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From the SelectedWorks of Rafael Mafei

Rabelo Queiroz

January 2010

Artigo Científico: concepção, temas, métodos e


técnicas

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Author SelectedWorks of New Work

Available at: http://works.bepress.com/rafaelmafei/10


QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Artigo Científico: Concepção, Temas, Métodos e Técnicas. BePress
Selected Works, 2011. Disponível em: http://works.bepress.com/rafaelmafei

ARTIGO CIENTÍFICO: CONCEPÇÃO, TEMAS, MÉTODOS E


TÉCNICAS

Rafael Mafei Rabelo Queiroz1

1. Por que um artigo científico?

Uma forma útil de refletir sobre o que deve ser um artigo é tentar responder à seguinte
questão: por que nos pedem artigos científicos como requisitos para conclusão de cursos
de pós-graduação? O artigo científico não é uma prova-mestra de conteúdo e
capacidades. Ele pretende ser um instrumento que permite a verificação e avaliação de
certo conjunto de habilidades, que são sensatamente exigíveis dentro de certos contextos
específicos. É evidente que não faria sentido exigir a entrega de um artigo científico de
um candidato a professor de dança de salão ou de capoeira: as habilidades que tais
profissões exigem não são mensuráveis através da redação de um artigo. Mas pensemos
em um concurso público para juízes, promotores e procuradores: todas essas são
profissões “analíticas”, e não corporais; mesmo assim, concursos de ingresso nessas
carreiras não exigem que candidatos redijam artigos científicos, via de regra. Algumas
delas conferem pontos classificatórios para quem tenha produção científica publicada,
mas a vasta maioria dos aprovados não a tem. Eles têm apenas de se classificar (muito
bem!) em concorridas provas objetivas e dissertativas, respondendo a questões pontuais
e detalhadas, que revelam outras habilidades e capacidades que não aquelas que um
bom artigo científico é capaz de explicitar. Por que, então, cursos de pós-graduação
exigem artigos científicos? Que têm eles de tão especial?

Um artigo científico é o veículo preferencial pelo qual pesquisadores tornam públicos


resultados recentes que julgam relevantes, obtidos nas investigações por eles
conduzidas. Invariavelmente, jornais de grande circulação mencionam artigos
científicos, em colunas ou cadernos que dão espaço a notícias científicas. Por que tais
reportagens citam sempre artigos científicos – e não livros clássicos, que são muito mais

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Mestre e doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Coordenador de Pesquisas e de
Metodologia de Ensino da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

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lidos? É simples: porque são artigos científicos que contam à comunidade científica, em
primeira mão, as novidades da ciência, que os jornais traduzem para o público geral.

Artigos científicos não são relatórios de estudos, são meios de divulgação


descobertas feitas em pesquisas. Um cientista estuda e lê coisas quase todos os dias,
mas nem por isso produz um artigo científico a partir de cada coisa que lê. Daí segue
que um texto que se limite a reproduzir ou resumir textos de terceiros, mesmo que
competentemente, pode ser um bom resumo de livros, um bom roteiro de estudos, um
bom fichamento... mas não será um artigo científico, pois artigos científicos são
precedidos não só de estudos e leituras, mas principalmente de atividades específicas de
pesquisa, investigação e reflexão. Tais atividades gerarão, se bem conduzidas,
resultados ou conclusões, que darão, eles sim, o bojo de um artigo científico. Nesse
sentido, o tema de um artigo científico será sempre específico (monográfico), e seu
conteúdo procurará apresentar a pesquisa e informar os resultados ou conclusões que
dela se podem extrair. Finalmente, mas não menos importante, deve-se anotar que
artigos científicos são escritos quando pesquisadores têm algo de relevante a dizer em
termos de descobertas científicas: um resultado novo, uma descoberta instigante, a
confirmação de algo de que já se desconfiava, uma reinterpretação de velhos fatos –
qualquer coisa relevante, enfim. Também por esta razão, meros resumos do que já
disseram outros autores não se constituem em verdadeiros artigos científicos.

Sabendo de tudo isso, já é possível ter alguma idéia do porquê de artigos científicos
serem cobrados em cursos de pós-graduação. Um bom artigo científico é capaz de
mostrar que seu autor consegue se inserir em um debate relevante, bem como
demonstrar familiaridade com o estado da arte da produção acadêmica dentro de seu
assunto de pesquisa, além de conseguir produzir conhecimento sólido, relevante e
inovador na matéria. Essas são habilidades que qualquer instituição de ensino se orgulha
em conseguir incutir em seus alunos, além de contribuírem, positivamente, para um
exercício qualificado de variadas atividades profissionais e acadêmicas. Por tudo isso,
um bom artigo científico tem muito a dizer sobre seu autor e suas capacidades e, quando
bem executado, é uma ótima maneira de se demonstrar a apreensão de capacidades e
conteúdos transmitidos ao longo de um curso de pós-graduação – e por isso são
freqüentemente exigidos como requisito para sua conclusão. Nas páginas seguintes,

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veremos um pequeno roteiro para a produção de um artigo que atenda bem a esses
requisitos.

2. O tema do artigo

A escolha do tema é fundamental para uma monografia científica, seja ela um artigo,
uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutoramento. Para que o texto produzido
seja verdadeiramente “científico”, não basta que o tema seja restrito e instigante. É
preciso, antes de qualquer coisa, que ele seja suscetível de ser cientificamente estudado.
Para tanto, é preciso que o pesquisador guarde em mente algumas características que ele
deve ostentar:

2.1. O tema deve ser um problema, um objeto de dúvida

Já foi dito que trabalhos científicos comunicam resultados relevantes de pesquisa a seu
público leitor. Que significa relevância, neste contexto? Significa, resumidamente,
produção de conhecimento inovador. Cientistas e pesquisadores são socialmente
apreciados porque são capazes de fazer algo importante: eles descobrem coisas, através
de procedimentos intelectuais sofisticados que exigem treinamento específico
(“métodos científicos”), que geralmente respondem a dúvidas relevantes. Estas
relevância e inovação manifestam-se de muitas formas distintas.

Algumas vezes, pesquisadores publicam artigos científicos que trazem uma resposta
nova para uma velha pergunta. Tome-se, por exemplo, a questão da orientação sócio-
ideológica dos juízes em suas sentenças: os juízes brasileiros, visando a aplacar seus
sentimentos pessoais de injustiça social, costumam favorecer a parte mais fraca em suas
sentenças? Um ensaio de 20052 aventou, a partir de entrevistas com magistrados
brasileiros, a hipótese de que o Judiciário teria a tendência de desrespeitar cláusulas
contratuais e dispositivos legais para favorecer o litigante economicamente mais fraco e,
assim, fazer “justiça social” ao arrepio das formas jurídicas. Tal hipótese foi, e bem
provavelmente continua sendo, tratada como verdade inconteste por muitos. Porém, no

2
ARIDA, Pérsio; BACHA, Edmar e RESENDE, André Lara. “Credit, interest, and jurisdictional
uncertainty: Conjectures on the case of Brazil”, Rio de Janeiro: IEPE/CdG, Texto para Discussão n.2,
2003, Publicado em GIAVAZZI. F.; GOLDFAJN, I; HERRERA, S. (orgs.); Inflation targeting, debt, and
the Brazilian experience, 1999 to 2003. Cambridge, MA: MIT Press, may 2005.

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ano seguinte, uma pesquisa foi levada a cabo com o específico propósito de testar a
veracidade, ou não, da tal hipótese. Resultado: ela provou-se falsa. De acordo com essa
última investigação, os litigantes economicamente mais fortes têm 45% mais chances de
saírem vitoriosos em uma disputa judicial do que os mais fracos, em casos iguais.3 Uma
pesquisa com esse objeto é certamente relevante, e seus resultados dão o perfeito
recheio para um bom artigo.

Outras vezes, pode-se simplesmente fazer uma pesquisa com o propósito de organizar
e sistematizar algo que está confuso por, digamos, sucessões legislativas pouco claras.
Tome-se, por exemplo, um trabalho que procure estipular qual é, afinal, o regime de
juros vigentes no Brasil. Um tal trabalho perguntar-se-ia: a Lei da Usura foi ou não
revogada pelo Código Civil de 2002? Trata-se de uma questão bastante discutida
atualmente, cuja relevância é evidente.

Ainda, outros trabalhos procuram determinar o significado jurídico de algo novo.


Também este tipo de situação é terreno fértil para boas pesquisa, que geram bons
artigos. Exemplo: há algum tempo, funciona um serviço de internet chamado Second
Life, em que cada usuário é capaz de construir uma vida virtual paralela. Pois bem, neste
mundo paralelo, é possível que empresas comprem espaços publicitários virtuais e
“construam”, por exemplo, outdoors virtuais, em ruas virtuais, mas anunciando
produtos verdadeiros: roupas, perfumes, eletrônicos, carros etc. Pergunta-se: estes
outdoors virtuais devem ser considerados como outdoors reais para fins jurídicos, como
a incidência de ISS por prestação de serviços publicitários?4 Em todo campo da vida
social onde haja fatos sociais novos, juridicamente relevantes, perguntas deste tipo
podem surgir. Outro exemplo: diversas comunidades no Brasil estabeleceram, entre
seus membros, um complexo sistema de trocas baseados em títulos comunitários de
depósito. São as chamadas “moedas sociais”, de que o Banco Palmas é o mais
conhecido exemplo. Estas moedas sociais seriam “moeda”, no sentido jurídico da
palavra? Ou seja, estariam sujeitas ao controle administrativo e à proteção jurídica
(penal, consumerista, administrativa etc.) a que se sujeitam os demais bancos, que
trabalham com a moeda oficial?

3
FERRÃO, Brisa L. M.; RIBEIRO, Ivan C. “Os Juízes Brasileiros Favorecem a Parte Mais Fraca?”. UC
Berkeley: Berkeley Program in Law and Economics. Disponível em:
http://escholarship.org/uc/item/0715991z. Acesso em 13/07/2010.
4
“No Second Life, vida é virtual e dinheiro real”. Valor Econômico, 18/07/2007, p. B2.

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Todos esses temas são muito diferentes entre si, mas compartilham uma característica
relevante. O leitor atento terá notado que todos os temas foram apresentados como
perguntas. Isso indica que são objetos de verdadeiras dúvidas, de indagações
significativas. O mesmo leitor terá notado, ainda, que nenhuma das perguntas é singela
ou simplória; todas são razoavelmente difíceis, e demandam certa reflexão e estudo para
que sejam respondidas com substância. Tais reflexões e estudos são justamente as
pesquisas – que, se bem feitas, serão capazes de construir boas respostas para cada uma
dessas perguntas. Eis a diferença entre uma pesquisa, que é capaz de gerar um artigo, e
o mero estudo diletante, que, por mais que contribua positivamente para o aumento de
conhecimentos de um estudante, não suscita, via de regra, o tipo de reflexão necessária
a um artigo científico.

É importante também notar que os temas citados, tais como formulados – como dúvidas
ou perguntas – são diferentes de coisas como “Da ideologia da decisão judicial”, ou
“Dos juros”, ou “Da tributação da publicidade na Internet”, ou ainda “Da moeda social:
aspectos jurídicos”. Postas desta forma, aquelas perguntas, que eram férteis temas de
pesquisa, convertem-se em meros assuntos. A diferença entre um mero assunto e um
verdadeiro tema de pesquisa é que o assunto indica um campo de interesse, mas não
necessariamente um objeto de inquietação, de dúvida, que será respondido por um
trabalho de pesquisa. Posso ler e estudar sobre um assunto, mas para fazer uma
pesquisa, preciso de uma pergunta, um objeto de dúvida para o qual busco uma
resposta. É provável que o leitor deste texto, às voltas com os preparativos para a escrita
de um trabalho científico, tenha já um assunto, mas ainda não um tema. Como fazer
para transformar um assunto em um tema? Um bom exercício é justamente buscar
extrair dele uma pergunta, um problema, uma dúvida – com ponto de interrogação
ao final, inclusive. Na visão de senso comum, pesquisadores são como detetives do
mundo da ciência, pois uns e outros investigam as coisas com métodos científicos e
descobrem verdades até então ignoradas, mas há uma importante diferença entre
detetives e cientistas: enquanto detetives recebem o problema pronto (um crime para o
qual não se encontra o culpado), cujo sentido é mais ou menos óbvio (encontrar o
assassino), o cientista primeiro constrói o problema para só depois resolvê-lo por meio
da pesquisa científica.

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É fundamental que o pesquisador tenha clareza, portanto, que "Serviços Públicos"


indica um assunto interessante, mas está longe de se constituir em um tema de pesquisa
pronto e acabado; tal assunto precisa ser trabalhado, moldado, para que se extraia dele
uma pergunta interessante e atual, que possa ser criteriosamente respondida através de
uma pesquisa jurídica - digamos, por exemplo, "Pode a concessão de serviços públicos
ser feita por decreto do Poder Executivo, ou deve o art. 175 da Constituição de 1988 ser
interpretado no sentido de exigir que a concessão se dê através de lei em sentido
estrito?". Note bem a diferença: a primeira hipótese traz um assunto, uma área; a
segunda, uma entre muitas possíveis perguntas dentro desta área. Um outro exemplo
esclarecedor: "Intervenção do Estado na Economia" é um assunto interessante, mas não
um tema de pesquisa; já "Que modelo de intervenção judicial sobre planos de
estabilização econômica é possível extrair através de um estudo de caso do controle do
Plano Real?"5 é, ao contrário, um verdadeiro tema de pesquisa tema dentro daquele
assunto.

Daqui em diante, quando se falar de tema de pesquisa, ter-se-á em mente um verdadeiro


tema, e não um mero assunto.

2.2. O tema deve ser relevante

A pergunta ou problema que serão tema de pesquisa devem refletir um objeto relevante
para a discussão acadêmica. O fato de um tema ser objeto de freqüentes discussões entre
pesquisadores e juristas é bom indicativo de sua relevância enquanto pauta de
investigação. O filósofo italiano Umberto Eco, em sua clássica obra Como se faz uma
tese, diz, a certa altura, que “livros conversam entre si”.6 Ao fazê-lo, aponta para o fato
de que acadêmicos e pesquisadores freqüentemente escrevem diversos livros sobre
assuntos repetidos. Tome-se, por exemplo, o campo da filosofia: quanta coisa já não foi
escrita ao longo da história sobre objetos de dúvida como “como sabemos alguma
coisa?”, ou “que é a justiça?”, ou ainda “como as palavras podem ter significados?”,
entre outras. A mesma coisa vale para o Direito, que também tem seus “campeões da
audiência” entre os problemas jurídicos: “como determinar o valor de indenizações por
danos morais?”, “o sistema recursal brasileiro determina a morosidade judicial?”, “que

5
Conforme DURAN, Camila Vilardi. Direito e Moeda: o Controle dos Planos de Estabilização
Monetária pelo Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 103 e ss.
6
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 20ª Ed. São Paulo: Perspectiva.

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proteção adicional confere o Direito do Consumidor às pessoas excessivamente


endividadas?”, “que circunstâncias supervenientes permitem a flexibilização do vínculo
contratual anteriormente estabelecido?”, e assim por diante. Eduardo Marchi lembra que
temas profícuos de pesquisa podem nascer de debates doutrinários ou jurisprudenciais7
– e estes, se de fato são debates, envolverão invariavelmente partidários de uma e de
outra posição, os quais defenderão seus pontos de vista através de textos que,
provavelmente, citam-se uns aos outros, seja para expressar concordância, seja para
registrar discordância. (Vale mencionar que, evidentemente, encontrar e ler tais textos
será uma boa forma não só de especificar um verdadeiro tema de pesquisa, mas também
de já se familiarizar com a bibliografia mínima a seu respeito, que certamente precisará
ser lida ao longo da pesquisa.)

Assim, uma primeira maneira de determinar a relevância de um tema é saber o quanto


ele está na pauta dos debates jurídicos atuais. Há diversos veículos informativos que são
úteis nesse sentido. Os primeiros e mais evidentes são os periódicos científicos, tanto
nacionais quanto estrangeiros. Neles é que são publicados artigos científicos da área do
direito, que são, como já foi dito, os principais meios de divulgação de novidades de
pesquisa à comunidade jurídica. Assim, um pesquisador que queira escrever sobre
contratos bancários e direito do consumidor, mas tenha dificuldade em formular um
problema, uma pergunta, dentro deste assunto terá muito proveito em consultar,
digamos, os últimos exemplares da Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais, da Revista de Direito Mercantil, ou ainda da Revista de Direito do
Consumidor, onde ele encontrará o que de mais recente tem sido escrito dentro de seu
campo de interesse, o que talvez lhe ajude a construir o tema-problema sem o qual a
pesquisa sequer pode começar. Alguns periódicos têm seus textos disponíveis na
internet gratuitamente, e podem ser acessados por portais como o Periódicos Capes, o
Scielo, ou o SSRN (este último com textos em inglês).8 Com o mesmo proveito, o autor
poderá consultar também teses e dissertações jurídicas, produzias no âmbito programas
de mestrado e doutoramento no Brasil e no mundo. Esta estratégia é viável mesmo para
quem não disponha de tempo para freqüentar o acervo de uma biblioteca universitária

7
MARCHI, Eduardo Cesar Vitta. Guia de Metodologia Jurídica. Teses, Monografias, Artigos. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 48.
8
Respectivamente, conforme citados no texto: http://www.periodicos.capes.gov.br; http://www.scielo.org
; http://www.ssrn.com/. Até a data de escrita deste artigo, a Revista Direito GV era o único periódico
jurídico disponível no Scielo: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1808-
2432&lng=pt&nrm=iso.

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pública, já que, por exigência dos organismos governamentais que cuidam dos
programas de pós-graduação no Brasil, os programas de mestrado e doutoramento
devem disponibilizar, pela internet, as dissertações e teses defendidas em bibliotecas
digitais virtuais. Todas as grandes universidades já possuem bibliotecas digitais com
bom volume de teses e dissertações disponíveis gratuitamente na rede: USP,9
Unicamp,10 UFRGS,11 UERJ,12 UFPE,13 etc. Para facilitar a vida dos pesquisadores, o
Ministério da Ciência e Tecnologia oferece um portal que unifica as buscas em algumas
bibliotecas digitais.14 O pesquisador que dominar línguas estrangeiras poderá também
consultar bibliotecas de teses estrangeiras, fartamente disponíveis na internet.15 Artigos
científicos, teses e dissertações devem ser a principal fonte de consulta de um
pesquisador, pois é através deles que nos inserimos nos debates da comunidade
acadêmica.

Além desses veículos, há algumas fontes subsidiárias que podem ser úteis na construção
de um tema-problema, mas que de forma alguma bastam para se fazer uma pesquisa, e
nem devem ser a principal fonte de um pesquisador. Entre essas fontes subsidiárias,
destacam-se, em primeiro lugar, os jornais de grande circulação. Jornais são úteis para
apontar situações problema: uma polêmica em torno de novas formas de fiscalização da
Receita Federal, uma dúvida jurídica sobre a competência para a exploração econômica
de certo recurso natural, um debate sobre concentração de mercado e danos à
concorrência em razão de alguma recente operação de fusão entre empresas e assim por
diante. Notícias desse tipo são habituais na grande mídia e indicam situações-problema
que envolvem debates jurídicos. Não por acaso, grandes juristas são freqüentemente
entrevistados em tais reportagens e dão breves opiniões sobre as polêmicas retratadas.
Entretanto, como os argumentos jurídicos por elas ventilados costumam ser

9
http://www.teses.usp.br/.
10
http://libdigi.unicamp.br/.
11
http://www.lume.ufrgs.br/.
12
http://www.bdtd.uerj.br/.
13
http://www.bdtd.ufpe.br/tedeSimplificado/.
14
http://bdtd.ibict.br/pt/a-bdtd.html.
15
A busca pela internet revelará muitos portais desse tipo. Assim como no Brasil, a maioria das
universidades disponibiliza a produção intelectual de seus programas de doutorado na rede. Alguns
exemplos, que estão longe de ser exaustivos, todos de portais em língua inglesa: http://adt.caul.edu.au/
(Ásia e Austrália); www.unisa.ac.za/Default.asp?Cmd=ViewContent&ContentID=15350 (África do Sul);
http://www.collectionscanada.gc.ca/thesescanada/index-e.html (Canadá);
http://ethesis.helsinki.fi/english.html (Finlândia); http://etd.ncsi.iisc.ernet.in (Índia);
http://www.lib.ncsu.edu/etd, http://etd.library.vanderbilt.edu/ETD-db, http://www.pitt.edu/~graduate/etd,
etda.libraries.psu.edu, http://etd.ils.unc.edu/dspace (EUA).

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excessivamente simplificados para se tornarem acessíveis ao grande público, eles pouco


servem como fontes de pesquisa, para além da mera indicação de uma situação-
problema. (A não ser, é claro, que minha pesquisa investigue como a mídia simplifica
argumentos jurídicos em suas reportagens.) Os argumentos jurídicos sobre essas e
outras situações, em toda a sua profundidade e complexidade, estarão principalmente
em artigos científicos, teses e dissertações, e não nas bancas de jornais.

Outra espécie de fontes subsidiárias são os portais jurídicos (Conjur, Direitonet, Jus
Navegandi, Boletim Jurídico, Migalhas etc.), aos quais se chega com muita facilidade
quando se consultam temas jurídicos com qualquer ferramenta de busca na internet
(Google, Bing, Yahoo etc.). Esses portais contêm, no mais das vezes, pequenos artigos
escritos por profissionais do direito, bacharéis e estudantes. Além de indicarem a
existência de alguma situação-problema que esteja atualmente na pauta dos juristas,
esses sítios poderão também sugerir alguma bibliografia desconhecida ao pesquisador,
que eventualmente apareça citada nos artigos em que abrigam. Não mais do que isso.
De todas as fontes de informação até aqui citadas, portais jurídicos são os que menos
têm critérios de qualidade para a seleção do material que publicam: periódicos
científicos são avaliados por agências públicas e normalmente têm conselhos editoriais
e pareceristas externos que opinam sobre a qualidade dos textos publicados;
dissertações e teses passam por uma argüição pública em banca com examinadores
internos e externos; e mesmo os grandes jornais costumam selecionar suas fontes entre
juristas de prestígio e atores diretamente envolvidos na situação-problema reportada.
Portais jurídicos não têm nada disso, e com um agravante adicional: não há
constrangimento de espaço físico que os obrigue a ser seletivos em relação ao material
que recebem, já que tudo “cabe” na internet. Por tudo isso, recomenda-se muito cuidado
com o uso desse tipo de material, que não deve, de forma alguma, protagonizar a
bibliografia de um artigo científico.

Além de o tema estar na pauta de debates dos juristas, contribuirá para a sua relevância
uma certa originalidade em sua forma de construção ou abordagem. Note-se bem:
originalidade não é a mesma coisa que ineditismo, que é requisito apenas das teses de
doutoramento, mas indica apenas uma forma inovadora e criativa de tratamento de um
assunto que pode muito bem não ser inédito. Um exemplo singelo: o instituto da
repercussão geral como requisito de admissibilidade de recursos extraordinários, criado

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pela Emenda Constitucional 45 de 2004, tem sido exaustivamente debatido pela


doutrina desde sua aprovação. Assim, um trabalho intitulado, digamos, “Da repercussão
geral”, que se limite a descrever as principais posições doutrinárias e jurisprudenciais a
este respeito, pouco acrescentaria a este tema já muito discutido. Mas isso não quer
dizer que nenhum trabalho original e criativo possa ser feito tendo a repercussão geral
por assunto, pois sempre haverá formas originais de se revisitar um tema, por mais
repisado que seja: como, empiricamente, o Supremo Tribunal Federal tem avaliado a
repercussão geral nos casos por ele analisados? Pelo valor da causa? Pela qualidade das
partes? Pela importância da questão política de fundo? Os ministros têm, todos,
pensamentos iguais nesse sentido? Como é possível explicar semelhanças e diferenças
em seus votos? Há variações conforme o tipo de matéria tratada? Note-se que se trata de
o mesmo assunto abordado de outra forma – com outra metodologia, leia-se –, um tanto
mais original do que a costumeira abordagem exegética, que se limita a falar da
natureza jurídica do instituto, da intenção do legislador etc. Pode-se ainda pensar em
outras tantas formas de abordagem desse mesmo instituto: ao invés de uma pesquisa
empírica de jurisprudência, por que não fazer uma avaliação comparada da norma
criada pela Emenda 45 com outras congêneres de jurisdições estrangeiras, como o writ
of cert da Suprema Corte dos EUA? Quais são os critérios utilizados pela corte suprema
norte-americana para escolher os recursos que julgará? Seriam eles comparáveis à
“repercussão geral” que a Emenda 45 pretendeu criar? Por que sim, ou por que não? É
possível, a partir disso, extrair conclusões sobre o papel institucional do tribunal
supremo dentro do sistema político-jurídico de cada um dos países? Que papéis seriam
estes, da Suprema Corte e de nosso Supremo Tribunal Federal? Estaríamos aqui, como
se percebe, diante de uma pesquisa com nuances de direito comparado que, a despeito
de revisitar um assunto já batido, de forma alguma padeceria de falta de criatividade. O
pesquisador que se preocupar em imprimir uma tal originalidade em seu trabalho terá
dado um passo decisivo no sentido de construir um tema relevante, mesmo que não
inédito, além, é claro, de uma pesquisa mais instigante e desafiadora para si próprio.

2.3. O tema deve estar dentro das limitações do pesquisador

Todas essas características do tema – situação-problema, originalidade – devem, por


outro lado, ir ao encontro de um conjunto de características pessoas e limites
circunstanciais de todo e qualquer pesquisador. Nada adianta um tema que seja em si

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ótimo, mas que, por qualquer circunstância, esteja além das capacidades de quem
pretende trabalhá-lo.

Em primeiro lugar, o pesquisador dever ter um razoável nível de familiaridade prévia


com o tema. Por mais que estudemos e pesquisemos sempre com o objetivo de
aprender coisas novas, o tema escolhido deve sempre ser aquele diante do qual o
pesquisador se sinta confortável, em termos dos conhecimentos que já possui. A escrita
de um artigo científico não é um bom momento para se aprender um tema do zero. Ao
contrário, é o momento em que o autor demonstra todo seu conhecimento e proficiência
em um tema no qual já é razoavelmente perito. Sem expertise prévia, a tendência é o
pesquisador não conseguir formular um tema-problema suficientemente interessante, e
terminar por se limitar à leitura de textos básicos, como cursos e manuais, cujo
conteúdo fica distante do conhecimento acadêmico inovador que é o motor dos debates
científicos em qualquer área.

Em segundo lugar, as fontes relativas ao tema devem ser intelectualmente acessíveis a


quem irá lê-las. Um grande obstáculo nesse sentido são idiomas estrangeiros. Sim, é
verdade que a China é o país-coqueluche do momento, mas não conseguirei pesquisar
coisa alguma sobre o direito chinês se as fontes relativas ao meu tema estiverem todas
em mandarim, sem tradução confiável para algum idioma cuja leitura me seja acessível.
Em muitos temas, como aqueles relativos a direito econômico, bancário e de mercado
de capitais, a bibliografia de ponta é majoritariamente em língua inglesa, de forma que
convém saber bem o idioma antes de se aventurar a pesquisar poison pills ou algum
aspecto polêmico da Lei Sarbanes-Oxley. O mesmo valerá para pesquisas que utilizem a
metodologia do direito comparado: por razões evidentes, convém dominar a leitura nos
idiomas das jurisdições que servirão de parâmetro comparativo.

Adicionalmente, o pesquisador deve atentar-se para as limitações de acesso aos


materiais dos quais ele precisará para fazer sua pesquisa. Pensemos, por exemplo, em
uma pesquisa que queira reconstruir o debate jurídico em torno da formação do mercado
de seguros no Brasil desde o século XIX. Certamente haverá fontes históricas de difícil
acesso para tal trabalho: livros sobre direito dos seguros do século XIX no Brasil só são
encontráveis em bibliotecas com bons acervos de obras raras, para não falar em
documentação específica das primeiras seguradoras brasileiras, que provavelmente
estão confinadas arquivos públicos e/ou particulares. O pesquisador que insista em

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aventurar-se por este assunto terá de dispor de tempo livre para visitar estes arquivos e
bibliotecas, para consultar in loco os livros e documentos. Registre-se, contudo, que
algum alívio nesse sentido é dado pela internet, pois muitos documentos históricos já
são abertamente acessíveis na rede: os debates parlamentares da Câmara e do Senado
desde a Independência até o presente, por exemplo, já estão digitalizados nos sítios de
cada uma dessas casas,16 com boas ferramentas de consulta, sobretudo para períodos
mais recentes, quando a informação é mais organizada.

Uma boa quantidade de livros – entre eles alguns clássicos – é oferecida em sítios
brasileiros e estrangeiros de domínio público, como o Portal Domínio Público do
Ministério da Educação,17 o Gutenberg Project,18 um portal de base wiki com mais de
30.000 títulos disponíveis, ou o ainda a Online Books Page19 da Universidade da
Pensilvânia (EUA), além de ferramentas de busca específicas para livros on-line.20
Todos esses serviços permitem ainda a conveniência adicional de se realizar buscas
dentro do conteúdo da obra pelas ferramentas usuais de “localizar” de processadores de
texto ou navegadores de internet, facilitando assim a identificação de passagens
específicas de interesse. Por fim, quando o conteúdo do livro não for de domínio
público, restará sempre a opção, mais custosa mas que às vezes vale o investimento, de
se adquirir o livro, também com a ajuda da internet. Além de sítios de livrarias, que
possibilitam a compra de qualquer livro em catálogo em qualquer lugar do mundo, há
também boas opções de “sebos” (comércios de livros usados) na internet, tanto no
Brasil21 quanto no exterior,22 que possibilitam não só a compra de livros usados a bons
preços, mas também de livros atualmente fora de catálogo.

A estratégia de coleta de material, realização da pesquisa e escrita da monografia deve


ser pensada – e aqui se chega à última importante limitação de que convém falar – em
face das limitações de tempo do pesquisador: uma pesquisa, como qualquer projeto cuja
execução se protrai no tempo, deve ser concebida a partir de um cronograma e
executada de acordo com os seus prazos. O tempo de se ler todo o material inerente à

16
Respectivamente, http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp e
http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/AP_Apresentacao.asp
17
http://www.dominiopublico.gov.br
18
http://www.gutenberg.org
19
http://onlinebooks.library.upenn.edu/
20
http://books.google.com.br/
21
http://www.estantevirtual.com.br
22
http://www.abebooks.com

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QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Artigo Científico: Concepção, Temas, Métodos e Técnicas. BePress
Selected Works, 2011. Disponível em: http://works.bepress.com/rafaelmafei

pesquisa (bem como, evidentemente, o tempo de obtenção desse material, como no caso
de importação de livros ou consulta a arquivos e bibliotecas) deve ser computado a esse
cronograma.

Como todo o tempo para a realização de uma pesquisa sempre será justo, em função da
complexidade do trabalho de investigação e escrita de um artigo científico, convém que
o pesquisador restrinja, o quanto possível, o tema a ser pesquisado, de forma a torná-lo
plenamente “estudável” diante dos inerentes percalços de uma investigação. Temas
muito amplos tendem a levar a trabalhos impossíveis de serem executados em toda sua
plenitude, ou, o que é mais comum, a uma abordagem superficial e simplória do objeto
de estudos, o que não convém a uma investigação científica. Um exemplo: em trabalho
recente sobre direito sucessório de cônjuges e companheiros no Brasil, o autor
estabeleceu o seguinte escopo para seu trabalho de investigação:

Na medida do possível, analisar-se-ão todos os aspectos da legislação


brasileira sobre o tema, seja da legislação que vigorou, seja da legislação
meramente projetada, começando pelo direito português que vigorou no
Brasil durante todo o Império e até depois dele, passando pelas tentativas de
legislação brasileira do século XIX, pelo monumental Código Civil de 1916,
pelas suas modificações, feitas ou projetadas, até chegar no atual Código
Civil.23

Para além da observação de que “evolução do direito de sucessão de cônjuges e


companheiros” não é propriamente um tema de trabalho científico, mas sim um assunto,
o que importa aqui é registrar o quanto a amplitude do objeto do trabalho, tal qual
proposto pelo autor, torna difícil o aprofundamento da investigação a seu respeito: entre
projetos de legislação civil aprovados e não aprovados e todo o gigantesco volume de
discussões parlamentares e doutrinárias a seu respeito (que estão compreendidos dentro
de “todos os aspectos” da legislação, que o autor prometeu investigar), muito tempo e
leitura serão necessários para que se esgotem as fontes, se é que isso será possível.

Bem melhor é a estratégia de restringir o escopo de investigação àquilo que é


efetivamente fundamental para a resposta do tema-problema da pesquisa. Em outra tese
de doutoramento, voltada a responder à pergunta de quais são os elementos

23
CARVALHO NETO, Inácio Bernardino de. A evolução do direito sucessório do cônjuge e do
companheiro no Direito brasileiro: da necessidade de alteração do Código Civil. Tese de doutoramento.
Faculdade de Direito da USP. 2005.

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QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Artigo Científico: Concepção, Temas, Métodos e Técnicas. BePress
Selected Works, 2011. Disponível em: http://works.bepress.com/rafaelmafei

característicos da concessão no Direito Administrativo atual (notem como aqui,


diferentemente, há um tema-problema), a autora iniciou sua investigação por “uma
pesquisa realizada sobre a teoria jurídica brasileira que tratou da concessão dos anos 30
a 60 do século XX (chamada teoria clássica)”, visando a demonstrar que o esforço
doutrinário sobre a matéria estivera focado “na construção de argumentos e
classificações para afirmar a existência de prerrogativas públicas na relação concessória,
cuja natureza contratual foi amplamente aceita para viabilizar a prestação de serviços
públicos”.24 Note-se bem os dois recortes feitos pela autora nesta parte de sua pesquisa:
o estudo do histórico das concessões no Brasil sofreu um recorte de tempo (décadas de
1930 a 1960), e as fontes foram qualitativamente selecionadas (doutrina jurídica), em
face daquilo que é necessário para responder ao problema de pesquisa. Isso leva a um
objeto de estudos bastante mais controlável do que a opção anterior, permitindo à autora
saber a exata quantidade de material que terá de estudar (sua bibliografia tem não mais
de 10 itens dentro deste recorte) e garantindo a viabilidade de um planejamento
adequado à exaustão do tema, em toda a sua profundidade, dentro dos limites propostos.

24
MONTEIRO, Vera Cristina Caspari. A caracterização do contrato de concessão após a edição da lei
11.079/2004. Tese de doutoramento. Faculdade de Direito da USP. 2009.

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QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. Artigo Científico: Concepção, Temas, Métodos e Técnicas. BePress
Selected Works, 2011. Disponível em: http://works.bepress.com/rafaelmafei

QUADRO SINTÉTICO: O TEMA DO ARTIGO CIENTÍFICO

• O tema deve ser um problema, um objeto de dúvida, e não mera indicação de assunto.
Construa seu tema como uma pergunta, com ponto de interrogação!
• De um mesmo assunto, podem ser extraídos muitos temas-problema distintos, cada
qual ensejando uma pesquisa diferente.
• O tema deve ser relevante: procure informar-se sobre os debates acadêmicos atuais em
sua área de interesse, preferencialmente nos veículos de divulgação próprios da
comunidade acadêmica.
• A internet pode ser uma poderosa aliada, mas também uma traiçoeira arapuca: é preciso
ter critério ao buscar informações na rede.
• Escolha temas dentro de assuntos que lhe sejam familiares: trabalhos científicos não
são o momento de aprender coisas absolutamente novas.
• O tema deve também ser suficientemente restrito, de forma que o pesquisador tenha
tempo de pesquisar todas as fontes necessárias.
• Alguns temas e métodos demandam conhecimentos de línguas estrangeiras, que
deverão ser conhecidas pelo pesquisador que os escolher.
• Fontes de fácil acesso devem ser privilegiadas, e o tema da pesquisa deve ser definido
com isto em mente. Algumas fontes estão restritas a poucas bibliotecas ou a arquivos
públicos. É importante ter certeza de que se poderá ter pleno acesso às fontes
necessárias para a pesquisa.
• O tema deve ser suficientemente restrito, de forma que possa ser exaustivamente
pesquisado dentro das limitações de tempo do pesquisador. Recortar um tema amplo é
fundamental para a viabilidade da pesquisa.

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3. Alguns tipos possíveis de temas-problema

Estando claro que o primeiro passo na construção de um trabalho científico é evoluir de


um assunto interesse para um tema-problema, é preciso agora saber como prosseguir a
partir daí. Nesse mister, convém anotar que há diferentes tipos de temas-problema que
se pode extrair de um assunto, e que cada um deles deve ser trabalhado de uma maneira
particular – isto é, com uma metodologia própria. O pesquisador deve ter clareza a
respeito da natureza do tema-problema com que trabalhará, a fim de saber como tratá-lo
de forma adequada. Há ao menos três tipos diferentes de problemas de que uma
pesquisa científica pode ser ocupar: problemas descritivos e problemas propositivos. Os
principais traços de cada um são comentados a seguir.

3.1. Problemas descritivos: qual é o retrato de uma situação?

Os objetos de que podemos nos ocupar em um trabalho de pesquisa são geralmente


muito complexos quando vistos compreensivamente. Tome-se por exemplo um assunto
singelo como “contratos de adesão”. O que, exatamente, pesquisa alguém que estuda
contratos de adesão? Estudaria ele a posição dessa forma de contratos em face da teoria
contratual clássica, que preza pela autonomia da vontade do contratante? Ou seus
limites e restrições em face de um campo específico do direito, como o Direito do
Consumidor? Talvez estivesse preocupado apenas com os problemas jurídicos surgidos
em contratos de adesão dentro de uma atividade específica, com a bancária ou a de
serviços de saúde. Mesmo assim, poderíamos ser mais específicos: no caso de contratos
de adesão celebrados entre bancos e correntistas, o que exatamente ele estudaria? A
definição de taxas de juros? Neste caso, como ele estudaria este problema? Sabendo o
que diz a doutrina? Como se posicionam os tribunais? Talvez ele queira fazer uma
pesquisa de campo, como fazem os antropólogos, e verificar, na prática de uma
determinada agência bancária, que tipos de esclarecimentos os correntistas de fato
recebem quando assinam seus contratos, se é que os recebem, e se isso está de acordo
ou não com as boas práticas determinadas pela legislação consumerista. Ou, ainda,
talvez ele queira saber como este mesmo problema jurídico é tratado em outras
jurisdições. Finalmente, ele pode querer fazer um estudo interdisciplinar e avaliar qual é
o impacto econômico de uma dessas muitas coisas mencionadas. As possibilidades são
muitas, enfim, e tudo isso faz de qualquer instituto jurídico um objeto que, à primeira

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vista, é confuso de ser observar em sua totalidade (se é que a sua totalidade é
observável, tão complexa que é).

Descrever de forma organizada uma parte de realidades assim complexas é uma


possibilidade interessante para uma pesquisa científica. Esse tipo de tema-problema é o
que se chama aqui de problema descritivo: nele, o pesquisador quer oferecer um
retrato compreensível de fenômenos complexos, que ajudam a entender melhor as
particularidades neles envolvidas.

Tomemos um exemplo conhecido e esclarecedor: a questão da morosidade judicial.


Imaginemos que um pesquisador queira investigar o porquê de a justiça brasileira ser
tão lenta. Uma maneira ruim de fazê-lo será simplesmente desembestar-se a escrever
sobre “Da morosidade judicial”, dizendo que o problema é antigo, e vem desde a
Colônia, e que as suas causas são múltiplas, e que o sistema judicial é complexo e de
tudo pode-se agravar, mas que por outro lado há os princípios da ampla defesa e do
duplo grau de jurisdição, mas que um processo de duração razoável também é direito de
todos segundo Pacto de São José da Costa Rica, etc. etc. etc. Um trabalho assim não
diria nada de novo, e certamente não concluiria novidade alguma: provavelmente
exortaria as autoridades a fazerem reformas de toda sorte, que são urgentes e exigidas
pela boa Justiça! – assim mesmo, com maiúscula e exclamação ao final. Nada disso é
novidade e nada disso é relevante como problema de pesquisa. (Ao menos não da forma
apresentada aqui, que é caricata mas não é tão distante de muita coisa que se lê por aí.)
Se o primeiro teste para um bom trabalho científico é sua relevância e mínimo de
originalidade no trato do tema, um trabalho assim deve ser descartado de plano.

Para remediar esse estado de coisas, dever-se-ia começar buscando uma forma original
de abordar este velho problema. Uma possibilidade seria avaliar o desempenho
individual de juízes que trabalham sob as mesmas condições no que diz respeito à
celeridade com que julgam. Note-se bem: o problema original do pesquisador – “Por
que a justiça é lenta?” –, que era muito amplo e complexo, ficou agora mais simples e
instigante: “Há diferenças de desempenho, em termos de celeridade, entre juízes que
trabalham sob as mesmas condições materiais e processuais?”.25 Outro dado de se notar

25
Este é um dos problemas abordados pelo Projeto Meretíssimos, da ONG Transparência Brasil, de onde
se tirou a inspiração para este exemplo. O leitor poderá, com muito proveito, acessar os relatórios de
pesquisa do projeto em http://www.meritissimos.org.br/stf/index.php. Recomenda-se também a leitura

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aqui é que boa parte das fontes que normalmente usamos em pesquisas jurídicas não
serão úteis para responder a esta pergunta: o problema, da forma apresentado, não é um
problema de interpretação legal, nem de divergências doutrinárias. É um problema
fático: quanto demora cada juiz para julgar, e como posso explicar as eventuais
diferenças de desempenho entre eles? Pois bem, o pesquisador descobrirá rapidamente
que sua tarefa será identificar, dentro de um conjunto de julgados, a data de recebimento
de cada ação por um magistrado, a data de seu respectivo julgamento, medir o tempo de
sua duração e comparar os desempenhos de cada juiz. Por uma questão de facilidade no
acesso a informação, ele poderá restringir-se ao STF ou ao STJ, que oferecem essas
informações on line em seus sítios de internet. Poderá também medir os intervalos entre
diferentes etapas processuais (pedidos de vista, pedidos de informações, providências
administrativas internas da corte) e ensaiar algumas hipóteses explicativas mais
específicas sobre certas causas de demora pontuais, o que faria sua observação um tanto
mais interessante. Suas principais fontes de pesquisa, em uma investigação desse tipo,
seriam os extratos processuais disponíveis nessas páginas.

Um problema descritivo de pesquisa pode perfeitamente ter por objeto a dogmática


jurídica. Pesquisas assim simplesmente propõem-se a descrever qual é o estado da arte
da regulação jurídica de certo assunto ou problema, com vistas a facilitar a construção
de respostas jurídicas naquela matéria. São muito úteis quando o pesquisador se
interessa por temas cuja regulamentação jurídica está dispersa por diversas leis e áreas
do direito. Imaginemos, por exemplo, que alguém que se interesse por bioética queria
saber com precisão os termos e limites em que o ordenamento jurídico brasileiro tutela
o direito à vida. Sua pesquisa poderia ser um levantamento, feito em todo o
ordenamento, dos dispositivos legais que tutelam a vida (ou, ao contrário, permitem o
seu sacrifício) em qualquer etapa do seu desenvolvimento biológico: desde a
Constituição, que consagra o direito à vida mas permite a pena de morte em casos de
guerra declarada; até o Código Penal, que pune o homicídio mas permite descriminantes
e exculpantes em certas situações, como também o faz com o aborto; passando por toda
a legislação sobre pesquisas com células tronco embrionárias, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (que contém dispositivos sobre gestação e saúde fetal), além das leis e
instruções normativas que eventualmente disciplinem o cuidado médico e respeito à

das explicações metodológicas da pesquisa, que estão disponíveis em


http://www.meritissimos.org.br/stf/@metodo.php.

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autonomia de pacientes acometidos por doenças terminais, como o Estatuto de Ética


Médica. A depender da específica corrente filosófica a que se filie, poderá ser também
útil comparar a tutela jurídica das diversas formas de vida (humana, demais animais,
vegetais, biomas, ecossistemas) umas com as outras, e então a legislação a ser
pesquisada seria um tanto ampliada. A tarefa do pesquisador que se aventure por esse
campo será reconstruir as normas jurídicas que podem ser extraídas de toda essa
legislação, bem como o de organizá-la de forma ordenada, a partir das boas regras de
hermenêutica jurídica. Ao final, ele terá ajudado a esclarecer o disciplinamento jurídico
do importante conjunto de temas que tangem o seu trabalho.

3.2. Problemas propositivos: qual é a melhor resposta jurídica para um


problema?

Há outro tipo de tema-problema do qual trabalhos jurídicos normalmente se ocupam,


que podemos chamar de problemas propositivos: aqueles que, ao invés de meramente
retratarem o seu objeto de pesquisa, esforçam-se em oferecer uma resposta, bem
construída e bem fundamentada, sobre como o problema deve ser juridicamente
considerado, ou tratado, ou classificado, ou respondido. Chamamos este tipo de resposta
de normativa, pois ela se baseia não em regras causais de experiência natural, mas sim
em regras sociais (éticas, morais, jurídicas, econômicas) que nos dizem, com um viés
eminentemente prático,26 como devemos agir em face da situação-problema abordada.

A primeira coisa a ter em mente talvez seja óbvia, mas é demasiadamente importante
para não ser explicitada: respostas normativas sempre são dadas a partir de um critério,
um parâmetro, e no caso das respostas jurídicas, este parâmetro é dado pelas normas
jurídicas. Estas normas provêm principalmente do direito posto, que é aquele criado
pela atividade oficial do Estado através dos procedimentos legislativos aceitos na
prática jurídica de cada nação (aprovação bicameral no Congresso seguida de sanção
presidencial no Brasil; “Raínha no Parlamento” na Inglaterra; aprovação pelos Majlis e
aprovação pelo Conselho de Guardiões no Irã; etc.). O direito posto, antes de ser
aplicado a um caso concreto, tem de ser interpretado, e esta atividade interpretativa é
compartilhada por diversos atores jurídicos em uma dada comunidade: alguns o

26
SASTRE ARIZA, Santiago. “Para ver com mejor luz. Una aproximación al trabajo de la dogmática
jurídica”. In: C. COURTIS (org.), Observar la ley. Ensayos sobre metodología de la investigación
jurídica. Madrid: Trotta, 2006.

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interpretam oficialmente, como os juízes de direito; outros o interpretam com vistas às


atividades práticas do direito, como advogados e tabeliães; e outros ainda o fazem em
caráter mais acadêmico e menos comprometido com casos particulares, como os
chamados “juristas”. Todos estes profissionais, conjuntamente (uns mais, outros menos,
mas ainda assim conjuntamente) contribuem para a formação de um grande repositório
de regras que nos dirá, diante dos mais variados casos, como devemos entender o
regramento jurídico de uma dada situação e, assim, como devemos agir para “seguir o
direito” em diante dela. Podemos chamar este grande depositório de entendimentos
jurídicos coletivos de dogmática jurídica. Este contrato é válido? Como devo realizar
esta operação societária? Este tributo é constitucional? As respostas a estas perguntas
são dadas a partir da dogmática jurídica (dogmática civil, comercial, tributária) e
conhecê-las bem é aquilo que se espera de um bacharel em Direito. É este tipo de
conhecimento que dá valor social aos egressos das academias jurídicas.

Conforme opiniões particulares vão ganhando aceitação dos membros da comunidade


jurídica, elas ganham força normativa: tornam-se normas jurídicas cujo cumprimento é
revestido de grande expectativa social, por parte de todos os atores do sistema jurídico e
da comunidade em geral. Quando o Código de Defesa do Consumidor foi aprovado pelo
Congresso e sancionado pelo presidente, tendo tornado-se direito posto, algumas
dúvidas interpretativas surgiram a respeito de diversos dispositivos seus. Uma delas
dizia respeito à aplicabilidade, ou não, do CDC às atividades bancárias: muitos bancos
alegavam que sua atividade só poderia ser disciplinada por lei complementar, nos
termos da Constituição de 1988; entidades ligadas à defesa do consumidor, ao contrário,
diziam que a legislação ordinária bastava para regulamentar relações de consumo entre
bancos e correntistas. Formou-se grande debate jurídico que envolveu práticos do
direito (advogados, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores),
acadêmicos de diversas áreas, experts contratados como pareceristas por ambas as
partes, entidades de representação dos bancos e de defesa dos consumidores etc. Com o
passar do tempo, depuraram-se os argumentos e prevalece hoje a opinião, já
fundamentada pelo muito debate que a precedeu, de que o CDC aplica-se, sim, às
relações entre bancos e seus correntistas. O argumento contrário já é percebido como
juridicamente fraco, de pouca força normativa. Há, entre todos os envolvidos (bancos,
advogados, juristas, juízes e consumidores) uma firme expectativa de que os bancos
seguirão as normas de proteção ao consumidor porque elas lhes dizem respeito, e

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qualquer desvio nesse sentido poderá ensejar reprovação jurídica (multas, condenações
judiciais em ações individuais ou coletivas, etc.) e social (publicidade negativa, danos
reputacionais) à instituição violadora. Supondo, assim, que um banco estrangeiro queira
iniciar operações no Brasil e pergunte a seu corpo de advogados se o CDC será ou não
aplicável a suas atividades, a resposta terá de ser positiva. Tal resposta positiva terá por
fundamento uma interpretação da dogmática do Direito do Consumidor, nas linhas já
mencionadas, na qual se reconhece existir uma norma jurídica, interessubjetivamente
compartilhada pelos diversos operadores do direito, que manda aplicar a legislação
consumerista às relações entre bancos e seus clientes.

Pois bem, uma evidente possibilidade para um trabalho científico, seja ele um artigo,
uma monografia ou uma tese, será o de responder normativamente a uma pergunta de
caráter dogmático: tal coisa é permitida? proibida? obrigatória? quais são as
conseqüências jurídicas da violação à regra posta? tal operação é ou não uma compra e
venda, para fins tributários? esta outra operação é crime? é ilícito administrativo? Seria
ilícito civil? Todas estas perguntas, que são jurídicas no sentido mais estrito da palavra,
têm natureza dogmática (quem as faz quer saber como deve agir, à luz dos dogmas do
direito), e trabalhos acadêmicos podem muito bem se ocupar de lhes propor respostas
dogmaticamente fundamentadas. Podemos subdividir em dois grupos as pesquisas desse
tipo: pesquisas de lege lata e de lege ferenda.27

3.2.1. Pesquisas propostivistas de lege lata

Um primeiro tipo de investigação dogmática é a que pode ser chamada de lege lata. Em
latim, de lege lata significa “segundo a lei criada” ou “de acordo com a lei existente”.
Este tipo de pesquisa elege um problema interpretativo-jurídico como objeto, e busca
esclarecê-lo e oferecer a resposta que entende ser-lhe a melhor resposta jurídica,
considerando os dispositivos legais válidos para a matéria em questão. Sinteticamente,
podemos traçar um roteiro de cinco etapas para um trabalho científico que trabalhará
um problema de interpretação jurídica de lege lata:

27
A subdivisão a seguir é proposta em: COURTIS, Christian. “El juego de los juristas. Ensayo de
caracterización de la investigación dogmática. In: C. COURTIS (org.), Observar la ley. Ensayos sobre
metodología de la investigación jurídica. Madrid: Trotta, 2006. O conteúdo de cada uma das subdivisões
foi parcialmente tirado da proposta de Courtis, mas modificado quando se entendeu necessário.

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1. Identificação do problema interpretativo a ser tratado, com explicitação da


natureza do problema. Quer-se dizer com isto que nem todos os problemas
interpretativos são iguais. Algumas vezes, a dúvida interpretativa pode estar mais ou
menos restrita a um conceito ou palavra, como no caso de saber se aeronaves seriam ou
não “automóveis” para fins de pagamento do IPVA. Outras vezes, a legislação
propositadamente usa expressões de conteúdo mais aberto, como “de forma
proporcional” ou “conforme seja necessário e suficiente” – para não falar dos casos em
que há uso de vocabulário de cunho marcadamente filosófico, como “justiça”,
“dignidade”, “isonomia” etc.

Saber o tipo de problema interpretativo ajudará na identificação dos tipos de materiais


com que se precisará trabalhar, além do método apropriado para a pesquisa: um artigo
sobre o conceito de “automóvel” para fins do IPVA não precisará passar por Kant; já
um outro que tenha por tema o princípio da dignidade humana sob um viés filosófico
dificilmente poderá deixar de considerá-lo.

2. Seleção do conteúdo normativo relevante para a resposta à pergunta. Se a


matéria-prima desta espécie de trabalho são as normas jurídicas, entendidas como os
textos de direito posto e suas principais correntes interpretativas, é fundamental que,
após identificado o problema e sua natureza, o pesquisador identifique e separe os textos
legais e interpretativos que lhe sejam pertinentes. Assim, os diversos tipos de normas
jurídicas pertinentes ao tema (leis, decretos, súmulas), bem como suas principais
interpretações (correntes doutrinárias e jurisprudenciais, opiniões de jurisconsultos)
devem ser coletadas nesta segunda fase.

3. Precisar as respostas interpretativas rivais que têm sido propostas pelos


principais debatedores do tema. Esta terceira etapa consistiria, por assim dizer, em um
esmiuçar do estado da arte dos trabalhos dogmáticos já escritos sobre o assunto. Se
minha dúvida interpretativa é sobre, digamos, a revogação ou não da Lei de Usura pelo
artigo 406 Código Civil de 2002, preciso saber o que os juristas de referência no tema
têm dito a este respeito. Aqui, mais do que simplesmente elencar as diferentes posições,
há um exercício muito útil: tentar identificar qual é a questão de fundo sobre a qual
discordam os adversários do tema. Não vale dizer que é sobre a vigência ou não da Lei
de Usura, pois esta não é a questão de fundo, é a questão de frente. Existiria a dúvida,
por exemplo, porque a corrente pró-vigência exige revogação explícita da dita lei, em

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cumprimento ao que exige a Lei Complementar 95?28 Ou porque a corrente pró-


revogação identificaria a limitação às taxas de juros como uma intervenção já obsoleta
na autonomia privada?

Este método supõe que as divergências interpretativas sobre aspectos pontuais de textos
legais são como meras pontas de icebergs, que escondem divergências mais
substantivas que nem sempre aparecem explícitas. Ler textos dogmáticos “adversários”
buscando a questão subjacente é uma boa maneira de trabalhar divergências
interpretativas de forma mais convincente do que o simples “há quem diga A... por
outro lado, há quem diga B...”, de onde pouca coisa se pode efetivamente concluir.

Outro exemplo, insistindo neste mesmo ponto, que ajudará a esclarecer as coisas um
pouco mais. Tomemos o debate em torno dos programas de ação afirmativa no ensino
público superior - as impropriamente chamadas “políticas de quotas”. Há juristas
competentes, esclarecidos e bem intencionados que são a favor dessas políticas, como
há outros, com os mesmos predicados, que lhes são contrários. Sobre o que, afinal,
divergem essas pessoas? O debate em geral aparece na mídia como se girasse em torno
da existência ou não de raças, ou ainda da culpa das gerações presentes em relação aos
atos discriminatórios do passado, sempre temperadas, num caso e noutro, por
dispositivos constitucionais relativos à educação como direito de todos, ou ainda ao
princípio da igualdade. Mas será este mesmo o âmago da disputa? Será que algum
desses grandes juristas desconhece o estado da arte das pesquisas genéticas sobre raças,
ou nosso passado escravista, ou os dispositivos constitucionais em questão? É de se
duvidar. Haveria então algo mais profundo, e menos aparente, sobre o que discordam
partidários e opositores das políticas de ação afirmativa? Esta é uma boa forma de
começar a construir uma resposta dogmática para esta dúvida interpretativa. Será que
estes adversários concordam, por exemplo, sobre qual a natureza e propósito do ensino
superior, para fins de julgamento da (in)aceitabilidade das ações afirmativas? Como não
há vagas no ensino superior em número suficiente para todos os interessados, o debate
gira em torno da melhor forma de se distribuir um bem escasso, e fazer isso pressupõe
que saibamos qual é a natureza do bem que estamos distribuindo, pois isso influi
decisivamente na determinação dos critérios válidos para sua distribuição: se não

28
Lei Complementar 95/1998, art. 9º: “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis
ou disposições legais revogadas”.

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houver vinho de primeira linha em quantidade suficiente para todos os enófilos, posso
aumentar o preço da garrafa e vendê-lo apenas para os que pode pagar mais por ele, mas
este mesmo critério não será adequado para se determinar a forma de distribuição de
vacina de poliomielite infantil em caso de escassez. Voltando à educação superior, se eu
a enxergar como um mecanismo de integração e ascensão sociais, bem assim como
parte de uma política distributiva mais ampla, talvez eu me incline em favor dos
partidários das políticas de ação afirmativa; mas se eu a enxergar como parte de uma
política de desenvolvimento tecnológico de ponta, ao contrário, talvez eu não esteja
disposto a abrir mão dos candidatos mais bem preparados no presente, por mais que a
seleção de alunos por este critério aprofunde desigualdades sociais historicamente
construídas. Seria esta questão quanto à natureza do ensino superior a dúvida subjacente
à polêmica em questão, escondida por debaixo da ponta do iceberg? Admitindo que sim,
o pesquisador teria então de lhe buscar a resposta entre as normas jurídicas brasileiras:
que dizem as normas pertinentes que deve ser a função atribuída à educação pelo
Estado, para fins de resolução de conflitos jurídicos a seu respeito? Que diz a
Constituição? E a legislação infraconstitucional? Estas perguntas de fundo,
“descobertas” ou construídas pelo pesquisador, são, note-se bem, ótimos temas-
problemas para trabalhos dogmáticos. Note-se também que a questão posta nestes
termos abre outras portas até agora pouco aventadas: critérios de ação afirmativa são
igualmente (in)aceitáveis no ensino médio e no ensino superior? Na graduação e na pós-
graduação? Questões assim tratadas ganham novos horizontes com muita facilidade. É
por isso que certa quantidade de reflexão e pesquisa iniciais são necessárias antes de o
pesquisador estabelecer em caráter definitivo qual será o tema-problema de sua
pesquisa.

4. Encontrar o melhor critério a partir do qual é possível eleger uma “vencedora”


entre as diversas respostas rivais analisadas. Aqui, o pesquisador dará a sua resposta
para o problema jurídico que escolheu tratar. Sigamos com a questão das políticas de
ação afirmativa no ensino superior: se estipulo, por exemplo, que a questão de fundo diz
respeito à forma de alocação de um bem escasso (vagas no ensino superior gratuito)
com vistas à redução dos níveis de desigualdade, posso então decidir que a melhor
resposta será aquela que determinar a forma mais justa de alocação dessas vagas. O
critério que me permitiria escolher entre respostas rivais, caso seja esta a minha escolha,
seria uma teoria da justiça distributiva. Mas há outras opções: posso me convencer de

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que a verdadeira questão é não a maneira mais justa, mas sim a maneira mais eficiente,
do ponto de vista da geração social de riquezas, de alocação desses recursos sociais
escassos, por onde eu provavelmente desaguaria em alguma teoria de análise econômica
do direito. A escolha entre ambas é possível, e há juristas de primeiro time que optaram
por cada uma delas.

5. Conclusão. Apresenta-se, ao final, o resultado da análise da questão interpretativa à


luz do problema identificado considerado em face da matriz teórica escolhida para seu
tratamento. Este caminho permite a construção de uma opinião interpretativa bem
fundamentada, e explícita em seus critérios de escolha, o que lhe agrega valor um bom
valor metodológico.

QUADRO SINTÉTICO: ROTEIRO PARA PESQUISA DOGMÁTICA DE LEGE LATA

• Identificação do problema interpretativo, com especificação de sua natureza.


• Seleção do conteúdo normativo relevante.
• Identificação das respostas rivais ao caso, dadas pelos principais autores no tema.
• Explicitação do critério (matriz teórica) que permitirá escolher entre respostas rivais.
• Identificação da resposta escolhida, à luz do critério eleito.

3.2.2. Pesquisas propositivas de lege ferenda

“De lege ferenda” é uma expressão latina que significa “de encontro à lei”, ou “contra a
lei”. Pesquisas deste tipo não querem investigar uma dúvida interpretativa para um
problema jurídico, como fazem as de lege lata. Elas já partem de uma a resposta
dogmática estabelecida, mas com a qual não concordam; por isso, criticam a resposta
juridicamente válida e / ou propõem-lhe alterações.29

Em termos metodológicos, não há muita diferença substantiva entre este tipo de


pesquisa e as de lege lata: a questão passará pela identificação de um problema, a

29
“Bajo este rótulo [investigación de lege ferenda], considero las investigaciones dedicadas a la propuesta
de reformas o modificaciones del derecho positivo. La motivación de este tipo de investigación es la
insatisfacción del jurista com una regulación vigente em el derecho positivo – o com la ausência de
regulación de un determinado caso”. COURTIS, Christian, “El juego de los juristas...”, p. 125.

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avaliação de propostas alternativas de acordo com determinada matriz teórica, e


finalmente uma proposta de alteração.

O problema identificado pode dizer respeito à redação concreta de uma dada lei, ou
ainda à interpretação predominante de um dispositivo legal. Pode também dizer
respeito a um elemento de legislação antigo, que permaneça vigente mas esteja já em
desacordo com o contexto (político, econômico, social) do atual arranjo social. A idéia
será sempre mostrar que uma determinada parte da ordem normativa vigente,
considerada a redação com que está positivada e / ou o entendimento dominante a seu
respeito, é por alguma razão ruim ou insatisfatória e precisa de alteração. Campos
férteis para colheita deste tipo de problemas são as áreas da vida social em que houve
significativas mudanças de paradigmas, sem a devida atualização legislativa. Os direitos
civis dos casais homoafetivos são um exemplo. Outro exemplo atual vem de área
bastante diferente, o penal: faz sentido manter um estrito controle penal sobre a evasão
de divisas, como faz a Lei 7.492/86, elaborada em uma década econômica e
monetariamente tormentosa, se considerarmos a atual estabilidade financeira e a
plenitude de reservas cambiais que o Brasil hoje tem? Não seria o caso de se rever a
interpretação dos dispositivos legais pertinentes, ou mesmo de se lutar por sua
derrogação?

A etapa seguinte seria mostrar os argumentos que sugerem a inadequação da atual


regulamentação legal da situação-problema – argumentos econômicos, como no caso da
Lei 7.492/86, ou argumentos políticos (de teoria democrática), no dos direitos dos casais
homoafetivos –, bem como que apontem os rumos de uma desejada alteração das
normas que disciplinem a situação. Tudo isso partirá da matriz teórica com que a
questão for analisada: uma teoria da intervenção jurídica desejável por parte do Estado
na arena macroeconômica, ou uma teoria dos direitos fundamentais das minorias, em
cada um dos exemplos citados. A questão de fundo, conforme identificada pelo
pesquisador, indicará o tipo de teoria de que se necessita. Esta etapa é análoga à quarta
etapa da pesquisa de lege lata, descrita pouco atrás.

Finalmente, o artigo poderá indicar, a título de conclusão, e com base na mesma matriz
teórica, as alterações legislativas necessárias para um melhor tratamento jurídico da
situação problema.

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QUADRO SINTÉTICO: ROTEIRO PARA PESQUISA DOGMÁTICA DE LEGE FERENDA

• Identificação do problema legislativo, com especificação de sua natureza (mudança de


paradigma, efeitos indesejados da redação legislativa atual).
• Identificação critério (matriz teórica) que mostra a imperfeição do quadro normativo
vigente.
• Formulação de proposta alternativa, à luz do critério eleito.

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al do artigo científico.

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