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Título: Sonhos
Subtítulo: Livro 2 da Série Nefilins
Linha literária: Ficção juvenil
Capa: Mari Scotti e Lari Azevedo
Diagramação: Mari Scotti
Revisão: Ignez Scotti
2º edição em 2015
Dedico a Deus que é quem me
permite criar cada palavra descrita
nesta obra, com empréstimos
inspirados na Bíblia. À
minha tia Célia e meus pais, Ricardo
e Ignez. Amo vocês!
Agradecimentos
gradeço a todos os leitores da série que, mesmo sem saber, me
A
incentivaram a continua-la, pois não acreditava muito nessa história. Vocês
são o impulso para a minha imaginação. O alimento que me fortifica todos
os dias e me faz continuar sem pensar em desistir.
Agradeço a todos os amigos, escritores e familiares que apoiaram e
apoiam minha carreira.
E as betas, pois sem vocês, o livro dois nem existiria: Thais Snape e
Fayane Galvão.
Boa leitura!
Mari Scotti
Capítulo 1
enhum de nós tinha algo a dizer, por isso o anjo se despediu e voou
N
para longe. Pierre não se mexia, estático, olhando para onde antes esteve seu
pai. Entrelacei meus dedos aos dele e o puxei para dentro da cabana. Parecia
em choque e me perguntei se anjos podiam morrer por problemas no coração
ou sustos extremos.
Ajudei-o a se deitar na cama, o cobri e fiquei atrás fazendo uma leve
carícia em suas costas, sentindo o nó nas omoplatas. Ele parecia ter
adormecido de novo, por isso me senti bem por me aconchegar a ele.
Esperava que isso não provocasse nada, nenhum alerta, nenhum problema
para Arthur. Tinha quase certeza que o acontecido de horas atrás tinha sido
um aviso, só podia ser, já que ele parecia completamente desorientado e
fraco.
Arthur puxou meu braço, fazendo-me envolver sua cintura e ficou
com a minha mão nos lábios; desprevenida, deixei, encostei o rosto nas
costas dele e permaneci em silêncio absoluto, acompanhando a respiração
dele para não perturbá-lo.
― Suzanna, posso fazer uma pergunta? Está acordada? – Perguntou
baixo, a respiração batendo na minha mão que continuava em seus lábios.
― Estou acordada, pode perguntar.
― Você não se lembra do acidente? Ainda não se lembrou de tudo?
Falar sobre isso me deixou em alerta, ele sentiu e começou a beijar
minha mão, talvez para que eu falasse, não sei. Fechei meus olhos,
encostando a testa nas costas dele.
― Não sei se me lembro. Ainda não vi você me pegando no carro, só
vejo o Pietro. Por quê?
― Porque, às vezes, eu sinto que você não confia totalmente em mim.
― De onde surgiu isso? – Perguntei, visivelmente confusa. Ele me
olhou por cima do ombro e se virou para mim, colocando a mão em meu
rosto, carinhosamente.
― Só estava pensando. Quer ouvir a minha versão dos fatos?
― Quero.
― Vou contar desde o início. – Ele se acomodou e me levou ao seu
peito. Deitei ali e fechei meus olhos com medo de lembrar, mas, se Arthur
precisava falar sobre isso, eu ouviria sem reclamar. – Eu e o Pietro
possuíamos um ou dois séculos de vida, não me recordo bem. Não tínhamos
permissão para vir à Terra com tanta frequência como faço hoje. Fomos
designados a guardar uma família e a criança era especial. Naquela época, as
pessoas não sabiam cuidar de crianças especiais, elas eram maltratadas,
apanhavam, os pais não tinham cuidado. Muitas eram consideradas
demônios, filhos nascidos do pecado dos pais. Minha missão era cuidar para
que os religiosos não a matassem, pois isso era bem comum, e a de Pietro era
manter a menina sã. Ela possuía dons especiais, adquiridos por causa do
autismo; podia nos ver, sentir a presença de qualquer anjo ou demônio. – Ele
respirou fundo, parecia distante, em séculos atrás. – Eu não percebi, pois o
Pietro era cuidadoso, e a menina não podia dar a ele algo físico, mas ele se
apaixonou por ela. Passava semanas sem voltar ao Céu, sem fazer seus
deveres ou adorá-Lo nos horários certos. Parecia um humano abatido quando
o forçávamos a sair do lado dela. Ele dizia que era seu dever. – Meu coração
ficava menor a cada palavra de Arthur, sentia como foi difícil para Pietro ter
se apaixonado por alguém que não tinha como retribuir. – Ele estava
obcecado por ela. Começou a ensiná-la a usar seus dons de cura para levá-la à
realidade, mas isso só complicou tudo, não podemos intervir tanto.
Suspirei, fazendo um leve carinho no braço dele, ele beijou meu rosto
e continuou.
― Um dia, quando voltei da minha ronda matinal, ela apontou para
mim na frente dos pais dela e disse que tinha visto um anjo, comentou que
era lindo. A menina tinha ainda muito do autismo, falava enrolado, mas não
ficava mais distraída em pensamentos, interagia bem com seus pais e as
outras pessoas, porém Pietro não gostou dela ter me elogiado. Foi a primeira
vez que eu a vi consciente com a realidade. Os pais dela, é claro, não nos
viam. Acreditavam que ela inventava as coisas. – Ele respirou fundo e, então,
me olhou. – Eu acredito que esse foi o primeiro alerta que ele recebeu. Pietro
foi tomado por um ódio cego e avançou sobre mim, rolamos pelo estábulo
nos debatendo, eu sem entender o motivo e ele rosnando blasfêmias. Quando
consegui que se acalmasse, ele abriu as asas e gritou de dor, várias penas
haviam enegrecido e um cheiro forte de queimado saia delas. Olhamos com
cuidado, tentei usar meu dom para curá-lo, mas nada modificou a cor ou a
sensação de queimadura nele. Um dos pecados capitais que o fez ter seu
primeiro aviso. A ira. Hoje, eu entendo... – Afaguei o rosto dele que estava
mais tenso do que jamais vi, ele beijou a palma e voltou a olhar para o nada.
– O segundo aviso eu não vi, mas presenciei a queda. Foi quando a menina
morreu. Ela tinha oitenta e três anos, morreu de velhice, ele sabia que
aconteceria e todos tentaram afastá-lo. Quando aconteceu, Pietro amaldiçoou
a Deus. No mesmo segundo, suas asas queimaram até as omoplatas, a pele
perdeu o brilho natural que nós temos e demônios começaram a subir da
terra, puxando-o para baixo com suas garras. – Lágrimas banhavam o rosto
de Arthur. Só notei por sentir uma delas deslizando por meu ombro. Tentei
tocá-lo, mas não permitiu. – Não pude fazer nada por ele. Em segundos,
havia sumido como se fosse um espectro, sugado para a terra. Sentimos a
queda, todos nós. Foi como ter um pedaço de carne arrancado. Por mais de
um século não o vi, não sentia sua presença, nada. Quando me designaram a
minha primeira experiência com Nefilin, o reencontrei. Ele chegou antes na
garota, que já havia cometido dois pecados capitais: Gula e luxúria. Ele
sempre usou a luxúria contra as mulheres. – Sussurrou e eu senti um aperto
no peito ao me lembrar de ter sido uma das vítimas. – Ela era linda e tentei
alertá-la, me aproximando do modo errado, revelando tudo de uma única vez.
Nossa guerrinha começou aí. Ele sempre antecipando meus passos, chegando
a meus protegidos antes, os arrancando das minhas mãos. Todas aquelas
almas que deveriam ser boas, se tornaram más. Havi foi o último.
― Arthur... – Ele me olhou. – Não entendi direito. Você e ele
começaram a brigar por Nefilins e almas?
― Os que tinham potencial de se tornar parte de nós, nos ajudar.
Acredito que ele nunca deixou de ter raiva pela menina ter dito que eu era
lindo e isso o faz agir como se fôssemos inimigos e não irmãos.
― Achei que se odiavam porque ele era um caído.
Arthur negou, as lágrimas estavam secas em suas bochechas.
― Eu o amo, Suzanna, mas conheço a maldade nele e isto me deixa
nervoso. – Pareceu pensar se continuava ou não, esperei ansiosa. – Seu pai
foi um dos mais poderosos e um dos que consegui salvar. Nós sentimos o seu
nascimento, Suzanna como se você fosse parte de nós. Um anjo. – Olhei-o
atordoada. – Porque há em você muito pouco do gene humano. Seus dons
apareceram logo, mas foram reprimidos por seu pai. Não sei como ele fez
isso, mas sei que tudo está esquecido dentro da sua cabeça, talvez
adormecido.
― Achei que vocês vissem e soubessem de tudo. – Sussurrei confusa.
– Como vou recordar isso?
― Só Deus é assim. Nós temos acesso a informações, mas não todas.
E... Eu realmente não sei.
― Continue, eu estou confusa mesmo.
Ele concordou.
― Com o passar dos séculos, as buscas de Pietro se tornaram ataques.
Ele tentava fazer eu me apaixonar por elas, as ensinando como agir, as
manipulando na minha frente. No começo, eu ficava atordoado tentando
ajudá-las, vendo se afundarem cada vez mais em luxúria, desejos, inveja,
ganância e rancores, sem conseguir resgatá-las. Sentia-me cada vez mais
ligado àquelas almas e cada perda me fazia querer desistir de ser o que eu
sou. Ainda me sinto assim quando não consigo resgatar alguém. – Ele
pausou. – Quando você completou dois anos, seu pai me convocou, mas ele
me negou ser seu guardião, dizia que causaria um mal enorme à anjinha dele.
Demorei anos para descobrir que mal era este. O Pietro soube antes de mim.
Ele se aproximou de sua família como se fosse amigo, um Nefilin. Seu pai
nada sabia e foi enganado. Pietro conviveu com seus avós e sua família por
anos até que eu soubesse. – Suspirou, eu estava tão perplexa que nem ao
menos me movi. – Ele articulou tudo cuidadosamente, talvez sabendo que, se
eu a perdesse, seria a minha queda. – Ele riu amargo. – Acredito que tudo
isso não passa de desejo de vingança, talvez ele mesmo não entenda mais os
motivos dessa guerra sem sentido entre nós, ou então a condição de demônio
já engoliu todas as suas qualidades.
― O que você causou para que fosse preciso tirá-lo do seu posto? –
Perguntei de repente, ele pareceu voltar a si e retomou o assunto.
― Seu pai percebeu que me apaixonei no momento em que coloquei
meus olhos em você. Você não tinha nem dois anos ainda, mas era esperta,
tinha uma risada que fazia meu estômago gelar. Ficava ansioso para seu pai
me deixar cuidar de você, quando eles precisavam se ausentar. Sei que era
um bebê, mas sempre foi a sua alma que me chamou, como... Um... Ah, eu
não sei. – Ele escondeu o rosto nos meus cabelos. – Só sei que ele teve uma
visão e Pietro a contou para mim. Disse que perdi o controle e a levei para o
Inferno comigo. E houve a queda de mais anjos depois de mim, ele nunca me
revelou a visão completa.
― Arthur, não tem como se apaixonar por um bebê! – Interrompi-o e
Arthur fez uma careta, constrangido.
― Não foi algo carnal, Suzie, mas era como se minha alma
pertencesse a sua. Uma ligação tão profunda que mesmo longe, jamais
consegui desligar.
― Será que ele te contou a verdade? – Meus olhos encheram d’água
com a afirmação dele, de nossas almas serem ligadas. Porém, como aceitar
algo tão lindo diante de uma situação tão confusa?
― Acredito na versão do Pietro.
Pensei por um momento, negando sem ter resposta. Ficamos em
silêncio por um tempo.
― De que vale ver o futuro se não se pode mudá-lo? – Perguntei.
― Seu pai mudou...
― Talvez não. Estamos aqui, não estamos? E se o que ele viu foi
justamente por ter decidido te afastar de mim quando eu tinha dois anos? E se
ele não tivesse feito isso? A convivência talvez me fizesse te enxergar como
um irmão mais velho... Quem sabe.
Arthur concordou pensativo, depois respirou fundo.
― Mas, eu não cai e não vou te levar comigo. – O tom pareceu uma
promessa.
― E eu não vou te deixar cair.
― Acredito em você. – Sussurrou. – Tem mais... – Encostei a cabeça
em seu peito, esperando que ele continuasse. – Quando Pietro descobriu que
estava obcecado por uma menina, me procurou e jurou que faria sentir o
mesmo que ele. Não sei se o ciúme ou se a perda, mas de qualquer modo
confirmou que falava sério quando chegou até sua família sem que
percebêssemos. Até hoje, não sei como ele enganou seu pai ou seus avós. Seu
avô só me reconheceu por causa dos charutos.
― Que charutos?
Ele riu.
― Os que prometi dar a ele se ganhasse o jogo de xadrez.
Sorri e afaguei as mãos dele que estavam em minha cintura.
― O que os charutos têm de importantes?
― Eu os comprei de seu avô há muitos anos, a mesma caixa que citei
em sua casa. Ele soube no mesmo momento que eu queria ajudar. Depois, o
procurei e expliquei tudo, exceto sobre Pietro, pois não queria deixá-lo
alarmado.
― Meu Deus! Meu vô sabia de você e nem me contou!
― Sua vó não acreditou em mim, por isso seu avô ficou inseguro de
confiar. É muita coisa, Suzanna, e acho que já falei demais por hoje. A visita
do meu pai reacendeu lembranças que eu estava evitando.
― Não precisa parar ou se desculpar, é bom conhecer seu passado... E
o meu. – Sussurrei pensando em mim mesma com dois anos. Gordinha, sem
dentes e com covinhas.
― Você era esperta e linda. Tão linda e esperta quanto é hoje.
― Obrigada... Mas... – Ele me olhou. – Você iniciou essa conversa
falando sobre o acidente. O que aconteceu?
Ele estremeceu, mas não pareceu que voltaria atrás, começou um
relato que eu conseguia ver com clareza em minha mente.
― Seu pai me proibiu de ser o seu guardião, isso você já sabe. –
Concordei. – Mas, como tinha permissão para passeios curtos, como um
período de férias, por exemplo, usava para te ver. Sabia que era errado, que
estava me portando como o Pietro, que alimentava algo que não deveria
sentir, mas a verdade é que eu não tinha forças para ficar longe. O maior
período que estive distante foi quando ele conseguiu se aproximar a primeira
vez, passei três anos sem vê-la.
― Por quê?
― Porque Victória me convenceu que um dos meus deveres era te
manter a salvo do meu sentimento.
― Mas, em que você me prejudicaria?
― Talvez em nada, mas sempre acreditei que te faria um mal terrível
estando perto. Ocupei-me com tantas coisas que, quando percebi, você faria
oito anos. – Tinha uma seriedade dolorosa em seu semblante, fiquei em
silêncio. – Era cinco de dezembro quando me dei conta disto. – Fiquei
imóvel, a mesma data da morte dos meus pais. – Não os encontrei na casa em
Sorocaba, então decidi seguir o rastro para São Paulo, imaginando que
comemorariam o Natal com seus avós. Sempre senti você, por isso foi fácil
encontrá-los na rodovia, fácil e rápido. O trânsito estava horrível, nunca vi
algo daquele jeito. Os carros não saiam do lugar, parecia um grande
estacionamento ao ar livre.
― Verdade... – Murmurei.
― Sobrevoei vocês o tempo todo, desde manhãzinha. Queria me
aproximar, ver você, por isso usei meus dons para me ocultar e sobrevoei o
carro mais de perto, me colocando ao lado da janela traseira. Seu pai e sua
mãe começaram a discutir, ele pressentia algo, você estava dormindo e ele
comentando com ela que precisavam chegar logo, pois ele sentia que seria
naquele dia. Eu decidi perguntar se poderia ajudá-los quando você despertou,
olhou para o outro lado da janela. Seu pai apontou uma pracinha, te
distraindo com as luzes de Natal. Eu vi você olhar diretamente nos meus
olhos e depois apontar um homem todo de preto, perto da árvore que
continha o maior número de luzinhas na praça. Você via um S de Suzanna.
― Não me lembro de ter visto você... – Sussurrei, meus olhos
estavam marejados.
― Sei que não. Ele apagou isso também.
― Apagou? Quem?
― Entrei no seu campo de visão propositalmente, queria saber se me
veria mesmo oculto e você viu. A mim e a Pietro, mas ele não me via.
Quando você apontou, seu pai também o viu e tentou acelerar o carro. Eu não
sei como, mas ele pressentiu o perigo. – Continuou a contar a história e
ignorar a minha pergunta. – De repente, tudo ficou livre para seu pai seguir o
caminho, não tive tempo de avisá-lo ou ajudar. Em um segundo, o caminhão
saiu da pista inversa e houve o acidente.
― Era um caminhão? – Sussurrei, não lembrava direito.
― Eu sou um anjo, Suzanna, mas tenho massa corporal, fui
arremessado para longe e demorei a voltar a mim. Quando despertei, o
acidente já havia acontecido. Você estava desacordada e Pietro ainda na
praça, apenas observando. Não sei o que ele pretendia ou se aconteceu
exatamente como o planejado. Não pensei, precisava te tirar dali. Voei
sentindo as asas chamuscarem com o fogo, ainda oculto a olhos humanos, e
te puxei um pouco antes que abrisse os olhos. Percebi que queria olhar para
os lados e ordenei que olhasse para mim. Você obedeceu. – Sorriu pesaroso.
– Então, as sirenes começaram a surgir de longe e a explosão aconteceu às
minhas costas. Não consegui tirar seus pais do carro, apenas você.
― Eles estavam vivos? – Sussurrei. Arthur me olhou, beijou minha
testa e, ao invés de responder, apenas negou com a cabeça. – E por que então
queria tirá-los do carro?
― Achei ser importante você poder visitá-los num cemitério... Ter o
que velar.
Engasguei ao me recordar que os caixões foram vedados porque era
impossível reconhecê-los.
― Obrigada pela intenção... E por ter me salvado.
― Não saberia existir sem você. – Ele arfou e me encarou. – É isso!
― Isso o quê? – Ele se levantou e começou a andar de um lado para
outro na cabana.
― Ele queria que eu te perdesse. Acho que foi isso que seu pai viu,
você explodindo com o carro e eu desistindo de ser anjo por não te salvar. Ele
disse que meu amor passaria com a morte. Ele disse!
― Com a minha morte? – Murmurei.
― Não, Suzanna, com a minha.
― Você pode mesmo morrer?
― Posso, mas não era da morte física que seu pai falava, mas da
espiritual. Ir para o Inferno seria como a morte para mim. – Ele parecia
revigorado com a descoberta.
― Mas, não morri, então ele tentou me levar com ele. – Raciocinei.
― Isso.
― Ele quer que você sofra com a morte ou a perda de alguém que
você ama, assim como ele sofreu com aquela autista... – Sussurrei. – Por quê?
― Acho que porque Veronique disse que eu era lindo. Ciúmes. Não
vejo outro motivo. Talvez queira apenas que eu me junte a ele.
― Quem? – Arregalei os olhos.
― A menina autista. – Explicou.
― O nome dela era Veronique? – Ele confirmou com a cabeça, meus
olhos se encheram d’água. – Pietro me chama de Veronique.
Arthur me encarou parecendo assimilar a informação. Para mim, a
sensação era de que Pietro via em mim o amor que tinha por ela. Teria
mentido mesmo sobre o que sentia? Comparar-me a ela não seria uma forma
de demonstrar seu amor por mim?
― Quando ele te chamou assim? – Arthur questionou se
aproximando mais, talvez notando minha inquietação.
― Quando me contou uma história. Nós estávamos na árvore e ele
contou sobre uma princesa que foi atropelada por um cavaleiro e eles se
estranharam. Ele nunca terminou a história.
― Ele contava histórias para ela, eles ficavam horas sentados aos pés
dos vinhedos da fazenda dos pais dela e ele inventava histórias mágicas para
ela. Sempre a usando como personagem principal. Isso a mantinha no mundo
real, saber identificar quem era ela nas fantasias que ele inventava.
Estremeci.
― E por que ele me compararia a ela?
Ele deu de ombros, mas estava nítido no seu olhar calórico que ele
sabia a resposta. Encarei-o, tentando fazê-lo falar, mas se deitou na cama e
me puxou para junto dele.
― Chega de lembranças por hoje, precisamos dormir um pouco.
Daqui a uma hora amanhecerá.
Foi taxativo. Tentei protestar, mas ele me embalou, seus lábios
passeando pelo meu rosto possessivamente. Algo o perturbou em saber sobre
o nome. Por fim, desisti e deixei que dormisse.
Capítulo 10
Sentinelas
Anjos guardiões. Possuem asas um pouco mais escuras que as dos
guardiões terrestres como eu, conseguem se camuflar em qualquer lugar,
tem dom de cura como todos nós, captam com facilidade o perigo, são
extremamente ágeis e rápidos no voo.
Uma curiosidade: é difícil captá-los quando estão presentes, são
quase invisíveis aos sentidos.
lhei para cima, pensando se havia algum anjo sentinela por perto,
O
teria de tomar mais cuidado com as minhas atitudes perto de Arthur, não
queria de modo algum prejudicá-lo. Voltei meus olhos para as palavras,
muitas estavam jogadas aleatoriamente nas folhas, algumas frases e desenhos
pequenos também.
enti meus pés travarem e meu corpo totalmente rígido com aquelas
S
palavras, um calor estranho se apossou de mim e, quando percebi, estava
ajoelhada na grama, com as mãos na barriga, apavorada de medo.
― Quem está ai? – Sussurrei, não queria chamar atenção de ninguém.
― Ora, não me reconhece mais?
― Pietro?
O homem tocou meus cabelos e ouvi quando os cheirou, a repulsa me
embrulhou o estômago. Virei meu rosto na direção dele e uma fumaça negra
se desfez no lugar onde estaria. Por isto, me corrigi.
― Havi.
O sorriso em sua voz era de deleite pelo meu reconhecimento.
― Você se lembra, isso é razoavelmente bom, mas lembra também
que, se não vier comigo, seu namoradinho vai morrer?
Apertei os olhos, confusa, pois acreditava que isso tivesse ficado no
passado, que, com o julgamento, Pietro ou Havi não pudessem mais me
ameaçar. Olhei para onde aquela fumaça flutuava.
― Vocês não podem tocá-lo, eu fiz a minha escolha.
― Ainda pode mudar de ideia. – A voz dele passou pelo meu ouvido
como se a boca estivesse ali, recuei alguns passos e as asas negras
começaram a cortar o vento enquanto ele tomava distância. – Pense bem,
Suzanna, você pode vir comigo por bem ou...
Então, a sensação estranha de frio, medo e o cheiro de cemitério
sumiram imediatamente. Fiquei encarando o céu para onde o urubu voou,
incrédula de que esse pesadelo fosse começar de novo.
O que ele quis dizer com posso mudar de ideia?
Voltei para casa trêmula, sentia meu corpo mole e as pernas
demoraram a responder, porém, quando cortei a recepção e comecei a subir
as escadas, já me sentia melhor para não demonstrar meu nervosismo.
Subi segurando com firmeza no corrimão, a casa estava silenciosa
demais, o que me fez crer que todos já haviam se recolhido. Passei pelo
quarto dos meus avós e todos os de hóspedes até chegar aos dois últimos, o
meu e o do Arthur; a porta do quarto dele estava aberta e a luz apagada. Parei
na entrada, pensando se devia contar a ele sobre a visitinha de Havi, mas ele
parecia em paz, adormecido sobre a cama, a luz prateada da lua – vinda da
janela – passeando por seu rosto tranquilo, deixando-o ainda mais lindo.
Enxuguei o rosto, notando as lágrimas e sai em silêncio, fechando a porta do
meu quarto para não atrapalhá-lo com a luz. Não conseguiria dormir de luz
apagada depois desse susto.
Troquei de roupa lerdamente, por mais que negasse a mim mesma,
estava apavorada. Reivindicar minha alma, matar Arthur... Na certa, não era
uma ameaça infundada. Devia ter lido mais os livros que meus avós me
emprestavam para conhecer melhor sobre anjos, demônios e Nefilins.
Suspirei frustrada, encolhendo-me embaixo das cobertas, munida com meu
pijama branco de bolinhas pink e um capuz grosso de lã, inútil para os sons
estranhos da casa estalando ou do vento do lado de fora.
Eu tinha a opção de virar um anjo e lutar com todos eles, mas como
deixaria toda a minha vida para trás?
O pensamento me fez lembrar o caderno embaixo do meu travesseiro
e também do meu celular que, com toda certeza, está sem bateria, enfiado
dentro da minha mochila em algum lugar. Levantei-me em silêncio para não
perturbar o Arthur do outro lado do corredor, abri meu armário e localizei
minha mochila, que certamente Maria tinha guardado para mim. Encontrei o
carregador e levei tudo para a minha cama. Enquanto procurava o aparelho,
coloquei o carregador na tomada. Meu celular era daqueles sem frescuras,
somente para mensagens, chamadas e alguns ícones da internet que eu
raramente usava. Dourado e com teclinhas brancas, meu xodó.
Localizei-o no fundo da mochila, estava totalmente sem bateria.
Rapidamente conectei ao carregador e esperei ligar para ver quantas pessoas
me mandaram mensagens ou tentaram me ligar. A tarefa estava funcionando
bem para me distrair de Havi ou dos bafos quentes que, de tempos em
tempos, pareciam entrar no meu quarto, me olhar e sair. Não sei como Arthur
aguentava se sentir vigiado o tempo todo e não sei como os anjos sentinelas
não haviam notado a presença de Havi no meu jardim.
Mesmo sabendo que o celular vibraria quando as mensagens
começassem a chegar, dei um gritinho assustado quando ele tremeu na minha
mão. Mordi o lábio me achando ridícula, já tinha passado por coisas muito
piores para estar tão assustada com uma conversinha idiota. Nervosa, joguei
um dos travesseiros longe e deixei o celular no chão, vibrando à vontade
enquanto as mensagens não paravam de chegar.
Olhei o quarto mais uma vez e, na verdade, pela primeira vez com
atenção desde que retornei. O rosa das paredes havia sumido e um tom gelo
as cobria, a janela onde costumava olhar o jardim fora derrubada e estendida
como um mezanino com uma pequena cama retangular, várias almofadas e
uma vidraça enorme dando a visão mais absurdamente linda para a noite
estrelada.
― Como não vi isso antes? – Perguntei-me indo até lá, arrastando o
cobertor em volta do meu corpo e com o caderno pressionado em meu peito.
Aconcheguei-me encolhida, olhando para a visão da frente do casarão,
vislumbrada.
Havia pedido essa alteração muitas vezes aos meus avós, o sumiço
com certeza amoleceu o coração deles para as mudanças. Novas lágrimas
deslizaram pelo meu rosto, eu não estava acostumada a chorar tanto, sentia-
me uma menina indefesa no meio de um mundo louco que ganhou um
pequeno agrado do universo com esse sofázinho.
Abri o caderno de Arthur, desistindo de olhar para as sombras do lado
de fora, estava com o cobertor dos pés a cabeça, uma lanterninha nas mãos e
com o caderno entre os joelhos. Folheei as páginas até chegar onde tinha
parado de ler. O caderno estava repleto de desenhos de anjos, asas ou círculos
em palavras-chave. Esta folha não era diferente, no canto superior direito
havia uma data – 23/02 – e a palavra “sentinela” embaixo. Apertei os olhos,
confusa com aquilo, era a segunda vez que a palavra estava destacada como
se se referisse a algo ou alguém.
Arrastei os olhos superficialmente sobre as folhas para ver se
encontrava alguma outra notinha familiar. Algumas folhas à frente, outro
rabisco.
Potestades
S ão parte do exército de Lúcifer, demônios que atacam tanto no ar
como na terra, servem para confundir decisões dos humanos, retardar anjos
Mensageiros e Guerreiros, usam de artimanhas para serem adorados no
lugar de Deus. São traiçoeiros como todos os demônios. Não podem ouvir os
pensamentos, nenhum demônio tem esse poder, somente anjos caídos
conseguem, se o humano os deixar sem proteção.
Um desenho estranho estava depois das palavras, não fazia nem ideia
do que era isto, mas me arrepiei ao imaginar que tipo de demônio era Havi e,
ao mesmo tempo, senti um alívio por saber que eles não podem me ouvir.
A casa deu um novo estalo de repente, fazendo meu coração martelar
mais uma vez. Arrastei-me para a cama, apaguei a luz e me encolhi de costas
para a janela para não ver as sombras. Escondi o caderno embaixo do
travesseiro e comecei a orar em pensamento, pedindo que nada de ruim
aconteça a Arthur ou a minha família.
Demorei muito para me sentir calma de novo, só consegui mesmo
quando me foquei em Arthur no outro quarto, tentei lembrar o semblante dele
enquanto dormia na cabana e do calor dos seus braços ao meu redor e me
senti mais confortada quando seu cheiro almiscarado brincou nas minhas
lembranças. Adormeci, imaginando-o comigo, me protegendo ou apenas
sendo ele novamente.
i duas vezes a última parte sem entender o que isso significava, seria
L
um nome?
― Arthur? – Continuei na mesma posição esperando ele me atender,
olhei por sobre o ombro e ele estava me encarando. – O que é S. Rosa?
― O quê?
― S. Rosa. É o sobrenome da Victória?
Ele riu, negando.
― Não, anjos não possuem sobrenome, só nome e patente. Deixe-me
ver. – Levantou e andou até mim, retirando o caderno dos meus dedos.
Abracei minha cintura, apertando discretamente a barriga para aliviar a cólica
um pouco, enquanto ele lia.
― Não sabia que vocês não tinham sobrenome.
― Que S. Rosa? – Perguntou e eu apontei com o dedo. Nunca vi
Arthur ficar tão branco e tão rápido. A cor fugiu de seu rosto, até os lábios
ficaram brancos e os olhos dele encontraram os meus. Tive a nítida impressão
que ele falaria algo importante. – Você só pensa nessa cólica?
― Hã? – Fiquei com o rosto vermelho e abaixei os olhos, tímida. –
Estou com dor, Arthur... – Sussurrei quando percebi que me esqueci de
fechar meus pensamentos de novo, mas o olhei e ele continuava branco,
folheava o caderno como se procurasse algo. – Arthur. O que é S. Rosa? –
Insisti.
― Suzanna. – O tom dele era de quem dava o assunto por encerrado,
coloquei a mão sobre o caderno até que ele me olhou e deixei bem claro que
eu queria a resposta. Arthur respirou bem fundo e o fechou se virando para
mim. – Eu esqueci que tinha colocado coisas pessoais aqui. – Coçou a nuca,
me olhou e depois desviou o olhar guardando o caderno no cós da calça. – S
de Suzanna, Rosa... Sua cor preferida.
Fiquei boquiaberta com a resposta, tão constrangida e encantada que
nem sabia o que dizer. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas ele já
estava andando de volta para a casa, sem me dar a chance de falar nada a
respeito. Corri atrás dele, a cozinha estava vazia, a biblioteca e a sala
também, por isso me direcionei para o quarto, ignorando as pontadas que a
cólica me faz sentir quando me apresso.
Arthur estava sentado na cama, lendo o caderno. Parecia em choque.
Bati na porta e entrei, fechando-a atrás de mim.
― Arthur... – Ele fechou o caderno e sentou em cima dele. – Não vou
pegar o caderno de você. – O silêncio permaneceu e ele nem olhou para mim,
por isso parei na frente dele. – Desculpe ter insistido, eu não imaginei que
fosse algo assim... Mas, rosa não é mais a minha cor preferida. – Tentei
amenizar o clima tenso, mas ele apenas fingiu um sorriso.
― Sente aqui. – Pediu e obedeci, não me lembrava de tê-lo visto tão
angustiado. Fiz uma nota mental de não fazer mais perguntas sobre as coisas
estranhas que via no caderno e fiquei em silêncio, esperando o que ele queria
me dizer. – Eu burlei regras ao fazer isso... Escrever esses lembretes no
caderno, coisas sobre você, de quando era criança. Eu não devia ter feito, não
me lembrava disso. – Toquei a mão dele e então me olhou.
― Não vou contar para ninguém.
― Eu sei que não. – Segurou minha mão e beijou. – Não é isso. Eu
tinha esquecido... – Respirou fundo e uma lágrima rolou pelo rosto de Arthur,
eu o puxei para os meus braços e o abracei, não sei se era apenas
constrangimento, mas a dor no rosto dele fez doer em mim também.
Fiz carinho nos cabelos dele e nas costas, tentando acalmá-lo e
segurar as lágrimas, porque era muito difícil saber que causei e ainda causo
tanto sofrimento a ele. Queria poder mudar isso, mudar tudo, saber como meu
pai achou que deveria ser, e seguir esse caminho.
― Desculpe-me... – Sussurrei, mas ele apenas me apertou um pouco
mais.
― Não me arrependo, Suzanna. – Confessou com o rosto no meu
pescoço. – Sei que deveria, mas não me arrependo.
― Do caderno?
― Do que sinto.
Mordi meu lábio, sentindo meu coração disparado no peito. Eu
também não me arrependia, não por mim, mas ver o quanto ele estava mal
por causa de um caderno me fazia pensar o quanto ele já esteve mal durante
todos esses anos. Beijei o rosto dele e me afastei com um pouco de
dificuldade.
― Vou me comportar, prometo. Sem pesadelos de madrugada ou
perguntas idiotas. – Soltei o ar bem lentamente.
Arthur beijou a minha testa e me estendeu o caderno.
― Estude e ignore os meus comentários. – Pediu. – Ou melhor... Eu
te explico tudo e você anota em outro lugar. – Retirou o caderno dos meus
dedos e eu quase o puxei de volta.
― Como preferir.
Ele colocou o caderno de lado e se levantou entrando no banheiro,
imaginei que fosse lavar o rosto ou algo assim, mas ouvi o chuveiro e fiquei
na dúvida se saia do quarto ou não. Por fim, me levantei e sai, fechando a
porta do quarto dele. Desci as escadas para procurar meus avós e encontrei
Maria fazendo o jantar.
― Oi, Maria.
― Olá, Suzanna, como você está? – Perguntou sorridente.
― Bem... Viu meus avós?
― Saíram e pediram para não esperarmos por eles.
― A senhora sabe onde eles foram? – Ela negou. – Obrigada... E
obrigada por ter arrumado minhas coisas.
Abracei-a e, quando a soltei, ela me segurou; seu olhar estava duro,
então desisti de sair da cozinha e me sentei, sabia que queria conversar.
― Filha, o que aconteceu com o outro rapaz? O que me dava
calafrios... Quem é esse que você trouxe para esta casa? Tem certeza que é
quem diz ser? Eu vejo como ele olha para você. – O tom dela era áspero, mas
com um toque de preocupação.
― O Pietro não era uma boa pessoa. – Comecei. – O Arthur que me
ajudou, ele me salvou, dona Maria. – Sussurrei por causa da emoção que essa
lembrança me trazia. – Ele me salvou de todas as maneiras que uma pessoa
pode ser salva. Da morte e também da vida.
― Você confia nele?
― Confio totalmente.
― Tome cuidado. Às vezes, os nossos sentimentos nos confundem
em relação às pessoas, Suzanna.
― Não estou confusa em relação a ele, Maria. Eu sei que ele é uma
pessoa boa. O Pietro não era, me enganei com ele e sobre o que achava que
sentia. Na verdade, eu só queria mesmo era um namorado e aceitei o primeiro
que apareceu. Fui bem burra... – Suspirei.
― E essa história dele ter mudado de forma para se aproximar de
você na escola, isso não te deixa desconfiada?
― Não, nem um pouco. Você está desconfiada?
― Estou, não gosto dele e seu avô também não.
― Maria, ele é um anjo de verdade, não um caído como o Pietro. Um
anjo de verdade não pode mentir e ele... Ele está cuidando de mim, me
ensinando as coisas para que eu não faça mais burrices. Sabe... – Adiantei-me
quando ela tentou falar. – Eu ia para o Inferno, mas o pai dele me absolveu e
me deu uma chance de aprender direito desta vez e andar na linha certa. O
Arthur aceitou me ensinar, mesmo depois de eu tê-lo magoado e ferido de
várias formas. Você não imagina o quanto eu o faço sofrer e, mesmo assim,
ele está aqui. Ele tinha a opção de negar e mandar outro anjo me ensinar ou
sei lá, deve ter alguma escola para isso, mas ele aceitou e está aqui. Eu vou
continuar confiando nele até eu morrer e depois da morte. Se tiver alguma
coisa depois, ainda vou acreditar em tudo o que ele me disser ou me mandar
fazer.
Respirei fundo, estava exaltada por saber que eles não conseguiam ver
o quanto Arthur fazia por mim. Dona Maria sorriu de lado e fez carinho na
minha cabeça.
― Vou confiar, então. – Resolveu e se virou, voltando ao jantar.
Deitei a cabeça na mesa da cozinha, pois não tinha vontade de fazer
nada com a cólica e os pensamentos insistentes, nem ler ou escrever estavam
me agradando no momento. Senti uma mão quente tocar meu ombro e,
quando olhei, Arthur estava me convidando a sair dali.
egui-o até a entrada da frente e nos sentamos na escada. Ele estava
S
com os cabelos molhados ainda, vestido de jeans e camiseta preta com o
emblema de alguma banda de rock que não identifiquei e tênis. Ficamos em
silêncio, olhando o céu escurecer até que precisei levantar.
― Já volto.
Fui até o banheiro, aproveitei para tomar um remédio para a cólica e,
ao voltar, me sentei um pouco mais longe do que da primeira vez. Arthur me
olhou de lado.
― Ficar no gelado faz doer mais? – Fiz que sim sobre a cólica e ele se
levantou. – Vamos lá para dentro então.
Acompanhei-o e nos sentamos no sofá da sala, próximos, porém sem
nos tocar, ambos nostálgicos, pois, pelo semblante dele, tinha certeza que as
palavras no caderno ainda o perturbavam. Quanto a mim, tentava não pensar
na cabana. Os acontecimentos iam e vinham sozinhos em minhas lembranças,
sem que eu pedisse ou forçasse. Demos um suspiro ao mesmo tempo e olhei
para ele.
― Você está melhor?
Arthur fez uma careta, confirmando com a cabeça. Parecia
envergonhado ainda, tão humano que, às vezes, me esquecia do quanto ele é
poderoso.
― Suzanna, qual seu lugar preferido no mundo? – Perguntou de
repente e acrescentou. – Quando você era pequena, você gostava de um
parquinho perto da sua casa. Lembro-me que insistia com seus pais para te
levarem lá.
― Nossa! Verdade... Nem me lembrava disso. – Respirei fundo com
as emoções que esse comentário me trazia, então pensei na questão e só uma
resposta me vinha à mente “a cabana”. Olhei para ele de lado e dei de ombros
querendo passar a imagem de quem não sabe. – Sei lá. – Respondi. – E o seu?
O olhar dele estava azulado. Tinha notado que, nos últimos dias,
constantemente os olhos dele ficavam desta cor, mudando do cinza para o
azul conforme o humor dele. Franzi a testa, tentando recordar que eram
verdes quando não estavam cinza e senti um frio na barriga, estranhando.
― Eram verdes na imagem do humano que quis passar para você, mas
meus olhos ficam azuis quando estou muito irritado, isso acontece com quase
todos os anjos.
― Você está irritado?
― Não... Fortes emoções os deixam azuis. – Ele suspirou.
― É estranho, às vezes me perco na sua imagem, não sei se penso no
Arthur ou na sua atual aparência de Pierre. Se penso em seus olhos cinza ou
azuis... Isso é confuso.
― Você pensa em mim, é? – Brincou, mas logo se deu conta que a
brincadeira era a mais pura verdade e sussurrou. – Obrigado por me defender.
– Apontou para a cozinha.
Demorei um pouco a me dar conta de que ele tinha ouvido a conversa
que tive com a Maria e senti minhas bochechas corarem, estava se tornando
uma constante me sentir envergonhada na frente dele.
― Não precisa agradecer. Então... Como será o treinamento? Só
leitura?
― Não, já fizemos algumas coisas e você nem reparou. – Ele riu – A
conexão que você teve com seu dom ao limpar a mente foi uma lição.
― E eu fiz direito?
― Sim. Só precisamos descobrir uma forma de você não perder
totalmente o controle das suas funções motoras quando tiver uma visão.
Fiz uma careta e ele sorriu.
― É só isso? Vou aprender a ter as visões e acabou?
― Não... Você tem um dom especial, Suzanna, que deve ser usado
para benefício da humanidade.
― E o que há de benefício em uma guerra entre anjos e demônios?
― Por enquanto, suas visões não são a respeito de tragédias mundiais
ou alguém que precise de nossa ajuda, mas são em relação às suas escolhas.
A chave de tudo, mesmo que vençamos qualquer batalha, está no caminho
que você escolher seguir.
― O Céu ou o Inferno.
― Quem será beneficiado com seus dons. O Céu ou o Inferno.
― É claro que é o Céu! – Fiz um bico, cruzando os braços.
Arthur me olhou profundamente, parecia um pouco irritado.
― Suas atitudes vão dizer a sua escolha, por enquanto é o Céu,
amanhã você pode estar odiando tudo isso e escolher diferente. Você tem o
livre arbítrio ainda. A sentença só foi a absolvição porque viram que você
não decidiu pelo Inferno por escolha própria, você se arrependeu de verdade
de seguir o Pietro, mas o coração humano é corrupto por natureza e tudo pode
acontecer.
Arregalei os olhos e fiquei em silêncio, remoendo ter sido chamada de
corrupta.
Até quando eu tenho que decidir isso? Não posso ir lá e falar “oi,
―
quero ser do bem”?
Ele riu e negou lentamente, pensativo.
― Até sua vida terrena findar você pode mudar de ideia.
― Vou ficar para sempre então nessa angústia? Tomando cuidado
com cada mísero pensamento meu?
― Por ser Nefilin, você terá uma escolha a fazer e não está longe dela
ser proposta a você, mas, enquanto humana, o livre arbítrio te dá liberdade de
mudar de ideia quantas vezes quiser, porém todas elas terão consequências,
como tudo na vida.
Respirei fundo, assimilando o que ele disse. Tinha mais perguntas,
mas estava cansada de pensar nisso, de me focar em não pensar nele, de
manter distância, por isso relaxei no sofá e fechei meus olhos, mas a pergunta
saiu dos meus lábios sem nem me dar conta disso.
― Que proposta?
O silêncio dele me obrigou a abrir os olhos, ele estava sério, talvez
ponderando sobre a resposta.
― Já falamos sobre isso e, se não me engano, Victória falou para você
também. Lembra que contei que o Havi era um Nefilin e ele escolheu ser um
demônio?
― Lembro.
― Você terá o mesmo privilégio.
― Ser um demônio? – Sentei assustada, olhando para ele.
― Não... De escolher. – Arthur suspirou, passou a mão no rosto e se
levantou.
O dia parecia cansativo para ele também, eu me sentia em suspenso,
como se algo grande estivesse para acontecer e nós apenas esperássemos por
isso. Ele me olhou pensativo, em seguida saiu para a varanda. Observei-o
estendendo as asas e no segundo seguinte ele já não estava mais lá. Invejei-o
por poder voar e entendia sua vontade de ficar o mais longe possível de mim.
Subi para o meu quarto e peguei o celular que tinha esquecido
carregando, fui até a minha nova janela e me sentei no sofá com as pernas
esticadas para verificar as mensagens de texto e ligações perdidas. Havia
mais de cinquenta mensagens, entre elas, informando ligações recebidas que
não atendi. A maioria era dos meus avós e da Bruna, e havia uma do celular
em que Pietro me ligou quando ainda estava na escola. Abri a mensagem e li
as palavras.
Suzanna, onde você está? Volta. Amor, P.
Respirei e apaguei a mensagem, ele nem sabia o que era amor para
assinar desta forma. Tive vontade de jogar o celular longe, mas me contive,
lendo uma a uma as mensagens da Bruna, que variavam entre me xingar e
choramingar o meu sumiço. Li todas as mensagens enviadas por colegas de
classe, me surpreendendo por ser tão querida por eles, pois nem sabia que me
notavam.
Enquanto lia, recebi uma nova mensagem da Bruna e rapidamente a
abri.
Ei, posso te ligar? Bruh.
Respondi rapidamente.
Pode.
― Pois vão ter que fazer muito mais para conseguir isso! – Gritei.
Corri na direção contrária, sem olhar para trás. Escalei o muro que,
apesar de alto, possuía algumas falhas, me possibilitando colocar os pés e me
firmar, e saltei para o outro lado sem muita dificuldade, voltando a correr
imediatamente.
A rua estava deserta por causa da hora avançada, parcialmente
iluminada por uma luz amarelada vinda de alguns postes muito acima da
minha cabeça. Não parei para pensar, nem para descobrir se era seguida,
precisava realmente saber para onde ir. Agradeci mentalmente por estar de
moletom e tênis e com minha bolsa a tira colo, sabia que teria ali algumas
coisas de que precisava, ao menos até conseguir contato com meus avós e
descobrir onde eles estavam e se estavam em segurança.
Ouvi um estalo atrás de mim e me apressei, atravessando a avenida
para adentrar uma das ruas paralelas. O Museu do Ipiranga ficava a algumas
quadras e me lembrei imediatamente do caminho feito com Pietro há algumas
semanas, de repente decidindo para onde ir. Minha respiração estava pesada,
mas não sentia a corrida, era como se meu corpo soubesse que precisava ser
forte.
Uma viatura passou por mim e o policial soou a sirene, fazendo-me
olhar em sua direção. fez um sinal para que parasse de correr, mas, antes de
obedecê-lo, olhei para trás, não queria colocar nenhum deles em perigo.
― Tudo bem, senhorita? Alguém a está seguindo? – Perguntou o
motorista, estacionando próximo a mim e saindo da viatura com a mão sobre
o coldre da arma.
Parei para respirar um pouco, arquejando, e fiz que não, tentando abrir
um sorriso que certamente soaria falso.
― Correndo. – Falei por sob o fôlego, ele e o colega trocaram olhares
e se aproximaram mais.
― A senhorita parece assustada. – O outro falou. Eram parecidos,
ambos loiros, corpo atlético e olhos atentos.
― Estou bem, obrigada, mas preciso ir.
― Isso não é hora para uma garotinha estar na rua. – O motorista
retomou a palavra e, pela proximidade, consegui ler o sobrenome colado
acima do bolso em seu uniforme: Rodrigues.
― Policial Rodrigues, não preciso de ajuda, mas obrigada pela
preocupação. Realmente, preciso ir. – Havia uma sensação crescente de
perigo, uma presença imortal se aproximava, ou mais de uma, já que o calor
em meu estômago se tornou quase insuportável e meu corpo foi tomado pelo
suor em poucos segundos.
Virei-me para me distanciar e assim não colocá-los em perigo, mas fui
atacada pelas costas. A criatura puxou meu cabelo, sibilando enquanto
tentava prender minhas mãos para trás. Chutei e me movi o mais
violentamente que consegui, mas era forte e quente demais.
― Não tente lutar, será pior. – A voz era do policial Rodrigues.
Gemi por não ter notado que era um demônio, dei uma cotovelada em
sua costela e, quando arqueou o corpo, aproveitei para correr, não precisava
esperar para saber que ele tentaria me pegar novamente.
― O que houve, Rodrigues? Deixe a menina! – Ouvi o outro policial
dizer. Em seguida, seu grito vazou para a escuridão noturna. Mais uma morte,
e por minha culpa!
― Suzanna, você não tem para onde correr! – Desdenhou muito
próximo. A ladeira não estava fácil de subir e, mesmo sem a labirintite para
me atrapalhar, minhas pernas começavam a latejar pelo esforço.
Passei pela guarita de um segurança noturno e pedi mentalmente que
ele não saísse de lá. Um clarão passou por mim, atingindo uma árvore logo à
frente, parei de correr e desviei do fogo. Olhei rapidamente para trás e o
policial continuava em meu encalço, porém andava naturalmente com um
sorriso vitorioso nos lábios.
Lembra, lembra Suzanna, lembra!
Dizia a mim mesma, tentando recordar de alguma coisa falada por
Arthur e que pudesse me ajudar a me camuflar ou a vencer aquele demônio.
Eu posso manipular os elementos! Sorri ao me recordar, porém não
havia manipulado fogo ainda.
Olhei para as chamas tremeluzindo em tons alaranjados, amarelos e
vermelhos e, em seguida, virei o rosto para o policial que agora tinha
companhia, mais três demônios o seguiam, todos em suas feições naturais,
pele vermelha, olhos perdidos, chifres e uma longa calda. Tentando usar meu
instinto, parei de correr, uma brisa leve aliviava o calor forte vindo das
chamas. Imaginei-a envolvendo as labaredas, formando uma bola de fogo e,
então, joguei a mão na direção dos quatro demônios, mas nada aconteceu.
Ahh! – Gritei frustrada e, sem pensar, olhei a chama e ordenei que
―
se chocasse contra eles. – Vai! – Joguei a mão na direção deles mais uma vez.
O fogo se deslocou com uma rapidez incrível e engoliu cada um dos
demônios como uma boca faminta. Os quatro se tornaram cinzas em poucos
segundos.
Arquejei com a surpresa, mas não esperei para saber se eles se
materializariam novamente. Corri aos tropeços, pois minhas pernas estavam
bambas.
Atravessei mais uma rua, seguindo ladeira acima, sabia que logo
avistaria o Museu. Não estaria segura ali, mas talvez conseguisse me
esconder e Pietro pensasse em me procurar nos lugares que mais amo em São
Paulo. Esperava que ele se recordasse disso.
O frio noturno novamente me envolveu, era bem-vindo, já que o calor
significava demônios em meus calcanhares. Não aliviei o ritmo quando
avistei a entrada do monumento, envolvi as mãos nas grades e escalei, minha
sorte é que sempre gostei de escalar as coisas e não havia obstáculo que não
conseguisse traspassar, só esperava que, como na noite que estive aqui, não
houvesse um alarme silencioso disparando em algum lugar devido à invasão.
Esgueirei-me entre as sombras até ganhar as árvores abaixo do prédio
principal e me sentei no penúltimo degrau da escada. Precisava entender o
que aconteceu na minha casa e pensar no que fazer. Abri a bolsa e encontrei a
pena, dinheiro que eu estava guardando para tirar a carteira de motorista, uma
identidade falsa que usava para entrar nas baladas com a Bruna e dois
absorventes internos que deveriam estar ali há muito tempo, pois não me
lembrava deles.
― Ótimo. Esqueci meu celular. – Reclamei, devolvendo tudo à bolsa
e ficando com a pena entre os dedos.
Passei em meus lábios ao pensar que não vi Arthur em nenhum
momento da confusão em minha casa, não sabia se ele estava no quarto de
hóspedes ou do lado de fora enfrentando os demônios. Recordei de Pietro
com aquele arco e as flechas, parecia um anjo da morte, as asas negras tão
brilhantes que me fizeram suspirar ao lembrar.
Foco. Ordenei a mim mesma, erguendo-me e terminando de descer os
degraus.
Varri o local com olhos atentos para qualquer movimentação estranha,
mas não esperava me deparar com tantas sombras, o medo se instalou em
mim e já não tinha tanta certeza de ter escolhido o lugar certo para me
refugiar. Além de estar a céu aberto, as árvores poderiam muito bem esconder
qualquer intruso, assim como me escondiam.
Lembrei-me de uma casinha que fica na extremidade oposta a que
estava e decidi chegar até ela, pois era apenas uma casa cenográfica e
ninguém pensaria que haveria um humano ali. Contava com isso.
Antes de me deslocar, olhei em volta novamente, guardei a pena na
bolsa e a prendi junto ao corpo para não ficar balançando. Comecei a correr
encurvada, porém, quase ao final do caminho, lembrei que a casinha fica na
parte debaixo do Monumento, depois dos altos portões que separam a parte
superior da inferior. Olhei para o portão com o misto de frustração e
coragem, as grades pintadas de verde, seriam fácil de escalar. Atravessar a
rua e pular para a parte inferior do museu é que seria complicado, pois ficaria
exposta demais.
Uma luz clara percorreu as flores e árvores à minha esquerda.
Encolhi-me entre a vegetação baixa, virando o tronco na direção dela, era a
lanterna de um dos seguranças do Museu. Ele avançou silenciosamente entre
o emaranhado de roseirais e outros tipos de flores, apontou a lanterna para
além das grades, iluminando o outro lado e ouvi um longo chiado, parecido
com o de um rádio amador.
― Não tem ninguém aqui. – Disse.
O chiado soou novamente e uma voz dura e distorcida preencheu o
silêncio.
― Vi nas câmeras de segurança, alguém pulou o portão. Cheque
novamente.
Encolhi-me mais, teria de pular sem chamar atenção, mas, agora que a
segurança sabia da minha entrada, não teria como me esconder na parte baixa
do Monumento. Esperei silenciosamente até o segurança se afastar – o que
pareceu demorar uma eternidade. Quando sumiu do meu campo de visão, fui
para junto do cercado, coloquei o primeiro pé na barra esverdeada e parei
bruscamente, sentindo a presença de alguém às minhas costas. A sensação
quase familiar de formigamento subindo desde meus pés até a nuca.
Ao me virar, notei que não havia alma viva em canto algum, portanto
apenas estava próximo o suficiente para que o sentisse. Voltei a me
concentrar em pular quando ouvi asas batendo freneticamente acima da
minha cabeça.
― Não te disse que ela estaria no Museu? – A voz de Pietro pareceu
ressonar em todos os cantos, cortando gravemente o silêncio que me protegia.
omo uma reação natural, escondi-me entre a vegetação, prendendo o
C
ar dentro dos pulmões para emitir o menor som possível.
O bater de asas ficou mais próximo e, então, uma mão firme e quente
me puxou pelo pulso para fora do esconderijo, saltei as flores tentando me
equilibrar, mas logo me firmei e encarei quem me puxava.
― Arthur! – Joguei-me nos braços dele. – Sabia que você me
encontraria! – Sussurrei.
Pietro pigarreou e o vento de suas asas fez meus cabelos, que já
estavam bagunçados, voarem para as minhas costas. Encarei-o.
― Na verdade, eu te encontrei. – Vangloriou-se.
Afastei-me de Arthur, observando a ambos, que lado a lado, tinham
traços realmente parecidos, principalmente agora com o vinco de
preocupação instalado em ambas as testas.
― Então, obrigada. – Sussurrei.
― Não há de quê. – Pietro avançou, me puxou pela mão e me abraçou
pela cintura. – Vamos sair daqui, não é seguro.
Apoiei minhas mãos em volta de seu pescoço, meus pés estavam
soltos no ar, mas meu tronco estava amparado por seu braço, prendendo-me
firmemente a ele. As asas negras se estenderam fazendo sombra e ele
começou a ganhar altura, gradativamente, como se eu não pesasse
absolutamente nada.
Virei o rosto para localizar Arthur, ele voava atrás de nós e não vi
sinal de Victória e Sophia. Pietro se moveu bruscamente em queda e precisei
me agarrar a ele ao me assustar, o anjo riu e me encarou, estávamos tão perto
que foi impossível não sentir o estômago gelar.
Resolvi manter o foco.
― O que houve? Alguém sabe dos meus avós? E as meninas?
― Calma! Uma pergunta por vez. – Sorriu. – Já sabíamos que haveria
um ataque no dia do seu aniversário, só não sabíamos em que momento. A
sorte é que chegamos antes deles. – Novamente se vangloriou. – Mas, sua
casa ficou um pouco estragada.
― Alguém se machucou? – Sussurrei com receio da resposta.
― Ninguém do nosso lado.
― Seu lado é qual mesmo? – Desdenhei, não aguentando os modos
dele.
― Sempre o seu, Suzaninha. – Revirei meus olhos.
Arthur avançou um pouco, ficando lado a lado conosco.
― Por que nos atacaram? – Perguntei a ele.
― Querem você a qualquer custo.
― Mas se escolhi o Céu, eles podem fazer isso?
Pietro pigarreou, indicando que responderia minha pergunta, mas
Arthur tentou se adiantar iniciando a resposta, foi calado por uma rajada de
vento contra seu peito, que certamente Pietro jogou nele.
― Parem com isso, vocês dois, parecem crianças! – Reclamei. –
Alguém me responde, porcaria!
O sorriso de Pietro indicava que ele nem se abalou com minhas
palavras, apenas me apertou um pouco mais junto dele antes de responder.
― Podem. Eles não jogam limpo e você sabe bem disso. O senhor do
Inferno quer você e ofereceu um prêmio substancial a quem conseguir sua
alma.
― E quanto custa a minha cabeça no Inferno?
― Não sua cabeça, mas sua alma. – Estremeci com a resposta dele. –
E uma bagatela chamada liberdade. – Sussurrou. – Liberdade e proteção do
próprio Lúcifer.
Arregalei os olhos e olhei Arthur. Por que investiriam tanto em uma
garota que nem sabia que era Nefilin?
― Suponhamos que eles consigam me pegar, o que garante que vou
servir ao Inferno?
Desta vez, Arthur se intrometeu, o voo ficava cada vez mais alto e
apenas um vento fraco passava por nós.
― Eles podem corromper sua alma a força... Como vou explicar? –
Ficou pensativo e Pietro continuou.
― Enquanto você não pertencer a nenhum lado, eles podem te
marcar.
― Marcar como gado no pasto? Caramba, eu já escolhi o Céu! É o
que eu sempre quis! O bem...
― Você daria uma linda vaqui... – Arthur o interrompeu.
― Seus dezoito anos são cruciais em sua escolha. Até hoje, você
poderia oscilar sem graves consequências, pois uma criança é considerada
pura aos olhos de Deus. Mesmo que tome as decisões erradas, tem grandes
chances de obter o perdão, mas a partir de hoje todas as suas escolhas são
consideradas adultas e, dependendo da forma que as fizer, nós a perdemos. É
muito difícil uma alma corrompida ser resgatada depois.
Fiquei pasma, não sabia nem o que dizer, já que não me imaginava
cometendo algum erro gravíssimo que alterasse minhas escolhas como sendo
o Céu e nenhuma outra. Respirei fundo algumas vezes e encarei Pietro.
― Você esteve lá, quais são as estratégias deles?
― Basicamente: enganar, destruir, roubar, denegrir, confundir,
chantagear... Minha tentativa foi um dos pecados capitais, pois você tinha
horror a se apaixonar, mas loucura para dar o seu primeiro beijo.
― Como você sabe? – Arregalei meus olhos e ele sorriu sarcástico.
Notei que Arthur se afastou de nós, tinha o olhar vago.
― A monitoramos por algum tempo, na verdade quase não sai de
perto de você, desde que soube que ele se apaixonaria. – Explicou. – As
conversas que tinha com a Bruna, seus amigos, ou até seus livros deixavam
claras algumas particularidades suas. Como o fato de ser altruísta. Usei isto
quando vi que não iria comigo por vontade própria.
― Ou pecando. – Reclamei.
― A luxúria é um dos pecados mais praticados no mundo. – Sorriu. –
Só tentei dar um empurrãozinho.
― Você é muito desonesto.
― Era. – Respirou fundo e olhou em volta. – Sim, vamos para lá. –
Respondeu olhando para Arthur. Quis perguntar sobre o que falavam, mas
Pietro voltou com a conversa. – Ganância, status social... Existem muitas
formas de fazer um humano perder sua alma. Desejos carnais, frustrações,
doenças na família, depressão, culpa. Estas são só algumas.
― Então, eles destruíram minha casa só para tentar me fazer pecar?
Isto não faz sentido.
― Não, destruíram sua casa para chegar até você. Devem estar
desesperados, pois o ataque físico é a ultima estratégia.
― Desesperados para que eu escolha o lado de vocês. – Afirmei.
O anjo apertou meu corpo e seu rosto ficou a centímetros do meu, me
intimidando.
― Deles. O lado deles. – O tom era baixo, mas as palavras saíram
pesadas como se estivesse cansado de repeti-las.
― Desculpe. Desesperados para que escolha o lado deles. – Corrigi –
Mas, como farão isso?
― Você não cansa de perguntar, não? – Suspirou, voltando a sua
atitude normal.
― O arrogante era o Arthur e não você. – Lembrei e ambos rimos,
mas notei que Pierre tomava ainda maior distância de nós. Constatei naquele
instante que não estava mais com medo de Pietro e desviei o olhar,
envergonhada.
― Sou bipolar. – Brincou e, então, se tornou mais sério quando
começamos a sobrevoar uma floresta. Tentei reconhecer o local, mas a
escuridão não permitia, Pietro voltou a falar, me fazendo olhá-lo. – Não sei o
motivo exato de por que a querem no Inferno, mas nunca houve tanta
comoção em relação a uma única alma. Desde o Cristo, é claro. – Suspirou. –
Ele costuma se importar em roubar almas que já se decidiram pelo Céu, se
concentra especialmente nos humanos que tentam levar uma vida correta,
sem pecados, e que seguem religiosamente suas crenças, pois acha divertido
e, sempre que um desliza, diz que todos possuem uma fraqueza, só basta
descobrirmos qual. – Respirou, parecendo focalizar o assunto. – Eu não sei
por que ele quer você, mas sei que não vai desistir.
― Qual é a minha fraqueza? – Sentia meu corpo tremendo com a
certeza de que não desistiriam de me perseguir.
― Altruísmo. Mas, tome cuidado, não estaremos sempre por perto e
não quero que eles vençam.
Assenti algumas vezes para tranquilizá-lo, mas estava mais
preocupada com minha fraqueza, para me preparar para ataques mais diretos.
Mexi-me um pouco, sentindo a perna dormente e, sem perguntas, Pietro
puxou minhas pernas me carregando no colo, deitei a cabeça em seu ombro e
ficamos em silêncio absoluto, imersos em pensamentos.
― Tudo bem.
Ouvi a voz de Pietro me despertando. Ele e Arthur estavam
conversando baixo, sentados em volta de uma mesa. Demorei um pouco para
perceber que tinha adormecido e que estávamos dentro de uma casa. Sentei e
ambos desviaram a atenção para mim, ruborizei no mesmo instante.
― Está melhor? – Perguntou Arthur, rudemente.
― Do quê? – Passei a mão no rosto, cansada. – Estou bem... Quero
saber dos outros. Onde estamos?
― Você desmaiou. – Pietro sentou ao meu lado e me puxou para o
seu peito, me aconcheguei sem prestar atenção ao ato. – Lembra-se da casa
de vidro?
― Que casa de vidro?
― Essa aqui. – Deu de ombros. – A casa onde te hospedei da última
vez.
― Ah, sim, me lembro. O meu último cativeiro, você quis dizer. –
Alfinetei.
― Não, Suzanna, tentei te proteger. Posso ser mal, ter começado tudo
isso com a intenção mais perversa do mundo, mas quando a trouxe para cá foi
à revelia.
Procurei o rosto de Arthur para saber se era verdade e ele assentiu.
Algo no olhar dele me deixou com vontade de chorar. Parecia desolado. Se
pudesse ajudar de alguma forma e liberá-los de serem minhas babás, faria
rapidamente, mas eu não confiava em ficar sozinha, não depois de ver minha
casa sendo destruída.
― Você desobedeceu ao Diabo? – Perguntei e ambos me encararam
como se eu tivesse falado um palavrão. – O que foi?
― Nada... – Pietro riu e afagou minha bochecha. – É que a maioria
dos humanos tem medo de falar esse nome, mas, respondendo a sua pergunta,
eu me rebelei sim. Era para te levar direto para aquela entrada para o Inferno,
mas sabiamente você não pulou.
Demorei um pouco para me recordar do portal iluminado que ele
atravessou, antes de alguns anjos me encontrarem e levarem presa para o
Segundo Éden. Sorri por ter feito a coisa certa ao menos uma vez.
― Obrigada por me ajudar, então.
― Foi porque eu quis, não porque você merecia. – Dei um tapinha no
ombro dele que riu divertido.
Arthur se levantou da cadeira e saiu para a praia, era madrugada ainda
e pude observá-lo se afastando da casa a passos apressados. Em seguida, suas
asas se estenderam. Alçou voo e desapareceu. Soltei um suspiro e me encolhi
nos braços de Pietro, não podia fazer muita coisa e me lamentar por amar um
anjo não ajudaria em nada.
― É... – Apertei meus lábios – A Demetria estava do nosso lado? –
Preferi focar em coisas que não envolvessem Arthur.
― Estava do seu lado, mas, quando percebeu que eu também estava,
parou de me manipular. – Riu. – Mas, agora já não sei. Ela sumiu.
― Será que alguém a machucou?
― Espero que não.
Ergui meus olhos e encontrei os de Pietro, ele sorriu e piscou para
mim, galanteador. Sorri também.
― E o que fazemos agora?
― Esperamos.
― Pelo que?
Ainda não sei. É a primeira vez que me vejo numa situação assim,
―
correção, é a segunda, porém não estava diretamente envolvido.
― Explique-me direito.
― Seu pai era muito poderoso, quase como um anjo. Alguns dizem
que ele era noventa por centro anjo, o que o qualificava como anjo e não
Nefilin. – Arregalei meus olhos, encarando Pietro. – Não sei se eram apenas
boatos, mas ele escolheu a vida humana e não o Céu como era esperado.
Escolheu a sua mãe.
― Nossa, que fofo meu pai... – Sorri admirada, mas Pietro balançou a
cabeça.
― Quando um anjo escolhe um humano, o que acontece com ele?
Demorei um pouco a entender e, para ajudar, Pietro fez o mesmo
gesto que um dia o vi fazer para Arthur, mas desta vez não havia desdém. Ele
ergueu a mão e a desceu indicando queda. Levantei-me, dando um grito de
horror e levei a mão aos lábios.
― Ele... Você está mentindo! – Acusei. – Meu pai... Meu pai... Ele...
– Recuei alguns passos até sentir minhas costas na mesa.
― Ele caiu. – Pietro deu de ombros.
― E isso quer dizer que ele mora no Inferno? Ou morava... Tanto faz.
― Isso.
― Por isso, ele estava fugindo para São Paulo? – Sussurrei a
pergunta, mas Pietro negou.
― Ele estava fugindo de mim. – Inclinei a cabeça de lado, confusa e
acusatória, ele continuou. – Porque fui designado para ensinar você a ser um
demônio.
― Isso está ficando esquisito! Como assim me ensinar a ser um
demônio? – Gritei, mas, ao contrário de mim, Pietro parecia bem calmo ao
explicar.
― Quando seu pai foi amaldiçoado, ele perdeu a maioria de seus
dons, mas, assim como eu, manteve outros e adquiriu alguns como presente
por sua escolha. Escolhendo a humanidade, automaticamente estava banido
do Céu. Ponto para o Inferno. – Explicou. Sentei-me na cadeira onde antes
Arthur estava e fitei o chão, tentando assimilar o que estava ouvindo. – Mas,
ele não sabia que seria um caído por escolher sua mãe e que sua herdeira
poderia ser reivindicada pelo Inferno.
A presença de Arthur me atingiu com força e me virei para a porta, ele
estava parado à frente dela, de cabeça baixa. Percebi que balbuciava algo e
lentamente ergueu a cabeça para me encarar. Estava com os olhos marejados,
a musculatura travada como quem está se contendo. Ele assumiu a palavra,
como previ.
― Ele não sabia por que não o alertei. – Murmurou.
― E por que não o alertou? – Perguntei baixinho. – Eu sou um...
Demônio? – Sussurrei a última palavra.
Arthur negou lentamente enquanto respondia.
― Porque estava afoito com uma das visões do seu pai, me deixei
envolver. Estava tão distraído que não percebi o que estava para acontecer.
Falhei em proteger seu pai e sua mãe. E não, você não é um demônio, mas
filha de um... Filha de peixe, peixinho é. É o ditado. Também falhei,
acreditando que a escolha de seu pai era o Céu, e não o alertei quanto a
possuir maioridade angelical em seu sangue...
― Que visão? – Perguntei com medo da resposta.
― Não quero falar sobre isso. – Sussurrou. – O que importa é que sua
família morreu por minha culpa. – Ergueu os olhos me encarando e vi a dor
neles, quis abraçá-lo, mas não podia, então cravei minhas unhas nas palmas
das minhas mãos e me mantive no lugar.
Pietro pigarreou e se levantou do sofá.
― Você pode ser um anjo. – Começou e Arthur protestou. – Quer
cometer o mesmo erro de novo? – Gritou Pietro, olhando para ele.
― Ela não tem um humano para escolher. – Devolveu.
Ergui meus olhos para os dois, totalmente confusa com aquela
discussão. Pietro avançou na direção de Arthur, falando baixo, porém firme,
deixando-me emudecida e tremendo de medo.
― E você acha que só um humano faz um anjo cair? Você é um
imbecil! Está cego! Não vê porque prefere se encolher na sua bolha de
amargura! Não sei como não foi substituído ainda!
― Eu não estou fazendo nada disso! – Arthur avançou com o olhar
colérico.
― Ah, não? E acha que não vejo como a olha? Acha que não sei o
que pensa? Não preciso ouvir seus pensamentos para saber.
― Arthur... Pi...
― Quieta, Suzanna. – Pietro nem me olhou ao dizer, senti que estava
com os olhos arregalados, temi que começassem a brigar de socos ali, diante
de mim. – Você acha que não sei como você se sente, mas eu sei exatamente!
Eu vivi isso! Eu caí, Arthur. Eu caí.
Eu sei! – Arthur gritou de volta, havia um brilho fino em sua pele e
―
sabia que era porque ele estava irritado, perdendo o controle, mas Pietro não
parou de falar e eu não sabia como cortar a conversa.
― Amei duas vezes na vida, da primeira ela escolheu você e da
segunda também. Como acha que me sinto?
― O quê? Do que você está falando? – Sibilou Arthur, precisei
estreitar os olhos para continuar olhando.
― Veronique e Suzanna.
Arthur avançou com a mão em punho para socar Pietro, mas ele
desviou rapidamente, deixando o anjo se desequilibrar e quase cair com o
rosto no chão.
― Nenhuma delas me escolheu. – Resmungou Arthur, virando para
ele ao se firmar novamente. – A Veronique amava você, ela era uma criança
autista, apenas ficou impressionada com uma criatura voando no seu quintal.
Pietro trincou os dentes, apertou os olhos e respirou bem fundo.
Troquei de cadeira, desviando do caminho deles, não queria que brigassem,
mas não sabia como pará-los.
― Ela te amou, Pierre. – Havia tanta dor na voz de Pietro que senti
meus olhos ardendo e as lágrimas embaçaram a visão. – Você não estava lá,
não viu, eu sim. Todos os dias ela olhava na direção em que viu você e
apontava, esperando que aparecesse. E, quando chegava, ela se iluminava,
sorria, parecia feliz. Senti-me traído, agi irracionalmente, desejei sua morte
tantas vezes que perdi as contas. Quando minhas asas queimaram, agradeci
pela dor, porque ela me distraiu do que senti quando ela partiu.
― Pietro... Ela não me amava. – Arthur parecia mais calmo agora,
não brilhava e tinha um olhar compreensivo para o irmão.
― Ela morreu olhando na direção do jardim onde você apareceu
naquele dia. Apontou, soltou um lamento e fechou os olhos, já sem vida.
― Oh, meu Deus! – Exclamei, colocando as mãos nos lábios, nenhum
deles prestava atenção a mim.
― Irmão, ela não me amava. – Balbuciou Arthur, vencido, era nítido
que ele não tinha mais certeza em suas palavras. Mas, Pietro não tinha
acabado.
― Então, caí, fiz todo o possível para ser punido no Inferno, mas nem
as punições que vivi lá me ajudaram a parar de sentir. A deixar de desejar ter
morrido com ela ou não ter visto que seu último suspiro foi para outro. –
Arthur ameaçou falar, mas Pietro o repreendeu, erguendo uma das mãos. –
Aprende a escutar, porra! – Respirou fundo, fechando os olhos e voltou ao
tom melancólico. – Séculos depois, fui designado a ensinar uma alma pura a
ser um demônio e, por mais que eu fosse um deles, tinha princípios e me
neguei, mas o senhor do Inferno sabe bem a fraqueza de cada súdito dele e
me convenceu com uma única informação: Essa alma pura e infantil é amada
por meu irmão... Sabemos que sempre te persegui, que arranquei o máximo
de almas que pude das suas mãos... Esse só foi um incentivo a mais.
― Eu sabia que era de propósito. – Comentou Arthur com um
lamento sofrido.
Os dois sorriram, cúmplices, mas não havia humor, apenas uma
constatação dos fatos. Pietro continuou a explanação e parecia distante dali,
no passado.
― Vigiei a família da Suzanna de perto, o caído se negava a aceitar
sua nova condição e conseguiu por algum tempo ser protegido. Você sabe,
ele tinha a influência do sangue humano.
― Como assim? – Questionei.
― E por alguns anos não consegui me aproximar, então apenas vigiei,
a vi crescer, até ajudei em alguns momentos quando ela precisou. Sentia-me
seu anjo da guarda. – Ignorou minha pergunta, porém olhou na minha direção
e ruborizei. – Lembrei-me do meu propósito quando era um anjo de luz. Ela
não mudou apenas a mim, mas a muitos depois de mim, que foram enviados
no meu lugar. Nenhum conseguiu resgatar seu lugar no Céu, mas não
aceitaram mudá-la ou incentivá-la a ser má. Alguns até mudaram seus
padrões, negando-se a maldades extremas.
Estava boquiaberta ouvindo aquilo, queria entender, mas as palavras
pareciam absurdas demais.
― Você quer dizer que... – Começou Arthur, olhando para mim
também. Ergui os olhos sem entender.
― Ela é pura.
― E influente.
Ambos se encararam boquiabertos.
Queria saber, mas percebi que não adiantaria perguntar, estavam
alheios a mim, o que restava era ouvir e esperar.
― Influência... Acho que você tem razão. – Comentou Pietro,
olhando-me de viés, depois pareceu lembrar que estava contando uma
história. – Fiz algo que não deveria quando nenhum outro a vigiava junto
comigo, invadi seus sonhos na tentativa de descobrir mais de seus segredos. –
Tanto eu, quanto Arthur, soltamos exclamações repreensivas. Pietro deu de
ombros, continuando. A esta altura, estávamos os três sentados, ele no sofá e
nós dois em volta da mesa. – Este é um dom que consegui manter com
treinamento e muita insistência. Percebi que Suzanna tinha sonhos com você
e foi assim que descobri que também a vigiava, porque não era possível que
ela sonhasse com alguém que nunca viu. Acabei ganhando foco com isso e já
não agia mais como um demônio com princípios, mas como um irmão ferido
que queria vingança. – Confessou. – Aceitei o trato de ensiná-la a ser um
demônio e passei dois anos influenciando sua mente, tentando confundi-la,
invadindo seus sonhos para dar pesadelos e assim ela se distrair e cometer
pequenos pecados como murmurar, mentir, se esquivar, mas foram poucas as
vezes que deu indícios que estava tendo sucesso na minha empreitada.
“Quando ela completou sete anos sabíamos que seria a primeira
chance de a resgatarmos. Lúcifer convocou o pai de Suzanna para o Inferno e
relatou que ele teria de deixar a menina aos meus cuidados para que
aprendesse a ser imortal. Não deu opções, apenas comunicou sua decisão. –
Direcionou a informação a mim. Estava tão perplexa que apenas assenti com
a cabeça – Mas, ele não era homem de abrir mão da esposa, não seria do tipo
que abriria mão da filha. Ele fugiu”.
― E você provocou o acidente. – Comentei.
― Não foi proposital. – Sussurrou. – Na verdade, não era nesse ponto
que eu queria chegar quando comecei. – Suspirou, passando a mão nas
têmporas e esfregando. – Apesar de querer prejudicar o Pierre e fazê-lo
sofrer, não queria que você fosse levada para o meu mundo, ali não existe
trégua, apenas dor e sofrimento. Você vê seus órgãos queimando e se
refazendo, para queimar de novo. Não queria compartilhar isso com você,
então procurei seu pai, relatei um plano absurdo e, mesmo a contragosto, ele
aceitou, mas, no último momento, desistiu, talvez por não confiar em mim.
― Que plano?
― Forjar o desaparecimento de todos vocês.
― E o que deu errado? – Perguntei.
― Ele fugiu. Fugiu de mim e do Pierre, porque ele sabia que seu
futuro estava marcado se ele estivesse por perto, aquela visão de que vocês
cairiam caso ficassem juntos. – Suspirou cansado. – Ali, eu vi mais uma vez
que não adiantaria esforço algum, no fim, você seria dele, assim como
Veronique foi dele. – Parecendo se lembrar do que estava confessando, Pietro
virou para Arthur. – Não é fácil simplesmente perdoar e esquecer que amei
duas vezes e duas vezes fui rejeitado porque você é muito melhor do que eu;
então, meu irmão, não cometa os mesmos erros que eu cometi. Não guarde
rancores, não se isole. Sabe qual foi o meu terceiro delito para que minhas
asas queimassem e eu me tornasse um caído?
― Amaldiçoou a Deus. – Afirmou.
― Também. – Pietro respirou bem fundo. – Odiei você, me irei, quis
matá-lo com as minhas próprias mãos.
― Pecado capital... – Percebi.
― Sim. – Pietro virou-se para mim e percebi que seus olhos estavam
banhados por lágrimas, me levantei e me lancei em seus braços, o abraçando
com todas as minhas forças. – Mas, de que vale odiar se a vida me tiraria
momentos como esse? – Ele sussurrou, afagando meus cabelos e me
aninhando em seu colo como a um bebê.
― P, eu te amo! Não se condene dessa forma... Sei que você tem um
bom coração, agora eu sei, e também sei que, como eu, a Veronique também
te amou, ela só não sabia como dizer. – Sussurrei, Pietro começou a limpar as
lágrimas do meu rosto e beijou meus olhos, depois a bochecha e, quando foi
chegar aos lábios, desviei minimamente, sentindo mesmo assim o calor da
sua respiração neles.
― Você me ama, Suzanna? – A voz saiu grave e novas lágrimas
escorreram por meu rosto, ouvi um lamento que não sabia se saiu de mim ou
dele.
― Amo. – Confessei. – Fiquei com raiva por tudo, mas... Não consigo
guardar rancor. Eu te amo, Pietro. – Arrastei o nome dele e senti os lábios
colarem aos meus, demorei a perceber que entendeu da maneira errada e me
afastei delicadamente, abrindo meus olhos e tocando sua face com uma das
mãos. – Realmente te amo, mas não como você espera. – Lamentei.
Uma lágrima grossa despencou dos olhos dele, que sorriu apesar de
ver a dor no fundo de suas pupilas.
― Eu sei. – Ergueu o rosto e franziu o cenho. – Cadê o Pierre?
De repente, percebi que Arthur estava assistindo a tudo e, se não
ouviu até o final, com certeza acharia que não o amo, que apenas o usei como
válvula de escape. Gemi chorosa, me levantando.
― Deve ter voado. – Conclui. – Se ele ouviu só até a metade... –
Comecei.
― Vou encontrá-lo. – Pietro beijou minha testa e disparou porta a
fora, não o vi pelas paredes de vidro, talvez por suas asas serem negras como
a noite.
Capítulo 17
Fiquei estática por algum tempo, sem nenhuma reação, mas então
percebi que não adiantaria ficar olhando para a porta, esperando que eles
entrassem a qualquer momento. Na verdade, precisavam conversar a sós,
colocar os pingos nos is, e eu estava atrapalhando a reconciliação deles.
Preocupava-me com Arthur, mas tinha certeza absoluta que tudo se
resolveria, afinal sabíamos que ele não queria perder suas asas. Apeguei-me a
isto quando comecei a procurar o que cozinhar para o café da manhã. Estava
faminta e o sol despontava no horizonte.
Os armários estavam repletos de alimento, como se alguém realmente
morasse ali, perguntei-me se não era a casa do Pietro. Assim como Arthur
tinha uma cabana na floresta, ele poderia muito bem morar aqui, na praia.
Havia preparado ovos mexidos, panquecas, leite, café e suco natural
de laranja. Beliscava uma panqueca quando entraram pela porta da cozinha.
Corri até Arthur e o abracei com pressa, sentindo meu coração quase saltar
pela boca. Ele demorou a retribuir o abraço, mas o fez com um suspiro
cansado.
― Para de sair sem avisar, você me deixa preocupada! – Reclamei.
― Sei me cuidar. – Afastou-me e foi na direção dos quartos. – Vou
dormir um pouco, você vigia?
Pietro me olhou e depois confirmou com a cabeça.
― Vigio.
― Come alguma coisa... – Sussurrei chateada pelo modo frio que me
tratou.
Ele olhou na direção da mesa, depois me encarou. Seus olhos estavam
distantes, apagados. Umedeceu os lábios e elevou os olhos como quem
procura o que dizer.
― Anjos não comem isso. – E saiu, sem mais nem menos.
Fiz um bico, segurando o choro. Em menos de dois segundos, Pietro
estava à minha frente, levando-me para sentar junto à mesa.
― Eu como, deve estar delicioso. – Sussurrou. Após me colocar
sentada, acomodou-se ao meu lado e cortou um pedaço da panqueca que eu
beliscara antes, fez um som aprovando o sabor e me beijou no rosto. – Você
cozinha como um anjo!
Precisei rir.
― Isso significa que está comível?
― Essa palavra existe? – Ele riu. – Está sim, uma delícia, Suzaninha.
― Acho que existe. – Duvidei, mas sorri pela tentativa dele de me
animar. – O que anjos comem? – Pietro estava diferente, não sentia mais um
peso no peito quando estava por perto, era fácil conversar com ele, fácil tocá-
lo, fácil sorrir para ele, ao contrário de Arthur, que me fazia sentir pisando em
ovos o tempo todo. Suspirei e não percebi que estava encarando Pietro até ele
estalar os dedos perto do meu rosto.
― Terra chamando Suzanna! Terra chamando! Você nem ouviu a
minha resposta.
― Sobre o quê? – Ri sem graça.
― Anjos se alimentam da natureza: frutas, legumes, luz solar... Essas
coisas. – Sussurrou.
― Podemos sair? – Cortei. Olhava além dele, para a paisagem. A
praia estava iluminada, o sol alto no horizonte, as ondas quebrando
preguiçosamente na orla.
― Claro. – Lançou um olhar na direção dos quartos e se levantou,
colocando mais um pedaço de panqueca na boca. – Só vou avisá-lo. – Falou
de boca cheia.
― Tá.
Andei atrás dele tentando não fazer barulho, queria ouvir o que Arthur
diria sobre sairmos. Pietro deu um soquinho na porta e entrou, o anjo havia se
instalado no quarto em frente ao que era o meu quando fui cativa.
― Vamos andar na praia, quer ir?
Houve um resmungo e Arthur puxou o ar com tanta força que pude
ouvi-lo.
― Não vou segurar vela. Podem ir.
― Cara, já falamos sobre isso. – A porta se fechou e a voz dele foi
abafada, espremi a orelha contra a madeira para ouvir. – Eu a tinha sob
encantamento, ela não estava apaixonada por mim, ela ama você. Só um cego
não vê isso.
Encantamento? – Pensei. – Então, é por isso que de repente não senti
mais nada... – Conclui espantada.
― Ela falou que te ama. – Resmungou Arthur.
― Como amigo. Você só pode ter problema. – Irritou-se Pietro. – Não
vou ficar aqui aguentando suas reclamações. Eu a amo, sei que ela não me
ama, mas não estou me escondendo dentro de um quarto, deixando que outro
possa conquistar seu coração porque me fiz ausente. Diferente de você, eu
luto pelo que eu quero.
― Quer dizer que vai reconquistá-la? – O sussurro saiu alguns tons
acima do normal, me permitindo ouvir.
― Não, meu irmão. Vou conquistá-la de verdade, pela primeira vez.
Percebi que a voz ficou mais forte e sabia que abriria a porta. Saí
correndo para a sala e me sentei no sofá, perdendo o fôlego. Pietro apareceu e
piscou para mim, estendendo a mão como um convite.
― Avisou? – Disfarcei.
― Ele nos desejou um bom passeio. – Mentiu.
― Achei que anjos não pudessem mentir.
Saímos da casa de mãos dadas, estava muito quente do lado de fora,
mas, como não tinha outra roupa a não ser o moletom que estava vestindo,
não reclamei.
― Tecnicamente, não menti, já que você sabe a verdade porque ouviu
atrás da porta. – Ele riu. – Mas, podemos mentir. Só não devemos.
― Ah... – Ruborizei. – Desculpe.
― Eu também sou curioso, não precisa ficar envergonha. –
Entrelaçou os dedos aos meus, guiando-me pelo caminho que fizemos da
última vez, olhei em volta e as marcas da luta estavam ainda nas árvores.
― E aquele demônio que tentou usar você e a Demetria? Ele não virá
atrás de mim?
― Persus?
Confirmei.
– Talvez.
― Então, por que viemos para cá?
― É o lugar mais seguro no momento e quase ninguém sabe que
moro aqui. Além do mais, é protegido. Dificilmente alguém que não saiba
deste local o encontra.
― Já encontraram antes! – Lembrei, paramos de andar porque eu
havia parado e gesticulava muito enquanto falava, me sentia a beira de um
colapso.
― Ei, ei, o que há? Acalme-se Suzanna! – Ele estendeu as palmas
para cima e foi se aproximando, parei de chacoalhar o corpo e encarei aqueles
olhos escuros.
― Está tudo uma verdadeira bagunça. – Murmurei.
le me envolveu e abraçou, e da forma que o nervosismo chegou, de
E
repente, foi embora.
― Só queremos protegê-la, prometo que daqui alguns dias você terá
sua vida de volta.
― Não prometa o que não sabe se vai cumprir.
― Eu sei que vou morrer tentando. – Sussurrou com a boca em meus
cabelos.
Por que ele não podia estar aqui me acalmando, ao invés de Pietro?
Perguntei-me angustiada, abraçando o anjo com um pouco mais de força.
― Não queria que ninguém se machucasse por minha causa. –
Choraminguei. – Deve haver algo que eu possa fazer para acabar com isso.
― Hoje é seu aniversário, não se preocupe demais.
Ri baixinho, ele tinha razão, ainda era meu aniversário. Respirei fundo
e me afastei, estendendo a mão para segurar a dele. Voltamos a andar sem
pressa e não muito próximos ao mar, chegamos quase ao fim, num
aglomerado de rochas, e nos sentamos.
Ele se sentou e me convidou. Imediatamente, fui levada à lembranças
na árvore no jardim dos Santos e acredito que ele pensou o mesmo, pois abriu
as pernas batendo no chão a frente dele. Sentei-me entre elas, de costas, e
deixei que me acomodasse a seu peito. Não namorava ninguém para me
sentir culpada por aceitar o aconchego. Observei o mar, sentindo o carinho
que me fazia nos cabelos e no rosto e senti uma vontade louca de chorar, mas
contive, me focando a arrumar algum assunto para quebrar o silêncio.
― P.
― Oi, gatinha. – Riu.
― Bobo... – Dei um tapinha em sua perna. – Por que você disse ao
Arthur que eu estava sob encantamento? – Antes que respondesse, emendei. –
E por que você era gelado, sendo que era um caído?
Ele riu e tocou minha bochecha com o polegar, acariciando.
― Vamos por partes, curiosa. Todos os seres inferiores são gelados,
mas, quando ficamos nervosos ou estamos usando nossos dons, ficamos
quentes. Os anjos geralmente têm a temperatura de um humano. – Balancei a
cabeça, entendendo a informação. – Sobre o encantamento... Hmm, os
demônios ou anjos caídos tem uma espécie de magnetismo que atrai o
humano para si, sendo homem ou mulher. Ele pode usar desse artifício para
ganhar confiança e conquistar sua presa, alguns nem precisam fazer isso, pois
a pessoa já está predisposta a fazer o errado, não precisa nem de um
empurrãozinho.
― Caramba.
― Pois é. A humanidade está em decadência. – Sussurrou pesaroso. –
Quando a vi no jardim, usei esse... Ann... Charme, para que você não
corresse de medo. Nem era para ter me notado para começar, mas você é
praticamente um anjo, então não fiquei oculto o suficiente por ser um caído
na ocasião. Imediatamente nos ligamos. Depois, foi fácil manipular seus
sonhos, ter acesso livre aos seus pensamentos e desejos. Você é um livro
aberto.
― Mas... Eu me sentia realmente apaixonada, mesmo depois que
Arthur me ensinou a bloquear os pensamentos.
― A sugestão que usei em você foi muito forte, somente um amor
verdadeiro para quebrar, mesmo que eu não estivesse mais por perto para
influenciar você.
Abri a boca surpresa e olhei instantaneamente para a casa,
perguntando-me quando tinha me dado conta que amava Arthur e quando
esse amor se tornou tão verdadeiro que desfez o encanto com Pietro.
Parecendo ler meus pensamentos, ele respondeu.
― Só ele não percebeu ainda, mas eu sabia, desde que você fugiu de
mim no meu quarto. Você queria dormir comigo, mas não fez, as palavras
dele eram mais fortes no seu inconsciente. – Olhei para o Pietro, espantada. –
Sabe Suh, nós nos deixamos influenciar por quem amamos e geralmente a
opinião desta pessoa pesa mais em nossas decisões. – Explicou.
― Meu Deus... – Olhei novamente para a casa, o sol não me
permitindo enxergar dentro e saber se Arthur deixou o quarto. Encarei Pietro.
– Quer dizer que eu já amava o Arthur e nem sabia?
― Geralmente é assim. – Tocou meu nariz com a ponta do dedo e
sorriu. – Mas, preciso te alertar de uma coisa.
― Tá bom. – Soei temerosa.
― Ele não vai ceder, não porque não te ame, ao contrário, é
justamente porque te ama. Está amargo. Acha que você me ama e que deve
sair do caminho para que você seja feliz e perceba o que sente.
― Mas...
― Eu sei que ele está errado e queria muito que estivesse certo. –
Acrescentou.
Baixei o olhar, triste por saber que qualquer que fosse a minha
escolha, sempre um deles sofreria por minha culpa. Encostei o rosto no peito
de Pietro e suspirei profundamente.
― De qualquer modo, não podemos ficar juntos mesmo. – Amassei a
camisa dele com uma das mãos ao precisar sentir mais aquele abraço. Pietro
me envolveu e começou a rir. – O que foi?
― Vocês dois são muito burros. – Encarei-o confusa. – Você notou o
que descobrimos hoje? – Fiz que não. – Suzanna! – Ele riu mais ainda.
― Fala Pietro, você está me deixando zonza!
― Você é...
Mas, ele não concluiu. Um zunido alto cobriu a voz e uma sombra
pesada nos fez olhar para cima. Levantei-me, cambaleando para trás ao ver
diante de mim a visão que tive semanas antes. Um exército de vultos negros
nos sobrevoava, corri os olhos na direção da casa e vi Arthur abrindo as asas
e voando na nossa direção, comecei a correr para interceptá-lo e senti Pietro
me seguindo. Encontramo-nos no meio, assombrados e sozinhos diante
daquele exército.
― O que é isso? – Gritei acima do som.
Arthur gritou algo que não consegui ouvir, mas acompanhei o olhar
assustado de Pietro. Atrás da casa, surgia Havi, um exército de crianças-
demônio e demônios com pele vermelha e rostos transfigurados.
Era praticamente a visão que tive semanas atrás, mas tinha que
acontecer no meu aniversário e quando estávamos totalmente isolados do
mundo, sem ninguém para ajudar.
Arthur me puxou protetoramente para o seu lado, usando uma das
asas para cobrir minhas costas e o braço à minha frente. Ele e Pietro gritavam
instruções numa língua que não compreendi, mas parecia de anjo, era cantada
e não falada como o português.
Estávamos cercados.
Havi se adiantou à frente das crianças, fez um sinal com uma das
mãos e o som alto, que estava me deixando surda, cessou imediatamente. O
silêncio era tão grande que ouvia minha respiração acima das ondas.
― Enfim, encontramos a ovelha desgarrada. – Apontou para Pietro,
que estava às costas de Arthur, posicionado para lutar.
― O que quer, Havi?
― Duas coisas insignificantes. – Enumerou nos dedos. – A menina e
você. – Sorriu.
Estremeci por completo e senti Arthur enrijecer. Por conhecê-lo,
imaginei que duvidava ainda da mudança de Pietro e quase o soquei quando
ele me afastou do anjo discretamente. Pietro ou ignorou ou não reparou,
fixando os olhos em Havi.
― Quem está no comando? – Questionou.
― Ora, duvidas que fui elevado?
― Não duvido, apenas sei que ele não é tolo. És bem capaz de
rebelar-se a usurpar o trono. – Desdenhou. – Quem está no comando? –
Repetiu.
Havi tinha os lábios repuxados, raivoso. Olhou adiante onde estavam
os anjos caídos envoltos em suas neblinas. Arthur e eu nos viramos na mesma
direção e Persus surgiu à frente deles, sendo elevado pela neblina de dois
caídos. Abri os lábios, aflita com a visão.
― Então... – Começou Persus com desdém. – Finalmente, conseguiu
se juntar ao fracassado do seu irmão, Hyelijah?
― Não use esse nome! – Alertou Pietro, percebi que tanto ele quanto
Arthur prenderam o ar ao ouvi-lo.
― Já sou um condenado, meu amigo, não há o que temer.
― O que você quer? – Gritou Arthur às minhas costas.
Persus fez um gesto cansado com as mãos e balbuciou um blábláblá
preguiçosamente, depois encarou-nos com olhos vermelhos como fogo.
― A menina e o garotão. – Riu de alguma piada que só ele entendeu.
– Hyeljjah.
― Você sabe que não pode dizer nossos nomes na frente de humanos.
– Advertiu Arthur com um rosnado.
― Você vê algum hu-ma-no aqui? – Silabou.
Pietro me lançou um olhar rápido e compreendi o que ele dizia; eu
não era humana, mas Nefilin, e eles tinham um nome de anjo que não era
Pietro ou Pierre, como acreditei todo esse tempo. Não houve tempo para
assimilar a nova informação. Persus deslizava para a areia da praia como se
aquela neblina densa pertencesse a ele e o obedecesse. Imaginei que dava
ordens telepaticamente a seus subordinados. Ele deu alguns passos e nós três
recuamos, os anjos me mantendo entre eles e suas asas, eu mal enxergava
através das penas negras e acinzentadas.
Um borrão vermelho, porém, me fez parar de recuar. Senti a aspereza
das penas roçando meu rosto, mas não via nada, era como um dos sonhos
onde o cinza-nublado se tornava rubi como sangue e o vento gelado fazia-me
sentir tonta. Não vi mais nada, não havia praia ou um lugar onde estivesse
realmente. A música rebateu em meus tímpanos e sabia que estava na festa de
gala que sonhei há quase um mês. Tentei chamar um dos meus guardiões,
mas minha voz estava presa, minha boca seca e pastosa, uma mão fervendo
roçou meu quadril e me puxou violentamente.
― Você me pertence, Nefilin, não tente reagir. – Não reconheci de
imediato, mas a respiração sensual me fez imaginar o demônio que me
prendia a ele. O cheiro de enxofre começou a adentrar minhas narinas, me
deixando completamente zonza.
― Solte-me!
― Dance. – Ordenou.
A imagem se desfez para a sala que vi em meu sonho, borrões de
pessoas dançando, olhos cinzentos me encarando de perto, uma força
sobrenatural me obrigando a mover os pés numa valsa estranha, em câmera
lenta. O toque dele ardia, queimando meu vestido e minha mão, onde ele
tocava. Tentei me desvencilhar, mas fui presa com fúria contra seu corpo
febril.
― Solte-me! – Gritei de novo.
Suzanna, é uma ilusão, lute para voltar à praia! Ouvi a voz de Arthur
em minha mente, mas parecia ecoar no recinto. O demônio alheio a ela.
Pensei na praia e na luta que certamente acontecia e que
provavelmente estaria desacordada, atrapalhando meus anjos de lutarem.
Usando todas as minhas forças mentais e físicas, afastei Persus de mim e o
arranhei no rosto. Imediatamente o barulho ensurdecedor dos caídos me fez
notar que voltei para a praia. Eles estavam lutando e, como previ, tanto
Arthur quanto Pietro tentavam me proteger, lançando bolas de luz contra os
caídos que tentavam avançar para nos matar.
De pé, gritei acima do som.
― Obrigada! – Arthur me olhou e sorriu pesaroso, mas havia
admiração em seu olhar.
Uma bola de fogo quebrou nossa concentração, pulei para trás e vi
quando Arthur e Pietro saltaram para lados opostos, ambos imediatamente se
virando na minha direção.
― Cuidado, Suzanna! – Um deles gritou e, ao me virar, outra bola de
fogo estava se aproximando.
Recebi-a e devolvi imediatamente, lembrando-me dos jogos de vídeo
game que jogava com a Bruna quando éramos mais novas. A ação, por mais
impensada que fosse, deu certo e me vi contra-atacando o exército de Havi.
Surpresa, quase não reagi quando ambos gritaram, incentivando-me a
lutar.
Capítulo 18
Miguel Monteiro
S uzie, se você está com este documento em suas mãos é porque algo
grave aconteceu e não consegui te proteger de ser enviada ao Inferno, nem
ao Pierre. Talvez, tudo pareça confuso agora e esteja com raiva de mim e de
sua mãe, mas queríamos apenas o melhor para a nossa pequena herdeira, a
queríamos a salvo, queríamos que tivesse outro fim.
Deixei este diário sob a proteção de um dos anjos caídos mais
influentes no Inferno, ele não é de todo mal, mas não confie nele e, se o
diário estiver com sua trava violada, não confie em mim.
rregalei os olhos com aquelas palavras e constatei a trava quebrada,
A
voltei a ler com o coração a mil.
riei um bloqueio e aquele que tentar ler e não for meu descendente,
C
não conseguirá passar daqui. Existe um lacre, encontre-o e tudo se fará
nítido. Eu e sua mãe a amamos.
ra tudo muito estranho e não sabia que lacre era esse, já que o único
E
que vinha em minha mente estava destruído. Folheei o livro e reparei que
haviam palavras escritas, mas, ao ler, elas se embaralhavam e não faziam
nenhum sentido, assim como os desenhos. O quão poderoso era o meu pai
para conseguir um feito assim? Meu coração saltou ao perceber que talvez o
Inferno me queira ao lado deles por acreditar que herdei seus dons. Procurei
minunciosamente o tal lacre, mas não havia nada além de desenhos, palavras
e o feixe quebrado.
Li mais algumas vezes aquelas palavras, chegando até a decorá-las
pelo ato repetitivo, sentia como se houvesse passado um dia inteiro naquela
maratona. Os dias pareciam seguir rapidamente, deixando-me confusa no
tempo.
Minha perna estava dormente, então escondi o diário junto com a
minha bolsa e me levantei, indo até o que parecia ser um banheiro, mais uma
vez constatei que meu corpo não agia como um corpo humano ali, a TPM que
duraria dias, tinha sumido. O que isso significava? Que me tornei um
demônio no momento que cruzei os portões do Inferno? Ou que era uma
ilusão?
― Tem alguém aí? – Chamei, o espectro se manifestou, bruxuleando
até mim. – Por que me trouxeram para cá?
O som esquisito como estática de TV recomeçou, superando os
gemidos de dor constantes daquele lugar. Dei alguns passos para trás, mas
aquilo não se moveu, continuou acendendo, brilhando. Alguns sons saíram
dele, pareciam vozes. Aproximei-me, olhando fixamente no ponto brilhante.
― Soube que adora aulas. Leia. Volto em algumas horas para obter
sua resposta.
E a imagem sumiu junto com o homem encapuzado que dissera isso
há alguns dias ou horas, não tinha certeza. Suspirei frustrada, voltando para a
cama na cela, não agradeci o espectro, nem sabia se aquilo era realmente uma
pessoa ou algo como um eletrodoméstico dos demônios.
cordei sobressaltada depois de um pesadelo, onde olhos
A
incrivelmente vermelhos me encaravam. Sentei na cama, tateando o colchão
em busca da bolsa para pegar a pena de Arthur, mas um som estranho me fez
mudar a atenção para a cela. Virei-me e o homem encapuzado estava diante
de mim, parecendo uma estátua. Arfei, me encolhendo; imediatamente,
recordando da ilusão que vira dias antes, dele tentando me violentar.
― Então, tem a minha resposta? – A voz aveludada cortou meus
pensamentos. Neguei e ele flutuou até mim. – Você leu o diário?
― S-sim. – Gaguejei.
― Quero a resposta.
― Que resposta? – Perguntei aturdida.
― A trava. Você conseguiu destravá-lo?
Respirei fundo, entendendo o que ele queria, precisava que
desembaralhasse as palavras. Mas, o que continha ali para que um demônio
tivesse tanto interesse?
― Não consegui, está quebrado, não sei a que lacre meu pai se
referia.
O homem avançou, ficando com o rosto escurecido bem diante de
mim, o que vi foi um buraco negro. Gemi assustada, encolhendo-me contra a
parede de pedra, o calor que saia do corpo dele era tão forte que criou poças
de suor por toda minha pele.
― Encontre. Você tem pouco tempo.
― E se não conseguir? – Sussurrei.
Havia um sorriso em sua voz aveludada quando falou.
― É melhor que consiga.
Um calafrio substituiu o calor insuportável de antes, estremeci de
dentro para fora.
Capítulo 20
S er leigo não é uma benção, como certamente você pensou, ser leigo
é uma maldição. Não conhecer do que é capaz é benéfico para o Inferno e é
um dos motivos de ter criado este livro. Tentei detalhar aqui tudo o que
aprendi, pois conheço o meu futuro e sei que não poderei fazê-lo
pessoalmente, mas você poderá fazer isto por mim. Fazer-me lembrar de
quem eu fui e quem gostaria de ser.
ão sei quanto tempo se passou, mas a dor não diminuía. Meus olhos
N
estavam pesados, o que não permitia abri-los totalmente. Senti mãos me
tocando, um líquido gelado no meu corpo e, depois, algo quente e macio me
cobrindo. Uma voz feminina falou comigo algumas vezes, mas sumia,
deixando-me na penumbra. Queria desesperadamente saber se mataram meu
anjo. Sentia que sim, que ele tinha me deixado naquela cela, que havia sido
queimado pelo homem de capuz, o Escuridão. Por várias vezes, o chamei na
minha mente, liberei meus pensamentos, mas a sua presença não me
preenchia.
Estava vazia.
No escuro.
No frio.
Imagens, que não sei dizer se eram reais ou não, iam e vinham. A
negritude daquele vão dentro do capuz me engolindo, me puxando para
dentro dele, me fazendo encarar aqueles terríveis olhos da cor do mar, tão
frios e ao mesmo tempo incertos quanto uma tempestade em formação.
O tilintar dos meus dentes, batendo um no outro, me despertou de
repente de uma dessas imagens. Minha visão estava embaçada, mas, desta
vez, não havia escuridão, mas vultos. Sentei, como se isto pudesse me
proteger deles e tentei sem muito sucesso me afastar, porém um destes vultos
me tocou, beijou minha testa e saiu.
― A febre baixou. – Ouvi a voz feminina.
Vovó? Só podia estar alucinando, ou minha vó morreu e também foi
parar no Inferno. Esfreguei os olhos e a imagem de seu rosto começou a se
formar, ela estava realmente ali, em pé. Seu olhar preocupado e duro. Apoiei
os braços na cama, tentando levantar, mas logo outras mãos me seguraram,
impedindo.
― Solte-me! – Tentei me desvencilhar, empurrando violentamente
quem me segurava.
― Suzie, você está a salvo, se acalme. – O toque quente e familiar
acalmou meu ímpeto de pedir socorro. Vovô me pedia calma enquanto mexia
graciosamente em meus cabelos, mas como ter certeza de que era ele ou uma
ilusão criada neste lugar maluco em que estou vivendo agora?
― Não consigo ver direito. – Sussurrei. – Onde estou?
― Estamos em casa, filha.
― A casa queimou. – Empurrei a mão que me acariciava, relutante
em acreditar, afastando meu corpo, tentando focar os olhos neles. Não
demorou muito e os vultos começaram a tomar forma, pisquei várias vezes,
mas não conseguia distingui-los e nem o que falavam.
Estávamos em um quarto, as paredes num tom neutro, claro, o espaço
parecia o meu quarto da casa da vovó. Encostadas perto da porta do banheiro,
estavam Demetria e Sophia. Sorri para elas que falaram alguma coisa, mas foi
a voz de Pietro que ganhou a minha atenção. Olhei na direção da porta e ele
estava ali, sorrindo abertamente, tão lindo e misterioso quanto da primeira
vez que o vi.
― Suzanna... – Suspirou meu nome e o som criou borboletas na base
do meu estômago. Ele continuou. – Nós ajudamos a restaurar os cômodos
atingidos pelo fogo. – Sentia que ele estava repetindo a informação quando
me foquei no que falava. – Estamos na sua casa, é verdade.
Respirei fundo, confusa, sorrindo, mas então a palavra fogo me
remeteu a Arthur e a última palavra que ouvi saindo de seus lábios: Queima.
― Arthur? Cadê ele? – Levantei e Pietro se apressou a me fazer
sentar. Sentou-se ao meu lado enquanto eu o encarava, interrogativa. –
Mataram-no? Ele agora é um anjo caído, não é? Ele morreu ou é um caído...
Fale! – Pedi quando percebi que nem ele nem ninguém se prontificaram a me
dar as respostas. Meu corpo estava trêmulo e a visão embaçando novamente.
― Deixe sua família e seus amigos te abraçarem e eu respondo suas
perguntas depois. Com fome? – Perguntou.
― Não. Eu quero saber dele... – Meus olhos estavam marejados e
estava a ponto de desabar. – Se é que não é outra ilusão do Escuridão...
Mereço saber! Passei por muita coisa, Pietro, por favor, alivie meu desespero
só um pouco. – Pedi.
A dor nos olhos dele me deu a certeza de que era real, que remeteu
meu pedido ao amor que sinto por Arthur e não por ele. Suspirei triste por
fazê-lo se sentir mal, mas precisava de respostas.
― Ele voltou também, mas não está entre nós.
Puxei o ar entre os dentes e as lágrimas derramaram sozinhas. Uma
torrente de dor deslizando por minhas bochechas.
― Ele m-morreu? – Gaguejei.
― Não. – Sophia se aproximou. – Mas, é só o que podemos falar.
Onde ele está? Preciso vê-lo. Ele está bem? – Disparei na direção
―
de Sophia, levantando-me da cama e segurando suas mãos pequenas.
― Como o Pietro informou, ele não está entre nós, está em outro
plano e não podemos contatá-lo. Deite-se, precisa recuperar suas forças
físicas.
― Mas, ele é um anjo ainda? Está vivo? Vai voltar? – Disparei mais
perguntas.
― Suzanna, não se preocupe, tudo se resolverá no momento oportuno,
por hora se preocupe com a sua recuperação. – Murmurou Pietro às minhas
costas.
― Voltaram a esconder informações. Entendi. – Reclamei, mas na
verdade desisti de ter a resposta apenas porque as dores estavam
insuportáveis, não me ajudando a continuar a discussão.
Deitei na cama e logo outros começaram a se aproximar. Recebi
beijos, abraços, afagos, palavras de incentivo e, um a um, deixaram o quarto.
Pietro se sentou ao meu lado novamente, depois de fechar a porta e deixar o
último anjo sair. Deitei a cabeça sobre meu travesseiro, que ele colocou em
seu colo e me encolhi perto dele, saboreando a claridade, o carinho, o cheiro
de vida que meu quarto possui. Nunca tinha notado, mas meu perfume
preferido estava impregnado no ambiente, tinha saudade do aroma cítrico e
amargo que ele exala. Suspirei, aproveitando o carinho, mesmo estando brava
com o anjo.
― Quer conversar sobre o que aconteceu? – Perguntou algum tempo
depois.
― Quero saber como saímos de lá e... E...
― Acredito que somente o Pierre saberá dizer – Cortou-me pensativo,
talvez sabendo que perguntaria de novo sobre Arthur – mas, pela forma que
retornaram, suponho que quem prendia sua alma morreu.
― Minha alma?
Então, Pietro explicou sobre a separação da alma e do corpo, que o
demônio que me levou não poderia entrar comigo no Inferno ou meu corpo
físico sucumbiria. Contou tudo o que fizeram para me localizar e que Arthur
sabia que deveria cair para me encontrar, que entrou na minha mente e se
uniu em espírito à minha alma para me alcançar no Inferno e que este era o
motivo dele sentir-se mais fraco e ter a sensação nítida de que estava
queimando, pois seu espírito não foi feito para estar no Inferno.
― Quem prendeu sua alma só a libertaria por vontade própria ou
morrendo, automaticamente liberando o espírito de Pierre também, pois ele
estava preso a você. – Finalizou.
Respirei fundo, incapaz de assimilar toda a informação, a única coisa
que rebatia em minha cabeça era que ele caiu para me salvar.
― Isso significa que ele é um caído agora?
Afagou meus cabelos lentamente, como se ganhasse tempo para
responder. Os segundos que se passaram em silêncio formaram um milhão de
imagens diante de mim: Pierre sem asas, malvado, ardiloso, pecador... Um
anjo sem pudores e que tentaria tocar outras mulheres como Pietro fez
comigo. Nenhuma das imagens condizia com quem eu sabia que ele era.
Pietro cortou meus pensamentos ao começar a falar.
― Todos somos anjos, distintos entre si, mas anjos.
― Isso não é uma resposta.
― É a que posso dar. – Beijou minha testa carinhosamente. – Você o
ama, Suzanna?
― Já me perguntou isso tantas vezes... – Tentei fugir da resposta para
não magoá-lo.
― Certo... Então, a resposta continua a mesma. – Disse sem emoção.
– Conte-me mais sobre o Inferno, eu fui para lá apenas uma vez desde que
caí; o restante do tempo passei na Terra, arrecadando almas.
― Sentindo saudade? – Brinquei e recebi um peteleco no nariz.
― Óbvio que não, mas quero que fale bastante. Você teve pesadelos.
– A afirmação parecia mais uma pergunta.
― Lá ou aqui?
― Teve pesadelos, lá? – Questionou intrigado. – Você dormiu no
Inferno? – Fiz que sim e ele assobiou baixinho. – Não sabia que almas
dormiam... Não te torturaram?
― Se você acha que tentar me violentar através de uma ilusão e
depois me colocar numa cela ao lado de pessoas gemendo de dor, me deixar
sem comer por não sei quanto tempo e quase matar o Arthur na minha frente
é tortura, então me torturaram. – Respondi, tentando brincar, mas sentindo o
peso daquelas palavras. Não sabia se algum dia me esqueceria do que vi.
― Sinto muito, Suzie.
Neguei com a cabeça, pois era bom estar de volta e estava feliz de ter
saído daquele lugar, por mais que minhas reações estivessem em desacordo
com o esperado. Devia agradecer e não enchê-lo de perguntas, deveria ser
grata por estar viva e não ficar emburrada por não saber nada sobre o Arthur,
porém, em paralelo a esses pensamentos, outros se formavam e verbalizei um
deles.
― Como ele conseguiu me levar para lá se minha mente estava
bloqueada? Por que eu tenho a impressão de que ele conseguiu puxar... Puxar
seria a palavra certa? – Perguntei mais para mim mesma, então decidi
continuar assim mesmo. – Puxar minha alma para o Inferno? Pensei que só
conseguiria fazer isso se meus pensamentos estivessem livres e, pelo que
lembro, não estavam.
― Você é sempre lotada de perguntas. – Ele pausou, mas não
demorou muito a continuar, mexia nos meus cabelos distraidamente. –
Podem levar almas para o Inferno apenas depois que elas morrem, porém
existe um lugar que é como o Segundo Éden, onde podemos levar almas que
ainda não deixaram o corpo físico, quando é necessário. Acredito que foi para
lá que a levaram. – Quis perguntar que local, mas ele continuou falando. –
Também cometi um erro e espero que me perdoe. – Sussurrou a última frase.
Sentei-me na cama para ouvir. – Querendo proteger você, acabei dando
chances dele te levar, fazendo acreditar que você era um demônio ou meio
demônio.
― Como você fez isso? – A pergunta saiu engasgada.
O quarto pareceu pequeno enquanto ele ponderava sobre a resposta.
Pietro virou para mim e pegou as minhas mãos como se fosse se declarar
culpado de mais alguma coisa; não segurei de volta, queria sair correndo.
― Lancei uma proteção que escondia seu brilho angélico, seu lado
bom. Quando ele experimentou seu sangue pareceu ser de um caído. –
Suspirou pensativo. – Era para que não te atacassem durante a luta. Perdoe-
me.
― Explique-me de novo. Mais uma vez. – Levantei-me, ficando
diante dele, Pietro não se moveu, apenas esperou minha conclusão. – Você
fez todo mundo acreditar que eu não era um anjo ou Nefilin, sei lá, e só por
isso o Persus pôde me levar para o Inferno? – Pietro confirmou com a cabeça,
nos olhos um pedido mudo de desculpas que ignorei, voando com as unhas
prontas para serem cravadas no peito dele. – Como você pode? Você tem
ideia do que eu vivi lá? O medo que enfrentei? – A cada pergunta, meu tom
aumentava um pouco mais e tentava desferir um tapa ou um soco nele. Meus
olhos novamente embaçados, mas agora pelas lágrimas.
― Suzanna, me perdoe... Não achei que fosse acontecer algo tão ruim
com você, o que queria era evitar exatamente isso. – Respondeu, segurando
minha cintura, sem desviar ou reclamar dos tapas.
― Você é um filho da mãe! Eu acho que nunca, nunca vou me
esquecer do que vi e ouvi naquele lugar! Sabe o que é dormir e acordar com
pessoas gritando e gemendo de dor? Ou não saber o que é real e o que é
ilusão? Até agora, eu não sei se perdi mesmo a minha virgindade! – Travei a
língua quando a última palavra saiu.
Pietro me puxou para o seu colo, me embalando como a um bebê,
tentei me desvencilhar, mas já não tinha forças, meu corpo estava
convulsionando em soluços. Pacientemente, ele limpou meu rosto com os
dedos, pegou um lenço do bolso e me entregou.
― Quem ainda anda com lenço de pano? – Perguntei baixinho,
irritada, mas limpei os olhos e o nariz, voltando a chorar um segundo depois,
com o rosto afundado em seu peito.
― Shhhh, chora, Suzanna, solta tudo o que está no seu coração. –
Beijou minha cabeça e ficou brincando com meus cabelos. Quando achei que
as lágrimas não iriam parar nunca, senti o cansaço me roubar a consciência e
adormeci ali, nos braços dele.
Capítulo 26
Assim que Suzanna caiu no sono, ajeitei-a sobre a cama e cobri. Meu
peito estava doendo e amargurado, quase na mesma proporção de quando
perdi Veronique. Não era o sentimento que esperava – de raiva por ela amar
meu irmão ou porque fui incapaz de salvá-la, sendo obrigado a apenas
esperar alguma reação de ambos, enquanto as horas se passavam e ela parecia
morta. A dor era por ter sido culpado pela maior parte dos sofrimentos que a
menina passou, era por saber que poderia pedir perdão um milhão de vezes,
ser perdoado em todas e, mesmo assim, saber que não seria suficiente.
Vê-la dessa forma, tão vulnerável, e novamente sem poder trazer o
que ela tanto quer, me despedaçava um pouco mais. Beijei sua testa e fui
sentar na poltrona que a avó dela deixou colocar ao lado da cama.
Estava vigiando o anjo Joel enquanto aguardávamos algum sinal de
vida, tanto em Pierre quanto em Suzanna, ambos pareciam mortos quando ele
adentrou o sonho dela. Demétria e Sophia foram as que descobriram o plano
do anjo antes que ele finalizasse. Ele queria meu antigo posto no Inferno,
poder, status e posses, além de honra diante dos demais demônios e caídos.
Ele sabia que seria expulso assim que finalizasse seus intentos, mas elas
foram mais ardilosas e, antes que pudesse liberar a casa para o ataque dos
demônios e caídos que pretendiam matar o corpo físico de Suzanna e Arthur,
elas o subjugaram, prenderam e mataram seu pequeno exército.
Soube depois, pois eu e Teruy estávamos ocupados vigiando o casal
em coma.
Joel foi condenado imediatamente, suas asas arrancadas e arrastado ao
Inferno por ceifadores. Tenho ideia do que acontece com ele, já que não
conseguiu o que prometeu a Lúcifer.
Olhei novamente para Suzanna, admirado por tantas situações
terríveis que uma garota pode passar em dezoito anos de vida e ainda
sobreviver.
Fechei os olhos, deixando minha mente viajar no tempo.
SÉRIE NEFILINS
Gênero: fantasia-urbana
O COBIÇADO
Gênero: romance – reality show
Não se esqueça de deixar sua opinião na Amazon e Skoob. Vou amar
conhecer o que achou do final da série!
Obrigada!
Sumário
Agradecimentos
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
BIOGRAFIA
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