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Não te matarás: suicídio, prevenção e psicanálise

Thou shall not kill thyself: suicide, prevention and psychoanalysis

Marcos Vinicius Brunhari1


Vinicius Anciães Darriba2

Palavras-chave
Suicídio, prevenção, psicanálise
Resumo
O artigo parte dos princípios que orientam a prevenção do suicídio, tomando por referência
o projeto da Organização Mundial da Saúde que se ocupa do tema. Destaca-se o fundamento
da vulnerabilidade e a consideração de que não se trata de ato voluntário. A partir de Freud
e Lacan, aponta-se que tal direcionamento para o tema reforça o não querer saber sobre a
causa, via correlata ao querer o bem do outro.
O suicídio caracteriza-se por ser alvo de não racional e não voluntário, determinando
abordagens e compreensões distintas tanto que aquele que comete suicídio raramente,
pelas ciências quanto pela filosofia e pelas ou nunca, quer morrer. A questão centra-se
religiões. É um fato que, muitas vezes único sobre essa visada, acrescentando que aque-
por ser fatal, se manifesta em formas dis- le que comete suicídio é apresentado como
tintas e é multifacetado pelas abordagens e vulnerável a tanto, a partir do que se estru-
compreensões que o exploram como objeto. tura a prática preventiva.
É um tema carregado de impacto e sobres- A vítima do suicídio deve ser protegida
salto e que comporta situações de dor e de de um algoz que não a habita. É por posicio-
sofrimento. Dessa forma, o suicídio torna-se nar aquele que comete suicídio como vítima
objeto de questionamentos e afirmações que que se abre a possibilidade de querer saber
o definem, caracterizam seu praticante e a como evitar que se acessem meios e que se
forma de seu ato. corram riscos. Entretanto, não se questiona a
A discussão trazida por este artigo é causa, não se quer saber disso. É nesse ponto
disposta a partir da abordagem dada ao que se localiza o impasse que permite uma
suicídio pelas práticas preventivas. Mais discussão com a Psicanálise. A partir das
especificamente, refere-se aqui às práticas afirmações de Sigmund Freud em seu tex-
em prevenção propostas pela Organização to “Mal-estar na civilização” (1930 [1929])
Mundial da Saúde (OMS), que têm um pro- em referência ao mandamento “Amarás teu
jeto especial com tal propósito. Este projeto, próximo como a ti mesmo” e à negação da
chamado SUPRE (Suicide Prevention), apre- agressividade que esse mandamento supõe,
senta avaliações de comportamento suicida inicia-se a discussão acerca do impedimento
e de fatores de risco. Consequentemente, o “Não te matarás” como negação da mesma
projeto delineia uma visão particular sobre agressividade. Será com Jacques Lacan, em
o suicídio e sobre aquele que o comete. A seu “Seminário, livro 7: a ética da psicanáli-
visão particular dessa forma de abordagem se” (1959-60), que esta negação será pensa-
permite compreender o suicídio como algo da como um recuo diante do gozo.

1 Psicólogo; mestrando em Psicologia na área de Psicologia Clínica da UFPR (Bolsista do programa Reuni);
participante do Laboratório de Psicanálise da UFPR.
2 Professor Adjunto e do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná; doutor em Teoria Psi-
canalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Não te matarás: suicídio, prevenção e psicanálise

Por fim, acompanhando a discussão tra- risco em um terço dos países. E, ainda se-
çada entre a descrição da prática em preven- gundo esses dados, os transtornos mentais
ção do suicídio e as proposições de Freud e são um importante fator de risco.
de Lacan, serão feitas considerações a res- O reconhecimento destes dados possibi-
peito do que se previne quando se nega a lita aos programas de incentivo à prevenção
dimensão na qual se supõe a destruição e o uma visada do suicídio como um complexo
que a Psicanálise acrescenta ao objetivo de que envolve fatores psicológicos, sociais, bio-
se tomar o suicídio e aquele que comete tal lógicos, culturais e ambientais. Sobretudo,
ato como dignos de interesse. “como um sério problema de saúde pública,
o suicídio nos demanda atenção” (WORLD
A PREVENÇÃO DO SUICÍDIO E HEALTH ORGANIZATION 2002, p.4). A
A VULNERABILIDADE COMO prevenção do suicídio pelo programa SU-
FUNDAMENTO PRE, iniciada em 1999, dá relevância à in-
formação e à conscientização. É sob a égide
No âmbito do Departamento de Saúde de um caráter epidemiológico que se encon-
Mental e Abuso de Substâncias, o proje- tra justificada essa preocupação. E é nesse
to designado SUPRE (Suicide Prevention) sentido que a prevenção da mortalidade e
é organizado em colaboração com outros da incidência do suicídio é objetivo dentro
grupos e departamentos da Organização de correntes psiquiátricas e psicológicas,
Mundial da Saúde (OMS). Sua meta é a pre- estendendo-se ao campo circunscrito da
venção de comportamentos suicidas, tendo suicidologia.
como objetivo geral reduzir a mortalidade e No ano de 2002, o projeto “SUPRE-
a morbidade devidas aos comportamentos MISS, multiside intervention study on sui-
suicidas. Objetiva-se, mais especificamente, cidal behaviors” (WORLD HEALTH OR-
a redução duradoura das taxas de suicídio. GANIZATION, 2002) foi lançado com
Procura-se identificar, avaliar e eliminar, em objetivos globais de redução da mortalida-
fases iniciais, na medida do possível, fatores de e da morbidade associadas ao suicídio.
que possam levar jovens a retirarem suas Não discriminando se o desfecho é fatal ou
próprias vidas. Busca-se ainda aumentar não, o foco está no comportamento suici-
o conhecimento sobre o suicídio e o apoio da. Este projeto compreende a avaliação de
àqueles que têm ideações, experiências ou estratégias de tratamento para tentativas
que são familiares e amigos próximos de de suicídio, uma pesquisa com pessoas que
pessoas que cometeram suicídio (WORLD apresentam comportamentos e ideações
HEALTH ORGANIZATION, 2002). suicidas e uma descrição dessa comunida-
SUPRE, portanto, é uma iniciativa mun- de com o objetivo de avaliar índices socio-
dial que visa à prevenção de comportamen- culturais. Neste documento são oferecidas
tos suicidas. A relevância de tal empresa as- instruções relativas aos instrumentos a se-
senta-se na proporção que o suicídio toma rem aplicados por um entrevistador. Com
a partir das estatísticas. A saber, segundo o objetivo de informar, identificar variáveis
dados da OMS, estima-se uma taxa mun- válidas e confiáveis para determinar fato-
dial de mortalidade por suicídio de um a res de risco, descrever padrões de compor-
cada quarenta segundos. Um aumento de tamento suicida e melhorar a eficiência de
sessenta por cento, nos últimos quarenta e serviços gerais de saúde, a aplicação dos
cinco anos, coloca o suicídio como a segun- instrumentos segue um método específico
da principal causa de morte no grupo etário de operação.
que vai dos dez aos vinte e quatro anos. En- Entre as etapas destacadas no instru-
tre os jovens do sexo masculino é o de maior mento, em um subprojeto é disposta uma

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breve intervenção para a prevenção do suicí- rer e não vê a morte como objetivo, mas a
dio (WORLD HEALTH ORGANIZATION, pessoa quer parar de viver ou ela quer dei-
2002, p.3) que se constitui em uma sessão de xar de ser consciente” (WORLD HEALTH
uma hora de informação individual. O con- ORGANIZATION, 2002, p.74). A propo-
teúdo da sessão assim é estabelecido: “com- sição de que a intenção vaga ou ambígua
portamento suicida como um sinal de sofri- significa que, na maioria dos casos, aquele
mento psicológico/social; fatores de risco; que comete suicídio não quer morrer e não
epidemiologia básica/repetição; alternati- vê a morte como objetivo começa a traçar
vas; contatos/referências”. Com objetivos es- uma visada bastante peculiar acerca do sui-
pecíficos de fornecer informações acerca de cídio.
comportamentos suicidas, fatores de risco e Seguindo pelas questões do anexo infor-
de proteção, enfrentar mitos, emitir parece- mativo, encontra-se como resposta à ques-
res e recomendações e motivar o paciente ao tão sobre o que leva uma pessoa a cometer
tratamento, essa sessão de informação tem ou a tentar suicídio, que “é difícil aceitar o
como fundamento algumas considerações suicídio como um ato racional” (WORLD
sobre o comportamento suicida. HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.77).
Antes de abordar esses fundamentos da Esta dificuldade tem como razão o fato de
prática preventiva, é importante salientar que “as pessoas não sabem como é a morte”,
que o projeto informa que o paciente pode de que “está além da capacidade do cérebro
fazer perguntas, mas as respostas devem ser humano entender conceitos como eternida-
curtas e “além disso, o profissional da saú- de e infinito”; donde se conclui que “o ato
de não deve transmitir a impressão de ter suicida é raramente, ou nunca, voluntário”
todas as respostas para cada problema. Isso (p.77). A dificuldade para aceitar o suicídio
facilmente transportaria o paciente para um como um ato racional, uma vez que não se
papel passivo. Acima de tudo, o paciente sabe o que é a morte, leva portanto a afirmar
não deve ter responsabilidade” (WORLD que raramente, ou nunca, o ato suicida seja
HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.72). um ato voluntário. O ato suicida, compre-
É fundamental destacar que, a priori, a res- endido como não racional e não voluntário,
ponsabilização não é relevante, visto que a permite que se descreva o suicida por carac-
abordagem se faz por uma via não judicati- terísticas como a presença de sentimentos
va. O fundamento dessa abordagem, na qual ambivalentes desde os quais “a pessoa sente
se sustentam as respostas que devem ser da- um desejo de fugir da dor de viver e sente
das pelo profissional, constitui um anexo do o desejo de viver ao mesmo tempo. Mui-
projeto. tas pessoas suicidas não querem realmente
Esse anexo, continente do conteúdo in- morrer” (WORLD HEALTH ORGANIZA-
formativo, organiza-se em torno de ques- TION, 2002, p.77).
tões pontuais. Para a questão sobre o que é Portanto, considerar o ato suicida como
comportamento suicida (WORLD HEAL- não racional e não voluntário e definir o sui-
TH ORGANIZATION, 2002), é destacada cida como uma pessoa que não quer morrer
a gama de pensamentos, tentativas e o sui- são dados básicos que sustentam a detecção
cídio consumado. Sobre o suicídio como e o gerenciamento de fatores de risco para a
ato consumado, afirma-se que a pessoa sa- prevenção do suicídio. Deriva desse pressu-
bia ou esperava o desfecho fatal. É por esse posto que a disponibilidade imediata de um
ato que a pessoa realiza mudanças deseja- método para cometer suicídio é um fator de
das, podendo a intenção, no entanto, ser risco e que “a redução do acesso aos meios
vaga ou ambígua. A conclusão é de “que na de cometer suicídio é uma estratégia eficaz
maioria dos casos a pessoa não quer mor- de prevenção do suicídio” (WORLD HE-

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ALTH ORGANIZATION, 2002, p.84). Por mal, eventualmente uma epidemia, algo a
supor que se é vulnerável ao suicídio, a pre- ser prevenido, evitado. No que se refere às
venção encontra na redução do acesso aos razões do ato, a ênfase está toda posta na
meios de cometer suicídio uma vantagem questão da vulnerabilidade. Do que decor-
para sua prática. É assim que se constrói a rem ações que visam diminuir tal vulnera-
compreensão do que o suicida é como aque- bilidade, inclusive em um sentido preten-
le que é vulnerável e que está exposto ao sui- samente objetivo: certos cuidados arquite-
cídio por intermédio do fácil acesso a armas tônicos ou a limitação de acessos a sites na
e produtos tóxicos, por exemplo. internet. Essa proteção configura-se como
Como problema de saúde pública, o sui- proteção a uma possível vítima do suicídio,
cídio é considerado um fenômeno complexo visto que a questão se toma deste lado, na
que não tem uma causa e uma razão singu- medida em que se postula que o sujeito da
lares. Isso não impede, no entanto, o esforço ação não queria morrer. Não se pode negar
descritivo, composto por avaliações e defi- que os argumentos que dão sustentação a
nições de fatores a partir da consideração esse ponto de vista são, como observado
de uma vulnerabilidade diante da exposição antes, de uma simplicidade quase inatacá-
do assunto e da proposição da redução do vel: por um lado, não se pode querer mor-
acesso a formas de cometer suicídio como rer pois não se tem uma representação da
estratégia de prevenção. morte; por outro lado, não se pode consi-
derar como uma ação voluntária, pois se
A PARTIR DA PSICANÁLISE, trata de situação em que não se afigurou
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE outra saída. Conclui-se que, a rigor, ele não
O SUICÍDIO E SUA PREVENÇÃO teria querido morrer.
Quando se afirma não haver outra saída,
É perceptível a ênfase no caráter de vul- entende-se saída para quê? Para a infelicida-
nerabilidade ao suicídio apresentada pelas de? Para a dor? São os termos que figuram,
descrições. A partir daí, a prevenção pro- mas que precisariam ser mais bem definidos.
cura o reconhecimento de práticas efetivas De início, se pensamos desde a perspectiva
de intervenção como redutoras da morta- da psicanálise, essa situação, que não oferece
lidade e da incidência de comportamentos outra saída, teria que ser reportada a uma
suicidas. Acompanhando a proposta da dimensão estrutural, na qual termos como
existência de uma vulnerabilidade ao sui- infelicidade, dor estariam mais bem articu-
cídio, vem a de que o suicídio não pode lados. A possibilidade de avançar nesta via,
ser considerado um ato racional. Embora no entanto, supõe um desejo de saber mais,
a pessoa saiba da consequência de seu ato não um desejo de saber mais sobre como
(a própria morte), não sabe o que é a mor- evitar, mas um desejo de saber que visa à
te. Como indicamos, é por essa perspectiva causa. O impasse se configura na medida em
de vulnerabilidade e de não conhecimento que, tomando-se como um equívoco, algo
sobre a morte que se afirma que o ato sui- de que se deve a partir de então ser mantido
cida não é voluntário, uma vez que outro afastado, a requisição é que se esqueça, de
caminho para a dor e a miséria não é visto. que não queira saber. Não se trata de desa-
Desde então se conclui que o suicida não bonar a prática preventiva, mas de avançar
quer morrer. na discussão, sustentando o impasse que se
Nesse campo, cuja designação por prá- delineia quando pensamos em que termos a
tica preventiva parece adequada, alguns psicanálise abordaria o tema.
fundamentos se destacam. O suicídio é Entre as discussões que podem derivar
tomado estritamente no registro de um dessas considerações elencadas com a fina-

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lidade de prevenir o suicídio, voltemo-nos mentos mútuos passa despercebida sobre a


para a involuntariedade associada ao ato. agressividade original daquele a quem a lei
Diante dessa, propomos o problema em manda amar e também daquele que é im-
uma estrutura sintática: se se é vulnerável pelido. Assim, “a lei não é capaz de deitar
ao suicídio e este não é voluntário, não é mão sobre as manifestações mais cautelo-
possível dizer ele se mata, pode-se dizer ele sas e refinadas da agressividade humana”
foi morto. A estrutura sintática dessas fra- (FREUD, 1930 [1929]/1996, p.117). No se-
ses deixa clara a mudança de posição da- minário sobre a ética da psicanálise, Lacan
quele que é agente e alvo de sua ação, de se volta para o modo como Freud se ocupa
seu verbo, e daquele que é passivo diante da desse mandamento que se enuncia como
ação. Por exercício lógico, se ele está morto o amor ao próximo. Propõe que o mal que
e se ele foi morto, conclui-se que ele foi as- habita o próximo revela, nada mais, que o
sassinado. Ao considerar que o suicida co- mal que nos habita e que “amá-lo como um
mete um assassinato, entramos no campo eu mesmo é, da mesma feita, ir adiante em
da semântica e encontramos a palavra “sui- alguma maldade” (LACAN, 1959-60/2008,
cídio” em estreita correlação a “homicídio”, p.237).
uma vez que aquela indica o assassinato de De modo hiperbólico, Lacan sustenta
si próprio. que nesse texto, O mal-estar na civilização
Considerar o suicídio como um assas- (1930 [1929]/1996), Freud trata, do início
sinato abre uma dimensão moral e ética. É ao fim, das articulações de tal mandamento,
com Agostinho (413-426/1996) que se cir- o qual o abisma em suas consequências. La-
cunscreve o ato de retirar a própria vida sob can convida-nos a restituir a vertigem que o
a égide do quinto mandamento: “Não mata- encaminhamento de Freud comporta. Pois,
rás”. Mandamento ao qual não se acrescen- nele, o mandamento de amar ao próximo se
ta a expressão ao próximo e que, diante da funda em o gozo comportar o mal do pró-
argumentação do bispo, “nem a outro nem a ximo. Neste veio identificado por Freud, o
ti próprio matarás pois quem a si próprio se sentido do amor ao próximo que dá a Lacan
mata, mata um homem” (p.158). Contudo, o que ele designa como uma direção ver-
salientamos a presença de um espaço entre dadeira, assim se escreve: “o que quero é o
conceber o suicídio como um assassinato de bem dos outros, contanto que permaneça à
si e propor que aquele que retira sua vida imagem do meu” (LACAN, 1959-60/2008,
não quer morrer. Há uma distância entre p.224). Querer o bem do outro é, portanto,
Agostinho e o que embasa a prática preven- não querer saber de um gozo que tem nele
tiva. É sobre esse ínterim que dispomos uma um modo próprio; gozo destrutivo, freudia-
interrogação e que recorremos a Freud e La- namente dizendo, por não promover a civi-
can para pensá-la. lização.
Se o mandamento “Não matarás” se re- Este modo próprio de gozo que eu temo
fere ao próximo, bem como a si próprio, e me esforço por desconhecer no outro, não
pode-se afirmar que não dirigir o rancor e se assenta também nisso a ação preventiva
a ira contra o próximo se dá de forma mais do suicídio? Não estaria aí em jogo uma ope-
expressa em outro mandamento: “Ama- ração de defesa que entrava o acesso a essa
rás a teu próximo como a ti mesmo”. Esse dimensão do gozo? Não é nessa dimensão
mandamento chama a atenção de Freud do gozo que se situaria o que não cede aos
diante de sua patente impossibilidade e da protocolos que pretendem evitar o cometi-
desvalorização do amor sob tal preceito. mento do ato suicida? Pois bem, o que se faz
É nessa medida que a função da civiliza- por amor ao próximo, pelo bem do outro,
ção, ou da cultura, de ajustar os relaciona- Lacan apresenta como uma via que pode se

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revelar cruel: quero o bem do outro à con- O primeiro caso é o que interessa, pois
dição de aniquilá-lo, visto que o bem faz nele Kant entende que, equacionando-se o
barreira ao desejo no sentido do não querer prazer da noite ao lado da dama com a mor-
saber daquilo que habita seu horizonte. Não te, a escolha é óbvia. O que Lacan propõe é
por acaso, de Freud a Lacan preconiza-se o que a noite com a dama seja passada da ru-
recuo diante do ‘Amarás teu próximo como brica prazer para a rubrica gozo. Nesse caso,
a ti mesmo’. No sentido contrário, o segundo o exemplo é contestado na medida em que o
pontua que “um repúdio radical de um certo gozo inclui a morte. Mais do que isso, nesses
ideal do bem é necessário para chegar ape- termos, a lei moral poderia servir, inclusi-
nas a apreender em que via se desenvolve ve, de apoio ao gozo. Como no exemplo de
nossa experiência” (LACAN, 1959-60/2008, Kant, essa é a dimensão forçosamente des-
p.274). considerada quando se toma o ato suicida
O problema do gozo, e da maldade que como um equívoco. A experiência analítica,
comporta, se apresenta em sua inacessi- sua direção ética é, então, com Lacan, a rei-
bilidade como uma satisfação pulsional. vindicação de que esta dimensão, de que isso
Abre-se, então, uma dimensão na estrutu- se inclua, de poder fazer com isso.
ra do campo analítico onde se projeta um A prevenção do suicídio desenha sua
para-além que é original da cadeia signifi- prática sobre o pressuposto de que o assassi-
cante. O mandamento de amar ao próximo no de si não decide voluntariamente por tal
como a si próprio é revelador dessa dimen- ação, sendo vulnerável e vítima do algoz que
são e, por isso, na perspectiva freudiana é não o habita, sobre o qual não tem respon-
apontado como destoante de um bem. O sabilidade. É imprescindível que a prática
domínio ético embalado por Freud e reto- preventiva do autoassassinato se componha
mado por Lacan desloca o bem do índice sobre tal premissa cuja essência repousa na
do prazer, afixando-o como uma barreira rejeição da agressividade mais íntima do ou-
que detém, mas que não deixa de apontar tro e no recuo diante do gozo nocivo?
a destruição.
Sem abandonar a visada ética, cabe ain- CONSIDERAÇÕES FINAIS
da elucidar que a associação do ato suicida
ao equívoco requer uma redução da expe- O que se evidencia com o exame das
riência. Isso se esclarece pelo comentário proposições que dão sustentação às práticas
preventivas concebidas pela OMS em seu
de Lacan (LACAN, 1959-60/2008, p.226)
projeto para a prevenção do suicídio (SU-
a um famoso exemplo kantiano. Neste, são
PRE), o qual tem dimensões globais, é que
contrapostas duas histórias: em uma delas,
o suicídio é um ato não racional e não vo-
o personagem está colocado na posição de
luntário. Assim, aquele que comete ou tenta
ser executado no final caso queira passar
suicídio não quer morrer. Tem-se uma víti-
uma noite com a dama que deseja; na outra,
ma, alguém que é vulnerável a cometer tal
a pena capital é a alternativa a prestar falso
ato. Tomando dessa maneira, a vítima deve
testemunho por solicitação de um déspota.
ser afastada dos riscos para os quais é vul-
Kant compara as duas histórias mostrando
nerável.
que, na primeira, o homem de bom senso
A inacessibilidade aos meios de come-
abre mão de passar a noite com a amada, ao
ter suicídio é tida como estratégia preven-
passo que, na segunda, em nome do impe-
tiva. É a partir dessa concepção que, neste
rativo categórico, reluta-se em prestar falso artigo, indica-se, sem desabonar a prática
testemunho, aceitando-se talvez a pena de preventiva e seus objetivos, que algo escapa
morte. a essa forma de compreensão. É na propor-

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ção em que o sobrevivente ou aquele que Keywords


consumou o ato são tidos como vítimas Suicide, prevention, psychoanalysis
vulneráveis, pois não querem morrer, que
se desprende o que aponta para a causa. A Abstract
prática preventiva se ocupa, muito perspi- The article discusses the principles which guide
cazmente, em saber como evitar que esse the prevention of suicide, taking as a reference
mal se alastre e faça mais vítimas em todo o the project of the World Health Organization
mundo. E é nesse ofício que a prática deixa that deals with the subject. Noteworthy are
escapar a causa do ato suicida, por negar the basis of vulnerability and the fact that it
que ali onde se nomeia uma vítima habita o is not a voluntary act. Based on Freud and
maior dos riscos. Lacan, it is noted that this approach to the
A psicanálise possibilita pensar isso theme reinforces the idea of not to wonder
que escapa à prevenção. É pelo repúdio de about the cause, a correlate way to wishing
Freud ao mandamento de amar o próximo others well.
que seguimos uma via. Nela, o mandamento
“Não matarás”, bem como “Não te matarás”
nega o mal que habita intimamente, sendo
incapaz de impedir sua existência. O bem
Referências
se encontra aí no máximo de sua função.
Uma via cruel, segundo Lacan, na qual o AGOSTINHO, S. (413-426), A cidade de Deus. 2. ed..
bem do outro supõe a supressão de sua al- Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. v.1, li-
teridade radical e que dispõe o bem como vro 1,cap.XX.
uma barreira para não se saber daquilo que WORLD HEALTH ORGANIZATION (2000). Pre-
está além. É nesse sentido que perfila a ideia venting suicide – A resource for primary health care
de que aquele que se mata não quer morrer. workers. Mental and behavioural disorders, Depart-
É uma ideia que funciona como lacre sobre ment of mental health, World Health Organization,
um ponto no qual apenas o sobrevivente Geneva. Disponível em:http://www.who.int/mental_
pode vir a dizer algo, mas que não se faz es- health/prevention/suicide/suicideprevent/en/index.
html. Acessado em 23/09/2010.
cutar. O sobrevivente é convidado a calar-se,
para seu próprio bem. WORLD HEALTH ORGANIZATION (2002). Mul-
A ideia que serve de lacre soterra o que tisite intervention study on suicidal behaviours – SU-
Lacan diz na televisão francesa: “se ninguém PRE-MISS: Protocol of SUPRE-MISS. Management of
mental and brain disorders, Department of mental
nada sabe sobre o suicídio é porque ele pro-
health and substance dependence, World Health Or-
cede do parti-pris de nada saber” (LACAN,
ganization, Geneva. Disponível em: http://www.who.
1993/1974, p.74). Reconhecer a falta de sa- int/mental_health/prevention/suicide/suicidepre-
ber como essencial localiza como desafio vent/en/index.html. Acessado em 23/09/2010.
para a psicanálise, e para seus praticantes,
FREUD, S. Mal-estar na civilização. [1930 [1929]].
não se furtar diante do tema do suicídio sem
In: _____. Edição standard brasileira das obras psi-
que se façam predições em forma de saber cológicas completas de Sigmund Freud.Trad. de Jayme
sobre algo que é vazio. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXI.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário, livro 7: a éti-
ca da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008.
LACAN, J. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993

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Tramitação
Recebido: 30.09.2010
Aprovado: 25.11.2010
Nome do autor principal:
Marcos Vinicius Brunhari
Endereço: Praça Santos Andrade, nº50,
Prédio Histórico, 1º andar, sala 115,
CEP: 80060-000. Curitiba - PR
E-mail: mvb_marcos@yahoo.com.br

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