiar como Arthur e Pietro faziam em suas lutas, nem
por isso recuei. O mar estava ficando revolto à minha esquerda, as crianças
estavam a apenas alguns passos de distância, então parei, olhei uma onda que
se formava, alta e robusta, a recolhi mentalmente e lancei na direção dos
demônios, em seguida voltei a correr, usando a terra como o próximo
elemento e orando internamente para que a areia da praia fosse considerada
terra.
​Num gesto ligeiro, pois eles estavam muito próximos, uni a terra à
água do mar, a lama caiu sobre os demônios pesada e grosseiramente,
praticamente enterrando-os embaixo dela.
​― Meu Deus! – Gemi agitada, mas decidi continuar agindo sem
pensar.
​Havi escapara da armadilha, estava exaltado, gritando para os que
tentavam se soltar da lama. Não esperei, corri de volta para me juntar aos
anjos.
​― Como você fez aquilo? – Gritou Pietro acima do som, ele arqueou
o tronco e lançou-se para frente, fazendo uma lufada de ar derrubar alguns
caídos que avançavam sobre nós.
​― Não tenho ideia. – Respondi aflita, pois não sabia mais o que fazer.
– Eles vão vencer. – Sussurrei. – Cadê suas flechas?
​― Acredite, Suzanna, a ajuda vai chegar. – Incentivou Arthur bem
próximo, seus olhos estavam arregalados, mas tentava transmitir segurança.
​Pietro não respondeu sobre as flechas, ocupado em lutar.
​Persus não estava em lugar nenhum e percebi que os demônios
estavam recuando, andando pesadamente com a lama sobre seus corpos. Havi
também recuava e pressenti que algo pior estava por vir.
​ ― Eles estão recuando. – Avisei baixinho e, imediatamente, eles
olharam para trás.
​― Duvido que seja porque vencemos. – Comentou Pietro ofegante.
​― Precisamos de ajuda. – Em seguida, Arthur cantou uma letra
melodiosa. Não consegui assimilar, mas entendi que era na língua deles,
parecia hebraico.
​Pietro estendeu as asas, me pegou pelos quadris e alçou voo.
​― Vem, Pierre! – Gritou para o irmão.
​Envolvi as mãos no pescoço dele, percebendo como passou
facilmente pelos anjos caídos, e sobrevoamos bem acima das nuvens, mas
nenhum voou atrás de nós. Abracei Pietro com vontade, sentindo o
nervosismo convulsionar meu corpo. As mãos quentes de Arthur tocaram
minhas costas e fui entregue a ele, o mínimo contato me fez estremecer.
Abracei-o ainda mais forte e senti que ele fez o mesmo.
​― Obrigado. – Disse a Pietro. – Suzanna, não estamos a salvo ainda,
é só um fôlego. Não sei mais o que faremos, não podemos simplesmente
fugir.
​― Eu sei e também cansei de fugir. – Sussurrei.
​― Você foi incrível! – Disse Pietro. Estava tenso e quando o olhei
percebi que, apesar da conversa, ambos olhavam para baixo, para a praia.
Não relaxaram em nenhum momento.
​― Confesso que não tenho ideia de onde aquilo tudo surgiu.
​― Instinto de anjo. – Explicou Pietro.
​― De quase anjo. – Sussurrei.
​― Não disse que é um anjo como seu pai, mas pode vir a ser. Ser
possuidora deste privilégio. – Sussurrou. Eu já sabia que deveria escolher,
por isso não me espantei. – Há coisas entre o Céu e a Terra que ninguém
explica, só Deus mesmo para saber.
​Olhei para Arthur e havia um brilho diferente em seus olhos, não
consegui entender ou definir, ele apenas pressionou os lábios contra os meus
e em seguida me abraçou. Retribui o abraço, olhando discretamente para
Pietro, que pareceu perder a cor. Ele pigarreou nos dando as costas.
Internamente, quis me matar por fazê-los sofrer tanto. Afastei Arthur
discretamente e olhei Pietro mais uma vez, para que ele entendesse, mas a
reação foi contrária a que imaginei.
​Ele voou até Pietro e o obrigou a me segurar, mesmo com o anjo
negando veemente, pareciam discutir por telepatia.
​ Bem que eu queria ter asas nesse momento! – Gritei enfurecida,

envolvi o pescoço de Pietro e me lancei, ele me segurou sem rodeios. – Você
é um babaca. – Fuzilei Arthur com o olhar.
​Beija-me e depois rejeita, por pouco não soltei tudo o que estava me
engasgando. Respirei bem fundo. Ninguém falou mais, mas senti que havia
uma tensão palpável entre nós. Assim que essa guerra acabar, me afastarei
deles.
​― Chegaram. – Sussurrou Pietro.
​Olhamos para a praia e uma nuvem branca avançava na direção dos
caídos. Arthur riu e me encarou.
​― Eu disse para acreditar.
​Não correspondi ao sorriso, olhei para o Pietro.
​― E nós ficamos só olhando?
​― Quer lutar, baixinha?
​― Quero. – A raiva estava me consumindo e, se não distraísse minha
mente, acabaria atacando Arthur verbalmente e o magoando ainda mais.
​― Então, vamos para a festinha! – Comemorou.
​― Não pode levá-la até lá de novo! – Interceptou Arthur, barrando a
manobra que Pietro começava a fazer para descermos.
​― Ela sabe se cuidar.
​― Não como nós!
​― Ela quer ir!
​― Você não pode arriscar sua vida assim, Suzanna. – Esbravejou
Arthur.
​― Não podemos deixar outros morrerem no meu lugar. Eu quero ir!
​Encaramo-nos como se pudéssemos queimar um ao outro apenas com
o olhar, mas fomos obrigados a desviar a atenção quando uma bola de luz
passou muito próximo às asas de Arthur. Olhamos para a praia e os anjos
estavam sendo dizimados pouco a pouco. Gritei angustiada e Pietro começou
a descer, o vento cortando com força meu rosto, fazendo meus olhos
lacrimejarem. Passamos por uma fumaça negra que não sabia se era de fogo
real ou da neblina dos caídos e ficamos logo às costas dos anjos, que lutavam
tanto em terra como no ar.
​Pietro me largou e murmurou uma palavra cantada em meu ouvido,
senti um formigamento estranho desde a minha panturrilha até bombear meu
coração com tanta força que pareceu ferver meu sangue. Encarei-o, a
sensação não durou mais de um segundo.
​― Continue usando seu instinto. – Sussurrou e avançou para ajudar os
anjos.
​ arecia que, a cada momento, mais e mais demônios apareciam atrás
P
da casa. Agora, Nefilins como Havi, que podiam voar, estavam enfrentando
alguns anjos bem acima da minha cabeça. O choque dos corpos fazia um som
como de trovão ecoar por todo o lugar, ensurdecedor e agressivo. De todos os
lados, tinham anjos, demônios, caídos e Nefilins lutando, apenas eu
continuava alheia, tentando decidir o que fazer.
​Uma mão quente tocou meu pulso e me puxou violentamente para
cima, gritei e me chacoalhei, mas a risada me fez congelar e prestar atenção a
quem me segurava.
​― Solte-me, Persus! – Gritei.
​― Honestamente? Não sei o que nosso mestre viu em você. É toda
marrentinha e nem sabe voar.
​Com uma das unhas, traçou um corte no meu peito, transpassando o
tecido do moletom, arrancando um grito sofrido dos meus lábios. O corte ia
desde o pescoço até próximo ao seio direito. O demônio passou o dedo no
meu sangue e levou aos lábios, parecia testá-lo ao paladar. Enquanto fazia
isto, andava facilmente entre os que lutavam, uma áurea invisível
envolvendo-o e expelindo qualquer um que estivesse no caminho.
​― Solte-me! – Ordenei mais uma vez, voltando a me chacoalhar.
​Os olhos vermelhos se voltaram para mim, mas ele não disse nada
como imaginei, apenas os arregalou e puxou os lábios, exibindo dois caninos
enormes à frente. Franzi o cenho, confusa, mas sem coragem de falar nada,
pois ele começou a ganhar massa e volume, crescendo substancialmente e
comigo, agora pendurada de cabeça para baixo, sentindo meu próprio sangue
escorrendo pelo meu pescoço e ouvido.
​O que é isso? Pensei assustada, vendo-o modificar sua aparência
pouco a pouco. Chifres compridos, a cabeça parecendo um cérebro fora do
crânio, a pele avermelhada com manchas esverdeadas como se estivesse em
decomposição. O cheiro de enxofre me causando náuseas.
​Um urro passou por sua boca fazendo todos pararem de lutar e se
voltar para ele. Persus me colocou sobre o telhado da casa de vidro, mas me
sentei sem confiar nas minhas pernas. Olhei em volta, buscando os rostos
conhecidos de Pietro e Arthur e ambos estavam sangrando e com o olhar
apavorado.
​― Não sabia realmente porque meu mestre te queria. – Riu, virou-se
para os anjos, apontando um dedo enorme com uma unha grossa e cumprida,
parecia enegrecida com musgo e vermes estranhos. Estava na sua forma
demoníaca e não mais parecendo com um humano. – Ela não pertence ao
mundo de vocês. – Acusou. – É um demônio.
​― Não sou, não! – Gritei.
​― Seu sangue não mente. – Fuzilou-me, fazendo recuar sobre o
telhado ao sentir o calor de seu hálito ferver próximo dos meus pés. – Podem
desistir, a alma dela nos pertence e vocês sabem disso.
​― Não sou um demônio! – Gritei o mais alto que consegui, tentando
não desabar em lágrimas.
​Arthur e Pietro se entreolharam e me encararam de novo.
​Persus voltou-se para mim, parecendo entediado agora, pegou meu pé
e me ergueu com facilidade, gritei de novo sentindo meu corpo balançando
no ar, a blusa de moletom caindo num amontoado sobre o meu rosto.
​― Vamos.
​― Nãooo...
​A voz de Arthur sumiu assim como minha visão. Tudo ficou negro de
repente.

​ stava muito quente e o cobertor parecia pesado demais para suportá-


E
lo. Tateei preguiçosamente até empurrá-lo do meu corpo, mas nada
aconteceu. Gemi e insisti, mas ficou ainda mais pesado.
​― O que... Oh, meu Deus! – Tentei alcançar meus lábios quando me
expressei, mas senti meus punhos arderem quando puxei as mãos.
​Percebi com lentidão que estava presa entre duas pedras, amarrada por
algemas grosseiras, feitas de ferro retorcido e mal aquecido O que achei ser
um cobertor era uma espécie de demônio, que estava literalmente sentado
sobre mim, porém, nas pedras ao lado, me deixando ao meio sem ser tocada;
não muito tocada ao menos. Sabia que estava com os olhos arregalados e que
minha pulsação denunciaria que acordei, por isso fiz um esforço incrível para
me acalmar.
​Ergui a cabeça, tentando enxergar atrás, pois o demônio e as pedras
não me permitiam ver onde estava, e o que enxerguei foi tão surreal que perdi
os sentidos de novo.
​Uma labareda amarelada bruxuleou próximo do meu rosto, me
despertando mais uma vez. O demônio não estava mais sentado sobre mim,
havia uma claridade avermelhada acima, iluminando o local onde me
encontrava cativa. Mais uma vez, tentei olhar em volta das pedras. Estava
dentro de uma caverna, tinha quase certeza. Mas, parecia mais uma cratera
abaixo da terra, cortes profundos e mal feitos abriam passagem entre as
paredes de pedra e terra.
​Virei um pouco o tronco, olhando para trás. A imagem não me pegou
de surpresa desta vez, mas, do mesmo modo, senti uma náusea forte,
precisando estreitar os olhos. Havia uma brasa do tamanho de um homem,
tanto em altura como em largura; ela consumia todos os escravos que
passavam ali, chamuscando suas peles, deixando em carne viva até os ossos
e, assim que passavam, a carne se restabelecia. Era um ciclo. Pessoas
moribundas amarradas a correntes parecidas com as que eu estava presa,
grilhões prendendo seus pulsos e uma fila interminável, que não conseguia
enxergar onde começava, andava a passos extremamente lentos a fim de
adentrarem nessa chama. O cheiro de podridão e o som da dor tão profunda
que sentia, como se fosse em mim mesma, enchendo meus olhos de lágrimas
e deixando meu estômago em um estado lastimável.
​― A anjinha despertou.
​Virei-me rapidamente para encarar quem falava. Pelo tamanho de seu
quadril, logo soube que era o demônio que estava sentado sobre mim quando
despertei a primeira vez. O tom que usara era desdenhoso e sutilmente alto.
Tinha feições inumanas, uma cabeça enorme com um corpo que era o triplo
do tamanho de um homem comum, dois chifres muito curtos, quase
imperceptíveis, a pele no mesmo tom marrom-podre que vi na de Persus
quando se transformou. Seu hálito cheirando a feira depois do meio-dia,
peixe e frutas estragadas. Tentei prender a respiração, mas não adiantava, o
gosto impregnou meu paladar, só me restou pedir para não vomitar ou ficaria
ainda mais insuportável respirar.
​Ele aproximou os olhos vermelhos sobre mim, suas narinas se
expandiram brevemente, cheirando-me, o vapor quente de seu hálito
aumentando o suor que já molhava minha pele.
​― Onde estou? – Sussurrei corajosa.
​Um dos lados de seu lábio se ergueu em um sorriso estranho, ele
também possuía dentes pontudos e isso me fez imaginar até onde a
imaginação humana inventava vampiros ou, se não eram demônios que lhes
perturbavam a mente, criando mais criaturas para chamarem de suas em
nossa literatura. Parei de divagar quando ele esticou uma das orelhas
pontudas e virou o rosto para a minha esquerda. Segui o olhar, apreensiva.
Persus e outro ser, coberto por um manto dos pés a cabeça, se aproximavam.
​― Pode ir. – Ordenou Persus.
​Rapidamente o demônio se retirou, sem nem olhar para mim. Desviei
a atenção para o homem encapuzado, que ficou a uma distância de dois
metros enquanto Persus avançava. Sentou sobre a pedra olhando para dentro,
onde eu estava, tocou meu queixo e empurrou com força até bater minha
cabeça no chão abaixo de mim. Gemi de dor e ele riu.
​― Onde eu estou? – Perguntei entredentes, puxando meu queixo de
sua mão.
​― Não olhe, você não tem permissão para conhecer o seu lar ainda.
​Grunhi mas nada disse, fitando aqueles olhos e tentando não
transparecer meu medo. Onde estariam Arthur, Pietro e os outros?
​― Não a quero aqui. – Olhamos juntos na direção do homem
encapuzado, ele tinha a voz doce e tranquila, não condizente com o lugar
onde estávamos. Prestei atenção e percebi que não conseguia enxergar seu
rosto, o capuz mantendo uma sombra tremeluzente, ocultando cores e formas.
Seu corpo também parecia um enigma abaixo da capa escura que lhe cobria
desde a cabeça até os calçados, fechada à frente.
​― E onde a prendo, mestre? – Questionou Persus num tom
estranhamente devoto.
​― Solte-a.
​Ficou nítido que ele não concordou, porém, mesmo com aquele ar
irritado e as rugas profundas em sua testa, retirou de trás da calça um molho
de chaves estranhas e me soltou das algemas. Pressionei os pulsos, tentando
aliviar a dormência, e depois os calcanhares. O homem me encarou e eu
soube, mesmo sem ouvir ou ver, que deveria segui-lo.
​Persus não deixou a minha retaguarda durante o percurso de pouco
mais de dez minutos, numa descida constante. Arrastava-me, pois sentia
muitas dores nas juntas e no local onde recebi o corte em meu peito, além do
odor insuportável que estava atingindo a todo tempo o meu senso de direção.
Impaciente, o homem ordenou a Persus que me carregasse e, sem delicadeza,
ele me jogou sobre seu ombro. Depois disto, a descida foi mais rápida. A
escuridão e o calor chegaram com intensidade também. Tinha quase certeza
de que estavam me levando para mais fundo no Inferno.
​Sentia meu corpo balançando nas mãos daquele ogro do Persus, mas
não reclamei, o enjoo estava muito forte. Chegamos a um emaranhado de
paredes acinzentadas como rochas, lisas e com uma aparência sinistra por
causa das luzes alaranjadas bruxuleando sobre elas, era o fogo do Inferno,
presente em todos os lugares para onde se olhasse. O demônio me colocou no
chão depois que o encapuzado ordenou, ouvi o resmungo, mas não a ordem.
Tentei me firmar e cambaleei perdendo o equilíbrio, o estranho me segurou
tão firme que meu estômago gelou.
​Ergui meus olhos, ofegando.
​― Não deve ser difícil para uma garota manter-se em pé sozinha. –
Vociferou. – Erga-se. – Obedeci e me firmei, sentindo cada músculo meu se
retesando de raiva. – Agora entre.
​Ele não se movia, não era possível olhar seu rosto, nem ver sua
musculatura ou se apontou para algum lugar. Persus me empurrou nas costas
e entendi o recado. Andei até parar na frente de uma parede lisa, ela se desfez
anunciando uma espécie de gruta. Entrei, já que o homem estranho ordenou,
e senti o calor insuportável, o cheiro e o enjoo sumiram quando a escuridão
me engoliu.
​― Meu Deus... – Sussurrei quando consegui respirar direito e senti
minhas pernas vacilarem. Antes de sentir o impacto dos meus joelhos no chão
de pedra, um braço firme me segurou pelo quadril e me prendeu com força
contra ele. – O que é...
​― Cale a boca, Suzanna. – Sussurrou, a voz quente muito perto do
meu ouvido. Enrijeci. Meu corpo convulsionou trêmulo, sentia meus dentes
batendo um no outro e meu coração tão disparado que poderia saltar pela
boca. Ele me virou só com uma mão e me prendeu novamente. Ao encará-lo
percebi que era o homem encapuzado. Apesar da escuridão, havia um brilho
vermelho no fundo de seus olhos e a silhueta de sua vestimenta o denunciava.
​― O que você quer de mim? – Murmurei temerosa.
​― Você.
​Estava no Inferno e, pelo visto, o sentido literal era bem empregado
aqui.
​― Quer o que de mim? – Tentei raciocinar.
​― Seu corpo, em primeiro lugar. – Na voz, havia uma conotação
dolorida, como se isso fosse terrível para admitir. – Depois, sua devoção. –
Continuou no mesmo tom. – E, por fim, sua alma.
​Não consegui reagir, já ouvira tantas vezes que queriam minha alma
que isso nem me assustava mais, mas o meu corpo? Não conseguia decidir
nem quem eu queria me beijando direito quanto mais pensar em ser de
alguém, em fazer amor com alguém. Senti que ele abriu a capa, segurou
minha mão com a mão que não me prendia e me obrigou a tocá-lo. Assim
que senti a pele nua, gemi contrariada.
​― Não vou fazer... Isso... Com você! – Falei entredentes, tentando me
desvencilhar.
​― Por que não, Suzanna? – Obrigou-me a deslizar a palma, sabia que
era o abdômen, era definido, tinha gominhos e, quando ele respirava, sentia a
rigidez na ponta dos meus dedos.
​― Porque não é certo. Sou sua prisioneira e não sua... Concubina!
​― Concubina? – Ele riu, subiu minha mão por seu peito, seu aperto
era tão firme em meu pulso que não tinha opção, a não ser seguir o caminho
que ele impunha.
​― Não faz isso... – Sussurrei quando ele segurou minha mão e
começou a beijá-la, o toque era morno, apesar de eu crer que deveria ser frio
como Pietro me contou. Tentei puxar minha mão e ele mordeu com força,
arrancando lágrimas pesadas dos meus olhos.
​― No dia que você aceitar ser minha, a tiro daqui.
​― Quero ir agora. – Interrompi.
​Com um impulso forte, ele colou meu corpo ao dele. Como não
conhecia o ambiente, me surpreendi ao ser deitada sobre um colchão que não
parecia pequeno, pois não senti a borda onde terminava. Ele estava sobre
mim, rasgando meu moletom com um único movimento. Gritei e o empurrei,
mas foi firme, tirou meu seio para fora e por mais que puxasse seus cabelos e
me debatesse, sua boca estava em todos os lugares, sugando-me como se
alimentasse sua fome doentia. Gemi involuntariamente e assim seu quadril se
moldou ao meu, me obrigando a abrir as pernas.
​― Não! Sai! – Gritei novamente, empurrando-o, mas parecia um
louco, alternando de um seio ao outro, soltando sons horríveis, inumanos, de
prazer. Os soluços começaram a convulsionar meu corpo.
​― Cala a boca, Suzanna.
​Novamente aquela voz ecoou pelo cômodo, tão doce que era
impossível acreditar que pertencia a ele. Senti-me nua, minha calça também
havia sido rasgada, o que me restava era chorar e tentar empurrá-lo até não
ter outra opção. Continuei forçando meus joelhos a ficarem juntos e minhas
mãos em garras contra o seu rosto, acertei algumas vezes, mas não surtiram
efeito, seu dedo me penetrou e gritei tão alto que não percebi quando me senti
vazia, quente novamente, e o cheiro podre adentrando o ambiente escuro.
​Arranhei o vazio e minhas mãos cairam sobre o meu colo. Estava
deitada, mas não havia ninguém perto de mim. Tateei meu corpo, estava
completamente vestida.
​― O que foi isso? – Sussurrei para mim mesma, assombrada.
​Uma luz alaranjada iluminou a espécie de quarto onde estava presa.
Era uma cela com grades, mas feita dentro do que acredito ser uma rocha.
Não tive coragem de sair do lugar, era certo que ele estava brincando com a
minha cabeça e tinha conseguido deixar-me ainda mais apavorada. Encolhi-
me, apertando as costas na parede fervendo e toquei meu corpo por baixo do
moletom, procurando os machucados das mordidas e algum indício de que
ele me violara como mulher; nada, estava tudo normal. Intacto. Chorei como
uma criança, agarrada a mim mesma.
Capítulo 19

​ ão sei dizer a quanto tempo estava ali, pareciam dias intermináveis.


N
Acordava e dormia com uma frequência agradavelmente alta, já que ficar
acordada trazia novas ilusões e me fazia recordar que estava esquecida no
Inferno. Algumas vezes, peguei-me pensando na palavra que o Pietro usou,
cantando no meu ouvido, pois logo depois Persus testou meu sangue,
alegando que eu era um demônio. Será que ele teria dito que sou um, ou me
protegido para não perceberem que sou quase um anjo?
​Minhas teorias malucas estavam me enlouquecendo mais do que saber
que a qualquer momento aquele homem estranho voltaria, e eu não fazia ideia
do que ele pretendia comigo.
​Senti o calor precedê-lo e me encolhi contra a parede novamente.
Minha teoria anterior estava certa, era uma cama de casal, mas nada comum.
Era de pedra com um colchão feito de algum material estranho. Tinha
encontrado em um canto da cela um buraco no chão para as necessidades
humanas e uma pia com água quase fervente. Aqui tudo era quente acima do
normal, isso me fez lembrar que estava apenas com a regata branca coberta
de sangue seco e não com a parte de cima do moletom. Vesti-o, já que não
queria ele tentando me tocar de novo, mesmo que fosse minha imaginação.
​A grade foi aberta por uma espécie de espectro. Eles estavam por toda
a parte, mas antes achava ser parte das ilusões, agora que havia destrancado
minha prisão percebi que não. Sem tempo para conceber se existiam
fantasmas, apenas encarei o escuro naquele rosto coberto pela capa,
esperando pelo pior.
​― Está tudo do seu agrado? – Perguntou num tom aveludado que me
ganharia se eu não soubesse o que ele é.
​Como não respondi, o homem – se é que posso chamar de homem –,
se aproximou, tocou meu queixo como se estivesse me examinando, virando
de um lado ao outro, e, quando não aguentei mais ser tocada por ele, puxei
meu rosto violentamente.
​― Não me toque.
​― Achei que teria de descobrir se ainda tinha língua. – Riu. – É muito
comum escravos sem língua por aqui. – Talvez percebendo que perdeu a
postura altiva e doce, ele se afastou. Não sabia se estava me olhando, mas o
silêncio e o buraco negro me encarando estavam mais incômodos do que o
toque. Desviei meu rosto, escondendo-me nos meus joelhos. – Cansada?
​― Quero voltar para a minha casa. – Murmurei.
​― Que casa? – Antes que eu respondesse, ele continuou. – A Mansão
dos seus avós ou a casa dos anjos que te esconderam de mim?
​― Qualquer uma delas é melhor que aqui.
​― E com seu pai? Não pensa em morar com ele?
​Ergui meus olhos com a pergunta e por pouco não voei sobre aquele
ser, queria esmurrá-lo, machucá-lo, gritar com ele, mas apenas apertei os
punhos e mantive os olhos nele, sem ideia do que falar. Estranhamente, ele
desviou o rosto, por isso consegui formar uma resposta.
​― Meu pai foi assassinado.
​Rapidamente ele estava diante de mim. Se pudesse ver seu rosto,
saberia se estava intrigado ou com um ar divertido, mas soube, assim que ele
começou a falar, que estava... Triste. Estranhei a reação.
​― Quem o matou?
​Comecei a rir, mas não havia humor algum na minha risada, talvez
uma reação nervosa.
​― Se você não sabe, como eu vou saber?
​― Você foi criada achando que ele morreu?
​― Achando? – Gritei e comecei a rir nervosamente. – Eu o vi morrer.
– Mas na verdade, não tinha visto, havia apenas vislumbres do acidente e, no
velório, os caixões estavam lacrados, pois os corpos estavam carbonizados
pela explosão.
​Ele se afastou, fez uma reverência e saiu. Logo, a cela foi trancada
novamente. Aquele espectro se posicionou à frente como se, de alguma
forma, eu pudesse fugir dali. Destrancar a cela talvez fosse fácil, mas como
encontrar a saída do Inferno?
​Deitei naquela cama estranha depois de tirar o moletom, o corte no
meu peito estava ardendo muito, mas havia parado de sangrar e, como não
conseguia ver sua profundidade, não me preocupei, só recordava dele quando
me mexia. Puxei a bolsa que eu mantive pendurada transversalmente no meu
tronco e achei a pena do Arthur, o toque junto aos meus lábios trouxe um
alívio imediato ao meu peito, ele havia me encontrado uma vez, certamente o
faria de novo e, com a ajuda de Pietro, talvez mais rápido.
​Não entendia o motivo de tanta comoção sobre mim, era apenas mais
uma Nefilin, órfã de pai e mãe, insegura e que não fazia ideia do que estava
acontecendo na realidade. Havia apenas fragmentos de informações que, por
mais que tentasse formular, não faziam muito sentido. Prever o futuro era
algo poderoso, mas seria tão necessário me manter prisioneira e me obrigar a
ficar no Inferno para que eu revelasse minhas visões? Que, aliás, até agora
fora apenas uma? No Céu ou no Inferno, as visões certamente seriam as
mesmas e o futuro é imutável por mais que tentemos mudá-lo.
​O pensamento me levou imediatamente a Arthur, ele tentou se afastar,
se privar de se apaixonar por mim, mas a vida o levou diretamente ao meu
caminho. Estava aí uma prova da minha crença, apenas poderíamos tardar ou
adiantar o que já estava previsto.
​Respirei fundo, beijando a pena, sentindo lágrimas grossas cruzarem
meus olhos e o nariz, caindo pesadas no colchão. Não permitiria as lágrimas
se não me sentisse tão sozinha nesse momento. O que estariam fazendo para
me encontrar? Estariam por perto? Conseguiriam?
​Papai viu que Arthur cairia por minha causa e, se estou certa, isso
aconteceria e eu não poderia fazer nada para mudar. Será que não seria certo
acabar de uma vez por todas com essa loucura e aceitar ser uma deles? Não...
Até o último momento vou continuar lutando para pertencer ao Céu, nem que
morra tentando. Prometi a mim mesma.
​― Suzanna, minha menina. – Um sussurro conhecido adentrou meus
tímpanos. Estava sonolenta, mas reconheceria aquela voz até dormindo.
Sentei-me bruscamente olhando em volta, guardando a pena na bolsa como
um ato automático.
​― Pai? – Sussurrei temerosa.
​― Estamos quase chegando, princesinha.
​Apertei os olhos, o espectro estava dançando a frente da cela, seu
interior brilhando estático como uma tela de TV embaralhando as imagens.
Levantei-me cautelosa e me aproximei da grade. Ouvi minha própria voz.
​― A vovó vai gostar de mim?
​― Ela ama você. – Mamãe me acalmou.
​Afundei o rosto entre as grades, sentindo esmagar minha bochecha e
tentei puxar o espectro para mim, ele esfumaçou quase sumindo ao meu
toque, tremulou e voou para longe. Uma risada me fez voltar para a proteção
da cama.
​― Ele não vai te dar o que você quer, só o que eu quero que veja. –
Anunciou.
​― E o que quer que eu veja? – Sussurrei insegura.
​― Sua morte.
​Arregalei os olhos me aproximando da grade novamente.
​― Eu não morri.
​― Tem certeza que não?
​Apontei para mim mesma e ri, usando o mesmo tom sarcástico de
Persus.
​ Estou aqui. Dã. – Isso era infantil, mas estava tremendamente

nervosa.
​― Talvez ache que... Sim, senhor.
​Estreitei o olhar, observando Persus se afastar, andando de costas até
postar-se num canto, a postura ereta e rígida. O encapuzado surgiu diante de
mim, inicialmente parecido ao espectro que tentei segurar, depois tomando
forma e, por fim, materializou-se, tinha entre os dedos um livro que parecia
muito antigo. Sua mão estava coberta por uma densa fumaça negra, mas,
quando estendeu o objeto e a toquei, era fria como a noite e de carne e osso.
Segurei o livro e o observei com curiosidade.
​― O que é isso? – Não contive a pergunta.
​Havia um sorriso em sua voz quando respondeu.
​― Soube que adora aulas. Leia. Volto em algumas horas para obter
sua resposta.
​― Resposta do quê?
​Estava sozinha. Respirei fundo, encarando o lugar onde estiveram,
apenas o espectro continuava ali, tremulando como uma nuvem de fumaça,
mas, desta vez, sem a estática da TV. Lembrei da nuvem 3D no Segundo
Éden e me perguntei o que mais eles teriam por aqui para saber tudo sobre a
vida dos humanos. Sempre confiei que Deus é onipresente e acreditava que o
Diabo não sabia de tudo, simplesmente, por não poder estar em todos os
lugares ao mesmo tempo, portanto ele tinha seus artifícios para monitorar a
Terra. A imagem me fez ter absoluta certeza disso. Viera de algum lugar, um
demônio que assistiu ao acidente e que provavelmente estava dentro do carro,
oculto, o estranho era meu pai não tê-lo notado.
​Balançando a cabeça, retornei à cama, precisava desesperadamente de
um banho e a falta da cólica só me lembrava de que ali meu corpo agia
diferente do que na Terra. Não parecia mais estar de TPM. Essa seria uma
ótima vantagem de ser uma demônia. Ri irritada com meu pensamento e me
sentei, cruzando as pernas em forma de borboleta para folhear o livro.
​A capa era escura e de veludo. Por causa da falta de claridade e da
bruxuleante chama que tremulava a todo momento a iluminação no ambiente,
não consegui definir a cor do objeto, migrando do laranja escuro ao vermelho
sangue em poucos segundos. Havia um fecho como de um diário, mas a
fivela estava quebrada.
​Abri na primeira página e precisei estreitar os olhos e me virar de
costas para a grade para que a luz alaranjada iluminasse e conseguisse ler a
gravura que estava se apagando.

Para Suzanna, com amor.

Miguel Monteiro

​A assinatura, eu reconheceria em qualquer lugar, era a letra do meu


pai.
​ eu coração saltou significativamente, senti a vertigem como se
M
ainda tivesse meu problema de labirintite, mas era apenas pela emoção de ter
algo do meu pai nas mãos. Nem sabia como ainda me recordava de sua
caligrafia. Respirei algumas vezes até a vista clarear e minha respiração
voltar ao normal.
​― Não pode ser... – Sussurrei pensativa. – Outro diário?
​Folheei algumas páginas, constatando o óbvio, era uma espécie de
diário parecido ao que Arthur me emprestara uma vez, mas não tinha muita
coisa escrita, a maior parte das páginas estava vazia. A cela foi destrancada, o
que me obrigou a voltar a atenção para trás, sentei sobre o diário e encarei
quem adentrava.
​― Com fome? – Questionou uma mulher seminua, lembrando-me de
vestimentas usadas por índios já que um pano marrom corroído cobria apenas
a intimidade dela, deixando seios e todo o restante de fora.
​Ela era nova, aparentando cerca de trinta anos, loira, porém suja,
lembrando realmente um escravo mal tratado. Tinha o tronco encurvado em
clara submissão.
​― O quê? – Indaguei, confusa com meus pensamentos.
​― Fome. Você come, não come? – Perguntou. Parecia perturbada,
pois olhava para os lados apressadamente como se esperasse ser interrompida
ou atacada e tinha um sotaque carregado, estrangeiro.
​― Um pouco. – Admiti.
​Ela saiu da cela e voltou com uma bandeja rústica feita de lata, estava
escura e parecia suja. Dentro, havia um prato fundo com algo fumegando,
parecido com sopa de feijão, o aroma não me alcançou para confirmar o que
era. Ela deixou na ponta da minha cama e ameaçou sair, porém me encarou
com seus olhos azuis arregalados.
​― Nunca tente fugir. Garanto que preferirá esse tratamento ao que os
fugitivos recebem. – Advertiu-me e virou-se para sair, deixando-me a visão
da carne de suas costas exposta por cortes múltiplos que pareciam ter parado
de sangrar há pouco tempo. Estremeci ao entender claramente a advertência
dela.
​Agradeci e logo me deixou sozinha com aquela sopa medonha e meus
pensamentos.
​Peguei a colher também de lata, mexendo a sopa, ao que parecia havia
apenas legumes e feijão, mas se tratando do Inferno até o anjinho mais
bonitinho me pareceria um demônio. Cheirei o líquido e, em seguida, provei
um pouco, por fim desisti e deixei a bandeja no chão, temendo estar
envenenada. Meu estômago ficou embrulhado ao me lembrar dos
machucados nas costas daquela mulher.
​Deitei de costas para a cela novamente, erguendo o diário entre
minhas mãos para tentar ler na pouca iluminação. Meus olhos ainda não
estavam acostumados ao bruxulear constante, apenas meus ouvidos
ignoravam o crepitar do fogo ou os gemidos incessantes dos que me
cercavam fora daquela gaiola. Provavelmente, mais pessoas sendo
consumidas pelo fogo sem realmente morrer ou queimar. Apertei bem os
olhos ao me dar conta da dor que elas deviam sentir e como seria viver
constantemente assim. Quem em sã consciência escolheria o lado do mal?
​Respirei fundo, porque nem a minha calma fazia sentido. Por fim,
decidi concentrar-me na leitura, por algum motivo o demônio queria que eu
lesse e buscaria uma resposta. Pelo que entendi, a resposta estava ali, naquele
diário.

S​ uzie, se você está com este documento em suas mãos é porque algo
grave aconteceu e não consegui te proteger de ser enviada ao Inferno, nem
ao Pierre. Talvez, tudo pareça confuso agora e esteja com raiva de mim e de
sua mãe, mas queríamos apenas o melhor para a nossa pequena herdeira, a
queríamos a salvo, queríamos que tivesse outro fim.
​Deixei este diário sob a proteção de um dos anjos caídos mais
influentes no Inferno, ele não é de todo mal, mas não confie nele e, se o
diário estiver com sua trava violada, não confie em mim.
​ rregalei os olhos com aquelas palavras e constatei a trava quebrada,
A
voltei a ler com o coração a mil.

​ riei um bloqueio e aquele que tentar ler e não for meu descendente,
C
não conseguirá passar daqui. Existe um lacre, encontre-o e tudo se fará
nítido. Eu e sua mãe a amamos.

​ ra tudo muito estranho e não sabia que lacre era esse, já que o único
E
que vinha em minha mente estava destruído. Folheei o livro e reparei que
haviam palavras escritas, mas, ao ler, elas se embaralhavam e não faziam
nenhum sentido, assim como os desenhos. O quão poderoso era o meu pai
para conseguir um feito assim? Meu coração saltou ao perceber que talvez o
Inferno me queira ao lado deles por acreditar que herdei seus dons. Procurei
minunciosamente o tal lacre, mas não havia nada além de desenhos, palavras
e o feixe quebrado.
​Li mais algumas vezes aquelas palavras, chegando até a decorá-las
pelo ato repetitivo, sentia como se houvesse passado um dia inteiro naquela
maratona. Os dias pareciam seguir rapidamente, deixando-me confusa no
tempo.
​Minha perna estava dormente, então escondi o diário junto com a
minha bolsa e me levantei, indo até o que parecia ser um banheiro, mais uma
vez constatei que meu corpo não agia como um corpo humano ali, a TPM que
duraria dias, tinha sumido. O que isso significava? Que me tornei um
demônio no momento que cruzei os portões do Inferno? Ou que era uma
ilusão?
​― Tem alguém aí? – Chamei, o espectro se manifestou, bruxuleando
até mim. – Por que me trouxeram para cá?
​O som esquisito como estática de TV recomeçou, superando os
gemidos de dor constantes daquele lugar. Dei alguns passos para trás, mas
aquilo não se moveu, continuou acendendo, brilhando. Alguns sons saíram
dele, pareciam vozes. Aproximei-me, olhando fixamente no ponto brilhante.
​― Soube que adora aulas. Leia. Volto em algumas horas para obter
sua resposta.
​E a imagem sumiu junto com o homem encapuzado que dissera isso
há alguns dias ou horas, não tinha certeza. Suspirei frustrada, voltando para a
cama na cela, não agradeci o espectro, nem sabia se aquilo era realmente uma
pessoa ou algo como um eletrodoméstico dos demônios.
​ cordei sobressaltada depois de um pesadelo, onde olhos
A
incrivelmente vermelhos me encaravam. Sentei na cama, tateando o colchão
em busca da bolsa para pegar a pena de Arthur, mas um som estranho me fez
mudar a atenção para a cela. Virei-me e o homem encapuzado estava diante
de mim, parecendo uma estátua. Arfei, me encolhendo; imediatamente,
recordando da ilusão que vira dias antes, dele tentando me violentar.
​― Então, tem a minha resposta? – A voz aveludada cortou meus
pensamentos. Neguei e ele flutuou até mim. – Você leu o diário?
​― S-sim. – Gaguejei.
​― Quero a resposta.
​― Que resposta? – Perguntei aturdida.
​― A trava. Você conseguiu destravá-lo?
​Respirei fundo, entendendo o que ele queria, precisava que
desembaralhasse as palavras. Mas, o que continha ali para que um demônio
tivesse tanto interesse?
​― Não consegui, está quebrado, não sei a que lacre meu pai se
referia.
​O homem avançou, ficando com o rosto escurecido bem diante de
mim, o que vi foi um buraco negro. Gemi assustada, encolhendo-me contra a
parede de pedra, o calor que saia do corpo dele era tão forte que criou poças
de suor por toda minha pele.
​― Encontre. Você tem pouco tempo.
​― E se não conseguir? – Sussurrei.
​Havia um sorriso em sua voz aveludada quando falou.
​― É melhor que consiga.
​Um calafrio substituiu o calor insuportável de antes, estremeci de
dentro para fora.
Capítulo 20

​Pelos olhos de Arthur

​ stava a poucos metros de Persus e Suzanna, meu coração apertado


E
por vê-lo subjugar a Nefilin, mas não podia fazer muito, já que a mínima
distração custou-me um punhado de penas arrancadas por um dos demônios
com face infantil. Ela tentava se desvencilhar dele enquanto eu e Pietro
traçávamos uma rota de combate para salvá-la.
​Eu falei para não descermos! Gritei com ele por pensamento.
​Ela precisa aprender a se defender sozinha. Devolveu no mesmo tom.
Vou por trás, ele espera que você tente capturá-la, mas não eu.
​Ele espera qualquer um de nós. Lembrei.
​Enquanto decidíamos o que fazer e nos defendíamos dos ataques, ouvi
o grito de dor saindo dos lábios de Suzanna, meu coração se tornou pequeno
naquele momento. Se ela partisse desse mundo, eu jamais seria o mesmo,
tinha certeza disso. Vi quando o demônio provou o sangue dela, não entendi
o motivo e logo ouvimos um som gutural vindo da boca dele, todos os seres o
observavam agora.
​― Não sabia realmente porque meu mestre te queria. – Ele riu, virou-
se para nós, apontando um dedo acusador. – Ela não pertence ao mundo de
vocês. É um demônio.
​― Não sou, não! – Suzanna retrucou.
​― Seu sangue não mente. Podem desistir, a alma dela nos pertence e
vocês sabem disso.
​― Demônio? – Sussurrei surpreso. Há poucos minutos, havia nascido
em mim uma mísera esperança de que ela pudesse ter o sangue puro angélico
em suas veias, que tivesse sido concebida quando seu pai ainda era um anjo,
mas aquela palavra me partiu ao meio. Tanto fiz e de nada adiantaria se ela
realmente fosse um deles, um Nefilin filho de um anjo já caído, e escolhesse
novamente o Inferno. Seria sua sentença final.
​― Não sou um demônio! – O grito de Suzanna cortou meus
pensamentos.
​Encarei Pietro, que falou algo, mas não pude ouvir, pois Persus a
erguia com apenas uma das mãos. Comecei a correr na direção deles, poucos
metros nos separavam.
​― Vamos. – Disse Persus.
​― Nãoooo! – Gritei ao me deparar com a névoa negra que se formava
em volta deles. – Meu Deus, por favor, não! – Ouvi um chiado e sabia que
todo o restante da orla de demônios e caídos fazia o mesmo, se
desmaterializava para seguir Persus. Joguei-me com todas as forças naquela
nuvem escura, não sabia exatamente o que estava fazendo, queria ir atrás
dela.
​― Pierre, pare! Nós... – Puxei minha perna quando senti alguém me
segurando, interrompendo seus protestos.
​― Eu quero ir junto! Quero ir para o Inferno! Mande-me para o
Inferno! – Gritei a plenos pulmões e, antes que a névoa se desfizesse, fui
brutalmente arrastado para longe. – Solte-me! – Usei meu dom, formando
uma bola de energia azulada e lancei em quem estava me impedindo. Tinha
certeza absoluta que ele estava cumprindo seu desígnio e, agora que sabia que
Suzanna era um demônio, nada o impedia de levá-la até lá.
​― Mas que porcaria, Pierre! – Alguém gritou. A voz se aproximava
enquanto eu partia para o local onde Suzanna foi recolhida. – Ela se foi, nós
vamos dar um jeito nisso... – Ele dizia.
​Joguei-me sobre a areia fofa da praia, cavando irracionalmente com as
mãos.
​― Eu quero ir para o Inferno! Se ela é um demônio, também serei...
Eu...
​Uma dor lancinante me calou e tudo escureceu.

​Quando despertei estava dentro da casa, deitado na cama do quarto


que eu sabia ter sido usado por Suzanna quando foi raptada. Meus olhos
estavam pesados, meu corpo dolorido. De repente, relembrei todo o ocorrido
durante a luta, incluindo a dor que me levou à perda dos sentidos. A
queimação havia se iniciado na panturrilha, queimando cada partícula do meu
corpo, chegando até a base das minhas asas. Foi tamanha que provavelmente
desmaiei. Levei a mão às omoplatas, tateando, minha pele fervia e estava
dolorida ainda. Afundei meu rosto no travesseiro, convulsionando.
​― Caí. – Chorei amargo, mordendo o tecido com fúria.
​― Você não caiu. – Pietro sussurrou.
​Abri os olhos e o encarei, não tinha notado sua presença. Ele estava
sentado em uma cadeira ao lado da cama. Sentei-me ainda confuso, limpando
meu rosto disfarçadamente.
​― Mas... Então...
​― Provavelmente um aviso. – Explicou. – Meu segundo aviso doeu
por dias, mal conseguia abrir minhas asas. – Lembrou melancólico. – Mas,
garanto que, se você tivesse caído, não estaria aqui, mas no Inferno.
​Respirei fundo, pois, por mais que eu dissesse que queria seguir
Suzanna, a verdade é que perder o vínculo com os anjos e com Deus seria
uma dor ainda maior do que suportar a infelicidade dela ser o inimigo. Não
sei se falei alto, mas Pietro começou a falar novamente.
​― Sabe o que significa illusio daemon?
​Pensei por alguns segundos, minha mente embaralhada demais para
raciocinar. Não estava acostumado a sentir dor por tanto tempo.
​― Ilusão de demônio. – A afirmação parecia mais uma pergunta,
Pietro confirmou com a cabeça.
​― Achei que a estaria protegendo de ataques, pois nós conseguimos
identificar um anjo, mesmo usando uma ilusão, mas os demônios não a
atacariam, acreditando que era um deles. Não deduzi que Persus provaria o
sangue dela para saber se era descendente angelical ou de um caído. Você
sabe que os caídos também possuem filhos, mas seus herdeiros
automaticamente são maus, geralmente escolhendo o Inferno de imediato. –
Concordei, tentando acompanhar o que ele contava. Respirou passando a mão
no rosto, parecia cansado. – Condenei-a quando tentei protegê-la.
​― Você fez o quê? – Gritei ao me dar conta de sua confissão. – Você
sabe que foi isso que deu poder a ele para levá-la?
​― Talvez. – Confessou. – Mas se ele acreditasse que não foi
corrompida pela queda do pai, o tratamento que ela receberia com certeza
seria mil vezes pior. Ainda mais porque ela não sabe se defender.
​― Ele a levaria de todo jeito?
​― Sim. Ele pode. Ele não é um demônio qualquer, ele é de uma
potestade alta. É comandante.
​― E você podia fazer o mesmo que ele fez? Sem precisar de um...
​― Portal? – Pausou até que eu confirmasse. – Não existem portais
para o Inferno. Um demônio pode ir e vir quando bem entender, porém
demônios menores não podem levar almas consigo, apenas marcá-las. E,
respondendo a sua pergunta, eu poderia ter levado Suzanna, meu posto era
equivalente ao de Persus. – Levantou-se e sentou ao meu lado. – Mas, meu
comando era para os anjos que caíram depois da primeira separação. Apesar
de serem considerados demônios, não eram tratados como tal, mas como
seres inferiores. Desprezados pelos dois lados e com alguma utilidade para o
Inferno.
​― Eu não sabia disso. – Respirei fundo, levantando-me. – Quer dizer
que você podia tê-la levado logo que a conheceu, mas não fez. Por quê?
​Pietro me seguiu, fomos para a cozinha. Eu esperava que o exército de
anjos estivesse ali, mas aparentemente restávamos apenas nós dois. Ele pegou
um copo com água, bebericando como quem está ganhando tempo para
responder.
​― Porque a amo. – Deu de ombros. – E, mesmo tentando cumprir
minhas ordens, realmente esperava que você a resgatasse.
​Sempre que ele demonstrava como a protegeu e como a amava, sentia
um nó na garganta me impedindo de continuar o assunto. Éramos irmãos e
ele havia caído porque um dia a garota de que ele gostava aparentemente se
apaixonou por mim. Como poderia fazer isso com ele de novo?
​Toquei o ombro dele e apertei, resolvendo mudar de assunto.
​― E agora, como a resgatamos? Onde ela está?
​― Vamos dar um jeito, mas acredito que ela não esteja longe.
Carregar um corpo físico exige muita concentração e esforço. – Respondeu
melancólico.
​Pietro olhava para a praia enquanto falávamos. De repente, a imagem
dele andando de mãos dadas com Suzanna invadiu a minha mente. Ele se
lembrava de como a mão dela era quente e macia ao toque, em como ela
parecia ter medo e mesmo assim aceitou dar as mãos, passeou com ele, o
abraçou, como quase a beijou novamente naquela tarde. Apertei os olhos me
afastando para o sofá, tentando disfarçar que os pensamentos dele estavam
abertos e me sentei. Ela me olhava com medo e devoção, uma mistura
estranha, mas, como na lembrança de Pietro, também me deu frio na barriga.
Suzanna tinha um jeito peculiar de olhar, como se tentasse ler nossa alma, e
ele partilhava da mesma sensação.
​― Que jeito? E como vamos encontrá-la? – Perguntei na intenção de
fazê-lo parar de pensar nela dessa forma, apesar de que compartilhar aquele
pensamento dava a sensação de vê-la e ironicamente me fazia bem.
Definitivamente, não estava raciocinando claramente.
​Pietro encostou-se à pia, sabia que uma ideia estava se formando, mas
queria ouvir e não adivinhar; os pensamentos do anjo eram mais rápidos que
o meu acompanhamento naquele momento.
​ ― Sei como encontrá-la, mas precisaremos de ajuda e... Bem,
autorização. Não quero ninguém perdendo as asas.
​― Quem pode nos ajudar?
​Possuíamos nossas desavenças, mas desde que ele retornou, por mais
ciúmes que eu sentisse, percebia a cada momento o quanto senti sua falta.
Nossa ligação era mais do que simplesmente por sermos irmãos, pois, quando
éramos mais novos, diziam que era quase como se fossemos a mesma pessoa,
pois um completava o outro. Quando havia alguma missão que
obrigatoriamente era em dupla, sempre nos enviavam juntos, pois um
pensava e o outro executava, estávamos sintonizados, conectados. Depois que
ele caiu, continuei sentindo a mesma conexão de antes, mas sentimentos
irracionais como mágoa e raiva não me permitiam perceber isso, não até
localizar Suzanna há alguns anos. E, agora, parecia que nada tinha mudado, a
conexão estava ainda mais forte e me fazia extremamente bem.
​― Pensei em solicitarmos a presença de Victória. – Ele cortou meus
pensamentos.
​Concordei, era o mais próximo que tínhamos de uma amiga e ela
também gostava de Suzanna. Certamente, não se oporia a nos ajudar.
​― Eu sei do que o pai dela era capaz, mas confesso que não entendo o
propósito nisso tudo. Nefilins nunca foram o foco no Céu. É quase como
esfregar em nossa cara os pecados cometidos por outros anjos.
​Pietro me encarou, o rosto infantil de Suzanna invadindo a sua mente,
consequentemente a minha também, compartilhamos do mesmo pensamento:
Uma menina tão linda não deveria ser vista como um pecado.
​― Talvez, por ela ser poderosa. – Comentou. – Mas, você não
reparou que, nos últimos séculos, ao menos dez Nefilins foram procurados,
recrutados e treinados?
​Neguei, por isso ele retomou a palavra. Agora, estava sentado na
poltrona ao meu lado, com aquele ar professoral que sempre ganha quando
vai contar uma história.
​― O pai da Suzanna foi um dos últimos. O primeiro foi o Havi. Eu
ganhei. – Ele sorriu de lado, mas sem cantar vitória. – O Havi é muito
poderoso, o que me faz crer que o progenitor dele era mais. Talvez, um anjo
ou um Nefilin com mais de oitenta por cento de sangue angelical nas veias,
mas que, por algum acaso, não foi recrutado ou não apresentou nenhum
poder significativo. Depois que o recrutei, precisei treiná-lo, mas... – Pietro
ponderou as palavras antes de dizê-las em voz alta. – Reprimi alguns dons
dele, não queria ninguém competindo pelo meu posto.
​― Você realmente abraçou a causa de ser um demônio. – Comentei
com um riso divertido. Ele concordou amargo.
​― Havi pode adquirir a forma que quiser e pisar em terreno santo,
mas ele não sabe disso.
​― Como é possível?
​― Não sei. Mas em uma das nossas caçadas, sem querer entramos em
terreno consagrado. Senti na mesma hora e parei antes de entrar, mas ele
continuou e não aconteceu nada, nenhum arranhão, nenhuma queimadura,
não explodiu em chamas ou foi sugado para o Inferno. Nada.
​Igrejas, cemitérios, casas de religiosos de oração eram considerados
locais sagrados, assim como alguns pontos estratégicos pertencentes a anjos,
mas que eram construídos na Terra. Nenhum ser inferior conseguia
ultrapassá-los sem ajuda e ter um demônio que não se feria ao pisar em terra
santa era preocupante. Muito preocupante.
​― Será que é por isso que querem tanto a Suzanna?
​― Não tinha pensado nisso... Talvez, reprimir os dons de Havi tenha
feito o mestre procurar outros Nefilins com essa característica. – Respirou
fundo e seguiu pesaroso. – A culpa é minha dela ser perseguida. Que droga!
​― Acalme-se, o que tem que acontecer sempre acontece. – Sussurrei
para acalmá-lo, mas tinha chegado à mesma conclusão.
​Respiramos juntos e um silêncio se instalou entre nós. Não reclamei,
também não sabia mais o que fazer ou dizer. Ficar parado dentro daquela casa
quando sabia que o pior acontecia com Suzanna estava me destruindo por
dentro, mas Pietro ter deixado os pensamentos descuidados era sinal da
mesma fraqueza, ambos estávamos sofrendo.
​― Vou tomar um banho, tem gente chegando. – Avisou.
​Quando saiu, imagens da menina invadiram minha mente. Fechei os
olhos, deixando tudo transcorrer sozinho, não sabia se eram lembranças de
Pietro ou desejos meus.
​Ela estava com os cabelos soltos, a cabeça sobre o travesseiro, seus
cabelos espalhados sobre a fronha, tinha um olhar assustado e ao mesmo
tempo parecia confusa com alguma coisa. Antes que pudesse barrar, o seio
dela foi descoberto, o desejo que Pietro sentiu ao tocá-lo, senti também, até o
gosto de quando ele o beijou. O mais rápido que consegui, me levantei e já
estava diante da porta do banheiro. Bati uma vez e entrei.
​― Pietro. – Ele estava com a testa no azulejo, os olhos fechados e
mesmo com a água molhando seu rosto, sabia que havia lágrimas ali, me
senti pior do que antes.
​― Aconteceu alguma coisa? – Já foi recolhendo a toalha, se
preparando para sair, mas me apressei a negar.
​― Não... Hm... Sua mente... Eu ouço e vejo tudo.
​Demorou apenas um segundo para que entendesse, apertou os lábios
em um pedido de desculpas silencioso, em seguida não ouvia mais nada.
Agradeci e sai, deixando-o sozinho.

​Fazia mais de doze horas que Suzanna estava desaparecida, ninguém a


sentia. Estava a ponto de recorrer ao Arcanjo para conseguir alguma
informação, impedido apenas por Pietro, que parecia ser o mais sensato
naquele momento. Meu desespero e o sentimento me deixando irracional,
cometendo erro atrás de erro. Estava por um fio, enlouquecendo pouco a
pouco, tanto pela preocupação quanto pela culpa por ver o quanto meu irmão
a amava e não poder mudar o que sinto. A certeza de que Suzanna certamente
já o tinha escolhido me deixava contente por ele, mas me fazia sentir vazio.
​Peguei-me pensando várias vezes em encontrá-la e depois sumir para
não atrapalhar o amor deles, agora que eu tinha certeza de que ela tinha uma
chance de se tornar uma guardiã, permitindo assim o relacionamento com
outro anjo.
​Percorremos os arredores para nos certificarmos que não restavam
demônios na área, pois precisávamos traçar um plano de resgate e qualquer
um que ouvisse colocaria tudo a perder rapidamente. Demetria juntara-se a
nós e invoquei Victória, que chegaria a qualquer momento, assim que
passasse pelos demônios que certamente sabiam que pedira sua ajuda.
​O Céu e o Inferno conheciam-se muito bem para antecipar um o
movimento do outro, porém tínhamos a vantagem de uma visão ampla das
coisas, pois alguns anjos tinham acesso a informações privilegiadas, mas
raramente nos era permitido usar ou intervir. O Arcanjo saberia a localização
exata de Suzanna, mas a única informação a que tive acesso foi que sua alma
era prisioneira de um demônio maior.
​Estava acostumado à rotina de um anjo, cada um com sua função
específica, algumas designações inesperadas, mas quase sempre nossos
objetivos estavam voltados a algo na Terra, desde acompanhar a criação de
uma nova vida, até acompanhar a morte de outra.
​Todas as petições eram ouvidas e, quando uma graça era alcançada,
éramos designados a entregá-las, porém sempre havia algum impedimento,
algum demônio que nos atacava no caminho para impedir a entrega ou tardá-
la. Era raro um anjo não cumprir seu propósito e, se acontecia, rapidamente
outro chegava em seu encalço para ajudá-lo no combate e a seguir seu
percurso.
​Como guardião, meu principal objetivo era manter a alma de meus
protegidos imaculada, ouvir suas petições, interceder para que apenas as boas
fossem alcançadas e entregá-las. Raramente Suzanna pedia algo, as únicas
vezes que a ouvi orar, em todas, ela pedia algo para seus pais ou seus avós,
não me recordava de um dia ter pedido algo para si mesma. Até sua amiga
Bruna era vítima de suas orações.
​― Precisamos de mais anjos.
​Ergui os olhos do meu diário para encarar Pietro, ele estava sério,
andando de um lado para o outro na sala, só então me dei conta de que
Victória e Sophia já estavam presentes. Levantei-me, cumprimentando-as e
resolvi que faria alguma coisa de útil, escrever e me lamentar por Suzanna
não a traria de volta.
​― Victória, você consegue saber a exata localização dela?
​A mulher vestia os costumeiros uniformes de anjo, uma túnica branca,
sandália de couro e o cabelo preso, Sophia estava diferente, parecia uma
guerreira, com calça e camiseta branca, tênis branco e uma trança bem rente a
raiz. Fiquei contente ao notar a determinação no olhar da novata.
​― Consigo. – Respondeu. Também havia determinação nela, talvez
mais coragem do que havia em mim. Sorri.
​― Agora, estamos progredindo. – Avaliei. – Iremos em duplas, não
podemos entrar no Inferno, mas podemos atraí-los para fora, certo?
​Não perguntei a alguém específico, mas o rosto de Victória parecia
indecifrável quando começou a falar.
​― Se ele capturou um dos nossos, podemos invadir sim, mas o corpo
dela não está no Inferno.
​― Não? – Sussurrei esperançoso.
​― A alma sim, o corpo não. Precisamos localizar o corpo para
resgatar a alma.
Capítulo 21

Pelos olhos de Suzanna

​ ão sei quanto tempo havia passado, mas o calor insuportável e a


N
falta de higiene me incomodavam mais do que não encontrar uma forma de
desembaralhar as palavras. Não sabia o que aquele ser queria com o diário do
meu pai. Não era apenas a ameaça que me fazia querer encontrar o lacre, mas
para saber as instruções que papai deixou para mim, se é que aquele diário
era verdadeiro.
​Meus dedos estavam cheios de furinhos e o diário todo marcado com
sangue, incluindo o cadeado que chegou até mim, quebrado, porém nada
havia acontecido. Já estava cansada de procurar, cansada das ameaças e com
o peito doendo de saudade do Pietro e do Arthur. De certa forma, estar
sozinha, sem eles em meu encalço, me dava chances de colocar em ordem
também toda confusão de sentimentos que estava me assolando. Hora
pensava nos beijos de Pietro, na forma em que nossos corpos se encaixavam,
naquele amor purinho que fazíamos quando o conheci. Em como disse que
iria me conquistar, já que Arthur estava me deixando de fora de sua vida.
Pensava sem parar em como tudo parecia se encaixar agora; que ele não era
tão ameaçador como me fez acreditar, que, na verdade, tudo o que fez desde
o sequestro fora para minha proteção, para que não estivesse justamente onde
estou agora. No Inferno.
​Por outro lado, havia o sentimento por Arthur, que crescera
substancialmente nos dias que se seguiram ao sequestro e ao julgamento. Não
sei se por saber antecipadamente que me apaixonaria por ele – por causa da
visão do papai –, não sei se porque ele estava me desprezando ou porque
realmente era para amá-lo, mas quanto mais longe ficávamos, mais sentia sua
falta.
​Sentia meu estômago gelar sempre que me lembrava da forma como
me beijou na cabana, quase perdendo o controle de tudo, quase perdendo suas
asas só por me ter nos braços. Era difícil pensar nele sem sentir o nó na
garganta e as lágrimas começarem a rolar. Que futuro teríamos juntos? Uma
meio humana que ele nem pode beijar porque corre o risco de cair. Estar com
Pietro era mais fácil, não me dava medo, tinha facilidade em me expressar,
em demonstrar a falta que tinha só de um abraço. Já com Arthur me sentia
constantemente vigiada, como se apenas um olhar pudesse corromper a alma
dele e, no fundo, eu sabia que, se forçasse mais contato entre nós, ele não se
importaria em cair.
​Senti novas lágrimas descendo por meu rosto, escorregando pela
minha pele e caindo na cama. Estava de olhos fechados com a imagem de
Arthur em minha mente. De repente, vi um clarão que ultrapassou minhas
pálpebras cerradas, apertei os olhos e, quando o clarão sumiu, os abri,
esperando ver um dos demônios diante de mim, mas estava sozinha no escuro
bruxuleante do Inferno.
​Olhei em volta, tentando localizar o foco daquela luz, mas parecia
tudo perfeitamente normal. Sentei, recolhendo o diário do meu pai, mas,
quando olhei direito, havia um brilho leve nas folhas internas, antes escuras e
amareladas. A capa estava úmida, marcada com as minhas lágrimas.
​Abri-o com esperança, sentindo meu peito pulando junto com as
batidas do meu coração e a respiração travada, quase asmática. Era certo que
eu choraria em algum momento presa aqui, mas por que ele colocaria como a
chave o meu DNA, se eram as lágrimas? Se bem que ele não disse
exatamente sangue, mas eu acreditei que fosse. Não dei importância, abri o
diário, ávida pelas palavras.
​― Obrigado, criança. – O livro foi arrancado das minhas mãos com
violência, encolhi-me ao ver Persus diante de mim. – Era exatamente o que
esperávamos de você. Obrigado.
​Ao abrir as páginas, porém, soltou o diário, que caiu no chão de
pedras com um baque surdo. Corri até ele para recolhê-lo, mas Persus me
chutou no rosto, a dor foi tanta que cambaleei até encostar a alguma coisa e
me sentar no chão, segurando o lado direito do rosto com uma das mãos.
​― Isso é meu. – Alertei, tentando usar um tom ameaçador que não fez
nenhum efeito sobre ele.
​― Processe-me. – Riu. Fechou o diário com o pé e se agachou,
recolhendo-o. – Algum tolo lerá isso para mim. All revoir, mademoiselle. –
Fez uma reverência e sumiu diante dos meus olhos.
​― Todo mundo aqui some num piscar de olhos. Será que consigo? –
Falei alto, estava nervosa, sendo irônica, conversando com as paredes.
​Meu rosto latejava por causa do chute. Peguei a parte de cima do meu
moletom, embebi em água e comecei a pressionar no local para aliviar. Fazer
isso me fez recordar da vovó, das vezes que cai e ela fez compressa com gelo
para não ficar marcas roxas. Estariam bem?
​Voltei para a cama, não conseguia lamentar. Ao menos, talvez me
liberassem agora que destravei o diário, porém estava curiosa quanto ao
motivo de Persus não poder ler e do que havia escrito ali. Minha cabeça era
um turbilhão de pensamentos.
​Quando era mais nova, lembrava claramente de algumas situações
vividas com meus pais, coisas corriqueiras como aprender a andar de
bicicleta ou ser obrigada a comer as verduras, mas, apesar do amor que me
envolvia, depois de adulta sempre pensei que meu pai era um homem
amargurado. Depois da morte deles, tinha sensações de conforto equivalentes
aos abraços dele, era como quando me colocava para dormir e me ninava,
vovó dizia que me sentia assim por causa da saudade. Agora sozinha, o que
mais desejava era que minha mente me enganasse, sentisse aquele abraço de
novo e pudesse perguntar o porquê ele era tão triste. Seria por ter perdido sua
alma? Por ser um...
​Será que ele era realmente um anjo caído?
​Tentei dormir, ruminando esses pensamentos. No carro, ele parecia
perturbado, como se soubesse o que estava por vir e, antes, semanas antes,
em alerta extremo, qualquer coisa que conversávamos era motivo para sair do
sério, algo muito raro em meu pai.

​ stávamos em casa em uma das inúmeras noites de jantar em família,


E
meu pai fazia questão de jantarmos a mesa, mesmo não tendo uma vida tão
cheia de luxo como na casa dos meus avós. Mamãe preparara nhoque com
molho vermelho, um dos meus pratos prediletos, tinha ajudado a fazer as
bolinhas para ela cozinhar e meu pai fizera o molho enquanto ela fritava o filé
de frango empanado. Era divertido, mas, naquela noite específica, conseguia
lembrar que eles pareciam mais agitados do que o normal.
​― Princesa, vai lavar as mãos para jantarmos? – Papai pediu, assenti
e sai da cozinha apressadamente porque queria comer logo, a janta estava
com um cheiro incrível que tomava o sobrado todo.
​Nossa casa não era grande como a Mansão, mas não era muito
pequena. Um sobrado com três dormitórios médios, um quintal enorme com
horta e uma pequena plantação aos fundos, pois morávamos em um bairro
quase rural. A cozinha era pequena, mas aconchegante, com azulejos com
motivos de bule e piso vermelhão que eu precisava encerar uma vez por
semana para ficar brilhando, muito comum em casas rurais. Não me recordo
muito bem, mas me lembro como era quente e familiar estar ali.
​Enquanto entrava no banheiro térreo entre a cozinha e a sala, não pude
deixar de ouvir a conversa deles. Não sabia o significado daquelas palavras,
mas, me lembrando agora, começava a fazer algum sentido.
​― Miguel, o que está acontecendo? Você parece agitado hoje... –
Mamãe comentou.
​― Tive uma visita hoje. – Falava sussurrado, mas eu prestava
atenção, pois minha imaginação fértil me fazia crer que era algo de super-
herói. Não sei em que momento da minha infância esses acontecimentos
passaram a ser como brincadeira para mim, mas acredito que meus pais não
desmentiam porque lidar com a verdade era muito pior.
​― Visita de quem? – A voz dela pareceu esganiçada.
​― Algo está para acontecer e talvez precisemos sair daqui.
​― Explique-me direito, Miguel, essa coisa que você é... Ou era, eu
achei que estávamos livres disso.
​― Que nós éramos. – Corrigiu-a, a lembrança dessa conversa me
despertou para outra conversa que tive com Arthur, há pouco mais de um
mês. Ter mais de cinquenta por cento de sangue de anjo significava que meu
pai era quase um anjo, mas, se minha mãe também fosse, eu quase não sou
humana. Arfei ao me dar conta disso. A lembrança continuou apesar da
minha interrupção. – Acho que nunca nos livraremos disso de fato, ainda
mais eu, mas não posso falar disso agora, ela pode ouvir.
​― Ela está lavando as mãos. Fale. – Mamãe ordenou.
​Já estava pronta, mas me encolhi; aquele tom ela usava quando estava
brava comigo e não queria interromper, agora por medo.
​― Claudia... – Ele suspirou e podia quase imaginar seu olhar
languido, o tom azul se tornando quase violeta. – Virão atrás dela como um
dia vieram atrás de mim.
​― Mas, nunca vieram atrás de mim e também sou... Era. – Ela gemeu.
– O que podemos fazer?
​― Podemos prepará-la, contar a verdade. – Mamãe falou algo que não
entendi, meu pai aumentou o tom, irritado. – É melhor a verdade do que ela
descobrir como você. Meus pais me prepararam… bem, mais ou menos, mas
eu não tive medo. Eu sabia o que estava em jogo e quais eram as minhas
opções.
​― Mas, eu nunca soube até conhecer você e aquele an... é, rapaz, nos
contar.
​ ão ouvi mais nada, por isso resolvi entrar na cozinha, meu pai estava
N
beijando minha mãe e dei uma risadinha.
​― Lavou as mãos? – A animosidade de antes parecia ter sumido, mas
minha mãe continuava com um olhar agitado e me encarou melancólica pelo
resto da noite.

​ embrar-me de quando eles estavam vivos não era algo que eu


L
costumava fazer, porque me deixava triste e bem deprimida. Com o passar do
tempo, comecei a ignorar as lembranças e me focar em qualquer outra coisa
que não fossem eles, mas essa novidade de ser Nefilin e filha de um anjo e
estar no Inferno não me dava outra alternativa. Pensar neles era bom, perto da
realidade.

​ Nós vamos viajar. – Papai estava sentado na beira da minha cama



na noite anterior a viagem, mamãe já tinha arrumado nossas coisas e eu não
parava de chorar porque ia sentir saudade dos meus amigos da escola.
​― Não quero ir. – Retruquei birrenta, de braços cruzados e a cara
amarrada.
​― Já explicamos a você, temos que ir.
​― Por quê? Não quero morar com a vovó, a Ana Paula não vai
comigo.
​― É só até o Natal. – Explicou. – Vai ter presentes embaixo da
árvore. Lá tem uma árvore enorme, como você gosta.
​― Mas, semana que vem é meu aniversário e eu queria levar um bolo
para a escola... Como no ano passado. – Fiz beicinho e ele se ajoelhou na
minha frente.
​Assim que a lembrança adquiriu vida, sentei-me na cama na cela
quente do Inferno. Meu pai tinha me contado, eu só não tinha entendido e
nem me lembrado. Ele parecia estar na minha frente enquanto me recordava.
​― Você é especial, nós explicamos. E, na casa dos seus avós, poderei
te ensinar tudo. Lembra? Aprender a ter poderes?
​― Certo, eu sei. Mas, eu realmente não queria ir. – Disse desanimada.
​Imediatamente, voltei anos atrás, quando eles me levaram a uma
igreja, usaram a sala do padre para me contar sobre mim.

​― Obrigado, Padre Josué, seremos rápidos. – O padre me beijou na


cabeça e saiu, deixando eu e meus pais sozinhos, papai se virou para mim. –
Suzanna, o que vou dizer é bem confuso, mas preste bastante atenção antes
de falar. Tá?
​― Tá bom. – Estava achando que ia levar bronca por ter quebrado um
prato da mamãe, ele simplesmente voou da minha mão e eu nem me
lembrava como.
​Mamãe estava me segurando no colo, afagando meus cabelos.
​― Filha, seu pai não é uma pessoa normal. – Começou.
​― O que é uma pessoa não normal?
​― Sabe os anjinhos para quem rezamos? Pedindo para cuidar de você
a noite? – Fiz que sim. – Seu pai é como um deles.
​Franzi os lábios confusa, olhei as gravuras de anjos desenhadas em
um quadro na sala do padre e apontei.
​― Como eles?
​― Isso. – Mamãe confirmou, parecia nervosa. – E seu pai tem alguns
poderes como do super-homem.
​― Você voa, papai? – Meus olhos brilhavam. – Eu sabia que você era
um super-herói! – Jubilei.
​― Eu... – Ele riu. – Às vezes, eu consigo, mas não é bem voar. –
Explicou, segurando minha mão. – Você não pode contar a ninguém, nunca.
​― Não papai, a Lois Lane nunca pode contar o segredo do Clark. –
Eu achava que era uma brincadeira, tinha sete anos, mal sabia pronunciar o
nome dos personagens.
​― Não, não pode. – Ele sorriu. – Mas, você também precisa manter
segredo sobre você, por isso vamos fazer uma viagem rápida, vamos para a
casa dos seus avós passar as suas férias lá.
​― Na vovó? Por quê?
​― Para te mostrar tudo sobre como é ser uma super-heroína, topa?
​― Claro!
​Na hora, eu me alegrei, porém não me recordo muito desse final de
ano, não sei se aprendi algo e, se aprendi, deve estar escondido dentro da
minha cabeça junto com a maioria das lembranças que tenho dos meus pais.

​ rustrada, deitei novamente. Queria fazer alguma coisa de útil, pois


F
me sentia impotente e exposta; o calor era a menor das minhas preocupações,
a fome começava a corroer meu estômago, assim como a sede. Meus lábios
estavam rachando, mas não queria beber daquela água, estava com receio,
assim como do alimento.
​Será que teria algum problema com o Juiz quando sair daqui? Se eu
sair daqui? Porque afirmei que meus pais não haviam me contado sobre ser
um anjo, mas acabara de lembrar que, de certa forma, contaram, apenas era
muito nova para entender.
​Um grito de dor me tirou dos meus pensamentos. De repente, me vi
em pé à porta da cela, com as mãos nas barras olhando para fora. Reconheci o
grito, tinha certeza disso, só não sabia de quem era o dono.
​O espectro dançava à minha frente, não sei nem se poderia ser
considerado um guarda, porque tenho quase certeza de que, se tentasse fugir,
ele não me impediria, foi com esse pensamento e um segundo grito que
resolvi tentar abrir a cela. As barras não pareciam fortes ou de ferro, talvez
fossem mais resistentes devido ao calor excessivo. Mesmo assim, concentrei
meus pensamentos nelas e comecei a chacoalhar meu corpo e puxá-las
violentamente, até arder a palma das minhas mãos e cair sentada no chão.
Não surtira efeito algum sobre elas.
​Um terceiro grito me fez levantar, tinha certeza agora que era de
Arthur.
​― Arthur! – Gritei enquanto me chacoalhava para tentar inutilmente
abrir o portão.
​― Quer sair, Suzanna? – O som aveludado ecoou atrás de mim, virei
apenas o rosto constatando a presença do visitante. – E então, você quer sair?
​― Claro. – Resmunguei, soltando as barras.
​― Vá em frente.
​Ouvi um clique e o portão sumiu diante dos meus olhos, era como se
não houvesse prisão, dei um passo para trás desconfiada, mas o homem não
estava mais lá.
​― É uma armadilha. – Sussurrei desconfiada e decidi não sair do
lugar. Sentei-me na cama, observando aquele espaço assustador entre eu e o
espectro, ou qualquer pessoa-ser que quisesse entrar.
​Não sei ao certo quanto tempo se passou. Queria ir atrás de Arthur,
localizá-lo, mas estava com medo de ser um chamariz, ser outra ilusão. Ouvi
o grito pela quinta vez e estava mais perto, parecia vir de cima. Quando dei
por mim, estava correndo, fazendo o caminho inverso que Persus e o estranho
fizeram para me deixar na cela. Ao menos, não me sentia seguida.
​― Arthur! – Chamei.
​― Su... Za... Na. – Ouvi como um lamento e me apressei ainda mais,
esfolando as mãos nas paredes ao me escorar.
​Um vento quente passou por mim, o cheiro de podridão e enxofre
embrulharam meu estômago, tinha me acostumado a ele, mas, quanto mais
subia, mais forte ficava, parecia que me acostumava com o cheiro no lugar
onde estava e, independentemente de estar descendo ou subindo mais no
Inferno, o cheiro se tornava insuportável simplesmente por eu estar me
movendo de um local para outro. Precisei parar para recuperar o fôlego,
porém demorei o tempo suficiente de uma respiração. Quando cheguei ao
primeiro local que conheci no Inferno, avistei Arthur preso entre o mesmo
conjunto de pedras que me subjugaram, corri até ele, mas parei meio metro
ao me deparar com o demônio gigante de antes.
​― O que faz aqui? – A voz ressonou por todos os cantos, era forte,
intempestiva.
​― O anjo me chamou. – Afirmei.
​Arthur parecia desacordado, estava apenas de calça branca manchada
de sangue e suja. Havia dois cortes profundos em seu abdômen que
sangravam, o ombro direito também e em seu rosto havia manchas roxas,
além de outros cortes mais superficiais. Tentei me aproximar, mas fui
impedida pelo demônio.
​― Você não tem permissão para estar aqui. – Sibilou.
​― Deixe-a se aproximar.
​Foi como uma carícia em minha nuca, mas a voz aveludada já me era
familiar. Não olhei para trás e nem o procurei, apenas corri até onde meu anjo
estava preso. Diferente de mim, ele estava preso em pé, amarrado em forma
de cruz, os braços estendidos, a cabeça pensa, não consegui distinguir de
onde saiam as correntes.
​― Arthur... – Sussurrei, tocando-lhe o rosto. A respiração estava fraca
e seus batimentos cardíacos também. – O que fizeram com você? Meu
Deus... – Encontrei outro corte, estava na altura do coração, não sangrava,
mas havia uma abertura tão profunda que consegui enxergar o osso. Gemi
desviando o olhar, desejando internamente poder curá-lo como ele fez com a
minha labirintite.
​― Ele ficará bem. – Anunciou o estranho.
​― O que você fez com ele? – Gritei, virando na direção da voz.
​O homem encapuzado estava em pé a alguns passos de mim, não me
preocupei por estar encurralada, pois ter Arthur perto me fazia sentir que era
possível ser salva, que talvez Pietro e os outros estivessem a caminho.
​― Ele invadiu nossas terras e merece punição, o anjo sabia das
consequências.
​ Por que ele invadiu? – Sussurrei, voltando-me para Arthur. Toquei

seu rosto carinhosamente, tentando acordá-lo.
​― Quer salvá-lo, senhorita Monteiro? – Questionou, ignorando minha
pergunta.
​― O que preciso fazer?
​O diário surgiu entre os meus dedos, arfei assustada.
​― Ler.
​Imediatamente, as palavras de Persus me fizeram estremecer: Algum
tolo lerá isso para mim.
​Resolvi ser arrogante e tentar descobrir porque ele mesmo não lia.
​― Não sabe ler? – Ameacei uma risadinha, mas sentia tanto medo que
saiu mais como um guincho de animal.
​A escuridão daquele rosto se aproximou, senti a respiração do homem
em minhas bochechas e, mesmo após piscar algumas vezes, parecia não haver
nada dentro daquela capa, apenas o vazio.
​― Não acho que queira descobrir o que farei com seu namoradinho,
se não ler.
​― O.K. – Sibilei e me afastei rapidamente dele, sentando aos pés de
Arthur, preferia me manter perto dele, na ilusão de que poderia me ajudar
caso precisasse. Abri na página que o estranho indicou, um dedo enluvado
bateu com firmeza sobre a folha que brilhava levemente sobre minhas mãos,
comecei a ler pausadamente: – O futuro é incerto, Suzanna, a cada vislumbre
que recebo alguma coisa se desequilibra porque, inevitavelmente, tentamos
mudar o futuro, mas, quando o fazemos, existe uma consequência. Não se
esqueça. Nunca esqueça: A cada alteração, novas mudanças surgem,
piorando ou não o futuro. Colocando em desarmonia o universo. – Entendia
aquelas palavras, papai tentara alterar meu futuro para que nem eu e nem
Pierre viéssemos para o Inferno e era exatamente onde estávamos. Suspirei,
continuando a leitura para um impaciente demônio. Ele havia batido
novamente sobre o diário. – Você é apenas uma criança hoje, mas já vi
quando e onde terá esse livro em suas mãos e eu já não serei o mesmo. Já
não serei seu pai. – Meus olhos se encheram de lágrimas, ergui os olhos para
o estranho e perguntei antes que pudesse pensar com quem eu estava
conversando. – Como ele pode ter visualizado um futuro que ele não estaria
presente por estar morto?
​Ele riu, o som ecoou pela caverna e voltou ainda mais forte trazido
pelo vento. Estremeci, voltando a atenção ao diário.
​ Talvez, por ter sua alma entre os nossos. – Havia animação na voz

do homem. Inspirei, triste por ter a mesma certeza dele, de que meu pai
estaria no Inferno.
​Continuei lendo em voz alta.

​Você é filha de um semi-anjo.


​Os anjos têm quatro qualificações: anjo, meio-anjo, meio-humano e
Nefilin.
​Um anjo é nascido no Céu, caído ou não, sempre será nascido no
Céu.
​Um meio-anjo tem entre 51% e 99% de sangue angelical em suas
veias.
​Um meio-humano tem entre 10% e 50% de sangue angelical em suas
veias.
​Um Nefilin tem todas as porcentagens anteriores, mas não tem
conhecimento de sua condição. Apenas sangue angélico em suas veias. É
leigo.

​ lhei o homem encapuzado, pensando nessas informações, depois


O
para Arthur, me perguntando se ele sabia disso.
​Agora que tenho conhecimento me torno o quê? Um semi-anjo?
Perguntei-me.
​― Continue. – Ordenou autoritário.
​― Não entendo o que você pretende com essas informações, qualquer
anjo caído as daria para você. – Murmurei.
​― Continue.
​Respirei fundo, olhando as páginas com o brilho azulado, o brilho me
lembrava a luz que envolveu o corpo do anjo Guerreiro que conheci na casa
dos meus avós ou o brilho que envolvia o corpo do pai de Pietro e Pierre.
Será que o diário continha propriedades de anjos? Algum feitiço que não
permitiria a leitura de outra pessoa que não fosse um anjo ou filho de um
anjo? Sorri de lado pensativa, mas logo retomei o afazer, curiosa.

S​ er leigo não é uma benção, como certamente você pensou, ser leigo
é uma maldição. Não conhecer do que é capaz é benéfico para o Inferno e é
um dos motivos de ter criado este livro. Tentei detalhar aqui tudo o que
aprendi, pois conheço o meu futuro e sei que não poderei fazê-lo
pessoalmente, mas você poderá fazer isto por mim. Fazer-me lembrar de
quem eu fui e quem gostaria de ser.

​― O que ele quis dizer com isso? – Perguntei em voz alta.


​― Continue.
​Revirei meus olhos, impaciente. Queria ler, mesmo sem a ordem, mas
não queria uma plateia. Virei a folha e me deparei com um desenho mal feito,
pois papai não desenhava bem. Inclinei o diário e também minha cabeça,
tentando decifrar aquelas curvas. O encapuzado se aproximou para ver o que
eu via. Ergui para ele, mas ele colocou as mãos onde seria seu rosto e se
afastou gemendo.
​― O que foi? – Não precisei de respostas para saber que a luz do
diário o tinha incomodado. Sorri internamente, criando um plano para sair
dali com Arthur.
​― O que vê? – Ele usou o tom mais tranquilo do que os aveludados
de antes.
​Sorri, desenhando com meu dedo sobre a página o que eu via e
detalhando em voz alta.
​― Não sei... É um símbolo. Já vi este símbolo. – Sussurrei, apertando
os olhos, tentando me recordar.
​― Que símbolo?
​― Parece uma espada, mas tem outra coisa a envolvendo...
​― Uma mão? – Novamente ele se aproximou, parecia entretido.
​Olhei bem e neguei com a cabeça. Onde já vi isto?
​― Fogo e espada...?

​ escuridão me envolveu e me vi presa na cela novamente, os gritos


A
de Arthur me despertaram. Sentei-me arfando, demorando um pouco a me
dar conta de que estava de volta. Corri até as grades, chamando o nome de
Arthur a plenos pulmões, mas, quando olhei bem, na frente da cela não havia
nada, não tinha um caminho para os andares acima, não havia pedra, mas o
chão parecia feito de barro avermelhado, um líquido perpassava pelas grades,
avançando para dentro da cela.
​Subi rapidamente na cama, colocando a bolsa transversalmente em
meu tronco e calcei o tênis, deixando a parte de cima do moletom onde
estava, perto da pia.
​― Alguém! Por favor! – Chamei, mas nem o espectro parecia
presente.
​As grades foram consumidas, a lava alaranjada ficava mais próxima a
cada segundo, borbulhando, engolindo tudo por onde passava. O sonho que
tive com Arthur se jogando dentro de um buraco com lava pareceu inofensivo
perto disto. Desejei ter asas como os anjos para voar sobre ela e sair dali.
​Chamei a plenos pulmões por Havi, Persus, até pelo homem
encapuzado que apelidei de Escuridão, mas nenhum deles surgiu para me
socorrer. A lava avançou e estava quase tocando a cama quando enxerguei
além dela, havia um buraco como o que vi no sonho, embaixo borbulhava e
crepitava, sobre ela um volume branco e cintilante dançava. Abri bem os
olhos, tentando ver o que era.
​― Uma espada! – Assim que falei tudo desapareceu, se despedaçando
diante dos meus olhos.
​Estava novamente na caverna onde lia o diário, Arthur não estava lá
nem o demônio gigante, apenas eu e Escuridão.
​― Diga-me onde exatamente você viu a espada. – Ordenou.
​Estava trêmula, piscando, demorei a perceber que foi uma visão do
futuro.
​― Eu vou morrer queimada por aquela lava? – Gritei assustada.
​― A espada garota! Onde a viu?
​― Não te interessa! – Devolvi o grito.
​Ele envolveu meu braço com o punho firme, apertando tanto que
começou a doer. Recolhi o diário do meu colo e o abri no rosto do
encapuzado. A luz brilhou lá dentro e um par de olhos claros como água me
encarou demonstrando dor, havia ódio e em seguida mudou. Por um segundo,
pareceu se lembrar de algo e então recuou, me empurrando para longe. O
diário escorregou até os pés dele e eu caí de joelhos contra a pedra.
​Nada foi dito, ele segurou o diário e, como num piscar de olhos, eu
estava presa dentro da cela e, desta vez, sabia que não estava sonhando ou
tendo uma visão. Estava completamente sozinha com a imagem daqueles
olhos azuis diante de mim.
​Eu o conhecia, tinha certeza absoluta disso.
Capítulo 22

Pelos olhos de Arthur

​ ão conseguia acreditar no que Victória havia dito. Em tantos séculos


N
de existência, jamais presenciei coisas como as das últimas semanas. Suzanna
fizera um caído se regenerar, havia uma comoção entre os dois lados para
capturarem-na e agora sua alma – ainda viva –, tinha sido levada ao Inferno.
​― Explique-me mais uma vez e me diga por que não aprendemos isso
no treinamento? – Insistiu Pietro, verbalizando minhas indagações.
​― Nem tudo é para todos os ouvidos. – Alfinetou Victória, parecendo
impaciente, porém continuou. – O corpo físico não é forte o suficiente para
adentrar o Céu ou o Inferno, é por isso que, quando morrem, recolhemos as
almas e não o corpo. A alma é feita apenas de energia, compõe a essência de
um ser. Se for má, é buscada por ceifadores do Inferno; se for boa, é colhida
por ceifadores celestes. Nenhuma alma ainda em vida pode ser cultivada.
Persus é muito poderoso para ter conseguido esse feito e para conseguir
mascarar a presença dela na Terra, como fez até agora. Ou ele teve ajuda, que
é uma das únicas explicações que encontro.
​― Havi pode tê-lo ajudado. – Interferiu Pietro, pensativo. – Ele pode
entrar em terreno santificado.
​Victória balançou a cabeça concordando. Nós estávamos sentados no
sofá da casa de praia de Pietro. Apenas Demetria e Teruy haviam se retirado
para colher informações para nossa líder, que fez questão de lhes dar as
instruções afastada de nós.
​― Você sabe por que essa Nefilin é diferente? – Questionou Sophia.
​― Sei e não posso falar sobre isso.
​Ela se levantou de repente, olhando para o nada, conhecia aquela
postura. Ela estava recebendo uma missão ou alguma informação a que anjos
menores não têm acesso. Um segundo depois, minha mente foi tomada por
uma paz indescritível, era a presença do Arcanjo.
​Hyeliah. – A voz soou suave, mas firme como um trovão. Minha
postura se tornou rígida, pois eram raros os contatos diretos do Arcanjo
Miguel com os anjos terrestres. Aconteciam apenas em circunstâncias
especiais. – Hakyll viu o que o Inferno deseja, você precisa encontrá-la antes
que ela lhes dê a localização, ou Céu e Inferno se enfrentarão antes do Juízo
Final.
​Sim, senhor. – Respondi obedientemente, mas a sensação de paz não
sumiu como imaginei.
​Ao sul da cidade vocês a encontrarão, os anjos retornarão em breve
com a exata localização dela. Só existe um modo de resgate, um modo para
que sua alma não seja corrompida e seu corpo consumido. Você precisará
cair.
​Assim que a sensação de paz se desfez, me levantei arfando, meu
corpo tremendo convulsivamente. Como era possível que minha designação
fosse cair? Ser um caído? Renegar a Deus e meus irmãos e por ordem do
Arcanjo?
​― Você está bem? – Questionou Sophia, me encarando.
​― Vou me recolher. – Avisei, me retirando para o quarto.
​Entrei no chuveiro com a roupa que estava em meu corpo, confuso
com a informação. Se o próprio Arcanjo decidiu me comunicar, é porque
gostaria que tivesse sucesso no resgate de Suzanna, mas ao preço da alma de
um anjo. Tentei recordar de tudo o que a vi fazer desde menina e não
conseguia ligar os fatos. O que ela poderia informar ao Inferno que causaria
todo esse tumulto.
​Não tinha nenhum problema em me sacrificar para salvá-la, faria isto
se visse que era a única solução, mesmo que o Arcanjo não tivesse solicitado,
mas não fazia sentido. Nenhum.
​Depois do rápido banho, voltei ao quarto, vesti calça branca, camisa
folgada, meias e o sapato. Era preferível estar pronto para sair, pois não
sabíamos o que estava por vir. Deitei-me, mas sabia que não dormiria, a
intenção era pensar e esperar o retorno de Demetria e Teruy. Puxei o ar,
perdendo o fôlego ao me dar conta de que Miguel havia dado um nome
celeste para Suzanna: Hakyll. Levantei-me às pressas, mas antes de abrir a
porta, Victória se materializou em meu quarto, fazendo-me dar um pulo para
trás.
​― Você foi elevado. – Afirmou. – E eu também.
​― Notei. Você se teletransporta agora! – Sorri como um
cumprimento. – Parabéns!
​― Você se tornou comandante e eu sou um principado. – Ser um
Príncipe na Milícia Celestial significa ser referência entre os anjos terrestres,
um grau acima do meu comando e um abaixo do Arcanjo. Um principado é
convocado para entregar mensagens a reis, presidentes, pessoas de
importância maior, mas também a impor sobre a humanidade a fúria de Deus.
Mantive-me silenciosa, pois sabia que ela teria de nos deixar para seguir seu
novo posto. – Você tem uma missão difícil pela frente, Pierre.
​― Você foi informada?
​― Fui... A Demetria foi absolvida de seus delitos por entrar no portal
para o Inferno, ela retornará para ajudar. Confie nela. – Suspirou pesarosa,
perdendo a pose e se sentando na beira da cama, não lembrava o que
aconteceu a Demetria até ela me informar. Concordei com a cabeça, porém
sério ao notar a tez de Victória. Sabia que minha missão não seria fácil e
encará-la deixava mais palpável o que deveria fazer. – Só posso dizer isto
para ajudar: Interprete literalmente.
​Antes que eu pudesse comentar sobre o nome de Suzanna e entender a
informação dada, Victória se desfez em fumaça, provavelmente se
transportando a outro lugar, longe de nós. Abri a porta, sentindo um novo
ânimo apesar da confusão em minha mente. O Arcanjo confiou em mim e, se
o fez, é porque tem certeza de que vou resgatar a Nefilin, então em breve ela
estará conosco.
​Ao chegar na sala, Demetria e Teruy estavam entrando também, havia
sol do lado de fora, era o terceiro dia de buscas sem nenhum resultado. A
mulher parou à minha frente, me examinou e depois balançou a cabeça.
​― Está no comando. – Afirmou. Poucas vezes estive perto de anjos
que tiveram suas funções alteradas tornando-se comandantes ou Príncipes
como aconteceu com Victória, que era comandante e treinadora, mas sabia
que a autoridade nessas pessoas se tornava sensorial. Qualquer anjo que se
aproxime sente que lhe deve respeito e obediência, estava nítido no rosto de
Demetria que ela já sentia isso. Confirmei com a cabeça. – Encontramos
Suzanna, mas existem demônios vigiando a casa, precisaremos de mais
alguns para retirá-la de lá.
​― Onde fica?
​Pietro estava ao meu lado, esperando pela mesma informação.
Trocamos um olhar cúmplice e rápido.
​― Na casa dos avós dela.
​― Como? Mas... – Pietro riu. – Debaixo do nosso nariz, assim como
fizemos a trazendo para cá.
​― Passe-me o relatório de tudo, Demetria. – Pedi. Era fácil comandar
quando a vida de quem eu amo estava em jogo.
​ la descreveu a casa como a conheço, porém ressaltou que o andar
E
térreo estava inutilizado por causa do fogo que consumiu boa parte da
recepção e da sala, apenas a cozinha e os andares superiores pareciam
intactos. Os empregados não compareciam aos seus turnos e eles não tinham
visto os avós de Suzanna, mas sentiam a presença de Nefilins na casa e de um
anjo, mas não conseguiram identificá-lo. Decidimos invadir de madrugada
para não chamar a atenção de nenhum humano.
​Uma equipe de anjos me foi enviada para combatermos os demônios
que cercavam a Mansão dos Monteiro. Chegamos pelo ar, nos ocultando de
qualquer criatura sendo humanos, Nefilins, anjos ou demônios. A casa estava
silenciosa apesar de sentir o cheiro de enxofre no ar e o calor peculiar que
essas criaturas exalam. Separamo-nos. Demetria com um grupo de três
Guerreiros entraram pelos fundos da casa onde eu sabia estaria ainda
protegido e de fácil acesso, Pietro com mais dois anjos sentinelas entraram
pela porta da frente e eu e Teruy sobrevoamos o quarto de Suzanna enquanto
um anjo adentrava pela janela quebrada. Acima de nós, mais alguns
sentinelas vigiavam, prontos para o ataque caso fosse necessário.
​Três. Avisou por pensamento o anjo sentinela dentro do quarto.
​Fiz sinal para Teruy e entramos pela janela que ele deixou aberta.
Como estávamos invisíveis, não fomos identificados de imediato, mas sabia
que logo sentiriam nossa presença.
​Teruy não esperou, saltou sobre o demônio que estava em pé na beira
da cama de Suzanna, ele não teve tempo de gritar, a lâmina do punhal
transpassou sua garganta e ele se desfez em vapor, deixando um cheiro de
enxofre enjoativo no ar. Não esperei também, saquei minha espada. O
demônio já havia me notado, avançou me acertando um golpe forte no ombro
direito, dei passos para trás e, com um impulso, contra-ataquei, a lâmina
rasgou seu abdômen e um sangue escuro verteu do demônio. Em seguida,
este também se desfez. Faltava um, mas como não o vi dentro do quarto,
entendi que o anjo sentinela se livrou dele. Foi fácil, muito fácil, e isto estava
me preocupando um pouco.
​Antes de olhar para Suzanna, achei melhor me concentrar em
livrarmos a casa dos demônios e Nefilins e descobrir que anjo os estava
ajudando. Deixei Teruy com ela e sai do quarto, havia um demônio no
corredor, ele não tinha notado a movimentação ainda. Ocultei-me e avancei
sem medo, meu dever era protegê-la e mais nenhum. Quando saquei a
espada, ele se virou, os olhos num tom vermelho sangue. No rosto, um
sorriso de júbilo. Ele correu na minha direção como se me visse e se chocou
contra mim, a espada atravessou sua costela saindo do outro lado. Antes de se
desfazer em vapor, ele riu.
​― Tem algo errado. – Sussurrei para mim mesmo.
​Uma fumaça escura começou a subir do chão, recuei alguns passos. O
cheiro forte de enxofre e queimado me fez prender a respiração. Apontei a
espada para a frente e chamei o nome de cada anjo em pensamento, avisando:
É uma armadilha!
​A fumaça subiu até tocar o forro acima, depois voltou, parecia
inofensiva, mas, se conhecia bem o Inferno, tinha certeza que era um
demônio maior, porém, como fumaça, eu não tinha como feri-lo, precisava
esperar que se materializasse, o que ele não fez. Um par de olhos vermelhos
apareceu naquela névoa, enormes, cada um do tamanho do meu punho. Não
demonstrei como estava surpreso, continuei esperando, recuando para não ser
atingido.
​― Guardião, tenho um recado para você.
​― Eu não recebo recados do Inferno. – Devolvi entredentes.
​O ser soltou um som gutural e riu.
​― O futuro é imutável, cedo ou tarde você será um dos nossos, só não
esqueça que quem brinca com fogo pode se queimar.
​E sumiu diante dos meus olhos.
​Demetria chegou no mesmo segundo, tinha sua espada em punho,
sangue escuro cobrindo suas vestes, ela me encarou assustada e se
aproximou.
​― Era Persus? – Neguei com a cabeça.
​― Eles esperavam que viéssemos, queriam isto. Eu não sei quem era,
mas foi um aviso.
​― Queimar-se como? – Perguntou-me.
​Dei de ombros.
​― A casa está limpa?
​― Localizamos os Nefilins, o anjo não estava presente. Os demônios
foram subjugados. – Adquiriu um tom que soldados usam para se portar a
seus superiores.
​Segui-a. Enquanto descíamos, meu coração estava em Suzanna, nem a
tinha olhado, mesmo sabendo que estava na cama. Não queria me distrair,
porém queria desesperadamente estar junto dela e não patrulhar o resto da
casa.
​ a sala, amarrados na poltrona de costas para mim estavam dois
N
Nefilins de idade avançada. Pietro parecia uma estátua em pé ao lado deles,
com a tez preocupada, diria que até com raiva. Quando nossos olhares se
encontraram, entendi imediatamente o motivo dele estar assim, pois abriu a
mente me permitindo ver o rosto dos Nefilins. Eram os avós de Suzanna. Não
consegui conter minha raiva, fui para frente deles, falando num tom baixo,
mas carregado de rancor.
​― Por que ajudaram a capturá-la? Por que deram abrigo a demônios?
Vocês sabem o que isso significa para vocês? Quem era o anjo que estava na
casa? – Começava a alterar o tom de voz, andando de um lado ao outro na
sala.
​― É o destino dela e aceite, é o seu também. – Esbravejou a avó de
Suzanna, parecia certa de sua resposta. Virei-me, encarando-a de perto.
​― Se Deus permitiu que alguém visse, é porque havia chances de
mudá-lo. Eu sou dono do meu destino e não uma visão estúpida! Assim como
Suzanna é dona de suas próprias escolhas. Ninguém tem o direito de
manipulá-la como vocês fizeram!
​― Você sabe que, mesmo tentando mudar, tudo o que aconteceu a
levou direto para você. – Retrucou a mulher.
​Pietro me afastou e se ajoelhou à frente deles, desatando os nós das
amarras e os soltando.
​― Por que fizeram isso? Foram obrigados? – Foi mais amável do que
eu gostaria.
​― Não, filho, o pai dela pediu assim. – Respondeu Alfredo, o avô da
menina.
​― O pai dela? – Ele parou o que estava fazendo. Fiquei do mesmo
modo, no centro da sala, encarando os dois. Pareciam os mesmos que
amavam Suzanna, que a queriam bem. Como não percebi nada antes?
​― Ele viu. Disse que era melhor não atrapalharmos ou o futuro se
alteraria para pior. – Explicou o avô.
​― Não atrapalhar é uma coisa muito diferente de interferir, de dar
abrigo a demônios! – Esbravejei, segurei as cordas que estavam ainda na mão
de Pietro e voltei a dar o nó, bem firme. – Quem é o anjo que ajudou vocês?
​Nenhum dos dois falou e as mentes – apesar de conseguir ouvir tudo o
que pensavam – não denunciavam nenhum rosto. Demetria se aproximou de
nós. Como chefe da guarda, ela sabia como lidar com prisioneiros melhor do
que qualquer um. Percebi neste instante que estava cercado dos melhores, os
anjos mais competentes que eu conhecia. Soltei as cordas confiando nela,
levantei-me e me afastei, assentindo com um aceno de cabeça para que ela
assumisse o interrogatório.
​― Senhor e senhora Monteiro, vocês serão julgados e punidos de
acordo com seus delitos, qualquer intenção de seus corações não ficará
escondida, portanto, cedo ou tarde, a verdade virá à tona. Sugiro que nos
ajudem, pois, quanto maior tempo perdido, menor as chances de Suzanna
sobreviver.
​Respiramos juntos, todos que estavam na sala. Ela sabia como se
expressar.
​Alfredo pareceu genuinamente incomodado. Em sua mente, imagens
de Suzanna pequena, lembranças de como ele a comparava a um anjo,
momentos que passaram juntos. Ele suspirou.
​― Miguel prometeu que, no final, tudo ficaria bem e que a única
forma dela não morrer no acidente era deixarmos a vida seguir seu curso,
porém, quanto a abrigarmos os demônios, não tivemos escolha. –
Argumentou.
​― Eles os obrigaram?
​O homem negou, encarando os olhos de Demetria com receio.
​― Não podemos falar sobre isso. – Sussurrou.
​Ela me encarou confusa, puxou a corda dos punhos deles e os levou
da sala, não quis perguntar mais nada, mas algo na expressão do senhor
Alfredo me disse que ele não estava com medo dela, mas dos demônios que
acolheu e do provável anjo que ajudou. Decidi descobrir seu nome por conta
própria, eram raros traidores que conseguiam escapar sem ter suas asas
destruídas; certamente, fazia outras pessoas agirem por ele, persuadindo. Já
tinha visto isso acontecer algumas vezes, em casos que Victória nos fez
estudar exaustivamente no tempo de treinamento. Pietro chegou à mesma
conclusão, mostrando-me isto em sua mente, lembrando um caso específico
que estudamos quando mais novos.
​― Um momento, Demetria. – Pedi quando estavam subindo para o
segundo andar. Pararam e me aproximei. – Dona Catarina, a senhora se
lembra do nome do anjo que ajudou a capturar sua neta?
​Imediatamente, a imagem do rosto do anjo se formou na mente da
mulher, eu não sabia se os outros também estavam prestando atenção aos
seus pensamentos, por isso rapidamente fiz a mesma prece que fiz com
Suzanna quando ela havia aberto a mente para um caído, não queria que mais
ninguém conhecesse o traidor, apenas eu.
​― Não me lembro. – Mentiu.
​Mas, eu via claramente e o traidor estava entre nós. Um dos anjos
sentinelas a quem eu não tinha dado muita importância, mas que tinha
deixado junto a minha guarda o tempo todo. Assenti sem demonstrar nada e
permiti que Demetria os levasse para o quarto.
​― Eles treinaram seus pensamentos para não revelar. – Sussurrou
Pietro ao meu lado. A afirmação foi útil e me fez perceber que protegi a
tempo os pensamentos da senhora.
​― Algo muito grande está acontecendo e envolve Suzanna. –
Sussurrei para ele. – Vamos vê-la.
​Ele concordou. Ordenei aos sentinelas que vigiassem a casa e
coloquei no comando deles o traidor, pois era obrigatório deixar seus
pensamentos livres para que o líder vigiasse através dele. Sorri internamente
com a minha ideia.
​― Senhor, podemos nos revezar? – Questionou-me.
​― Qual seu nome, sentinela? – Perguntei de cima da escada quando
me chamou.
​― O nome terreno é Joel. – Ele tinha aparência de um homem de
cinquenta anos, cabelos castanhos beirando o branco dourado, nariz mediano,
pele branca. Era forte como um anjo deve ser, mas baixo. Pensei que seu
nome deveria ser Judas, como o traidor, mas não verbalizei.
​― Não quero que ninguém descanse pelas próximas horas, aquele
demônio que escapou tem como voltar sem ser rastreado. Você vigiará dentro
da casa, pode ficar aí na sala que eu e Pietro nos encarregamos do andar de
cima, os demais se espalhem ao redor, quero que dois vigiem a casa ao lado,
da família Santos, eles são influenciáveis. Todos ocultos, exceto você, Joel. –
Ele concordou, mas, antes de se afastar, ordenei. – Anjo, libere sua mente,
vou vigiar através de você.
​Lembrei-o da regra, pois ele não tinha feito ainda. Dei-lhe as costas
sem esperar sua reação, não poderia demonstrar que sabia quem ele era.
​― Aprendeu a comandar, maninho? – Brincou Pietro quando
entramos no quarto de Suzanna, não dei atenção. A menina deitada na cama
estava pálida como um cadáver, a respiração fraca, de olhos cerrados.
​Ajoelhei ao lado da cama, pegando sua mão, estava desesperadamente
gelada. Pietro me seguiu, mas ficou a uma distância razoável. Por instinto,
sabia que ele queria fazer o mesmo; por isso, dei espaço para que se
aproximasse também.
​― Ela está vazia. – Sussurrei.
​― Você consegue sentir a alma dela? – Espantou-se, tocando os
cabelos dela, fazendo carinho.
​― Acho que o cargo me deu esse dom. Consigo sentir todos, até os
demônios, mas dela não vem nada, é o mesmo com aquela porta. Na verdade,
eu tinha essa percepção antes... Ah, não sei Pietro, minha cabeça está
girando. – Encostei a testa na mão de Suzanna, me permitindo um momento
de fraqueza.
​Meu irmão se ajoelhou ao meu lado, apertando meu ombro como para
demonstrar que estava ali. Sorri.
​― Você acha que a aprisionaram em outro lugar?
​Balancei a cabeça negando. Não sabia, não fazia ideia de como o
corpo dela poderia estar ali e a alma não. Não sabia nem como descobrir onde
estava. Não ter Victória por perto não facilitava as coisas. Suspirei vencido.
​― É assim mesmo? Separam corpo e alma? O que acontece com o
corpo se a alma não retornar? – Perguntei a Pietro sem erguer o rosto,
sentindo a pele da mão de Suzanna se aquecendo pelo toque da minha.
​― Sim, é assim mesmo... Se a alma dela não retornar, o corpo
morrerá. – Ele apertou meu ombro, soltando um som exaltado. – Temos
pouco tempo!
​― Para onde a levaram? O Inferno? – Ele confirmou, apesar de
ambos já sabermos disso. – Quanto tempo?
​Ergui o olhar, ele parecia febril, os olhos arregalados.
​― Seis dias, o tempo que Deus levou para construir o universo. No
sétimo, o corpo físico morre e sua alma ficará presa no Inferno para sempre.
​Tínhamos apenas dois dias de prazo e eu não sabia o que fazer, não
ainda.
Capítulo 23

​ emoramos algumas horas para removermos todos da casa dos


D
Monteiro para um lugar que achávamos ser seguro: uma residência
abandonada na Vila das Mercês, próximo ao bairro do Ipiranga. Era um
sobrado simples de dois andares, o superior possuía quartos planejados, as
camas e roupas pegando poeira. Ao que Demetria averiguara, a família se
mudou às pressas para o interior, ficando de buscar o restante de suas coisas
no mês seguinte. Esperava que não antecipassem seus planos para nos
hospedarmos ali sem interrupções. No andar inferior, a sala e a cozinha eram
simples, mas bem equipados.
​Apesar de o traidor estar entre nós, com a mente desprotegida ele não
teria como avisar ninguém sobre a localização.
​Na sala, ficaram os Nefilins, Demetria e Sophia; Joel e outras
sentinelas do lado de fora e eu, Pietro e Teruy em uma das suítes com cama
de casal, cuidando de Suzanna que continuava desacordada.
​― O que faremos agora? – Perguntou Teruy, que visivelmente não
sabia da importância dessa missão.
​― Localizar a alma da menina.
​― Como? – Interrompeu Pietro, ele estava sentado ao lado dela,
mexendo nos cabelos sem vida. Suzanna parecia em coma.
​― Não faço a mínima ideia. – Respondi pensativo, ao mesmo tempo
pedindo com fervor uma solução. Sabia que o Soberano me informaria se eu
merecesse essa dádiva. – Se fosse um caído ainda, era só te mandar para lá,
resgatá-la. – Comentei. Pietro sorriu amargo, concordando com a cabeça.
​Cair... Preciso cair. Mas, que pecado cometer para ser levado ao
Inferno? Amaldiçoar a Deus sem que seja de coração não me fará cair...
Pensava enquanto a observava respirar minimamente.
​No andar debaixo, conseguia ver Demetria interrogando os avós de
Suzanna, mas não os ouvia, pois Joel não prestava atenção a eles, mas
verificava falhas na casa, locais onde pudesse entrar e sair sem ser visto.
Sabia que, em algum momento, ele se distrairia, porém tentei ouvir sem me
concentrar no anjo ou ele sentiria minha presença em sua mente.
​― Pierre? – Pietro cortou minha conexão ao me chamar e, quando o
olhei, ele continuou. – Será que o cérebro dela sabe onde ela está?
​ pertei os olhos, pensando na pergunta, levantei-me da poltrona, indo
A
até eles.
​― Você consegue ouvir algum sonho ou pensamento? – Ele negou,
então olhei Teruy que era mais poderoso que Pietro e eu juntos, porque
Guerreiros possuíam mais poderes psíquicos que outros anjos. Ele se
aproximou e tocou de leve a testa de Suzanna.
​O anjo fechou os olhos, um brilho azulado começou a se formar em
volta de seu corpo, não sabia quanto ele precisava se esforçar, mas o brilho
indicava que era muito. Esforçava-se para ouvir. Cerca de um minuto depois,
voltou ao normal e abriu os olhos nos encarando.
​― Parece que ela está sonhando com um vulcão. Vulcão e lava.
​A imagem de uma situação se formou em meu cérebro depois que ele
nos deixou ver. O ar era pesado e difícil de caminhar, com os pés afundando
numa espécie de magma que não queimava, os passos se tornando mais fáceis
enquanto me aproximava de um local iluminado. Recuei quando vi um
buraco alguns passos à frente, a lava do vulcão borbulhando logo abaixo.
​A voz de Suzanna ecoava, chamando-me aos gritos, ordenando que
não pulasse, me fazendo encará-la. Ela tentava me alcançar e havia tanto
desespero em seus olhos que despertei para a realidade, lembrando-me do
sonho compartilhado há algumas noites, da minha inútil tentativa de acalmá-
la quando eu mesmo estava perplexo de sonhar junto com ela, tendo a visão
como se estivesse presente e não apenas assistindo ao sonho.
​A voz do Arcanjo penetrou meus pensamentos ao mesmo tempo, se
misturando a lembrança do sonho: Só existe um modo de resgate, um modo
para que sua alma não seja corrompida e seu corpo consumido. Você
precisará cair.
​― Já sei como encontrá-la.
​― Como? – Perguntaram ao mesmo tempo.
​Olhei para Suzanna, sentindo um frio gelado na boca do estômago. O
Arcanjo tinha razão quando disse que eu teria de cair e Victória também tinha
razão quando me mandou pensar literalmente. Se ela não tivesse dado a dica,
não teria chegado a essa conclusão, porém ainda faltava saber como chegar
exatamente naquele buraco de lava, como alcançá-la ali. Talvez se a
interceptasse, conseguiria fazê-la despertar e assim sua alma seria sugada por
seu corpo, retirando-a do Inferno. Mas, como chegar àquele lugar?
​― Não posso explicar aqui, não em voz alta. – Sussurrei. Teruy e
Pietro se entreolharam.
​― Vamos dar uma volta, maninho?
​― Juro que vou mantê-la em segurança. – Afirmou Teruy.
​― Obrigado, meu amigo.
​Assenti em seguida para Pietro. Ocultamo-nos, pois estava claro,
apesar de estar perto do por do sol, abrimos nossas asas e alçamos voo. Ele
sabia exatamente para onde me levar, o segui em silêncio, cuidando para que
não fôssemos seguidos. O voo levou cerca de dez minutos, começamos a
descer acima de um prédio razoavelmente grande. De cima, não reconheci a
estrutura. Havia um pequeno estacionamento de pedras ao fundo da
propriedade, um prédio do tamanho de quatro casas medianas e, à frente, uma
estrutura com luzes, telas de vidro e alguns enfeites de festa.
​― Aqui é seguro. – Informou Pietro, pousando no estacionamento.
Segui-o, guardando minhas asas assim que pisei no chão.
​― É uma igreja? – Espantei-me.
​― Sim.
​Conseguia sentir a vibração do local, era uma igreja que tinha fé
verdadeira em Deus. Na atualidade, era difícil locais sagrados serem
realmente sagrados, pois a humanidade não possuía tanta fé em Deus ou nos
anjos; iam às igrejas para cumprir seu ritual semanal, para se certificar de que
sua alma iria para o Céu no caso de morte, mas sem acreditar realmente que
existe Céu e Inferno. Surpreendi-me e ao mesmo tempo fiquei feliz, pois
sempre há esperança, por mais que tudo pareça no fim e sem saída.
​Descemos um estreito corredor. Estava escuro pela falta de
iluminação e as paredes ainda no cimento; o local parecia em reforma. Pietro
abriu um portão de ferro verde-escuro e avançou por um corredor mais largo.
Havia humanos ali, adolescentes e jovens que brincavam e sorriam
abertamente sem se dar conta da nossa presença. Uma garota morena de
olhos incrivelmente verdes parou de falar quando passamos, em seguida
pegou o violão da mão de um jovem e começou a tocar e a cantar, a música
me deixou arrepiado e emocionado. Pietro me olhou atordoado, pois não
estávamos acostumados a isso.
​― Tem anjos voando neste lugar...
​A voz era um pouco desafinada, mas certamente ela havia nos sentido.
Fiz meu papel, enviando aquela simples e sincera adoração diretamente ao
trono de Deus. Quando me conectei à menina, imediatamente todas as suas
orações, de toda a sua vida adentraram em mim, como um portal aos Céus; as
orações também foram com aquela canção. Pietro me olhou e voltou a andar.
Segui-o, distanciando-me. Esse simples gesto, o reconhecimento, a fé
genuína, me deu esperança de encontrar Suzanna, de salvá-la.
​Estranho. Disse na minha mente. Sorri concordando, sentindo um
novo ânimo em meu espírito.
​E raro. Para onde está me levando?
​Na casa do caseiro. Tinha que fazê-lo pecar e sempre conseguia uma
brecha para entrar na casa dele pelo quarto do filho mais velho, mas o
homem é fiel, quase indestrutível, sempre havia uma força muito maior que
não me permitia avançar da janela, o máximo que conseguia era chegar à
cama do adolescente e era repelido. Sabe como é? Perguntou Pietro.
Subíamos alguns lances de escada.
​Não sei, nunca fui um caído. Sorri para ele. Realmente, a música e
aquela menina tinham me dado forças para derrotar um exército.
​Engraçadinho. Sorriu de volta. Bem... É como levar um soco e ser
empurrado para fora, mas não há nada, ninguém. Apenas a força da oração
e da fé.
​Arqueei as sobrancelhas e concordei lentamente, pois era como eu via
acontecer em locais consagrados, quando demônios tentavam adentrá-los.
​Chegamos a um novo corredor, havia um buraco ao centro onde dava
para ver o grupo cantando no térreo e ouvir um pouco também. Estávamos no
quarto e último andar. Pietro traspassou a porta branca da casa do caseiro sem
abri-la, o segui. A sala estava silenciosa e escura, e não havia ninguém ali.
Nós nos sentamos no sofá, ele na poltrona e eu no maior.
​― Aqui podemos falar sem interrupções ou alguém nos ouvir.
​― Eu sei como resgatá-la.
​― Como?
​Contei a ele do sonho compartilhado, também da visita do Arcanjo e
do que ele me disse. Pietro me ouviu em silêncio absoluto, tínhamos vivido
muitas coisas, mas ainda havia inúmeras que não conhecíamos e que não
sabíamos ser possíveis. Quando terminei o relato, ele estava pálido.
​― Só preciso descobrir como chegar a esse vulcão. – Respirei bem
fundo. – Deve haver uns dez pelo menos na América do Sul.
​Nenhum de nós era bom em geografia, ele ergueu os olhos me
encarando.
​― Que vulcão?
​― Você ouviu tudo o que te contei? – Reclamei, mas, quando
pretendia continuar a falar, fui interrompido.
​ Ela não está lá em corpo, Pierre, não é em corpo que você vai

encontrá-la, não é em um vulcão real.
​― Posso entrar lá, é só eu cair. – Murmurei.
​Pietro passou a mão nos cabelos, pensativo.
​― Não sei se é loucura o que estou pensando, mas um sonho
compartilhado não me parece apenas um sonho. Acho que também fazia
parte da ajudinha que estamos recebendo para encontrá-la.
​― Como assim?
​― Tente acompanhar-me, maninho, preste atenção. Desde sempre,
todo mundo quer lhe afastar dela porque você iria cair e ela também, mas o
pai dela descobriu que, mesmo tentando mudar o futuro, ele continuava
imutável, vocês caíam. Em todas as visões, vocês caíam. Ele decidiu não
mudar mais nada, deixar a vida seguir seu curso. Eu não sei o quanto ele
podia prever antes de acontecer, se vinha a ele ou se ele tinha o poder de
comandar o que queria ver, mas apostaria tudo de que ele podia ver o que
bem quisesse.
​― E isso significa o quê?
​― Que ele viu você e ela caindo, mas ele viu você a tirando de lá. É a
única explicação que encontro.
​― E essa descoberta me ajuda em quê? Eu ainda não sei como
encontrar aquele vulcão!
​― No sonho dela.
​Encaramos-nos, ele tinha um sorriso idiota de quem descobriu o
Brasil e está se gabando disso, esperou por alguns minutos enquanto eu
processava a informação.
​― Então, eu tenho que entrar no sonho, neste sonho, e pular? Isso é
impossível, ela não está sonhando.
​― O Teruy viu que ela estava num vulcão, cabeção.
​Ele tinha razão, o cérebro dela estava ativo, claro que estava! Talvez,
houvesse alguma chance de entrar no sonho e conseguir a localização dela no
Inferno e ensiná-la como sair de lá. Respirei fundo.
​― Cara, não tenho ideia de como fazê-la voltar.
​― Nem eu, mas se o Arcanjo te confiou isso, na hora você vai saber.
​Retornamos para a Mansão pouco tempo depois. Demetria havia
preparado o jantar com a ajuda de dona Catarina. Fizeram arroz, legumes
refogados, salada colorida, tudo o que um anjo precisa para ser feliz na Terra.
Sorri, me deliciando com o cheiro impregnado na casa, mas, ao me deparar
com Joel, percebi que ele teve uma hora de folga para avisar onde localizar o
corpo de Suzanna, mordi o lado de dentro da bochecha para não xingar alto e
levei Pietro comigo até o quarto em que ela estava.
​― Preciso te contar outra coisa que esqueci. – Sussurrei, me sentando
na beira da cama. Teruy aproveitara nossa chegada para descansar um pouco.
​― O quê? – Pietro me seguiu, colocou a cabeça de Suzanna em suas
pernas e começou a mexer em seus cabelos.
​Temos um traidor entre nós. Avisei em sua mente, ele confirmou com
um sorriso. Você sabia?
​Descobri ontem quando você fechou a mente da avó dela. Apontou
para Suzanna.
​Talvez ele saiba que eu sei, então. Preciso que você fique de olho
enquanto vou na Terra do Nunca buscar nossa anjinha. – Passei os dedos no
rosto dela lentamente, sentindo a frieza da pele – Você sabe quem é?
​Não, mas desconfio do Sentinela que você colocou de guarda.
​Confirmei com a cabeça, avisando que era ele, mas, em pensamento,
avisei que não tinha certeza, nossos pensamentos estavam protegidos, mas
todo cuidado era pouco para esta situação.
​Vamos descobrir. Tinha o semblante divertido com nossa tentativa de
disfarçar. Ambos suspiramos e olhamos para Suzanna. De quem você acha
que ela gosta de verdade? Perguntou-me distraído.
​De você. Era óbvio, mas ele negou lentamente. colocando a mão em
meu ombro. Encarei-o.
​Você só pode ser cego. Sussurrou, seu olhar estava distante, mas,
como não queria perder a harmonia e cumplicidade que voltava a ser parte de
nós, levantei-me, abrindo um sorriso.
​De qualquer maneira, irmão, primeiro preciso tirá-la de lá, o por vir
pertence a Ele. Apontei para o Céu.
​Reunimo-nos em volta da mesa de jantar, a casa era humilde, porém a
louça estava limpa e organizada; ao que parecia, dona Catarina e Demetria
haviam feito toda a limpeza. A comida estava saborosa. Apesar de não sentir
fome, estava agitado e apreensivo com o que tinha que fazer, só não havia
começado porque Pietro insistiu que me alimentasse, afinal não sabíamos o
quanto iria sugar da minha energia. Além do alimento comum, havia passado
algumas horas purificando minha mente, trocando a energia com Pietro,
adorando a Deus e recebendo Dele mais vitalidade, energia e confiança.
Agora, sentia-me preparado, mesmo temeroso.
​ epois que terminamos de jantar, fomos para a sala. Pedi que todos se
D
reunissem comigo exceto os externos, pois não havia necessidade de saberem
tudo. Permiti que os avós de Suzanna ficassem presentes, mas porque não
conseguia compreendê-los e talvez alguma reação indicasse o que
pretendiam. Fiquei em pé na frente da estante com Pietro de um lado e
Demetria do outro.
​― Preciso da atenção de vocês. – Iniciei e, quando me olharam,
encarei cada um nos olhos. – Vou resgatar a Nefilin, mas estarei fora do meu
corpo físico sem acesso aos acontecimentos externos. Demetria ficará
responsável por tudo na minha ausência e Pietro será o algoz. Qualquer que
seja o delito, ele está autorizado a punir, seja anjo, Nefilin ou humano. –
Todos encararam a mim e a Pietro temerosos, exceto Joel que não
demonstrava qualquer emoção. – A residência está protegida e qualquer que
tentar adentrá-la será notado, mesmo que seja convidado por algum aqui
presente.
​O aviso se dava, pois, se um demônio ou caído era convidado a entrar
por um anjo, as proteções não o machucavam. Fora assim que Pietro teve
acesso à casa de Suzanna no primeiro jantar, eu havia protegido a Mansão e a
proteção foi quebrada quando a avó dela os convidou para a ceia. Joel
pareceu morder a isca, pois notei um vislumbre de raiva pairar em seu rosto,
mas sumiu logo depois.
​― O que fará? – Perguntou Alfredo.
​― Não posso revelar tudo, apenas aguardem.
​Afastei-me enquanto Demetria dava as ordens e dividia o perímetro
entre as sentinelas, incluindo o traidor, que percebi que ela decidiu manter
dentro da casa. Não havia contado sobre ele, mas talvez já tivesse notado ou
apenas confiava em suas habilidades de luta.
​Permiti que apenas Pietro, Sophia e Teruy ficassem comigo e
Suzanna. Um protegeria o outro e eram confiáveis, astutos e ágeis, saberiam
lidar com qualquer adversidade.
​Retirei minhas sandálias e deitei na cama ao lado da Nefilin, ela
estava serena e, se eu não soubesse, acharia que estava apenas dormindo.
Respirei fundo, concentrando minha mente em meu objetivo e, como
aconteceu na cabana, fechei meus olhos me concentrando no que ela sonhava.
A dificuldade estava em adentrar um sonho que não estava no consciente,
pois o estado dela não era de sonho, mas de ausência total. Teruy conseguira
ver, pois era poderoso, tinha habilidades psíquicas mais avançadas que as
minhas.
​Havia apenas escuridão e sentia o frio do quarto, ouvia a respiração
leve de Suzanna, não tive sucesso. Respirei fundo, tentando me desligar da
preocupação de não conseguir. Queria vê-la, precisava. Pensei nos olhos dela,
no sorriso, em como o sol fazia seus cabelos brilharem quando os tocava, no
toque tímido e quente de suas mãos, na expressão de seu rosto depois de um
beijo... Fui sugado para dentro da escuridão na mente dela, percebi, pois meu
corpo parecia leve e eu estava em pé no meio do nada. Estiquei os braços,
tateando, andando a passos míngues, receoso, pois não sabia exatamente o
que esperar.
​Um clarão me fez virar e, ao fazê-lo, me deparei com Suzanna, ela
estava pálida como a vi na cama, mas seus olhos estavam focados nos meus,
a boca entreaberta como se fosse gritar.
​― Arthur? – Estremeci ao ouvir a voz e quase esqueci a minha
missão. Queria correr até ela e levá-la a força para fora dali, mas aquela não
era sua alma, mas parte de um sonho.
​― Você precisa acordar. – Avisei.
​― Não! Não! Você não pode fazer isso!
​Suzana gritou, começando a correr, então percebi que estava pisando
no magma, a lava escura cobrindo meus pés até a altura da panturrilha, o som
do crepitar do fogo estava alto e meu corpo era puxado para trás, para longe
dela, como ocorreu no sonho compartilhado. Tentei me desvencilhar, mas a
minha imagem parou diante de mim, era a personificação do sonho, um clone
com olhos profundos e arroxeados, a roupa estava rasgada e a tez
extremamente triste, ele me encarou e se jogou na minha direção, nos unindo.
Senti o choque inicial e não esperava por isso e nem sabia o que tinha
acontecido, mas a tristeza que havia nele e a vontade de morrer me
assombraram de tal modo que comecei a fazer o caminho que ele fazia, me
distanciando de Suzanna, procurando um lugar para acabar com a dor. Eu não
era mais um expectador, mas fazia parte do sonho.
​Ouvi novos gritos, Suzanna chorando, mas não importava, pois sabia
que ela não estava mais entre nós, era apenas um devaneio, um espectro
criado pela minha saudade, minhas lembranças.
​― Você tem que cair, só assim estará com ela. – Ouvi minha própria
voz ecoando naquele lugar escuro cheirando a enxofre. Concordei com ele, o
Arthur do sonho, e pulei.
​― Não!
​A última coisa que ouvi foi o grito afônico de Suzanna enquanto eu
caia no buraco. Meu corpo bateu contra o calor insuportável da lava e senti-
me sendo consumido, cada parte de mim ardia, queimava e estava sufocando.
Não conseguia puxar o ar ou abrir os olhos, sentia meu corpo se desfazendo
como uma carne sendo cozida. Gritei, mas não tinha voz, a lava fervente
entrou na minha garganta. Não parava de queimar e não sucumbia, sendo
engolido por aquele calor incandescente, pela sensação de morte e dor.
​Quem brinca com fogo pode se queimar.
​Ouvi o eco da voz do demônio antes de cair na inconsciência.
Capítulo 24

Pelos olhos de Suzanna

​ espertei gritando o nome de Arthur. Era a terceira vez seguida que


D
sonhava com ele caindo naquele buraco, o mesmo sonho das primeiras vezes,
mas este fora tão real que me sentia sufocando. Ele tinha me mandado
despertar e depois parecia que havia dois dele, mas então ele pulou, sem me
encarar, sem nada, apenas saltou e eu não consegui alcançá-lo a tempo.
​Depois do incidente onde tentei salvar Arthur e ler o diário de papai,
fui trancada na cela e não ouvi mais os gritos dele. Não sabia há quanto
tempo isto ocorrera, mas a mim pareciam dias. Não me alimentava, mas
estava me acostumando à fome e à sede constantes. O que incomodava em
demasia era essa angústia de que precisava sair dali o mais rápido possível.
​O Escuridão me visitava algumas vezes, querendo saber mais sobre a
espada que vi, e insistia que descrevesse milimetricamente cada partícula da
minha visão, mas não havia nada, apenas algo envolvendo-a, e esse algo
parecia lava de vulcão.
​― Suzie. – A voz me fez levantar, era aveludada e límpida, tinha um
tom urgente ao me chamar. Recuei na cama, abraçando minhas pernas e
encarando a fumaça que começava a se materializar dentro da cela. – Viu a
espada? – Era sempre a mesma abordagem e, se eu negasse, ele me
machucava ou ameaçava matar Arthur. Neguei, sentindo meus olhos arderem
com lágrimas que não iria derramar.
​― Você já sabe tudo, timtim por timtim do que eu vi! – Sussurrei.
​― Não sei, sinto que você me esconde algo.
​O diário surgiu sobre meus joelhos, respirei fundo, sabia que tinha que
abri-lo e ler, mas não queria, estava exausta, com medo, queria que tudo
acabasse logo.
​― Estou dizendo a verdade. – Murmurei. – É só uma espada! – Gritei.
​O riso ecoou dentro da cela, minha pele se arrepiou, ele parecia estar a
ponto de explodir comigo, pois não fui nada amistosa.
​― É a espada do Juízo Final, garotinha, e, se você não me disser onde
está, vou arrancar a informação do seu cérebro! – Esbravejou, era a primeira
vez que o som aveludado se fora. A voz parecia totalmente humana e num
tom que reconheci, mas, semelhante aos olhos azuis, também não consegui
distinguir quem ele me lembrava. O medo não estava ajudando em meu
raciocínio.
​― E essa espada serve para...?
​― Leia.
​O diário se abriu como que por encanto, as folhas se movendo como
mágica até que pararam. Era a última página, a última informação dada por
meu pai. Estava curiosa, queria que fosse uma despedida, algo sentimental,
algo para mim. Li antes mesmo de ele ordenar de novo.
​― A escolha entre o bem e o mal sempre será sua, filha. Não se deixe
influenciar pelas aparências, o medo está em seu coração. Você é forte e não
fraca, não precisa temer nada e ninguém, você está liberta.
​Ao proferir a última palavra senti algo vibrar no meu corpo. O
Escuridão gritou se desfazendo, mas eu sabia que ele não tinha morrido ou
algo do tipo, apenas se desmaterializado. O espectro explodiu ao meu lado e
vi um clarão na cela, o mesmo tom azul-claro que continha no corpo de
Pierre e de Teruy há algumas semanas. Levantei na esperança de ter algum
deles perto de mim, corri pela cela e, quando toquei a grade, ela desmanchou.
​― O que...
​― Suzanna! – Arthur estava diante de mim. Suas vestes rasgadas, o
olhar profundo e cansado. Apareceu do nada como o Escuridão fazia, mas
diferente dele, que trazia consigo um ambiente carregado de medo e ódio,
Arthur trazia paz e esperança consigo, além de um aroma agradável de terra.
– Encontrei você! – Sussurrou, vindo em minha direção.
​Não pensei muito no que fazia, apenas corri e me lancei em seus
braços, ele me envolveu cambaleando, tentei me afastar, mas ele me segurou,
não tinha firmeza nos braços. Encarei-o assustada.
​― Você está bem? Aquele maníaco te feriu. – Lembrei, procurando o
corte em seu peito, mas não encontrei nenhuma das feridas que tinha antes,
mas outras que lembravam à carne sendo consumida pelo fogo que queima e
não mata.
​― Quem me feriu? – Perguntou, enquanto o levava para se sentar na
cama da minha cela.
​― O cara de capuz. – Lembrei, estranhando a falta de memória dele.
– Bem, não importa, você se soltou. Precisa se curar... – Toquei de leve ao
redor das feridas, ele estava em carne viva.
​Arthur estava com os olhos vidrados em mim, a mão trêmula, o corpo
ardendo em febre. Corri até a pia, molhando minha blusa de frio e coloquei
em sua testa, tentando aplacar o suor.
​― Muito quente, estou queimando... – Murmurou, revirando os olhos
e um gemido agonizante passou por seus lábios.
​― O que houve? – Sussurrei assustada, não sabia o que fazer com ele
ou como ajudá-lo.
​Quanto maior a minha preocupação, maior a luz azulada ficava,
tornando-se cada vez mais forte e presente. Levantei-me, procurando por
Pietro, Victória, até Demetria, mas estávamos sozinhos. Notei que não sentia
mais o cheiro de queimado, nem de morte, nem via a luz bruxuleante do
Inferno pairando naquelas paredes, apenas a cor azulada da energia de um
anjo reverberando por todas as paredes, tornando o ambiente claro.
​― Su... – O anjo balbuciou e me sentei novamente, pressionando o
moletom em sua testa. – Eu estou queimando... Eu me joguei, não foi um
sonho, eu me joguei e você precisa acordar para nos tirar daqui. Para parar de
queimar... – Parecia que ele usava todas as suas forças para dizer aquilo, não
era possível que ainda estivesse sonhando, não poderia ser tão real.
​― Acordar, Arthur? Estou acordada. – Beijei sua bochecha, aflita. Ele
apertou os olhos, soltando um suspiro de alívio.
​― Consegui, eu te achei. – Murmurou, tentando se sentar, mas caiu
deitado de lado na cama.
​Dei um grito desesperado, a luz azulada ficou terrivelmente forte,
abracei Arthur tentando protegê-lo, pois não sabia o que era, e ele arfou,
puxando o ar com toda força. Em seguida, me empurrou, mas sem fazer
força, era gentil. Olhamo-nos como se fosse a primeira vez e ele me puxou
sobre seu corpo, me apertando, abraçando, cheirando meus cabelos.
​― Temos que sair daqui, Arthur, você está bem para andar? –
Questionei e só então ele me soltou e me olhou.
​A luz azulada flutuava em seu rosto, deixando-lhe com ar de quem
está debaixo do luar. Não era hora de ser romântica, mas foi inevitável, ergui
a mão tocando seu rosto lentamente. Ele suspirou, tinha lágrimas nos olhos,
mas fez que sim com a cabeça, colocando-se em pé. Segui-o, ficando em pé
também.
​― Meu anjo... – Sussurrou, me olhando com ternura e algo mais.
Segurei o impulso de me inclinar e beijá-lo, mas, como se lesse meus
pensamentos, ele o fez, unindo os lábios aos meus, sôfrego. Foi rápido, mas o
suficiente para eu saber que não era sonho, que ele estava realmente comigo.
​― Como você escapou? – Perguntei um tempo depois, fazendo-o se
mover, pois sabia que, apesar da luz angelical no ambiente, logo algum
demônio estaria por perto.
​― Escapei do quê? Da lava?
​Segurando minha mão, ele me fez parar de andar. Estávamos subindo
os degraus de pedra para a sala de tortura. Parar me fez lembrar que não
peguei a bolsa com a pena de Arthur, mas a pergunta dele me deixou em
dúvida de novo se era real.
​― Que lava? Não acredito que estou sonhando de novo... – Suspirei.
– Vem, esqueci minha bolsa.
​Voltamos pela mesma escadaria, a cela estava escura, aquela luz
azulada havia sumido. O Inferno crepitava de novo, havia um cheiro tão forte
no ar que me deixou enjoada. Corri até a cama, pegando minha bolsa,
chequei para ver se a pena estava lá dentro e coloquei em meu tronco,
voltando para junto dele.
​― Você não está sonhando. – Afirmou. – Quero dizer, não é
exatamente um sonho... Mas, precisa acordar, precisamos sair daqui. Se nos
matarem aqui... – Mordeu o lábio e me encarou. – Aquele sonho em que você
me viu caindo em um buraco era uma premonição, realmente cai, mas eu não
sei como voltar.
​― Você é um anjo caído agora? – Sussurrei a pergunta, ele colocou as
duas mãos no meu rosto, parecia aflito.
​― Não sei, mas queimou e ainda está queimando. Melhorou muito
depois que você me tocou, mas ainda queima. Queima muito... – Percebi que
tentava não demonstrar a dor. – Não sei por quê. Precisamos sair daqui, tem
demônios chegando. – Havia urgência em sua voz, o que não me permitiu
questionar nada, nem assimilar nenhuma daquelas palavras direito. Ele era
um caído? Como aliviou a queimação por que o toquei? Ele decididamente é
muito mais romântico que eu, admiti. – Suzanna! – Chacoalhou-me de leve, o
que me fez prestar atenção de novo. – Você teve algum sonho diferente aqui?
Alguma visão que nos tire daqui?
​― Tive. Vi uma espada envolvida por lava. Só isso... E o demônio me
atacando. – Lembrei em seguida.
​― Uma espada? – Sussurrou pensativo, mas negou. – Não é isso...
Tem que haver uma saída.
​O ar começou a tremer, as almas a gritar em súplica e dor, o som
agonizante fez meus pelos ouriçarem até o couro cabeludo. Arthur me
colocou às suas costas e esperamos em silêncio absoluto. Apontei para o
meio da cela, sabia que era ali que o Escuridão apareceria. Segundos depois,
ele se materializou, não era possível ver seu rosto, mas agora, sempre que o
olhava, me lembrava do par de olhos azuis e daquela voz familiar. Não tinha
tanto medo com Arthur comigo, mas estava tremendo.
​― Criança. – Sussurrou divertido, o tom aveludado presente. – Que
bom que se juntou a nós, anjo, sabia que descobriria como chegar até aqui.
​― Quem é você? – Perguntou desconfiado, se colocando à minha
frente como proteção.
​― Não me reconhece, anjo? – O homem inclinou a cabeça de lado e,
se tivesse um rosto, juraria que estava analisando Arthur com um sorriso
cínico. Ele escondeu as mãos dentro das mangas, parecia um monge, o
silêncio o fez continuar a falar. – Tão fácil matá-lo aqui. – Sussurrou com um
riso.
​― Você não encostará nele! – Gritei.
​O demônio riu, fazendo-me encolher um pouco, porém retomei a
postura, queria mostrar que sou valente, que posso com ele, mesmo sabendo
que sou uma mera Nefilin ou talvez meio-anjo como dizia o diário.
​― Não precisarei tocar o anjo, não aqui. – Estranhei a afirmação, mas
a rigidez de Arthur denunciou que ele entendeu. Iria perguntar, mas ele não
permitiu, me olhando enviesado quando tomei o fôlego.
​― O que você quer? – Questionou.
​― Já tenho o que quero, anjo, não preciso de você.
​― O diário do meu pai? – Questionei em dúvida.
​― Que diário? – Arthur sussurrou para mim.
​― Posso ler tudo novamente ou transcrevê-lo em outras folhas, mas
nos deixe ir. – Pedi, ignorando a pergunta de Arthur.
​― Não poderá ler mais, seu pai foi muito ardiloso.
​― Então, nos deixe ir... – Pedi manhosa.
​― Chega de conversa, você sabe para que vim. – Projetou a voz para
todos os cantos. Mesmo no tom aveludado, pareceu tão forte que precisei
tampar meus ouvidos. Arthur não se moveu, encarando-o. – E, se não me der
respostas, ordeno que o matem agora mesmo.
​― Já disse tudo o que vi!
​― O que você quer dela? – Perguntou Arthur, parecia pensativo.
​Apenas com o olhar, o demônio jogou-o contra a parede de pedras.
Arthur gemeu, despencando sobre a cama, pesado como uma rocha. Quis
correr até ele, mas as mãos de Persus me seguraram por trás, sabia que era ele
porque começara a me acostumar com o cheiro de cada um. Ele lembrava
carne queimada.
​― Solte-me!
​― Pense criança, pense. Seu pai deixou a localização para você e, se
não me disser em dez segundos, eu o mato aqui e o mato no plano carnal. E a
culpa será somente sua por tê-lo atraído para cá.
​― Eu não sei! – Gritei, chacoalhando-me das mãos de Persus. Ele ria
às minhas costas e fazia questão de moldar o corpo no meu enquanto me
prendia. Não fazia ideia do que o encapuzado quis dizer, mas morte é morte
em qualquer lugar. – Realmente, não sei!
​Arthur gritou, se encolhendo como uma bola no lugar em que caiu.
​― Tá queimando... – Gemeu aterrorizado.
​― Para! Para! – Implorei. Meu anjo se contorcia, gritando palavras
que não entendi, seu rosto tomado pela dor. Tentei me desvencilhar, mas não
conseguia e Persus continuava rindo. – Para, por favor! – Gritei o mais alto
que pude. – A espada está na lava!
​― Senhorita Monteiro... – Ele pausou ao pronunciar meu nome, na
verdade pareceu engasgar. Por um segundo, Arthur suspirou aliviado como se
o demônio tivesse esquecido que o estava torturando, mas logo os gemidos
agonizantes voltaram e ele continuou a falar. – O Inferno é cercado por
magma. Queimamos incessantemente há milênios, portanto, preciso de uma
informação mais precisa. – Havia um tom sarcástico em sua voz.
​― Só sei isso! – Murmurei.
​Ele jogou o diário na minha direção, mas foi Persus que o segurou.
Fechado, ele não os atingia, pois não possuía aquele brilho azulado. O
demônio me entregou, soltando um de meus braços.
​― Leia. – Ordenaram ao mesmo tempo.
​Suspirei, abrindo o diário, soltei o outro braço e comecei a folhear,
observando os desenhos, pois a visão partiu de um destes desenhos. Arthur
gemeu mais alto e ergui os olhos para o Escuridão, ele estava a apenas dois
passos de mim.
​― Não vou ler se não parar com isso! – Ameacei.
​Ele balbuciou e ao mesmo tempo a voz de Arthur falou as palavras. –
Queimando...
​Meu coração estava disparado e meu corpo tremendo violentamente.
Um demônio tinha falado através de um anjo. Se conseguiu isto com Arthur,
ele realmente não estava bem. Comecei a acreditar que era possível matar um
anjo. No desespero, li a primeira frase que encontrei.
​― Um anjo e um demônio possuem a mesma essência em si, pois
foram gerados do mesmo pai, Deus. Um é feito de trevas, pois negou sua
criação, e o outro é feito de luz. Um demônio não suporta a energia de um
anjo quando este mostra toda a sua plenitude. Nefilins não possuem esta luz
em si enquanto são leigos, mas meio-anjos são quase tão poderosos quanto
um anjo completo. Um dos meus guardiões descobriu que eu era meio-anjo,
um anjo sentinela, quando sem querer comecei a brilhar. Uma luz fina e
azulada. Estavam ameaçando...
​― QUEIMA! – Arthur gritou, quebrando minha leitura.
​Quando o olhei, percebi que havia sangue saindo de seu nariz, a pele
estava avermelhada e parecia se unir ao bruxulear do fogo ao nosso redor.
Senti o medo e a fúria me dominando e, de repente, aquela mesma luz que vi
mais cedo começou a surgir, tão forte que precisei fechar meus olhos e,
mesmo assim, continuou iluminando.
​Arthur gritou e outros gritos seguiram o dele.
​― Filha da puta! – Ouvi Persus e, então, algo explodiu.
​Meu grito ecoou acima do barulho daquela caverna, pareceu se
expandir. Houve escuridão e silêncio e senti meu corpo pesado antes de
desmaiar.
​Despertei, tremendo violentamente e o frio me engoliu como um cubo
de gelo. Tentei abrir os olhos, mas as pálpebras estavam pesadas e uma dor
aguda apertava meu peito e minha cabeça.
​― Arthur...
​Choraminguei. Ouvi vozes, sons desconhecidos, toques que tentei
repelir. Pisquei, tentando ver qual dos demônios me tocava, mas
estranhamente o toque não era frio ou quente, mas morno.
​― Suzanna? Suzie... Respire bem devagar e tente ficar deitada. – A
ordem pareceu doce, mas o pavor me fez recuar daquela mão. Abri meus
olhos e tudo girou mais uma vez, ficando escuro.
Capítulo 25

​ ão sei quanto tempo se passou, mas a dor não diminuía. Meus olhos
N
estavam pesados, o que não permitia abri-los totalmente. Senti mãos me
tocando, um líquido gelado no meu corpo e, depois, algo quente e macio me
cobrindo. Uma voz feminina falou comigo algumas vezes, mas sumia,
deixando-me na penumbra. Queria desesperadamente saber se mataram meu
anjo. Sentia que sim, que ele tinha me deixado naquela cela, que havia sido
queimado pelo homem de capuz, o Escuridão. Por várias vezes, o chamei na
minha mente, liberei meus pensamentos, mas a sua presença não me
preenchia.
​Estava vazia.
No escuro.
No frio.
​Imagens, que não sei dizer se eram reais ou não, iam e vinham. A
negritude daquele vão dentro do capuz me engolindo, me puxando para
dentro dele, me fazendo encarar aqueles terríveis olhos da cor do mar, tão
frios e ao mesmo tempo incertos quanto uma tempestade em formação.
​O tilintar dos meus dentes, batendo um no outro, me despertou de
repente de uma dessas imagens. Minha visão estava embaçada, mas, desta
vez, não havia escuridão, mas vultos. Sentei, como se isto pudesse me
proteger deles e tentei sem muito sucesso me afastar, porém um destes vultos
me tocou, beijou minha testa e saiu.
​― A febre baixou. – Ouvi a voz feminina.
​Vovó? Só podia estar alucinando, ou minha vó morreu e também foi
parar no Inferno. Esfreguei os olhos e a imagem de seu rosto começou a se
formar, ela estava realmente ali, em pé. Seu olhar preocupado e duro. Apoiei
os braços na cama, tentando levantar, mas logo outras mãos me seguraram,
impedindo.
​― Solte-me! – Tentei me desvencilhar, empurrando violentamente
quem me segurava.
​― Suzie, você está a salvo, se acalme. – O toque quente e familiar
acalmou meu ímpeto de pedir socorro. Vovô me pedia calma enquanto mexia
graciosamente em meus cabelos, mas como ter certeza de que era ele ou uma
ilusão criada neste lugar maluco em que estou vivendo agora?
​― Não consigo ver direito. – Sussurrei. – Onde estou?
​― Estamos em casa, filha.
​― A casa queimou. – Empurrei a mão que me acariciava, relutante
em acreditar, afastando meu corpo, tentando focar os olhos neles. Não
demorou muito e os vultos começaram a tomar forma, pisquei várias vezes,
mas não conseguia distingui-los e nem o que falavam.
​Estávamos em um quarto, as paredes num tom neutro, claro, o espaço
parecia o meu quarto da casa da vovó. Encostadas perto da porta do banheiro,
estavam Demetria e Sophia. Sorri para elas que falaram alguma coisa, mas foi
a voz de Pietro que ganhou a minha atenção. Olhei na direção da porta e ele
estava ali, sorrindo abertamente, tão lindo e misterioso quanto da primeira
vez que o vi.
​― Suzanna... – Suspirou meu nome e o som criou borboletas na base
do meu estômago. Ele continuou. – Nós ajudamos a restaurar os cômodos
atingidos pelo fogo. – Sentia que ele estava repetindo a informação quando
me foquei no que falava. – Estamos na sua casa, é verdade.
​Respirei fundo, confusa, sorrindo, mas então a palavra fogo me
remeteu a Arthur e a última palavra que ouvi saindo de seus lábios: Queima.
​― Arthur? Cadê ele? – Levantei e Pietro se apressou a me fazer
sentar. Sentou-se ao meu lado enquanto eu o encarava, interrogativa. –
Mataram-no? Ele agora é um anjo caído, não é? Ele morreu ou é um caído...
Fale! – Pedi quando percebi que nem ele nem ninguém se prontificaram a me
dar as respostas. Meu corpo estava trêmulo e a visão embaçando novamente.
​― Deixe sua família e seus amigos te abraçarem e eu respondo suas
perguntas depois. Com fome? – Perguntou.
​― Não. Eu quero saber dele... – Meus olhos estavam marejados e
estava a ponto de desabar. – Se é que não é outra ilusão do Escuridão...
Mereço saber! Passei por muita coisa, Pietro, por favor, alivie meu desespero
só um pouco. – Pedi.
​A dor nos olhos dele me deu a certeza de que era real, que remeteu
meu pedido ao amor que sinto por Arthur e não por ele. Suspirei triste por
fazê-lo se sentir mal, mas precisava de respostas.
​― Ele voltou também, mas não está entre nós.
​Puxei o ar entre os dentes e as lágrimas derramaram sozinhas. Uma
torrente de dor deslizando por minhas bochechas.
​― Ele m-morreu? – Gaguejei.
​― Não. – Sophia se aproximou. – Mas, é só o que podemos falar.
​ Onde ele está? Preciso vê-lo. Ele está bem? – Disparei na direção

de Sophia, levantando-me da cama e segurando suas mãos pequenas.
​― Como o Pietro informou, ele não está entre nós, está em outro
plano e não podemos contatá-lo. Deite-se, precisa recuperar suas forças
físicas.
​― Mas, ele é um anjo ainda? Está vivo? Vai voltar? – Disparei mais
perguntas.
​― Suzanna, não se preocupe, tudo se resolverá no momento oportuno,
por hora se preocupe com a sua recuperação. – Murmurou Pietro às minhas
costas.
​― Voltaram a esconder informações. Entendi. – Reclamei, mas na
verdade desisti de ter a resposta apenas porque as dores estavam
insuportáveis, não me ajudando a continuar a discussão.
Deitei na cama e logo outros começaram a se aproximar. Recebi
beijos, abraços, afagos, palavras de incentivo e, um a um, deixaram o quarto.
Pietro se sentou ao meu lado novamente, depois de fechar a porta e deixar o
último anjo sair. Deitei a cabeça sobre meu travesseiro, que ele colocou em
seu colo e me encolhi perto dele, saboreando a claridade, o carinho, o cheiro
de vida que meu quarto possui. Nunca tinha notado, mas meu perfume
preferido estava impregnado no ambiente, tinha saudade do aroma cítrico e
amargo que ele exala. Suspirei, aproveitando o carinho, mesmo estando brava
com o anjo.
― Quer conversar sobre o que aconteceu? – Perguntou algum tempo
depois.
― Quero saber como saímos de lá e... E...
― Acredito que somente o Pierre saberá dizer – Cortou-me pensativo,
talvez sabendo que perguntaria de novo sobre Arthur – mas, pela forma que
retornaram, suponho que quem prendia sua alma morreu.
― Minha alma?
Então, Pietro explicou sobre a separação da alma e do corpo, que o
demônio que me levou não poderia entrar comigo no Inferno ou meu corpo
físico sucumbiria. Contou tudo o que fizeram para me localizar e que Arthur
sabia que deveria cair para me encontrar, que entrou na minha mente e se
uniu em espírito à minha alma para me alcançar no Inferno e que este era o
motivo dele sentir-se mais fraco e ter a sensação nítida de que estava
queimando, pois seu espírito não foi feito para estar no Inferno.
― Quem prendeu sua alma só a libertaria por vontade própria ou
morrendo, automaticamente liberando o espírito de Pierre também, pois ele
estava preso a você. – Finalizou.
Respirei fundo, incapaz de assimilar toda a informação, a única coisa
que rebatia em minha cabeça era que ele caiu para me salvar.
― Isso significa que ele é um caído agora?
Afagou meus cabelos lentamente, como se ganhasse tempo para
responder. Os segundos que se passaram em silêncio formaram um milhão de
imagens diante de mim: Pierre sem asas, malvado, ardiloso, pecador... Um
anjo sem pudores e que tentaria tocar outras mulheres como Pietro fez
comigo. Nenhuma das imagens condizia com quem eu sabia que ele era.
Pietro cortou meus pensamentos ao começar a falar.
― Todos somos anjos, distintos entre si, mas anjos.
― Isso não é uma resposta.
― É a que posso dar. – Beijou minha testa carinhosamente. – Você o
ama, Suzanna?
― Já me perguntou isso tantas vezes... – Tentei fugir da resposta para
não magoá-lo.
― Certo... Então, a resposta continua a mesma. – Disse sem emoção.
– Conte-me mais sobre o Inferno, eu fui para lá apenas uma vez desde que
caí; o restante do tempo passei na Terra, arrecadando almas.
― Sentindo saudade? – Brinquei e recebi um peteleco no nariz.
― Óbvio que não, mas quero que fale bastante. Você teve pesadelos.
– A afirmação parecia mais uma pergunta.
― Lá ou aqui?
― Teve pesadelos, lá? – Questionou intrigado. – Você dormiu no
Inferno? – Fiz que sim e ele assobiou baixinho. – Não sabia que almas
dormiam... Não te torturaram?
― Se você acha que tentar me violentar através de uma ilusão e
depois me colocar numa cela ao lado de pessoas gemendo de dor, me deixar
sem comer por não sei quanto tempo e quase matar o Arthur na minha frente
é tortura, então me torturaram. – Respondi, tentando brincar, mas sentindo o
peso daquelas palavras. Não sabia se algum dia me esqueceria do que vi.
― Sinto muito, Suzie.
Neguei com a cabeça, pois era bom estar de volta e estava feliz de ter
saído daquele lugar, por mais que minhas reações estivessem em desacordo
com o esperado. Devia agradecer e não enchê-lo de perguntas, deveria ser
grata por estar viva e não ficar emburrada por não saber nada sobre o Arthur,
porém, em paralelo a esses pensamentos, outros se formavam e verbalizei um
deles.
― Como ele conseguiu me levar para lá se minha mente estava
bloqueada? Por que eu tenho a impressão de que ele conseguiu puxar... Puxar
seria a palavra certa? – Perguntei mais para mim mesma, então decidi
continuar assim mesmo. – Puxar minha alma para o Inferno? Pensei que só
conseguiria fazer isso se meus pensamentos estivessem livres e, pelo que
lembro, não estavam.
― Você é sempre lotada de perguntas. – Ele pausou, mas não
demorou muito a continuar, mexia nos meus cabelos distraidamente. –
Podem levar almas para o Inferno apenas depois que elas morrem, porém
existe um lugar que é como o Segundo Éden, onde podemos levar almas que
ainda não deixaram o corpo físico, quando é necessário. Acredito que foi para
lá que a levaram. – Quis perguntar que local, mas ele continuou falando. –
Também cometi um erro e espero que me perdoe. – Sussurrou a última frase.
Sentei-me na cama para ouvir. – Querendo proteger você, acabei dando
chances dele te levar, fazendo acreditar que você era um demônio ou meio
demônio.
― Como você fez isso? – A pergunta saiu engasgada.
O quarto pareceu pequeno enquanto ele ponderava sobre a resposta.
Pietro virou para mim e pegou as minhas mãos como se fosse se declarar
culpado de mais alguma coisa; não segurei de volta, queria sair correndo.
― Lancei uma proteção que escondia seu brilho angélico, seu lado
bom. Quando ele experimentou seu sangue pareceu ser de um caído. –
Suspirou pensativo. – Era para que não te atacassem durante a luta. Perdoe-
me.
― Explique-me de novo. Mais uma vez. – Levantei-me, ficando
diante dele, Pietro não se moveu, apenas esperou minha conclusão. – Você
fez todo mundo acreditar que eu não era um anjo ou Nefilin, sei lá, e só por
isso o Persus pôde me levar para o Inferno? – Pietro confirmou com a cabeça,
nos olhos um pedido mudo de desculpas que ignorei, voando com as unhas
prontas para serem cravadas no peito dele. – Como você pode? Você tem
ideia do que eu vivi lá? O medo que enfrentei? – A cada pergunta, meu tom
aumentava um pouco mais e tentava desferir um tapa ou um soco nele. Meus
olhos novamente embaçados, mas agora pelas lágrimas.
― Suzanna, me perdoe... Não achei que fosse acontecer algo tão ruim
com você, o que queria era evitar exatamente isso. – Respondeu, segurando
minha cintura, sem desviar ou reclamar dos tapas.
― Você é um filho da mãe! Eu acho que nunca, nunca vou me
esquecer do que vi e ouvi naquele lugar! Sabe o que é dormir e acordar com
pessoas gritando e gemendo de dor? Ou não saber o que é real e o que é
ilusão? Até agora, eu não sei se perdi mesmo a minha virgindade! – Travei a
língua quando a última palavra saiu.
Pietro me puxou para o seu colo, me embalando como a um bebê,
tentei me desvencilhar, mas já não tinha forças, meu corpo estava
convulsionando em soluços. Pacientemente, ele limpou meu rosto com os
dedos, pegou um lenço do bolso e me entregou.
― Quem ainda anda com lenço de pano? – Perguntei baixinho,
irritada, mas limpei os olhos e o nariz, voltando a chorar um segundo depois,
com o rosto afundado em seu peito.
― Shhhh, chora, Suzanna, solta tudo o que está no seu coração. –
Beijou minha cabeça e ficou brincando com meus cabelos. Quando achei que
as lágrimas não iriam parar nunca, senti o cansaço me roubar a consciência e
adormeci ali, nos braços dele.
Capítulo 26

Pelos olhos de Pietro

Assim que Suzanna caiu no sono, ajeitei-a sobre a cama e cobri. Meu
peito estava doendo e amargurado, quase na mesma proporção de quando
perdi Veronique. Não era o sentimento que esperava – de raiva por ela amar
meu irmão ou porque fui incapaz de salvá-la, sendo obrigado a apenas
esperar alguma reação de ambos, enquanto as horas se passavam e ela parecia
morta. A dor era por ter sido culpado pela maior parte dos sofrimentos que a
menina passou, era por saber que poderia pedir perdão um milhão de vezes,
ser perdoado em todas e, mesmo assim, saber que não seria suficiente.
Vê-la dessa forma, tão vulnerável, e novamente sem poder trazer o
que ela tanto quer, me despedaçava um pouco mais. Beijei sua testa e fui
sentar na poltrona que a avó dela deixou colocar ao lado da cama.
Estava vigiando o anjo Joel enquanto aguardávamos algum sinal de
vida, tanto em Pierre quanto em Suzanna, ambos pareciam mortos quando ele
adentrou o sonho dela. Demétria e Sophia foram as que descobriram o plano
do anjo antes que ele finalizasse. Ele queria meu antigo posto no Inferno,
poder, status e posses, além de honra diante dos demais demônios e caídos.
Ele sabia que seria expulso assim que finalizasse seus intentos, mas elas
foram mais ardilosas e, antes que pudesse liberar a casa para o ataque dos
demônios e caídos que pretendiam matar o corpo físico de Suzanna e Arthur,
elas o subjugaram, prenderam e mataram seu pequeno exército.
Soube depois, pois eu e Teruy estávamos ocupados vigiando o casal
em coma.
Joel foi condenado imediatamente, suas asas arrancadas e arrastado ao
Inferno por ceifadores. Tenho ideia do que acontece com ele, já que não
conseguiu o que prometeu a Lúcifer.
Olhei novamente para Suzanna, admirado por tantas situações
terríveis que uma garota pode passar em dezoito anos de vida e ainda
sobreviver.
Fechei os olhos, deixando minha mente viajar no tempo.

Era meados do ano de 1998 e eu estava na minha pior fase como


caído, pois tinha conseguido um feito que poucos desertores conseguem: Ser
aceito por Lúcifer. Necessitava manter-me agradando-0, estando sempre a um
passo do Céu, antecipando desejos, descobrindo maneiras diferentes de
angariar almas para o nosso lado. Suzanna não passava de uma garotinha de
quatro anos de idade, seus pais trabalhavam como humanos, visto que Miguel
fora rejeitado após decidir não seguir nenhum dos lados e servir apenas ao
amor que tinha pela mortal e, agora, pela criança.
Lúcifer convocou-me e esta foi a segunda vez que o vi em tantos
séculos como caído. Encontramo-nos em uma das quedas do Grand Canion,
no rochedo mais alto, onde humanos não alcançam sem ajuda de algum
maquinário. Ele estava com uma forma humana, lembrando-me o Richard
Geere, um ator de filmes americanos em ascensão na época. Quase ignorei
sua presença, não fosse o forte odor de enxofre e o calor insuportável que
emanava de seu corpo. Encaramo-nos em silêncio, apenas o vento forte e o
barulho das cachoeiras quebrando-o. Quando decidi perguntar o que queria
de mim, uma força gigantesca e invisível segurou minha nuca e me fez
ajoelhar diante dele, só então percebi que esperava uma reverência e nunca
mais me esqueceria de fazer-lhe, a dor causada por aquela mão ficou dias
latejando em minha coluna.
― Desculpe-me, senhor. – Sussurrei, encostando a testa na pedra, o
calor investido contra mim parecia cozinhar minhas entranhas, porém não
demonstrei, sabia que não deveria, ele se alimentava disso, das fraquezas,
medos e do terror que causa sobre qualquer criatura. Algum momento depois,
me liberou e pude me erguer, porém ainda com a tez abaixada em reverência
ao ser maior.
― Caídos. – Desdenhou. Então, o calor que vinha dele se expandiu e
sumiu, como se o ar a nossa volta o engolisse e Lúcifer se tornasse apenas
mais um mortal dentre tantos. Não havia nada ali que pudesse identificá-lo
como o Senhor das Trevas, além do enxofre impregnado no ar. Ergui meu
rosto visivelmente interessado, tentando identificar alguma brecha que
pudesse mostrar como ele escondeu seu calor, mas não havia nenhum sinal a
ser lido. Lúcifer era apenas o mais poderoso de todos nós, seres inferiores.
Com a cabeça levemente inclinada para a direita e um sorriso divertido, ele se
aproximou mais um passo. – Hyelijah. – Sussurrou meu nome angélico,
fazendo-me estremecer diante do poder que nossos nomes proferidos
emanam. Mordi o lábio para não lembrá-lo de não me chamar por este nome,
pois não era mais digno dele. – Tenho um serviço especial para você.
― Sim, senhor. – Apressei-me.
O demônio passou uma língua felina pelos lábios, os olhos vermelhos
eram o único indício de que tramava algo, minha pele se arrepiou.
― Quero que sequestre a mascote daquele caído. – Riu da palavra, se
divertindo com algo que até hoje não descobri. – Ele precisa tomar um susto
para saber que não há meio-termo em nosso mundo.
― Desculpe-me a pergunta, mas os Nefilins não têm este privilégio?
Ser apenas humanos, se desejarem?
Assim que a pergunta se liberou dos meus lábios me arrependi, era
inadmissível questionar um desejo de Lúcifer. Mantive-me firme em meu
lugar, esperando a dor e os ossos que se quebrariam no momento que me
arremessasse para a queda do Grand Canion.
― Responderei apenas porque estou de excelente humor. –
Esclareceu. – Recomendo que procure o demônio que comanda o seu distrito
e peça a ele estas informações menores.
― Sim senhor, me perdoe a falha. – Abaixei os olhos e ele continuou
como se não tivesse sido interrompido.
― Sendo anjo, ele gerou um anjo. Este pequeno delito nos dá a
brecha que precisamos para trazê-lo de volta.
Na época, não entendi, mas, depois de anos estudando, descobri. A
brecha a que ele se referia era que, antes de decidir-se humano, ele havia
gerado a criança, havia escolhido a mortal, tornara-se um caído ao consumir o
ato. Havia uma falha em todo o esquema, pois Miguel não era leigo, tinha
conhecimento da existência de anjos, guardiões, Nefilins e caídos desde sua
adolescência, não fora criado na ignorância. Um Nefilin que gera outro sem
saber é perdoado, pois o faz na inocência, mas um meio-anjo é condenado e
Miguel não havia sido.
Nem dez minutos depois do início da conversa, Lúcifer evaporou no
ar, porém eu, um anjo menor, não possuía o dom de me teletransportar,
precisava descer a rocha e viajar por horas de volta ao Brasil. Durante o
percurso, decidi o que faria para chamar a atenção do caído e fazê-lo perceber
que não estava a salvo na sua vidinha limitada.
Durante duas semanas, apenas vigiei a família, decorando sua rotina,
seus costumes, o modo de sorrir, se vestir, de falar com a garota. E, numa
tarde de sexta-feira, cheguei à escolinha onde a deixavam enquanto
trabalhavam. Usava a forma de Miguel, por isso não me barraram, e saí
segurando a mãozinha de Suzanna, direcionando-a comigo para o carro
alugado, um Fiat Uno quadrado do mesmo ano.
― Papai, vamos tomar sorvete? – Perguntou enquanto prendia o cinto
de segurança em volta do seu corpo, ela estava vestida com um conjunto de
moletom rosa, tênis Pink e com duas trancinhas em seus cabelos. Procurei
não observá-la diretamente, pois no fundo sabia que era errado o que estava
prestes a fazer.
― Depois. – Respondi duramente, a voz do pai soando aos meus
ouvidos.
A menina choramingou, mas não reclamou o que me deixou surpreso.
Retirou um pirulito de dentro da mochila, que também era rosa, e colocou na
boca, esticando o papel do embrulho para mim. Peguei de má vontade e o
joguei na calçada.
― Pai, pode jogar o papel na calçada? – Riu, se divertindo com meu
mau humor.
Olhei-a rapidamente e senti algo me consumir por dentro, mas desviei
a tempo. Jamais faria o que fiz, recordando-me creio que ela me influenciava
desde sempre a ser uma pessoa melhor. Recolhi o papel e coloquei no bolso
do jeans.
― Pronto. Podemos ir agora?
Apertei os olhos me rechaçando por pedir permissão a uma criança.
Fechei a porta do passageiro – nesta época, não era obrigatório levar crianças
no banco de trás e me sentei ao lado dela, dando a partida.
A menina não chorou, nem reclamou em nenhum momento do
caminho, porém seus olhinhos pareciam adivinhar que eu não era seu pai,
pois me encarava, ria e fazia caretas, falando sozinha com o pirulito. Cerca de
duas horas depois, estacionava na frente da antiga casa da família, no bairro
da Vila Formosa, na capital de São Paulo. Era um terreno grande, um sobrado
de dois andares. A casa mal cuidada estava vazia, pois ninguém a alugou
depois que os Monteiro deixaram o lugar para morar na zona Sul. O pequeno
jardim na entrada estava seco, arbustos denunciando que um dia houve uma
roseira ali.
― Papai, o senhor acha que o Joãozinho ainda se lembra da gente? –
Perguntou naquele tom infantil e arrastado que só crianças conseguem usar,
estávamos diante da porta de entrada da sala, a encarei e dei de ombros, não
queria saber quem era Joãozinho, apenas que o dia passasse para devolvê-la.
A casa estava limpa, pois podia ser um anjo caído, mas gostava de
ambientes apresentáveis. O piso de madeira da sala reluzindo diante do brilho
de sol captado pela vidraça. Fomos direto ao quarto que estava preparado
com uma cama infantil, ursinhos e roupas para ela vestir. Havia comida
suficiente para ficarmos por dois dias.
Suzanna não era uma criança barulhenta ou chata como esperei, mas
algo martelava minuto a minuto em minhas lembranças, me incomodando, a
frase final de Lúcifer antes de evaporar: Mate a menina na frente dele e diga
que acontecerá o mesmo com a esposa se ele não se unir a nós.
Era capaz de tudo e já havia feito inúmeras atrocidades, coisas ainda
piores do que matar uma criança, mas esta em especial não me trazia uma
sensação boa. A presença dela me desarmava tanto que quase desertei do meu
dever.
Depois de lhe dar um rápido banho, o jantar e deixá-la assistir um
pouco de TV – que também havia em seu quarto –, finalmente adormeceu e
pude recolher-me ao quarto que fizera como meu e reassumir minha forma.
Estava cansado, mais cansado que o habitual para um serviço tão ridículo.
Adormeci naquela noite, algo que não era muito comum, pois anjos e
demônios não possuem essa necessidade, dormem apenas quando o corpo
físico pede, por estarmos em plano terreno, mas podem passar semanas, até
anos sem fazê-lo, dependendo do seu modo de vida.
Despertei assustado. Suzanna estava com uma das mãozinhas no meu
rosto e me olhava com curiosidade infantil, não havia medo, nenhum
sentimento repulsivo.
― O que faz aqui? – Gritei, sentando-me no colchão que estava no
chão do quarto.
― Você viu o meu pai, tio?
Tio? Ri ao ouvi-la e então readquiri a postura rígida.
― Não o vi, mas logo estará aqui. Com fome?
― Não.
― Sede?
― Não.
― Ahm... O que você quer, então?
― Xixi.
Arregalei os olhos, não tinha pensado nessa parte do plano, então
ajeitei meus cabelos, afastei-a de mim e me pus em pé. Enquanto falava,
afaguei seus cabelos escuros.
― Vá colocar o moletom novamente que logo seu pai chega e te leva
ao banheiro.
― Estou apertada.
Puta que pariu! Pensei e fui empurrando a garotinha porta afora.
― Estou ouvindo o portão, vai lá colocar o moletom e ele te leva no
banheiro.
Ela virou rindo, mas de repente parou e me encarou.
― Você parece o Joãozinho, tio. – E saiu correndo para o outro
quarto, alheia ao perigo que corria.
― Mas, que maldito Joãozinho é esse? – Respirei fundo, soltando
outro palavrão. – Ninguém merece limpar xixi.
Depois de alterar minha forma para o do pai da garota, sai do quarto e
entrei no que ela estava usando. Suzanna abriu um sorriso satisfeito ao me
encarar e isso me deu certo orgulho, conseguia enganar qualquer pessoa que
eu quisesse, mas logo o orgulho murchou quando ela trançou as pernas,
ficando com o rosto vermelho.
― Xixi, xixi, xixi! – Começou a falar, mas não saia do lugar.
― Vem, Suzie, o banheiro é aqui no corredor. – Dei espaço, mas ela
apertou as perninhas, ficando ainda mais vermelha. Andei até ela, pegando-a
nos braços; assim que a segurei percebi meu erro. – Caralho, Suzanna! Não
sabe segurar o xixi, não? – Estava encharcado e agora fedendo a urina.
Ela fez um bico triste, mas não chorou, apenas deitou a cabeça no
meu ombro, confortavelmente, o que me deu mais raiva ainda.
― Tava apertada, papai, e o titio não quis me levar. – Explicou
manhosa.
― Que titio? – Estava tão exaltado que nem lembrei que ela falava de
mim. A esta altura, já estávamos no banheiro e eu a despindo com pressa para
dar-lhe outro banho.
― Aquele do nariz torto.
― Eu não tenho... Quero dizer, ele tem nariz torto? – Tranquei o
maxilar por causa do cheiro da urina, um embrulho enjoado parou na boca do
meu estômago.
Ela apertou o meu nariz, rindo baixinho e entrou embaixo da água se
lavando sozinha.
― Tem, parece o do Joãozinho.
― Que raios de Joãozinho? – Tirei a camisa que era a parte pior das
minhas roupas e joguei no canto do banheiro.
― Meu anjinho da guarda, papai. Não lembra?
Nesse momento, desejei poder ler a mente dela e saber se era um anjo
de verdade ou um amigo imaginário.
― Não me recordo. – Disse por fim, ajudando-a a se secar com a
toalha de rosto. Não pensara em banhos e, por isto, não havia nenhuma outra
na casa. – Coloque o moletom agora que eu vou tomar banho e já vou.
Consegue se vestir sozinha?
― Claro né, papai!
Ela beijou meu rosto e saiu correndo para o quarto, dando gritinhos
infantis e rindo de algo. Suspirei. Adentrei o boxe que ainda estava com o
chuveiro ligado. Depois de me banhar e vestir uma roupa confortável,
atravessei o corredor na direção do quarto dela, logo após as escadas. De
repente, senti-me sobressaltado de novo, tinha deixado uma criança solta no
andar de cima de uma casa com escadas, um lugar terrivelmente perigoso
para ela cair e quebrar seu pescoço. Entrei exasperado, sem entender bem
aquele sentimento, mas Suzanna estava sentada com algumas bonecas,
conversando com elas.
Ouvindo o barulho da porta, virou-se e abriu um sorriso largo.
― Pai.
― Que bom que já se vestiu. – Aproximei-me e a peguei no colo,
embalando-a como um bebê, a menina começou a rir e se mexer desesperada
para se soltar. Coloquei-a no chão. – Quando vamos para casa? – Perguntou,
olhando as bonecas e brincando de andar com uma delas sobre o colchão.
― Logo. – Em seguida, pensei: Foco, Pietro. Você não é o pai dela.
Apenas três dias mais tarde, recebi a ordem de levá-la até Miguel, que
nos esperaria no Parque do Ibirapuera. Havia escolhido uma das tantas
clareiras do local, onde aparentemente estariam seguros por causa dos
humanos, mas mal sabia ele que eu já dera meu jeito e não apareceria viva
alma naquele lado do parque. Os humanos – por mais que não percebam isto
–, tendem a mudar a rota quando sentem o mínimo perigo lhes rondar.
Poucos são os que ignoram esse alerta natural e seguem seu caminho.
Para o caso de haver humanos corajosos por lá, deixei algumas das
minhas crianças a postos para afastá-los do ponto de encontro.
Uma hora antes, vesti Suzanna com uma calça de moletom cinza
escura, camiseta branca e a parte de cima do moletom, sapatinho branco de
menina e prendi seus cabelos já revoltos em um rabo-de-cavalo. Dirigi
rapidamente com o Uno alugado e não foi difícil encontrar uma vaga em
frente ao Parque. Ser um caído tem algumas boas vantagens no mundo
mortal, as pessoas obedecem a comandos mentais simples de não estacione
ali ou tire seu carro daí.
Adentramos o Parque pontualmente às nove da manhã. Estava vazio
por ser dia de semana e a maioria estar estudando ou trabalhando. Poucos
idosos caminhavam, fazendo seu exercício matinal. Conhecia pouco o Parque
do Ibirapuera, mas não foi difícil localizar a clareira que indiquei ao caído.
Ficava a poucos metros de um lago, um vasto campo verde cercado por
árvores altas e frondosas. Não havia ninguém por perto, a não ser demônios
inferiores, invisíveis. Suzanna choramingou como se sentisse que
adentrávamos um local perigoso. Inconscientemente, apertei sua mão, dando-
lhe segurança.
― Pai, vamos ver o Pato Donald? – Pediu de repente, apontando para
um pato no lago, acompanhei seu gesto e vi do outro lado que o pai dela se
aproximava.
― Vá brincar, mas não muito perto da água. – Alertei. – Já vou até lá.
Assim que ela se virou para brincar, desfiz a imagem do pai,
readquirindo a de Pierre. Miguel se aproximou, observando a filha a beira do
lago.
― O que você quer de mim? – Murmurou.
Ele estava pálido, mais magro e tinha poças profundas abaixo dos
olhos, visivelmente abatido e cansado. Acredito que não tenha dormido
durante os quatro dias de espera. Meu lado demônio voltou a brincar.
― Sua alma. – Respondi de pronto. – E a menina, já sabe. – Dei de
ombros.
― Nela você não tocará. – Advertiu, aproximando-se alguns passos,
ameaçador. – Ela não será sua.
― Veremos, anjo.
― O que você quer? – Ele olhou na direção de Suzanna que parecia
distraída com o pato, mas perigosamente perto da beira do lago. Meu instinto
foi correr até ela, mas me contive, lembrando-me de quem eu era e qual meu
objetivo.
― Lúcifer deseja seus serviços ou será julgado de acordo com seu
delito. – Apontei para a menina.
― Julgado? – Espantou-se. – Não tenho do que ser julgado.
― Então, não tem o que temer. – Sorri amigável, sentindo meu
ímpeto de salvá-la desaparecer.
― Não farei nenhum favor a ele, pode me matar, me julgar e o que
mais quiser.
Inclinei a cabeça de lado e comecei a andar na direção de Suzanna,
Miguel me seguiu apreensivo, a garota virou o rosto me encarando e sorriu,
os olhos brilharam ao encontrar os meus e, mesmo o pai a chamando
baixinho, ela correu para mim e saltou, obrigando-me a abaixar e pegá-la no
colo, às pressas.
― Oi, princesinha. – Sussurrei, mexendo em seus cabelos escuros.
Em seguida, olhei para o pai enquanto ela brincava com meus cabelos, que
estavam cumpridos como os de Pierre na época. – Você decide o destino que
ela terá. Escolha direito. Ou aceita a proposta do meu chefe ou... – Apontei
para as costas de Suzanna e desenhei uma cruz indicando enterro e morte.
Ele arfou, puxou a menina dos meus braços e começou a se afastar,
murmurando como se ponderasse em voz alta.
― Se eu for... Mesmo que eu ajude, tudo isso vai acontecer, ela vai
ser levada por você, vai cair. Todas as vezes, ela te segue, todas as vezes... –
Franzi o cenho confuso, pois quem ele via diante dele, era Pierre. Seria
possível que fosse eu a carregar a menina, usando a mentira de ser meu
irmão? Seria por mim que ela se apaixonaria, então?
― Você deve decidir. – Apressei e puxei Suzanna novamente para os
meus braços, ela riu achando divertido, alheia novamente a todos os perigos.
― Não vou ajudar o Inferno.
― Ok. – Com rapidez sobre-humana estava diante do lago, olhei por
um segundo para Suzanna, mas o carinho e o cuidado de antes tinham
desaparecido, ela era o meio para cumprir o que me foi designado. Pendurei-a
pelos pés acima do lago, soltando dedo por dedo, encarando o anjo que
começava a correr na minha direção. – Impeçam! – Ordenei e três dos
demônios que estavam escondidos o agarraram pelas pernas, pois possuem
altura de anão e feições infantis.
― Papai... – Ela choramingou, deixando algo que carregava nas mãos
cair dentro do lago, o som contra a água fez o homem gritar em desespero.
Soltei mais um dedo, agora ela estava presa apenas com meu polegar,
o indicador e o dedo médio, sendo uma criança, se afogaria em um minuto ou
dois.
― Pierre, não a solte, pelo amor de Deus!
― Deus? – Ri desdenhoso. – Ele não vai olhar por você que não quis
segui-Lo quando pode. Tente outra coisa. – Soltei mais um dedo e ele gritou.
Teatralmente, balancei Suzanna, que, desta vez, choramingou diante do
desespero de seu pai.
― Não vou ajudar vocês! – Ele olhava Suzanna como se pudesse
alcançá-la só com seus pensamentos.
― É sua decisão?
Ele hesitou, mas por fim assentiu com a cabeça. Sem ter outra opção,
soltei a menina.
― Filho da puta desgraçado! – Começou a se debater. Igualmente, a
menina dentro da água. Eu a olhei, mas era como se visse um filme em
câmera lenta, ela afundava e voltava, batendo firmemente os braços e
puxando o ar com desespero.
Voltei a olhar para Miguel, ele estava em prantos, tentando se
desvencilhar dos demônios, o rosto furioso, gritando blasfêmias contra mim.
Apenas ri, entrei na água pegando Suzanna pelo braço e a ergui. Ela berrava e
tossia, sua roupa encharcada, os cabelos envolvendo seu rosto e pescoço.
Observei-a em silêncio, aquele sentimento inicial de proteção dando indícios
de voltar, mas logo desviei a atenção para o pai.
― E então... Qual o veredicto?
― Filho da puta... Infeliz! Covarde! – Gritou a plenos pulmões, me
fazendo rir. – Você não pode ferir a minha filha, você a ama! Como pode
machucá-la assim?
Respirei fundo e sorri para ele.
― Ainda não a amo. – Soltei-a na água novamente. – Voltarei em
alguns dias para ter sua resposta. Soltem-no. E, ah! – Lembrei. – Acontecerá
o mesmo com sua esposa se decidir-se contra nós.
Ouvi o desespero dele ao entrar na água enquanto os demônios e eu
saiamos do caminho, hesitei por um instante quando ele gritou, estremecendo
ao imaginar que ela havia se afogado, mas não olhei para trás, sumindo junto
com os outros. Quando retornei ao Inferno, fui informado que sobreviveu,
mas que ele havia feito as malas e sumido de São Paulo, só localizei-o
novamente, anos depois.
Antes disso, porém, fui castigado por ter falhado, castigos desde
queimar meu corpo físico até os ossos e deixá-lo se regenerar para queimar
de novo, até o de me colocar em sono profundo com pesadelos ainda
piores.

― Miguel. – O par de olhos azuis se arregalaram ao ouvir minha voz


e, ao me encarar no jardim de sua casa em Sorocaba, adquiriu uma postura
defensiva, quase ameaçadora, e meu sorriso divertido o fez intensificar o
olhar felino. – Vejo que ficou bem depois daquela manhã – Desdenhei. –
Acha que conseguirá se esconder dos seus deveres por quanto tempo?
― A que veio, Pierre? – O nome me fez recordar que havia assumido
a forma de meu irmão para contatá-lo como um enviado do Inferno. O caído
acreditava que seu guardião havia perdido as asas assim como previu para o
futuro de Pierre, mas mal sabia que o futuro ainda estava para acontecer e que
ninguém poderia impedir.
― Diga-me você a que vim, afinal, saber o futuro não cabe a mim. –
Um brilho de raiva passou por seus olhos, mas ele não moveu um milímetro
sua postura, permanecendo ereto ao me encarar. – Sei que você sabe. Vim
pela menina, ela é minha. – Mal sabia eu que, naquela época, ela já ganhara
meu coração e as palavras que deveriam ser uma mentira apenas para enganar
o caído, se voltariam para mim anos mais tarde.
― Ela não lhe pertence.
Inclinei minha cabeça de lado, aproveitando-me das feições joviais de
Pierre para parecer um adolescente apaixonado e inofensivo. Em seguida,
abaixei os olhos e a cabeça, soltando um leve lamento.
― Mas que triste, terei de roubá-la. – Trinei a língua em sinal de
desgosto.
― Você sabe que não poderá, se ela não quiser ir. – Lembrou.
― Ela desejará isto. Você viu e eu vi. – Ergui o rosto triunfante,
encarando aquele homem.
― Se depender de mim, ela nunca precisará tomar essa decisão. –
Retrucou. – Agora saia da minha casa antes que o vejam.
― Elas não podem me ver, apenas você. – Lembrei. – E que mal fará
para a menina me ver novamente? Sabemos que, cedo ou tarde, esse encontro
acontecerá.
― Não se depender de mim.
― Mas, não depende, não é? As forças do Universo são muito
maiores que um mero caído. Talvez se decidir vir comigo, consiga mudar o
destino da sua mulher também.
― Não ouse! – Vociferou. Ambos nos recordando da imagem dela
diante do caixão pequeno de uma criança.
― Ousar? – Ri. – Não meu amigo, foi você que viu e me deixou ver.
Enterrarão sua própria criança. – Antes que ele me atacasse ou retrucasse,
avancei até ficar a poucos centímetros de seu corpo, desta vez não havia
fagulha de ironia em minha face, apenas tédio. – Ou talvez o enterro seja a
encenação que pensamos e Suzanna tenha partido comigo para o abraço de
nosso novo lar.
― Ela não vai com você! – Empurrou-me com ambas as mãos contra
o meu peito.
― Você irá? – Não havia indício que aceitaria minha proposta,
porém, para que não fosse retalhado no Inferno, precisava levá-lo comigo a
qualquer custo.
Nos segundos entre a chantagem e a respiração, me recordei da voz
do próprio mestre dizendo que me deixaria queimar por um milênio se não o
fizesse ir para o Inferno, meu corpo sofreu um leve tremor na poltrona onde
estava sentado no quarto de Suzanna, me lembrando de tudo, deixei as
imagens retornarem. – Não, é obvio que não. – Fingi-me de derrotado e lhe
dei as costas. – Aos treze, virei buscá-la.
― Espere! – Minha vitória ficou estampada em meu sorriso, mas, ao
me virar, o tédio estava de volta ao meu rosto e esperei até que falasse. – Vou
com você, não agora, não amanhã, mas me dê mais alguns anos com elas.
Anos de paz, sem perseguições e ameaças.
― Darei a ti três anos, não mais.
― Três... Aceito. – Respondeu derrotado.
― Tenho sua palavra, caído? – Mesmo que dissesse que não, ele já as
havia proferido, a atmosfera à nossa volta mudara e eu sabia que em menos
de uma hora ele readquiriria feições angelicais e características demoníacas.
― Irei com você, só preciso me despedir. – Murmurou rouco, o azul
de suas íris assumindo um tom avermelhado que se escondeu em seguida.
― Combinado, irmão. Venho lhe buscar e ver a minha garota.
Voltei imediatamente a meu esconderijo. Naquela época, era a casa
dos Santos, ao lado dos avós de Suzanna.
Não demorou muito para ser levado a lembranças de quase um ano
após este contato. Miguel, sua esposa e a filha de quase oito anos estavam
passeando em uma cidade próxima à Sorocaba chamada Votorantim, cidade
pequena e de poucos habitantes. A praça principal estava em reforma, a
prefeitura inauguraria dali a algumas semanas um palco para uma
apresentação natalina. Para qualquer lugar que olhasse, luzes coloridas
brilhavam e pessoas passavam correndo com compras nas mãos. Avistei-os
sentados em um banco nesta praça, observavam alguns homens trabalhando
no palco.
Miguel percebeu minha presença, despediu-se da mulher e da filha e
me seguiu, pois lhe dei as costas indo na direção mais escura, um amontoado
de árvores que circundavam a entrada da cidade, separando-a da estrada para
Sorocaba ou São Paulo.
Esperei escondido entre as sombras, mas em local que podia vê-lo
muito bem. Havia bolsas profundas abaixo de seus olhos, estava abatido e
magro o que me roubou um sorriso de escárnio. Assim que me enxergou,
parou a alguns passos, poucos perante nossas forças. Se um dos dois quisesse
atacar, a distância de dez metros não seria um obstáculo.
― Você disse três anos.
― Desde quando é viável confiar na palavra de um caído? – Ri. –
Cale-se! – Ordenei quando ele ameaçou falar. – Vim apenas para conferir que
não se escondeu do seu legado. Não o levarei agora, nem a garota.
― Ela não esta inclusa no pacote. – Grunhiu.
Seus olhos adquiriram um tom vermelho rubi que eu estava
acostumado a ver, a maioria de nós possuía tons de olhos vermelhos, exceto
aqueles que tentavam manter parte de sua herança genética: anjos ou
humanos.
― Minhas palavras foram que retornaria aos treze anos para rever a
garota e levá-lo, mas não disse que ela não seria levada.
― Filho de uma puta! – Chiou, os punhos fechados e o ódio fazendo-
o babar no canto da boca. – Você não vai levá-la, não permitirei.
​― Não preciso de permissão.
Algumas horas mais tarde, o segui. Estava na estrada, fugindo para a
casa dos pais em São Paulo. Percebi a presença de Pierre e isto me distraiu
momentaneamente.
Capítulo 27

Pelos olhos de Suzanna

Despertei de repente com a imagem do acidente dos meus pais, o


carro explodindo, Arthur me encarando exasperado e ordenando que olhasse
apenas para ele. Sentei-me num salto, sentindo a respiração pesada.
Olhando em volta, percebi que estava em meu quarto, Pietro
dormindo em uma poltrona que eu não conhecia e não havia sol entrando pela
janela, o que indicava que era noite.
Tentei chegar até o banheiro em total silêncio, mas sentia dores em
tantos lugares ao mesmo tempo, que estava impossível me mexer sem gemer.
Não consegui banhar-me, nem trocar de roupa, a dor era intensa demais, por
isso parei diante da poltrona em Pietro dormia. Havia algo em seu semblante
indicando que talvez não estivesse tendo sonhos bons. Toquei-o
carinhosamente, afagando sua bochecha com a ponta dos dedos. Ele respirou
lentamente e abriu os olhos, encontrando os meus.
― Você cresceu... – Sussurrou, me puxou bruscamente, colocando-
me em seu colo, involuntariamente gemi. – Oh, me desculpe, eu esqueci! –
Aliviou a pressão que fazia, deixando-me ajeitar sobre suas pernas. Fiquei de
lado, repousando a cabeça em seu peito e escondendo as lágrimas que
surgiram por causa da dor. Algo no fundo da minha mente me lembrava de
que eu estava brava com ele, mas não conseguia captar o motivo.
― P.
― Oi?
― Por que a gente brigou mesmo?
― Porque é culpa minha a morte da sua mãe e tudo o que aconteceu
com você no Inferno.
― A morte da minha mãe... E do meu pai?
Ele beijou minha testa e soltou um longo suspiro, ficando em silêncio.
Abri os olhos e afastei o rosto para encará-lo.
― Eu falei que seu pai estava vivo. – Resmungou.
― E por que ele não me procurou? – Inquiri sem acreditar nele.
Pietro deu de ombros, mas algo em seu olhar dizia que ele sabia a
resposta. Desisti de insistir, as coisas já estavam demasiadamente ruins, não
queria que piorassem.
O quarto estava escuro, a luz que entrava da janela vinha da lua e
ouvia o ulular de uma coruja ao longe, era madrugada ainda. Pietro beijou
minha bochecha, depois deu outro beijo, parecia distraído quando encostou
os lábios nos meus. Fechei meus olhos em dúvida se desviava ou não, mas
não precisei, ele começou a falar.
― O que você vê no futuro?
― Em relação a quê?
― A você e o cara que será seu marido. Quem você vê ao seu lado?
Eu ou o Pierre?
― Que pergunta maluca é essa? – Tentei desviar o assunto com
receio de magoá-lo, já tinha deitado em seu ombro para afastar nossos lábios.
― Você está aqui no meu colo, não me rejeita... Eu não consigo
entender de quem você gosta, às vezes.
Movi-me para sair do colo dele, mas ele me prendeu firmemente.
Apertei bem os olhos para conter o gemido de dor. Não me lembrava de estar
doendo tanto!
― P... Eu amo o Pierre, não tenho dúvidas disso...
― Eu sei. – Suspirou. – Mas?
Ele me encarou com seus olhos verdes, havia um brilho de esperança
naquele rosto que me fez sentir culpada.
― Eu te amo também, é confuso, às vezes.
― Quem você ama mais?
― Não sei se é possível medir isso. – Tentei fugir da resposta.
― Se eu morresse, você ia querer morrer também? – Perguntou
baixinho.
― Que bobagem, você não vai morrer!
― E se eu dissesse que o Pierre nunca mais poderá retornar a Terra?
Meu coração saltou ao mesmo tempo em que as lágrimas brotaram
nos meus olhos. Levantei o rosto encarando Pietro, perplexa com a
informação.
― Eu sabia que você estava escondendo algo! Nunca mais? – Minha
voz falhou e eu sabia que iria desabar na frente dele.
O toque de seus dedos foi suave, secando meu rosto das lágrimas que
comecei a derramar. Pietro suspirou, me roubando um selinho rápido.
― Não tem o que duvidar, Suzie, você o ama mais que a mim. –
Ergueu-me facilmente em seus braços e foi em direção à minha cama.
― Desculpe-me...
― Você não tem culpa.
― Ele não vai voltar?
― Não sei ainda, mas há essa possibilidade. – Beijou minha testa
logo depois de me cobrir. Segurei suas mãos.
― Se ele não voltar, eu poderei ir onde ele está? – Ele negou, beijou
minhas mãos e se levantou. Soltei as mãos dele, sentindo-me mole com a
possibilidade.
― Espero que ele volte. – Resmungou, sentando-se na cama. Queria
ao máximo me conter, mas meus sentidos, sentimentos, percepções e minha
mente estavam em frangalhos. – Porque, honestamente, odeio vê-la assim. E
pensar que já afoguei você.
Aspirei o ar, assustada.
― Já me afogou?
― Eu não era bom como fui com você esses meses, minha essência
era feita do mal... Enfim, você está viva e é isto o que importa.
Notei em seu semblante que ele se arrependia, seja do que for que fez
comigo. Não me lembrava de um afogamento ou de ter problemas com água.
Pietro beijou minha testa e voltou para a poltrona, não demorou muito para
dormir novamente.

Alguns dias se passaram depois do meu retorno do Inferno, não sabia


nada sobre Arthur, mas ao menos tinha a distração da minha formatura, que
seria no final de semana. Precisava preparar minha roupa, o discurso junto
com a Bruna, pois Arthur, que o faria, havia sumido e a professora se
contentou em pedir a mim. Soube que adiaram por minha causa, pois era
importante para Bruna – que era a organizadora da formatura e eu nem sabia
–, que eu estivesse presente.
Contaram sobre o ocorrido no Inferno, ao menos o que conseguiram
descobrir, e soube que Persus não havia morrido, pois demônios não morrem,
eles retornam ao Inferno e ficam presos lá, sendo castigados por não alcançar
o objetivo que lhes foi imposto. Fiquei feliz com a notícia, ele e aquele
encapuzado mereciam isto.
Já era sexta-feira, dia vinte e sete de janeiro. No dia seguinte, Pietro
me acompanharia ao baile de formatura. Ele realmente ficava perfeito de
smoking, mas sentia aquela melancolia ir e vir por saber que não seria Arthur
no lugar dele. Todos tentam me distrair, mas é quase impossível me
concentrar nas tarefas que preciso desempenhar como me alimentar, me
banhar, fazer exercícios para o corpo responder melhor ao treinamento que
Pietro tem me submetido, ou até dormir. Os pesadelos, que antes eram com o
acidente, se tornaram cada noite piores, pois vinham regados a lembranças do
Inferno, ou comigo apontando para uma campina na esperança de ver Arthur.
Este sonho era igual à imagem que eu tinha de Veronique morrendo,
esperando por ele.
― Suzie? – Vovó me tirou dos pensamentos.
― Sim?
― Não vai comer, filha?
Respirei fundo, encarando o prato de macarronada preparado por
Maria. Pietro e Demetria já haviam terminado, vovó e vovô comiam a
sobremesa e o meu prato estava intacto.
― Estou sem fome. – Murmurei.
― Precisa comer. – Lembrou-me ela.
Assenti, comendo pequenas doses a cada um ou dois minutos; o
macarrão já estava frio e meu estômago revirado. Mesmo em meu torpor
egoísta, vislumbrei algo que me encheu de ciúmes, sentimento até então
inexplorado por mim em relação ao Pietro. Demetria estava com o dedo
indicador sobre o dorso da mão esquerda dele, fazendo círculos curtos
distraidamente enquanto sussurravam e riam de alguma coisa. Meus olhos se
encheram de lágrimas e me levantei bruscamente, indo na direção do meu
quarto.
― Suzanna? – Perguntou ele, mas passei direto sem nada dizer.
Por mais incrível que fosse, o andar debaixo de nossa casa estava
intacto, novinho em folha, apenas os móveis eram outros, mas, segundo o que
me explicaram, o fogo havia consumido superficialmente as paredes e os
móveis, não havendo risco de desabamentos. Os novos móveis eram neutros,
tons de bege e branco adornando todos os ambientes. Na escada, havia um
tapete marrom escuro cobrindo o piso escurecido pelas chamas. Subi sem
pressa, pois, apesar do ocorrido no Inferno ter sido apenas com a minha alma,
as dores físicas ainda me sobrepujavam, mesmo com o treinamento e depois
de tanto tempo.
Cheguei ao meu quarto em poucos minutos, mas Pietro já estava à
porta me esperando. Reprimi uma careta por não ter notado que ele passou
por mim.
― Dá licença? – Pedi.
― O que aconteceu? – Perguntou ainda postado à frente da porta.
― Só quero dormir.
― Para quem tinha insônia, você anda dormindo demais, não acha? –
Riu.
― Não enche. – Empurrei-o, tentei fechar a porta depois de entrar,
mas ele não deixou, passando facilmente por mim. Bufei, sentando-me na
cama. – Você e a Demetria estão ficando?
― Eu não fico.
Ergui meus olhos, encarando-o. Seu olhar estava sombrio, triste. Ele
respirou fundo, talvez sabendo que eu não me contentaria com essa resposta.
― Ela fez carinho na sua mão.
― Sim, eu sei. – Ele sorriu de lado e captei um sentimento ali.
― Você g-gosta dela? – Gaguejei.
― Suzie, eu preciso seguir em frente, não acha? – Exaltou-se e, então,
se afastou indo até a porta. – Ou espera que eu veja você e meu irmão juntos
e não faça nada para superar?
― Não vamos ficar juntos... – Murmurei baixinho, envergonhada. Ele
tinha razão, eu não podia esperar que fosse me amar para sempre. Suspirei e
ergui meus olhos. – Ela gosta de você?
Pietro mordeu o canto do lábio e pareceu confuso, em seguida se
afastou da porta, puxou a poltrona até mais perto da minha cama e se sentou à
minha frente.
― Acho que sim... Ao menos, parece que sim, mas não estou
tentando nada. – Confessou. – Amo você e todo mundo sabe.
― Desculpe.
Ele afagou meus cabelos, lançando-me um sorriso triste.
― Mas, eu sinto que ela me olha diferente, o Teruy me alertou sobre
isso também, e ela é linda, Suzanna.
Mordi meu lábio, enciumada, gritando em pensamento: Não seja
egoísta!
― Realmente, ela é linda e... Vocês... Já, tipo... Hm... Ficaram? –
Soltei o ar assim que pronunciei.
― Eu não fico. – Explicou. – Se tiver algo com ela, será sério.
Arregalei meus olhos diante da informação, em seguida soltei a frase
sem ao menos pensar.
― Não pode, você tem namorada.
― Tenho?
Seus olhos estavam arregalados e ele parecia perdido, tentando
descobrir quem ela seria.
― Tem claro! Eu... Você nunca terminou comigo.
O quarto se encheu com a risada gostosa que ele soltou, tive de rir
também, afinal minha observação era ridícula. Ele tocou meu rosto e afagou
carinhosamente.
― Nem nunca irei terminar. – Levantou. – Mas, você ter beijado o
meu irmão – enfatizou – já faz de nós dois ex-namorados.
― Opa, verdade. – Brinquei sem humor.
― Suzie, eu não sei de nada ainda. Amo você, mas estou deixando
esse sentimento novo surgir, não vou barrar. Meu irmão, voltando ou não,
você esperará por ele, eu sinto isso e, caramba, não sei me expressar como
gostaria.
― Não precisa explicar, eu entendo. Não adianta se amarrar a alguém
que não te dá certeza de um futuro.
Assentiu lentamente, abrindo a porta do meu quarto.
― Vamos fazer a ronda, o Teruy e os outros estão do lado de fora.
Mais tarde, eu volto.
A porta se fechou em seguida e eu me afundei na minha solidão mais
uma vez.
O relógio da cabeceira indicava duas da tarde, faltava muito ainda
para a hora de dormir e, por mais que quisesse, não sentia sono ou vontade de
coisa alguma. Por isto me levantei e desci para a sala. Meu avô estava
sentado na poltrona lendo um livro. Sentei-me no sofá de seis lugares,
quietinha, olhando para a TV desligada.
― Quer conversar? – Perguntou.
― Não.
― Quer. O que aconteceu?
― Queria saber, ou melhor, entender por que fui parar no Inferno, não
aquela história do Pietro ter me deixado vulnerável, mas do motivo que o
Diabo me quer lá. As respostas são vagas demais, não sei se ainda corremos
risco.
― Também não sei, mas o que explicaram para nós foi que ele
precisa do seu dom para saber o futuro.
― Mas, não vi mais nada depois que saí de lá e, também, nunca vi
nada relevante, a não ser que Pierre iria cair e que seríamos atacados naquela
praia.
― Você viu uma espada. – Lembrou-me.
― Podia ser só a minha imaginação.
Vovô deu de ombros e voltou para a leitura. Muito útil e
esclarecedora a nossa conversa.
Depois que melhorei, fiquei sabendo que eles ajudaram a me capturar,
pois foram enganados, acreditando ser o certo. Meu avô disse várias vezes
que meu pai os visitou, pedindo que deixassem a casa desprotegida para que
ele e seus soldados fossem me buscar, que o futuro era imutável e era
preferível que eu o seguisse ao Inferno do que ser capturada e forçada a ir.
Ninguém acreditou que era realmente meu pai, afinal ele morreu, mas
que alguém se fez passar por ele. Meus avós foram absolvidos e continuam
como humanos, pois eram como a minha mãe, uma Nefilin sem dons que
descobriu tarde sua condição de filha de anjo, sendo agraciados por uma vida
humana comum, ao menos o mais comum que um meio anjo consegue viver.
Na cozinha, a fome tinha retornado, portanto agarrei uma pêra do
cesto e comecei a comê-la. Imediatamente, fiquei melancólica, porque isso
me fez lembrar de Arthur. Cutuquei o bolso do jeans que estava usando,
retirando a pena dali e fui para a árvore nos fundos. Sentei-me recostada ao
tronco com a pena passeando em meu rosto e terminando de comer.
Era mais fácil sentir a proteção daquele lugar agora que Pietro havia
me ensinado mais coisas. Quando um ambiente é consagrado para o bem,
uma força de paz parece nos envolver e aquecer; quando é para o mal, a
opressão nos aflige, chegando a desarmar anjos. Demônios e caídos não
conseguem pisar em locais consagrados para o bem, mas anjos podem pisar
em qualquer lugar, apenas cuidando para não absorver as coisas ruins.
Ao me sentar ali, senti a paz me envolver mesmo melancólica. As
respostas que precisava dançando nos meus pensamentos, querendo
convencer-me. Fechei meus olhos, argumentando comigo mesma.
Tem algo no futuro que o Inferno precisa, por isso queriam meu pai e
agora a mim. Ele faleceu tentando me proteger disso, mas o destino me levou
diretamente a ele. O que eu precisava fazer era filtrar as imagens que tenho
em sonhos ou visões e descobrir o que eles estão procurando, para não
revelar a ninguém, nem aos anjos. Preciso confiar apenas em Pietro e no
Pierre, se ele retornar.
Aquela espada parecia realmente importante para o encapuzado e para
Persus. Teria realmente algum fundamento o que meu avô falou?
Fechei os olhos, concentrando-me na imagem que vi daquela vez. A
espada era grande, a lâmina maior que meu braço e com gravuras que não
consegui memorizar, seu punho feito de algum material prateado, talvez
cobre ou até mesmo prata, o desenho de uma cruz e uma pedra avermelhada
ao centro.
― A espada do Juízo Final... – Lembrei de repente, pensando alto.
O encapuzado havia dito as palavras, que aquela era a espada do Juízo
Final, mas para que ela serviria?
Levantei, indo para o meu quarto, me fechei lá, utilizando agora o
notebook para descobrir mais sobre o que vi.
Três horas mais tarde, meus olhos ardiam e minha cabeça latejava e
tinha encontrado pouca coisa, mas nenhuma imagem parecida com a espada
que vi. Fechei o notebook frustrada e deitei a cabeça sobre minha
escrivaninha, pensando. Fui interrompida por uma batida na porta, olhei na
direção e Pietro passou por ela.
― Você está bem?
― Sim, estou. – Sorri, me erguendo. – Como foram as buscas?
― Buscas? Ah... Nada suspeito. Acho que desistiram de você.
― Duvido. – Murmurei e ele entortou os lábios. – Você conhece uma
espada conhecida como Espada do Juízo Final?
Pietro franziu o cenho pensativo, pegou o bloco de papel sobre a
minha escrivaninha e fez um desenho idêntico ao da espada que vi na minha
visão.
― Esta?
― Sim... – Arfei. – Foi ela que vi quando estava no Inferno. –
Expliquei. – Você sabe se tem algum significado?
Seus lábios estavam franzidos em uma linha rígida. Depois de mais de
um minuto, ele me encarou soltando o ar.
― Esqueça isso, por hora vamos nos concentrar na sua formatura
amanhã.
― Por quê?
Ele tocou meu queixo e o ergueu, fazendo-me encará-lo nos olhos,
suspirei ao perceber que não responderia nada, estava resignado.
― Não posso dar-lhe todas as respostas, nunca poderei. Seja paciente.
Dei de ombros, desviando o olhar para minha cama. Era a mesma
resposta que recebia quando perguntava sobre o Arthur.
― Sabe como me sinto? – Sussurrei.
― Gostaria que me contasse. – Pietro se sentou à minha frente, na
minha cama. Girei a cadeira da escrivaninha para ficar cara a cara com ele.
― Em uma avalanche. Caindo, caindo... Tudo se tornando, cada
segundo, maior e eu espremida dentro da bola de neve. Sem acesso ao
exterior, sem chances de escapatória, sem ideia de quando finalmente baterei
em alguma coisa e morrerei ou serei liberta desse aperto. – Franzi os lábios,
chateada. – Tem dois meses, ou mais, já me perdi na contagem do tempo...
Que conheci vocês e, de repente, estava sendo arrastada por uma floresta e
disputada como um troféu por um caído e um anjo. Fui julgada, absolvida,
mas ainda posso ser julgada de novo. Minha alma foi parar no Inferno e algo
me diz que iria para lá mesmo que você não ajudasse. – Ele suspirou. –
Queria ter controle das coisas. Estou desestabilizada...
Além do que proferi, tinha o fato de estar em desespero com a
ausência de Arthur, não saber se tornaria a vê-lo estava me consumindo
pouco a pouco.
Pietro, como sempre, foi cuidadoso. Tirou-me da cadeira e me fez
sentar na cama e apoiar a cabeça em seu peito, acariciou meus cabelos e me
ninou como a um bebê. O futuro parecia uma armadilha e o presente
escorregadio, como se a minha vida estivesse se derretendo no magma do
Inferno.
― Suzie, tudo vai acabar bem. – Murmurou ele depois de um tempão.
― Como você pode ter certeza? – Funguei com o rosto amassado no
peito dele.
― Eu tenho fé. Nenhum fardo é colocado sobre nós, que não
tenhamos capacidade de suportar.
― Mas, tem muita gente que não suporta. – Argumentei.
― Somente aquelas que se esquecem da fé. A fé é um elemento
poderoso, tanto para humanos, como para anjos.
― A fé move montanhas. – Citei uma frase que ouvi meu avô
dizendo muitas vezes.
― Não somente montanhas. Então, não se esqueça de confiar. Tudo
vai ficar bem, eu prometo. – Disse, olhando em meus olhos.
A promessa de um anjo é poderosa e agora eu sabia disso. Se ele
prometeu, é porque faria o impossível para ficar tudo bem. Meus olhos
marejaram e o abracei com força.
― Obrigada. – Sussurrei.
― Com licença, Suzanna, você viu o Pietro? – Ouvimos Demetria na
porta do quarto. Ambos olhamos para ela e, por sua expressão, eu sabia
exatamente como ela se sentia por nos ver ali, abraçados, o rosto dele
próximo do meu e sozinhos em meu quarto.
Ela não esperou resposta, apenas apertou os lábios, encostou a porta e
saiu. Imediatamente, Pietro se levantou e saiu apressado atrás dela. Respirei
fundo, sentindo aquele ciúme irracional querendo me fazer chorar, mas
rapidamente mudei meus pensamentos de rumo, pois queria que ele fosse
feliz e não fazia sentido ter ciúmes de alguém que eu amo apenas como
amigo.
A cena lembrava tantas que já idealizei: Uma donzela que sai
correndo chorando e o cavaleiro de armadura cintilante indo atrás e
declarando seu amor até então oculto. Demetria era sortuda, possivelmente
estava vivendo neste exato instante uma cena dessas.
Escorreguei na cama, abraçando meu travesseiro para parar de me
torturar com o pensamento deles se beijando e se comprometendo um com o
outro.
― Demetria, espere! – Ouvi ao longe a voz de Pietro do lado de fora
da casa. Corri para a minha janela para espiar.
Abri só um pouco a vidraça, o suficiente para vê-los e eles não
notarem que os observava. Perto das rosas, se encontrava a garota, estava de
costas para Pietro que se aproximava apressado. Percebi que falou algo que a
fez se virar para ele, negando lentamente com a cabeça. Estava com os lábios
apertados como os de alguém que está prestes a chorar. Novamente ele falou
e, em seguida, a abraçou. Meu coração ficou ainda menor ao notar que ela
estava chorando, pois limpava o rosto com a mão que estava na nuca dele e
depois voltava a abraçá-lo.
― Desculpe-me... – Li os lábios dela e, em seguida, ele assentiu com
a cabeça.
Ambos se encararam e Pietro começou a limpar o rosto dela, marcado
pelas lágrimas. Passava o polegar carinhosamente e beijava de leve onde
limpou. Segurei as lágrimas ao ver a cena, pois, por mais que o anjo tenha
fingido, há pouco mais de um mês, era comigo que ele tinha esse tipo de
cuidado. Obriguei-me a sair da janela e dar privacidade a eles, afinal, não era
meu interesse vê-lo beijando outros lábios.

O dia amanheceu cinzento, parecia o prelúdio de algo ruim. O som do


vento zunindo incansável, balançando a janela que não havia trancado direito
e que me recusei a levantar e fechar por pura pirraça. Tinha passado a noite
acordada, conseguindo adormecer por volta das cinco da manhã quando a
chuva iniciou, mas novamente acordava pelo barulho incessante de metal se
chocando, por conta da janela que eu ainda não pretendia trancar.
Resmunguei ao olhar o relógio ao lado da minha cama, passava das
dez da manhã. Precisava levantar, pois vovó tinha marcado horário no salão
de beleza para me preparar para o baile de formatura. Não tinha sentido
algum ir ao baile sem Arthur e, ainda por cima, acompanhada do namorado
de outra pessoa. Tinha certeza que não superaria meu mau humor até a hora
da festa.
Levantei da cama ao ouvir vozes no corredor, fui até a janela e puxei
a haste com força, o baque fez respingos de água caírem no meu rosto e
reclamei com o toque gelado.
― Está tudo bem? – A voz de Pietro cortou o silêncio do ambiente,
bufei e não respondi, terminando de virar a tranca da janela e me arrastando
pelo sofá para ir até o banheiro. – Falei com você. – Segurou meu braço
quando tentei passar por ele.
― Estou excelente, obrigada. Posso tomar banho ou pretende
observar? – Meu tom irônico fez Pietro revirar os olhos, mas não me soltou.
― Observar estaria no topo da minha lista há um mês, mas não
pretendo fazê-lo, obrigado pelo convite.
― Mas, eu não...
― Vou te levar ao cabeleireiro em vinte minutos, vim lembrá-la.
Agora se está bravinha por causa de ciúmes, lembre-se que você não tem esse
direito.
O tom que ele usou era seco e sem nenhuma emoção, mas havia um
brilho de divertimento no fundo de seus olhos que me deixou constrangida.
Ele tinha razão, eu não tinha direito de ficar chateada, ao contrário, tanto ele
como Arthur é que tinham todo o direito de ter raiva ou ciúmes de mim.
Assim que ele deixou o quarto, consegui me recompor e o mau humor
desapareceu como mágica.
Prontamente às onze horas, ele me deixava no salão, fizemos o
caminho todo em silêncio e ele dirigiu o carro no qual me levou ao seu
restaurante em nosso segundo encontro. Dei um beijo em seu rosto antes de
sair do veículo.
― Desculpe-me por ser tão infantil. – Pedi e ele devolveu um sorriso.
― Suzanna, estou acostumado com a mudança de humor repentina
das pessoas. Se soubesse o que passei no Inferno teria uma breve noção,
então você me tratar mal às vezes, não me atinge, só acho bonitinho. – Riu.
― Você consegue me irritar tão fácil. – Grunhi e dei um soquinho no
ombro dele, que riu mais ainda. – Mas, me perdoe. Realmente não tenho o
direito de sentir ciúmes. Ficou tudo bem com ela?
― Ficou sim.
― Estão namorando?
Novamente sorriu, mas não havia divertimento em seus olhos, ele se
inclinou sobre mim abrindo a porta do passageiro, depois me olhou.
― Vá, quero você deslumbrante quando me encontrar mais tarde.
― Você não respondeu a minha pergunta.
― Eu sei.
Beijou meu rosto e se afastou, esperando que eu saísse do carro.
Encarei-o ainda por alguns segundos e desisti, saindo e fechando a porta do
passageiro. Não demorou muito para vê-lo partir.
Por que ele não contaria se está namorando ou não? Por não querer
admitir, por que não poderia namorar um anjo ou por que tinha esperanças
comigo ainda?
Adentrei o salão com inúmeras teorias e, enquanto mexiam nos meus
cabelos, unhas, pele e me depilavam em lugares impossíveis, as dúvidas não
se afastaram da minha mente. Era bom ter no que pensar, algo que não
envolvesse Arthur, mas era estranho não ter respostas, pois achava banal ele
manter tanto mistério.
Por volta das cinco da tarde, vovó adentrou o salão com um saco de
papel e um copo gigante de milk-shake de morango, não era o meu preferido,
mas estava faminta, por isso nem reclamei.
― Obrigada, vovó! – Ataquei o lanche que havia no saco enquanto
tiravam os bobs da minha cabeça.
― A maquiagem está perfeita. – Afirmou dona Catarina, elogiando o
maquiador, um rapaz atencioso que se apresentou como Tony quando
cheguei.
― Obrigado, senhora Monteiro, é sempre uma honra agradá-la.
― Nossa, quanta formalidade. – Retruquei com a boca cheia. Ambos
olharam-me enviesado, o que fez parte dos que estavam presentes rirem de
mim. Suspirei e deixei de prestar atenção às conversas nas demais horas que
se seguiram.
Nunca imaginei que se arrumar para um baile demoraria tanto.
Quando sai do salão já havia escurecido e teria tempo apenas de chegar em
casa, me vestir e encontrar com Pietro, Bruna e seu par, pois iríamos juntos.
Julio foi nos buscar no lugar de Pietro e, como de costume, sentei-me
no banco do passageiro enquanto vovó preferia ter um motorista e sentou no
banco de trás, irritada por não me juntar a ela, porém não reclamou na frente
do nosso motorista, ao menos sendo educada.
― Está linda, Suzie. – Sussurrou ele antes de sairmos do carro.
― Obrigada. – Beijei-o no rosto e sai correndo, pois o baile iniciaria
às dez da noite e já passava das nove.
― Você está atrasada! – Avisou Bruna, me esperando na recepção da
minha casa.
Ela estava pronta, o cabelo em um coque desmanchando
propositalmente, vários pingos de strass espalhados no penteado. Usava um
vestido lilás colado ao corpo, frente única fechada no pescoço e com um
corte atrás revelando quase toda a sua coluna. Realmente linda e adulta. Notei
que o garoto louro ao lado dela era um dos que vieram à minha casa quando
voltei do Segundo Éden, não me recordava o nome, por isso acenei e corri
para o meu quarto.
Respirei bem fundo me apoiando na porta por alguns segundos antes
de realmente me arrumar. O vestido lilás estava sobre a minha cama, passado
e com as pedrinhas que adornam o corte V brilhando chamativas. Era
simples, alças finas, decote V não muito cavado, costas seminuas até abaixo
das omoplatas. Tinha um caimento de vestido de noiva na saia, bufante, mas
não exagerado, longo, na medida certa. Não me lembrava de ter escolhido o
modelo, provavelmente vovó o fez por mim, mas tinha acertado, pois era do
meu gosto, sem ficar diferente das demais formandas que deviam escolher
vestidos longos e no mesmo tom.
Bruna entrou no meu quarto quando estava terminando de vesti-lo.
― Quer ajuda com o zíper? – Perguntou baixinho.
― Oi Bru, quero sim, por favor. Aliás, você está linda.
Ela sorriu. Virei-me e ela fechou o zíper para mim, depois se agachou
e me ajudou a colocar as sandálias. Altas para o tipo de salto que estou
acostumada, mas lindas. Duas tirinhas finas em tom prateado combinando
com as pedrinhas do vestido, salto fino e fechando no tornozelo com outra
tira fina. O sapato ficaria escondido grande parte do tempo, mas era perfeito.
― Que linda! Vem, olha no espelho.
Fui arrastada até a porta do meu armário, que ela abriu revelando o
espelho de corpo inteiro. Fitei-me com olhos arregalados, pois fazia muito
tempo que não me achava tão bonita. Depois dos últimos acontecimentos, de
ser arrastada para cima e para baixo como um saco de areia, havia esquecido
de me cuidar, além de não encontrar motivos para isto.
Meu cabelo estava escovado e mais longo, cachos grossos, bem
hidratados pesando sobre meus ombros nus. O vestido me deixou com cintura
e busto quase como o de uma mulher adulta e a maquiagem, apesar de
simples, me fazia parecer uma princesa com todo aquele adorno. Suspirei,
sentindo lágrimas me vindo aos olhos, por desejar imensamente que Arthur
me visse assim.
Bruna estendeu dois brincos pequenos de strass que coloquei na
orelha e uma corrente longa que fazia par com os brincos. A peça ficou na
altura dos seios, discreta, harmonizando com o conjunto todo. Ansiosa,
segurei a bolsa de prata onde estavam os ingressos, documentos, dinheiro,
celular e a pena de Arthur – que eu não andava sem – e saí, me segurando no
corrimão para descer a escadaria. Mal chegamos ao final, e os rapazes
estavam na ponta, as mãos estendidas para nos amparar e sorrisos enormes no
rosto. Não dei importância ao acompanhante de Bruna, pois Pietro estava
irresistivelmente encantador. Vestido de fraque preto, a gravata e o adorno na
cintura, prateados. O cabelo desalinhado de um jeito sexy e de barba feita.
Segurei a mão que me ofereceu; estava quente, firme, dando-me segurança
para esquecer momentaneamente dos meus problemas e da ausência do irmão
dele.
― Linda, como sempre. – Pietro não desgrudou os olhos dos meus,
levou minha mão até seus lábios e beijou.
Respirei fundo, sorrindo timidamente e desviei meu olhar, descendo o
último degrau e seguindo Bruna para o lado de fora onde uma limusine nos
aguardava.
― Obrigada P, você está um gato! – Comentei.
― Eu sei.
― Mas, é metido! – Rimos, quebrando o momento estranho de mais
cedo.
Acomodamo-nos na limusine. Bruna e seu acompanhante, que logo
ouvi ser chamado de Rafael, se instalaram no banco lateral, Pietro e eu no
banco dos fundos, de mãos dadas. O trajeto até a escola foi rápido, mas a
curiosidade dos outros dois em remexer em tudo nos arrancou boas
gargalhadas.
― Achei que Arthur fosse voltar para a formatura. – Comentou
Rafael, quando estávamos do lado de fora da limusine. Mordi meu lábio,
abaixando a cabeça.
― Ele não pôde vir. – Explicou Pietro, dando de ombros. – Vamos
entrar? – Perguntou a mim.
― Sim.
Era minha última visita àquela escola como aluna. A última
lembrança seria aquele baile. Começava a me sentir nostálgica ao perceber
que compartilhei pouco do último ano com meus amigos, absorta em minhas
histórias, em minha tragédia particular e posteriormente na bagunça de me
descobrir meio-anjo. Preferia ter aproveitado mais, minha adolescência ficava
para trás e tinha quase certeza que esta seria a última noite comum em minha
humanidade.
Seguia no mesmo corredor onde há cerca de dois meses Arthur havia
me tocado e dito que tínhamos um encontro para assistir o nascer do sol. O
trajeto trazendo certo desconforto ao meu peito e, mesmo com o toque
carinhoso de Pietro em minha mão, conseguia sentir a presença do meu anjo
ainda mais vívida do que quando ele esteve aqui.
Capítulo 28

O longo caminho pelo pátio estava repleto de flores – rosas e tulipas –


a maioria em tons brancos e arroxeados para combinar com a cor escolhida
pelas meninas em seus vestidos. Fiquei surpresa com a dedicação de Bruna
ao baile, ela estava agitada, sorrindo de orelha a orelha por ver o resultado da
comissão de formatura que organizou. A decoração estava impecável e era
quase impossível reconhecer o ambiente escolar.
Saímos para o pátio e logo ganhamos o corredor que dava para a
quadra. A quadra da nossa escola fica aos fundos do terreno, é do tamanho de
um campo de futebol. Devido à reforma recente, o piso não é esburacado,
mas está apto para jogos de futebol, basquete, vôlei e outros tipos de esportes.
Hoje, porém, não se parece em nada com uma quadra de esportes. Há oito
pilastras posicionadas ao redor de toda a quadra, cada uma delas sustentando
um adorno para iluminação e tecidos que foram presos entre um e outro pilar,
causando a sensação de estarmos dentro de uma sala com paredes de tecido
esvoaçante. Usaram prata, roxo, cobre e até tons de ouro no emaranhado; o
balançar do vento e o prateado da lua dando um toque romântico e especial a
esta visão. O chão foi coberto totalmente de negro e não é possível ver as
cores gritantes que quadras esportivas possuem.
Perto das arquibancadas do lado direito, foram colocadas mesas
quadradas, cobertas por um pano no mesmo tom usado nas sedas penduradas
pelas pilastras. Candelabros com velas artificiais iluminando o ambiente
juntamente com a lua e os pilares de luz, cada mesa com um vaso pequeno e
nele uma rosa ou uma tulipa dando um toque mais especial. Colado na
arquibancada, havia uma espécie de lanchonete onde se compram as bebidas
e os lanches para quem quiser comer. Ao centro, uma pista de dança quase do
tamanho da quadra onde alguns alunos já estão dançando com seus pares.
Oposto às mesas, foi montado um palco onde uma banda contratada tocava e
uma cantora profissional estava cantando uma música da cantora Adele.
― Está lindo... – Sussurrei para Bruna, que estava esperando alguma
reação minha.
― Obrigada! Notou que tem suas flores preferidas? – Perguntou rindo
baixinho.
― Notei sim, as tulipas... Obrigada, Bru. – Abracei-a carinhosamente
e logo ela se afastou com Rafael para a pista de dança. Ambas amávamos
tulipas por causa de um livro de vampiros que lemos onde a antagonista da
rainha Elizabeth amava tulipas e havíamos simpatizado com ela, mesmo não
sendo a mocinha da história.
Olhei para a lua que estava às costas de Pietro e ele sorriu, segurando
em minha cintura, encurtando o espaço entre nós dois.
― Gostou da surpresa que ela te fez? – Perguntou perto do meu
ouvido por causa do som.
― Muito... Fiquei realmente surpresa com tudo isso.
― Tem mais. – Avisou. – Mas, antes de te mostrar, você quer beber
algo?
Neguei lentamente, ansiosa para saber o que mais minha amiga havia
aprontado.
― Ei, Suzanna, que bom que você voltou! – Uma menina gritou,
acenando para mim. Cumprimentei timidamente, pois não estava acostumada
a ter atenção.
Pietro me dirigiu pela entrada lateral até a quadra, a das arquibancadas
que ficam atrás do palco improvisado. De mãos dadas, seguimos adiante, ali
era também o vestiário e a quadra coberta para futsal. O local estava
igualmente decorado, apenas sem as pilastras. Havia música ambiente e quase
nenhum aluno dançando, a maioria preferindo o lado de fora com a música ao
vivo.
Sorri, observando que ali as velas eram reais em seus candelabros,
deixando um cheiro fraco de parafina no ar e uma característica bruxuleante à
iluminação, que deixou aconchegante e não assustadora aquela parte em
especial da escola, mesmo me remetendo ao Inferno momentaneamente. Ele
me conduziu até o centro da quadra, fez uma mesura exagerada e pegou
minha mão, abraçando minha cintura com a outra, obrigando-me a segurar na
nuca dele com a mão livre. Suspirei quando começou a dançar. A música era
antiga, desconhecida, mas não para ele, que cantarolou baixinho perto do
meu ouvido, exatamente como aconteceu com Arthur no dia do meu
aniversário.
Encostei a testa no ombro de Pietro, apertando levemente a nuca dele
com a mão que a envolvia, imagens daquele dia pairando sobre minhas
lembranças enquanto ele me conduzia com facilidade. Sentia-me ridícula por
estar nos braços de quem eu quis desde o início, mas pensando em outro.
Patética seria uma palavra mais apropriada. E o que mais me angustiava não
era a lembrança ou Pietro ser tão atencioso e perfeito, mas não saber o que
aconteceu a Arthur e se um dia o veria de novo.
― Eu escuto você. – O anjo murmurou bem perto do meu ouvido e
beijou sobre o brinco quase sem tocar a minha pele.
― Como assim? – Afastei o rosto de seu ombro e o encarei.
Ele se limitou a balançar a cabeça em negativa, pegou minha mão me
obrigando a girar sobre meu próprio eixo. No retorno, segurei-o novamente e
sorri, tentando concentrar-me no agora. Agora ele tinha Demetria, éramos
amigos – o que não era em nada ruim – e ele não era mais tão ameaçador.
Pietro sorriu de lado e vi um brilho divertido passar por seus olhos.
― Você não entendeu mesmo o que eu disse. – Murmurou, olhando
meus olhos e depois os meus lábios.
― Hmmm, acho que não. – Afastei o rosto um pouco mais, porque
conhecia aquele olhar, ele estava tramando algo.
― Não estou tramando nada, Suzaninha. – Sorriu. – Apenas tentando
fazer com que você preste atenção às coisas. Tudo é um aprendizado.
― É minha formatura, as aulas acabaram. As provas também... Não
pode dar uma trégua nesses ensinamentos, não? – Questionei em tom de
brincadeira.
― No Inferno, não há trégua, Suzanna.
Fiz uma careta e novamente ele me fez girar, suspirei encarando seus
olhos ao estar de frente novamente. A altura do salto me permitindo ficar
quase na altura do rosto do anjo. Sorri.
― A que coisas quer que me atente?
― Ao que falei assim que iniciamos esta dança. – Como mantive o
olhar no dele, confusa, continuou. – Sobre escutar você.
― Ahh... Eu ouvi. – Depois de alguns segundos me fitando, entendi
ao que ele se referia. – Meus pensamentos... – Murmurei timidamente e logo
me lembrei de fechá-los. Afundei o rosto no ombro de Pietro, deixando que
me conduzisse. Não recordava do que havia pensado nas últimas horas, mas
certamente alguma vez pensei em Arthur. Grunhi tímida e o ouvi rir. – Não é
engraçado... Essa coisa deveria ser natural, já acordar com o pensamento
fechado e pronto. Pluft.
― Pluft? – Ele riu mais ainda. – Com o tempo, isso se torna natural.
Você precisa praticar. Daqui a alguns anos, fará sem nem perceber.
― Eu achava que só Deus podia ler pensamentos.
A música acabou, mas ele não me deixou sair de seus braços. Assim
que a próxima iniciou, voltamos a nos mover pelo salão.
― Ele escuta tudo. Pensamentos, intenções, tudo o que você esconde
de si mesma. O que eu consigo ouvir são seus pensamentos diretos, os
intencionais. Quando eu era caído, só podia ouvir porque você me deu
permissão, mas caídos e demônios normalmente não tem acesso nem ao
pensamento direto.
― Caramba... – Bufei. – Aula em plena formatura, eu mereço! –
Reclamei baixinho, depois o encarei. – Então, se eu pensar porque quis
pensar, você e outros anjos escutam, mas, se algo passar pela minha mente
sem que eu realmente pense, só Deus escuta.
― Mais ou menos isso. – Sorriu. – Fácil, não?
― Não.
― Mas, você entendeu, baixinha.
Fiz um bico e logo em seguida sorri.
― Hoje, estou alta, tá? – Ambos rimos e decidi não falar mais sobre
pensamentos, intenções e obscuridades. Queria curtir o momento de paz que
Deus me permitia ter. – Essa noite tem tudo para ser perfeita. – Comentei
baixinho.
A descontração se perdeu. Pietro parou de dançar, encarou meus
olhos e se afastou alguns passos.
― Mas, só não está perfeita porque meu irmão não está aqui. –
Completou.
― Não disse isso...
― Nem precisava. Vem, vamos comer algo.
Pietro me estendeu a mão e a segurei relutante, seguindo-o de volta
para a quadra aberta. Tocavam um rock pesado e a maioria dos formandos e
seus amigos ou pares dançavam no centro da quadra. Invejei-os por serem tão
normais.
Pietro escolheu uma mesa vazia perto de um dos pilares e próximo
também à entrada por onde viemos. Afastou a cadeira me permitindo sentar.
― Obrigada.
Ele retirou o paletó, pendurou na cadeira ao meu lado e se afastou,
cheio de charme, em direção à lanchonete. Aproveitei a solidão para olhar em
volta. Estudei os últimos dez anos nesta escola. Quando cheguei, mal
conversava. Hoje, a maioria aceitou esperar meu retorno para comemorar
nossa formatura. O tempo parecia muito maior que dez anos. A morte dos
meus pais estava distante, porém ainda difícil de lidar. As novas amizades
eram bem-vindas, mas às vezes me sentia aquela menina órfã que chegou
aqui no primeiro dia. Não fosse a Bruna logo me acolher, talvez tivesse
desistido de estudar.
Agora se iniciava uma nova fase, novas mudanças. Não era mais uma
criança órfã, mas uma jovem conhecedora de suas verdadeiras raízes. Meu
pai, um meio-anjo, meus avós, Nefilins, minha mãe, Nefilin. Uma mistura
bombástica para mim que tenho quase certeza, sou tão anjo quanto acho que
meu pai era. O pensamento me fez lembrar do diário de Arthur e das
anotações ali. Ele era o anjo que descobriu que meu pai era Sentinela. A
informação estava no diário de ambos.
Fui tirada dos meus pensamentos quando Pietro colocou um copo de
coca-cola diante de mim e um pão de queijo. Ergui meus olhos e sorri, já
emendando a pergunta enquanto ele se sentava.
― Meu pai era uma Sentinela mesmo, P?
― De onde você tirou isso? – Questionou depois de dar um longo
gole em sua bebida que parecia ser guaraná ou talvez cerveja.
― Uma coisa que eu li no diário do Arthur e no do meu pai.
― Desconfiei disso algumas vezes, mas estava ocupado querendo
levá-lo para o Inferno. Por quê?
― Eu sou o quê?
Pietro apoiou o cotovelo na mesa e se inclinou para mais perto,
pensativo.
― Você precisa de treinamento.
Suspirei e, em seguida, sorri.
― Certo... Chega de aulas por hoje. Obrigada pelo pão de queijo.
Amo pão de queijo! – Falei de um modo exagerado.
― Eu sei. Você ama queijo no geral, certo? – Riu.
― Super certo.
Comi um pedaço do pão de queijo e o devolvi ao pratinho de plástico,
lembrando que estava maquiada e que logo mais tiraríamos fotos com a
turma e com nossos pares. Comecei a tirar pedacinhos pequenos com a ponta
dos dedos, para só então coloca-los na boca para não manchar o batom. Pietro
me encarou se divertindo com a cena, mostrei a língua.
― Que nojo. – Brincou.
― Bobo... – Lembrei-me do motivo que paramos de dançar e
rapidamente acrescentei. – Estou muito feliz com a sua companhia hoje.
― Extremamente feliz ou apenas feliz? – Capturou minha mão, que
estava na lateral do pratinho e a segurou com a ponta dos dedos, encarando-
me de um modo que fez meu estômago gelar. Molhei meus lábios e todos os
momentos românticos que tivemos pairaram nas minhas lembranças ao
mesmo tempo. Respirei fundo desviando o olhar, pois não saberia mentir para
ele. Para mim mesma talvez, mas não para ele.
― Feliz. – E, antes que falasse algo, emendei. – Isto é meio
nostálgico. Terminar a escola, ir para a faculdade, saber que não teremos
mais contato, estas coisas.
Percebi que ele ficou tenso de repente, olhou no relógio e suspirou.
― Quero vê-la extremamente feliz. – Beijou minha mão. – Demetria
está aqui, você se importa se eu dançar com ela?
― Claro que não! – Respondi de imediato e, quando fui virar para
procurar por ela, Pietro segurou meu queixo.
― Confia em mim?
― Confio. – Estranhei a pergunta.
Ele se colocou de pé, beijou minha testa e me fez encará-lo.
― Vá até o anexo onde dançamos, eu cuido da sua bolsa.
Meu coração pareceu ganhar vida, pois aquela ordem estranha e sem
sentido – já que Pietro não iria comigo –, me deixou com medo e ansiedade
ao mesmo tempo. Minha mente logo imaginou a face de Arthur e me
apressei, sorrindo timidamente para Pietro antes de me afastar.
As pernas não obedeciam e minhas mãos tremiam tanto que mal
consegui erguer o vestido para me equilibrar melhor sobre os saltos e ser
mais rápida. Passei por Demetria no caminho para as arquibancadas e sorri,
ela sorriu de volta, mas seus olhos estavam além de mim, certamente em
Pietro. Ela tinha um brilho tão lindo no rosto que por um momento me odiei
por ter ciúmes.
Mais alguns passos e meus olhos o veriam, tinha certeza absoluta
disso. Meu anjo, meu Arthur, meu professor na infância, meu verdadeiro
amor. Meu Pierre!
Parei ao lado da parede que antecedia a porta do ginásio, umedeci
meus lábios, respirei fundo tomando coragem e a transpus. Olhando em volta,
parecia o mesmo ginásio de duas horas atrás, as velas bruxuleando, a música
tocando, dois casais dançando e se beijando, mas nada além, nenhum sinal
dele e nem de sua presença que geralmente eu sentia.
Girei no próprio lugar, lentamente, a procura, vasculhando
milimetricamente cada centímetro daquela quadra e das arquibancadas. Ele
não estava ali. Esmoreci, porém, como Pietro me mandou vir até aqui, resolvi
aproximar-me das mesas e me sentei na mais afastada da música e dos casais.
Entrelacei meus dedos sobre meu colo e prendi o ar. O que me esperava neste
lugar e por que Pietro me mandou para cá? Um dia, eu veria meu anjo de
novo? Apertei meus olhos, duvidando disso.
― Suzanna? – A voz rouca e baixa me fez dar um pulo na cadeira,
levantei e me virei na direção dela, meu corpo novamente trêmulo e os olhos
marejados. – Suzanna.
Ele se aproximou com passos lentos demais, queria encurtar o espaço
e me jogar em seus braços ou falar qualquer coisa, mas perdi a coordenação
sobre qualquer músculo do meu corpo. Quando dei por mim, estava deitada
em seus braços e ele me carregava para longe das mesas.
― Arthur... – Consegui proferir.
Ele se sentou na arquibancada, no degrau mais alto, me apoiou em
suas pernas e sorriu, encarando meu rosto por alguns segundos. Seus dedos
quentes roçaram minha face e estremeci, minha respiração tornando-se
ruidosa, áspera e arfante.
― Está se sentindo bem, Nefilin?
― Agora sim. – Murmurei e ergui meu tronco para ficar sentada, para
tocá-lo também. – E você? O que aconteceu? – Rocei os dedos em sua nuca,
Arthur fechou os olhos e uniu nossas testas gentilmente.
― É uma longa, longa história, que terei algum tempo para te contar,
mas por hora, Suzanna, preciso desesperadamente do seu abraço. – Quando
abriu os olhos, aquele tom cinza-azulado, que ganha quando está ansioso,
estava ali, carregado por lágrimas, o que me fez quase derramar as minhas.
Envolvi-o em meus braços, apertando-o e escondi meu rosto no vão
entre o pescoço dele e o meu braço. Arthur se ergueu, amparando minha
coluna com ambas as mãos, o tecido do meu vestido fazendo um som
manhoso ao roçar na roupa dele. Seus dois braços me envolveram pela
cintura e então me apertou, tirando meus pés do chão e os colocando
facilmente sobre os dele. Fiquei na ponta dos saltos e as palavras de Pietro
me inundaram, junto com a felicidade que ele me desejou antes de vir para
cá.
Era Arthur, não uma visão ou uma lembrança da minha mente fértil,
era ele nos meus braços. Finalmente.
Um soluço fez meu corpo balançar e nos apertamos mais. Os lábios
dele roçando a pele nua do meu pescoço e ombro esquerdo, as mãos
brincando nas minhas costas, hora com carinhos outra mexendo na ponta dos
meus cachos comportados. Suspirei de felicidade.
― Eu te amo, Arthur. – Sussurrei com a voz abafada, sentindo as
lágrimas molhando meu rosto, pois era inútil tentar vencê-las agora.
― Ah, Suzanna, não diga isto. – Pediu choroso, beijando meu ombro.
― Não devo? – Sussurrei confusa, lembrando que, antes dele sumir,
as coisas estavam estranhas e não podíamos nem nos tocar. Quis afastar-me,
mas ele não permitiu.
― Se não sente, não deve.
Afastei-me, mesmo com ele relutante, e o encarei, meus pés
novamente sob o piso da arquibancada e limpando meu rosto das lágrimas.
― Você ainda duvida? – Minha voz saiu aguda, magoada.
Arthur me encarou com o semblante triste, que foi se alterando
lentamente, como se começasse a reconhecer as verdades das minhas
palavras. Mantive o silêncio, chateada por ele não ter percebido meu amor.
Galantemente, estendeu a mão pedindo a minha. Quando a entreguei,
meu anjo sorriu, a beijou e entrelaçou nossos dedos.
― Duvido de muitas coisas, a maioria delas relacionadas aos meus
sentimentos ou aos seus, mas, mesmo sendo redundante, confio em você,
Suzanna. – O tom dele mudou, havia certeza e esperança naquelas palavras.
Apenas sorri e o acompanhei enquanto me fazia retornar para o lado de fora
do ginásio.
O som estava alto, meus colegas dançavam uma música lenta,
embalados pela voz da solista. Sorri e encarei Arthur que negou lentamente
com a cabeça como se lesse meu pedido mudo para dançarmos.
― Queria muito dançar com você. – Soltei um muxoxo.
― Quem diria, você me pedindo para dançar. – Ri baixo,
constrangida. – Dançaremos, mas não aqui. – O sorriso divertido que ele me
lançou fez meu estômago revirar como se mil borboletas se agitassem dentro
dele. Apertei-lhe a mão ansiosa, já me esquecendo do clima pesado que nos
envolveu a alguns segundos. – Quero fazer algo que não devo também.
― O quê?
Ele parou nas costas do palco, ficamos escondidos por uma das
pilastras e seus véus esvoaçantes. Arthur segurou meu rosto e o ergueu até
que nossos olhos se encontraram e, no instante seguinte, seus lábios colaram
nos meus. Se ele conseguia manter a calma depois de tanto tempo sem nos
beijarmos, eu não conseguia e me descontrolei imediatamente, jogando meus
braços ao redor de seu pescoço e afundando meus lábios nos dele, na ponta
dos pés para alcançá-lo. O anjo me segurou, barrando minhas ações mais
bruscas, mas seus lábios acompanharam a minha fome, nossas línguas se
unindo em uma dança que carregava saudade e dor, desespero e esperança.
Depois de quase uma eternidade sentindo a aspereza familiar da língua dele
na minha, de ter a maciez daqueles lábios moldados aos meus e de seu sabor
fazer parte do meu, ele cortou o beijo, arfando e rindo, dando mordidinhas no
canto do meu lábio, até me abraçar e me privar daquela maravilhosa
sensação.
― Suzanna... Arteira.
― Quero mais, Arthur. – Sussurrei manhosa e ganhei uma risada tão
gostosa que as borboletas novamente ganharam vida.
Ele respirou fundo, beijou minha bochecha e me olhou. Havia um
leve brilho sobre seu rosto e corpo, o que me lembrava do momento que
tivemos na cabana onde ele teve o primeiro aviso sobre a queda. Afastei-me
bruscamente, tropeçando para trás, as mãos à frente do meu corpo,
aterrorizada.
― O que foi, Suzie? – O brilho sumiu imediatamente e seu semblante
se tornou preocupado.
― Você não vai cair, Arthur! Não vai! – Gritei.
Todos os medos e sensações que vivi com a queda dele no Inferno e
com o seu sumiço, quando retornei, voltaram com força, apertando meu
peito.
― Não vou cair, Suzanna. – Sussurrou confuso, esticou as mãos com
as palmas para cima e se aproximou. – Não aconteceu nada, não se preocupe.
Pisquei várias vezes para afastar as lágrimas, encarando-o com o
corpo trêmulo. Quando se aproximou, alcançou minha mão e a levou de volta
para sua nuca, o espaço ficou diminuto e já estava em seus braços, enlaçada
pela cintura e sendo erguida até meus pés tocarem os dele. Não relutei,
apenas deitei a cabeça no seu ombro e senti que me erguia no ar. O som das
asas quebrando o vento era familiar e saudoso, e, mesmo sem entender nada,
me envolvi no torpor daquele som, agarrando-o firmemente, fechando meus
olhos e me deixando ser levada para onde ele quisesse ir.
― As pessoas vão ver a gente voando... – Lembrei.
― Ninguém nos vê, não se preocupe. – Seus lábios estavam na minha
testa.
O ar se tornou gelado, a música sumiu pouco a pouco, até não haver
nenhum outro som além do vento e das asas de Arthur o cortando. Sabia que
continuávamos subindo, mas não queria olhar. Os sonhos nos despertam
sempre quando decidimos olhar, então permaneceria no escuro, acreditando
que poderíamos ficar finalmente juntos.
O tempo passou sem que notasse, de repente estávamos descendo.
Arthur sentou e me levou para seu colo carinhosamente, deslizou os dedos
por meu rosto e me fez olhá-lo, voltando a falar comigo.
― Não se assuste, estamos bem alto.
Ergui minha cabeça e o agarrei em seguida, arfando, pois estávamos
sentados à beira de um penhasco e era realmente muito alto. Abaixo de nós
havia um desfiladeiro de pedras acinzentadas, uma imensa floresta com
árvores diversas e minúsculas. Acima delas, uma fina nuvem parecia querer
escondê-las e mais acima estávamos nós, com um vento forte uivando ao
nosso redor e o céu escuro e pontilhado de estrelas nos iluminando. Quando
tive coragem, virei o rosto à procura da lua, que estava às costas de Arthur,
minguante, mas destacada naquele céu sem o cinzento característico da
cidade de São Paulo. Abracei-o pelo pescoço e o beijei ali, perdendo
totalmente o medo por estar com as pernas para fora do penhasco e comigo
ali em seu colo, podendo muito bem escorregar e despencar no negrume das
árvores.
― Você é louco... Mas, essa paisagem é linda. – Encarei-o.
― Com medo?
― Muito medo. – Confessei. – Mas, confio em você.
― Acho bom, porque vamos passar algum tempo juntos. – Havia um
sorriso triunfante em seu rosto que me fez sorrir.
― Algum tempo? Por que não todo o tempo?
― Você costuma ser gulosa? – Arthur capturou meu lábio inferior e o
chupou lentamente, me fazendo estremecer.
― Com você, eu sou egoísta. Quero você só para mim, o tempo todo.
― Somos idênticos nisto então. – Sorriu. – Suzanna, preciso te contar
algo. – Seu semblante ficou sério quando falou.
― Pode dizer.
― Não terei muito tempo na Terra, mas me foi permitido voltar para
a sua formatura por dois motivos.
― Quais?
Arthur se aproximou, roçando a boca no meu ouvido enquanto falava.
― Porque te amo e...
― Se afaste já da minha filha! – Uma voz estrondosa fez todos os
sons desaparecerem e um calor forte e repentino ardeu em minha pele. O
cheiro de enxofre incomodou minhas narinas como uma lembrança ruim.
Erguemos os olhos na direção da voz. Dentre as nuvens, sobre o
penhasco onde estávamos, havia uma figura vestida de preto e com um capuz
sobre sua cabeça o que me fez começar a tremer ao percebê-lo. Conseguia
enxergar apenas os olhos de um tom vermelho escarlate, que queimavam
como as chamas do Inferno ao nos encarar. Arthur não esboçou reação, tão
surpreso quanto eu com aquela interrupção.
Só não sabia se a surpresa dele era também por ouvir o encapuzado do
Inferno me chamar de filha.

... Continua no livro 3.


BIOGRAFIA
A Autora

Paulistana. Nascida em 22 de fevereiro de 1980. Formada em Recursos


Humanos pela faculdade das Américas. Aprendeu a amar a literatura desde a
infância quando sua mãe lhe mostrou um livro que estava escrevendo. Apoia
sem reservas a literatura Nacional. Já gravou CD, compôs e hoje dedica a
maior parte do seu tempo aos personagens. Autora das séries Neblina e
Escuridão, Nefilins e Família Hallinson. Criadora e administradora da
fanpage de literatura nacional: Literatura Nacional BR e do Blog Coração de
Papel. Responsável pela Semana do Livro Nacional no Estado de São Paulo
desde 2014.

Redes Sociais da série


Site da Autora: www.mariscotti.blogspot.com.br
Skoob: http://www.skoob.com.br/livro/298352-insonia
Página do livro: www.facebook.com/InsoniaSerieNefilins
Book Trailer: http://www.youtube.com/watch?v=EtWzf7SpY-Y
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O COBIÇADO
Gênero: romance – reality show
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conhecer o que achou do final da série!

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com aventuras da série.

Obrigada!
Sumário

Agradecimentos
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
BIOGRAFIA
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