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Curso de Museologia – Universidade de Brasília

Museologia, Patrimônio, Memória – 2020.1


Prof.ª Girlene Chagas Bulhões

Memória e Patrimônio
Revisão dos assuntos, leituras e atividades passadas e preparação para as próximas – tira-dúvidas e breve resumo

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ALÉM DAS CITADAS AO LONGO DO TEXTO: MATOS, Edilene (Org.). Arte e Cultura: memória e transgressão. Salvador: EDUFBA, 2011.

VÍDEOAULA 14 out. 2020


Conceito 01: MUSEOLOGIA
ASSIM COMO A MEDICINA NÃO É A CIÊNCIA DOS HOSPITAIS
E A PEDAGOGIA NÃO É A CIÊNCIA DAS ESCOLAS,
A MUSEOLOGIA NÃO É A CIÊNCIA DOS MUSEUS.
"Área responsável por preservar, pesquisar e comunicar os acervos de relevância
histórica e sociológica. Estuda a relação do ser humano com os objetos sociais"

A Museologia é a área do conhecimento responsável por estudos relativos à


preservação, pesquisa e comunicação de MEMÓRIAS transformadas em HERANÇAS e
traduzidas em ACERVOS variados, formados pelos chamados OBJETOS CULTURAIS.
Conceito 02: MEMÓRIA (aula 02/09)
“uma sobrevivência das imagens passadas” (BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio
sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 69) que “só se conservam para “tornarem-se úteis” (idem), conforme disse o filósofo
francês Henri Bergson; “uma ilha de edição”, conforme o poeta baiano Waly Salomão no
primeiro verso da Carta Aberta a John Ashbery (SALOMÃO, Waly. Poesia Total. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014); um ponto de partida e de chegada em constante transformação.
A memória é a vida, sempre vivida por grupos viventes o
que significa que ela está em evolução permanente, aberta
à dialética da memória e do esquecimento, inconsciente das
suas deformações sucessivas, vulnerável a todas utilizações
e manipulações, susceptível de longas latências e de
repentinas revitalizações.
(NORA, Pierre. Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. T I, v. 1, , p. xix).
MEMÓRIA PALAVRA

“Recordar é preciso” (EVARISTO, Conceição.


Recordar é preciso. In: Cadernos Negros. São Paulo:
Quilombhoje. 1992, p. 17) e

Navegar é preciso. Viver não é preciso (navegadores


portugueses, época das Grandes Navegações)
Memória social e coletiva (aula 09/09)

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das
forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história
são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva.
(LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 442).
MEMÓRIA SOM
Memória, Narrativas e Seletividade

“Eu sou uma contradição e foge da minha mão


Fazer com que tudo que eu digo faça algum sentido
Eu quis me perder por aí, fingindo muito bem
Que eu nunca precisei de um lugar só meu”

(Pitty, Memória, faixa 04, Álbum Anacrônico, 2005).

Formalmente, o conceito de seletividade se refere a uma configuração de regras de seleção que operam a) pela atualização de
apenas um setor no conjunto de possíveis resultados e b) pela produção de uma homogeneidade ou consistência nos
acontecimentos atualizados. Poderíamos dizer, de forma simplificada, que seletividade é a restrição não aleatória (isto é,
sistemática) de um espaço de possibilidades. (OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982, p. 151).
Lembrar, esquecer, silenciar (aula 16/09)
Além de ser mãe das Musas e personificação da memória, Mnemósine é um rio; o rio certo a
ser bebido após a morte pelos iniciados nos Mistérios de Orfeu, o pai de Museu, a fim de que
por meio das águas da lembrança plena suas almas alcançassem a sabedoria e assim
escapassem do tormentoso ciclo de reencarnações (BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega.
Petrópolis: Vozes, 1999b. v. II). Localizados nos Campos Elísios, a parte “mais alta e nobre” do
Hades: “um imenso abismo, onde, após a morte, todas as almas são lançadas, sem prêmio
nem castigo, e para todo o sempre” (BRANDÃO, 1999, p. 162-163); ao lado dele, corre Lethe,
o rio do Esquecimento, significado literal da palavra grega que o nomina, bebido pelos não-
órficos “a fim de esquecer suas existências terrenas.” (BRANDÃO, 1999, p. 165).
(BULHÕES, Girlene Chagas. Museus para o Esquecimento: seletividade e memórias silenciadas nas performances museais, 2017. Dissertação (Mestrado em Performances
Culturais) - Universidade Federal de Goiás, p. 131).
Para os Yorubá também há orixás que são deusas e rios, uma delas é Oxum. Nas palavras do
Ojú Obá Pierre Verger (1997),
Oxum é a divindade do rio de mesmo nome que corre na Nigéria, em Ijexá e Ijebu. Era, segundo dizem, a segundo mulher de
Xangô, tendo vivido antes com Ogum, Orunmilá e Oxossi. As mulheres que desejam ter filhos dirigem-se a Oxum, pois ela
controla a fecundidade, graças aos laços mantidos com “Ìyámi-Àjé” (Minha Mãe Feiticeira). (p. 62).

Dona de todos os rios, costuma-se dizer que Oxum é a Senhora do dengo, do amor, da vaidade,
do ciúme, dos Afetos: nossos dengos e também nossos perrengues; as coisas que nos atingem,
que podem nos fazer “submergir, irrigar, fecundar e inundar”, navegar tranquilas e tranquilos ou
naufragar; tudo aquilo que faz mover nossos corpos. Museus são Corpos Políticos que navegam
pelos Rios da Memória e do Esquecimento; aquilo que os afeta no Mnemósine tornam-se objetos
museais ou museália, as coisas que dentre tantas outras coisas são selecionadas, documentadas,
pesquisadas, conservadas e, talvez ou às vezes, comunicadas. (BULHÕES, 2017, p. 131).
MEMÓRIA SOM

“Memórias são fantasmas que me sopram aos ouvidos” (Pitty,


Memória, faixa 04, Álbum Anacrônico, 2005).
Os “Lugares de memória” (30/09)
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há mais memória
espontânea, que é necessário criar arquivos, comemorar aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, registrar atos, porque estas operações não são naturais. É
porque a defesa pelas minorias de uma memória refugiada sobre foros privilegiados e
ciumentamente guardados não faz mais que portar à incandescência a verdade de todos os
lugares de memória. Sem vigilância comemorativa a história rapidamente os dispersaria.
(NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. T I, v. 1, p. xxiv).

“LUGARES DE MEMÓRIA” – Pierre Nora, historiador francês, criador deste e do conceito “DEVER DE MEMÓRIA”
Memória, Representação e Identidade (aula 07/10)

O dever de memória faz de cada um o historiador de si. O imperativo da história ultrapassou


bastante o círculo dos historiadores profissionais. Não são apenas os antigos marginalizados
da história oficial que têm a necessidade de recuperar seu passado “engolido”. São todos os
corpos constituídos, intelectuais ou não, especialistas ou não, que, no lugar das etnias e das
minorias sociais, experimentam o desejo de partir em busca de sua própria constituição, de
reencontrar suas origens. (NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. T I, v. 1, p. xxix).
[...] na constituição da identidade social dos indivíduos, com particular ênfase nas sociedades
e segmentos individualistas, a memória e o projeto individuais são amarras fundamentais.
São visões retrospectivas e prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o
significado de suas ações, dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de suas
trajetória. (VELHO, Gilberto. Projeto Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 101).
MEMÓRIA IMAGEM e o perigo
da história única, termo
cunhado pela escritora
nigeriana Chimamanda Adichi
Discurso disponível em PDF e:
https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY
Conceito 03: PATRIMÔNIO
LITERALMENTE, HERANÇA DO PAI.
PATRIMÔNIO CULTURAL
Definido no Caput do Artigo 216 da Constituição Federal
Brasileira como o conjunto de “bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”
(BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da
República, 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm).
Em termos da sociedade brasileira, o conjunto de memórias selecionadas compõe o que algumas estudiosas e
estudiosos, a exemplo de Dr. José Reginaldo Santos Gonçalves, professor de Antropologia Cultural da UFRJ, chamam
de Narrativas Nacionais: discursos nos quais se juntam “eventos históricos”, “caóticos” e “arbitrários”, em

[...] um “enredo” por meio do qual os acontecimentos são rigorosamente interconectados em uma estrutura sequencial, com um começo,
meio e fim. O enredo torna possível a apresentação de eventos históricos como um todo coerente e interconectado, sendo o que habilita o
historiador a apresentar o que White chama de acontecimentos caóticos e arbitrários como uma totalidade significativa. (GONÇALVES, José
Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; IPHAN, 1996, p. 16).

Determinadas preferencial e majoritariamente por representantes políticos e intelectuais (gestores, gestoras, técnicas
e técnicos de museus inclusas e inclusos), que se autoproclamam mais capacitadas e capacitados que as demais
pessoas da sociedade para a tarefa de seleção, preservação, pesquisa, interpretação e comunicação das memórias e
bens culturais; as Narrativas Nacionais não são apenas discursos textuais; são formas de ação (Performances,
portanto) que formam “uma totalidade significativa” capaz de determinar ou influenciar comportamentos por meio
da invenção de tradições e valoração de culturas.

(BULHÕES, 2017, p. 53).


Segundo Gonçalves (1996), a seleção desse conjunto faz parte das Narrativas Nacionais formuladas entre as décadas
de 1930 e 1980 por intelectuais ligados à criação e implantação de políticas públicas para a cultura em nosso país,
com o propósito de construir uma memória e identidade que servissem ao ideal de nação imaginado e definido por
eles mesmos. Em suas palavras, tais discursos são parte das “estratégias através das quais esses intelectuais, por meio
de narrativas diversas, inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a eles próprios, enquanto guardiães desse
patrimônio” (GONÇALVES, 1996, p. 33).

Esse Patrimônio Cultural inventado nos gabinetes, alegoria de um Brasil mítico e idealizadamente apaziguado sob o
manto da unidade nacional, é distante da nossa identidade multifacetada. Composto majoritariamente por bens
heteronormativos representativos das classes dominantes, privilegia o discurso da história oficial, escrita pelos
colonizadores e pelos considerados vencedores, e ignora, subalterniza ou menospreza muitos dos “diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira” preconizados na nossa Constituição Federal.

Ainda segundo Gonçalves (1996), as políticas públicas a serviço desse modelo de gestão possuem um caráter
conservacionista e visam, principalmente, evitar a realização do maior medo dos preservacionistas: a destruição
definitiva do patrimônio e das identidades culturais originais, também criadas nos gabinetes. A fim de evitar tais
perdas, em nível federal foram criados dois instrumentos:

(BULHÕES, 2017, p. 80-81).


1- O Tombamento: instituído juridicamente em 30 de novembro de 1937 pelo Decreto Lei nº 25 (BRASIL, 1937),
pode ocorrer nas esferas federal, estadual ou municipal, sendo aplicado exclusivamente aos bens materiais,
“aqueles sobre suporte físico, representados pelas edificações, paisagens, conjuntos históricos urbanos e bens
móveis e integrados à arquitetura” (OLIVEIRA, Vânia Dolores Estevam de; KUNZLER, Josiane. Módulo II. Goiânia: NDH/UFG, 2014 (PDF
não publicado do texto-base da disciplina Legislação e Patrimônio Cultural no Brasil (LPCB), da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio,
Direitos Culturais e Cidadania (EIPDCC), promovida pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos (NDH), da
Universidade Federal de Goiás (UFG)4, p. 7);

2- O Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que Constituem Patrimônio Cultural Brasileiro: criado pelo
Decreto nº 3.551 de quatro de agosto de 2000 (BRASIL, 2000) para os bens patrimoniais de natureza imaterial,
por seu intermédio a proteção do bem se dá mediante a inscrição do mesmo em um dos quatro livros que
compõem o Registro – Saberes, Formas de Expressão, Celebrações ou Lugares.

(BULHÕES, 2017, p. 81).


De acordo com nossa legislação, qualquer cidadã ou cidadão brasileiro pode propor o Tombamento ou Registro de um
bem patrimonial, sendo necessário para tal que o mesmo apresente valor histórico, artístico ou cultural e que seja
significativo para uma dada coletividade. No entanto, em que pese essa obrigatoriedade de reconhecimento coletivo
“a eleição de um conjunto de bens a ser preservado não representa o todo e sim um campo de batalhas de interesses
entre diferentes grupos sociais” (OLIVEIRA; KUNZLER, 2014, p. 4), pois também nessa seara estão em conflito os que se
encaixam ou não nos padrões do Uno; os a favor ou contrários ao Dispositivo. Embate este que no campo
museal/museológico se dá entre a Memória do Poder e o Poder da Memória, como dito por Chagas (CHAGAS, Mario de
Souza. Memória e Poder: dois movimentos. In: Cadernos de Sociomuseologia, v. 19, n. 19, jun/2002. p. 43-81. Disponível em:
<http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367>);
descrito da seguinte forma no terreno do patrimônio
cultural pela Prof.ª Dr.ª Vânia Oliveira e pela Doutora em Museologia e Patrimônio pela UNIRIO, Josiane Kunzler:

[...] uma manipulação ideológica do que pode ser ou não patrimônio. O poder de decidir o que deve ser preservado é
de determinado grupo (na maioria das vezes, uma elite) em detrimento do coletivo. [...]. Cria-se uma crise não
somente de representação, mas também de identidade. (OLIVEIRA; KUNZLER, 2014, p. 16).

(BULHÕES, 2017, p. 81-82).


Grupos pros Webnários:
1. Nação e Patrimônio: noções históricas da modernidade ocidental
2. Nacionalismos no Ocidente
3. O caso francês
4. O Patrimônio no Brasil - séculos XIX e XX
5. Por uma história dos museus no Brasil do Oitocentos
6. Patrimônio e museus nos séculos XX e XXI
Filme A Grande Sedução e a metáfora da criação do “Patrimônio como narrativa da nação”:
São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004 - "A GRANDE SEDUÇÃO"
Longa francês usa humor para combater vampirismo neoliberal
[Resenha Crítica de] PAULO SANTOS LIMA FREE-LANCE PARA A FOLHA

O longa "A Grande Sedução", de Jean-François Pouliot, é antes de tudo uma comédia de guerra contra o vampirismo neoliberal que sugou as economias
primitivas. Rebelde à penúria material mas jamais contra a modernidade industrial, o que é curioso. Uma vila de pescadores na UTI, materialmente
arruinada e cujos moradores vivem sob um humilhante seguro-desemprego, percebe que sua ressurreição pode vir com a instalação de uma fábrica de
plásticos. A mobilização do povoado será digna de tempos de guerra. Mobilização em alinhar essa diminuta ilha do litoral canadense aos conformes
impostos pelo contrato, que exige que haja um médico residente. Se até boa parte dos aldeões está cansada da decrepitude local e anseia pelo eldorado
continental, como um médico de fora estará sorrindo ali? O "Churchill" da ilha, o velho ex-pescador Germain, resolve maquiá-la para um jovem médico
obrigado a passar 20 dias lá. Ele é Christopher, chegado numa carreira de pó e cujos gostos fazem os aldeões trocarem o hóquei pelo críquete, suas
mulheres abrirem sorriso convidativo, a tinta camuflar a madeira das casas. Tal prostituição, típica desses tempos nos quais a imagem é tudo, assassina
certa tradição local e legitima a mentira como mandamento moral. Eis uma grande idéia sepultada pelo humor sem graça do filme, cujo tom fabular
recorre a clichês cafonas. "A Grande Sedução" desbancou "As Invasões Bárbaras" nas bilheterias canadenses, e não à toa. O filme de Denys Arcand tem
olhar irônico sobre um passado supostamente morto, o dos anos 60. Já Pouliot, ainda que o humor dilua a gravidade política do tema, vê os
acontecimentos históricos como processo ininterrupto. São filmes revoltados com o mundo, mas "A Grande Sedução" é o doente que recusa a morte
enquanto o outro é o enfermo que zomba da morte para esconder seu choro covarde.

A Grande Sedução La Grande Sedúction


Direção: Jean François Pouliot
Produção: Canadá, 2003
Com: David Boutin, Raymond Bouchard
Texto disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac2911200403.htm

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