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Múltiplas obrigações, múltiplas expectativas: lealdade, serviço, dever, e os

samurais do século XIV

Kauê Otávio1

Resumo: O século XIV no Japão foi marcado por intensa instabilidade política e por uma crise
de legitimidade de mais de meio século, onde dois centros de poder declaravam-se simultaneamente como
legítimos – o bakufu Ashikaga e a Corte do Sul em Yoshino. Neste contexto, senhores guerreiros
mudavam de lados na longa guerra civil de acordo com o que mais os favorecia. Este artigo busca
examinar até que ponto o topos da lealdade samurai era historicamente existente. Mais que isso, pretende-
se fazer um apanhado geral sobre as ideias que circulavam acerca da lealdade, especialmente nos
gunkimono e buke kakun, e traçar um paralelo entre essas ideias e a realidade histórica no medievo
japonês.

Palavras-chave: lealdade; samurais; medievo japonês; chūsetsu; bushidō

Quase sinônimo do Japão e sua história, especialmente para os leigos, os


samurais tomaram o imaginário popular e a cultura de massas ao longo dos séculos XX
e XXI. Assim como os cavaleiros, e atualmente, os vikings, eles correspondem a
fantasias de poder, e suas aventuras – reais ou imaginárias – entretêm a um amplo
público, para bem além das fronteiras de seu país de origem. Prova disso está na enorme
produção cinematográfica a seu respeito (especialmente clássicos como os de
Kurosawa, a citar apenas alguns, como Os Sete Samurais, de 1954, Kagemusha, de
1980 e Ran, de 1985), e também uma vasta produção em mangás e animes (quadrinhos
e animações japonesas). Fenômenos como o desenho Samurai Jack (lançado em 2001),
e os filmes O Último Samurai (2004)2 e Os 47 Ronins (2013) são prova de que o
Ocidente não só consome materiais vindos do Japão, mas produz suas próprias
releituras de tal fenômeno. Na literatura, temos exemplos recentes incontáveis, mas de
grande renome podemos citar Musashi (1935), de Eiji Yoshikawa, Shogun (1975) e
Gai-Jin (1993), do britânico James Clavell, e Bando de Pardais (2002), do nipo-
americano Takashi Matsuoka. Algo em comum em quase todas estas narrativas recentes
é o retrato do samurai como um guerreiro de lealdade inquestionável, bravura indômita
diante da morte, e que valoriza da honra acima de tudo. Tais topoi são parte do que
convencionou-se chamar de Bushidō, “O Caminho do Guerreiro”, e para além da figura
popular do samurai na cultura popular, estes ideais permeiam também as instituições de
artes marciais tradicionais, que acreditam seguir tais preceitos guerreiros de um passado

1 Graduando de História, membro do NEJAP (Núcleo de Estudos Japoneses), UFSC. Contato:


k.m.otavio@gmail.com. Website: http://nejap.paginas.ufsc.br/.
2 Como se constatará, é curioso o poder que Hollywood exerce sobre o mercado editorial. O ano de 2004 e os anos
imediatamente seguintes foram os mais prolíficos em obras sobre o tema.
distante, mesmo que adaptados para os tempos modernos, como fica evidente na obra
brasileira Shin Hagakure (2004), de Jorge Kishikawa, instrutor de Kenjutsu e fundador
do Instituto Nitten.
A verdade histórica, no entanto, é sempre mais turva e – para muitos – menos
satisfatória que as fantasias que buscamos criar e alimentar. O tal Bushidō, imortalizado
na obra de Nitobe Inazo3, mostra-se como um código formalmente estruturado da
conduta guerreira. Suas sete virtudes cardeais variam muito em tradução, mas exemplos
comuns incluem “Justiça”, “Coragem”, “Benevolência”, “Educação”, “Sinceridade”,
“Honra” e “Lealdade” (INSTITUTO NITEN, 2018), ou ainda “Retidão”, “Coragem”,
“Compaixão”, “Cortesia”, “Honestidade”, “Honra” e “Dever” (JAPÃO EM FOCO,
2018). Tais concepções foram solapadas por dois brilhantes estudos, um por G.
Cameron Hurst III (1990), e outro por Karl Friday (1994), ajudando a levar adiante um
revisionismo do ethos guerreiro, sua evolução e seus percalços. Apoiando-se em fontes
primárias de épocas diversas, tais historiadores, dentre outros, buscam construir uma
visão realista do fenômeno, não-fantasiosa e não-anacrônica. Dentre o enorme corpus
de documentos pertinentes podemos citar as inúmeras baladas de guerra
(gunkimonogatari), anedotas de guerreiros (setsuwa e otogi-zōshi), crônicas históricas
de tipos variados, e documentos do gênero buke kakun, cartas de personagens
proeminentes da classe guerreira legadas aos seus descendentes, com caráter instrutivo.
Deste último gênero, cito três, das quais farei uso no presente estudo: a Carta
Gokurakuji (séc. XIII), de Hōjō Shigetoki, a Carta Imagawa (começo do séc. XV), de
Imagawa Ryōshun, e os Vinte e Um Artigos para os Odawara Hōjō (séc. XVI), de Hōjō
Sōun, todos traduzidos na década de 1970 por Carl Steenstrup, sendo documentos de
cunho pedagógico, preocupados com a boa conduta dos guerreiros, especialmente
aqueles em posições de governança. Todos os três foram escritos por membros da elite
guerreira, e portanto, não devemos esperar que tais valores fossem rapidamente
adotados por guerreiros afastados do poder central. No entanto, assim como as obras
literárias de cunho heroico, estas cartas tiveram papel relevante como documentos
educativos durante o regime Tokugawa (sécs. XVII-XIX), e sem dúvidas serviram de
base para a formulação do ideário guerreiro em seu período de maturação, representado
por obras como Bushidō, de Daidoji Yuzan (1639-1730), e Hagakure, de Yamamoto
Tsunetomo (1659-1719), dentre muitas outras, ajudando portanto a formar a identidade
guerreira e seus ideais enquanto estamento.
Neste breve artigo, farei uma análise do conceito de lealdade, uma das mais
valorizadas virtudes guerreiras, especialmente no contexto do tumultuoso século XIV,
um dos momentos em que ela provavelmente esteve mais em xeque. Para tanto,
buscarei analisar como tal conceito é exprimido documentos diversos, contemporâneos
ou não. Também farei uso de episódios literários, embora nesse quesito seguirei quase
estritamente as considerações da brilhante obra de Paul Varley, Warriors of Japan as
3 Trata-se da obra “Bushido: The Soul of Japan”, lançada em 1900. Ver Inazo (2006).
Portrayed in the War Tales, que analisa a representação dos guerreiros na literatura
épica japonesa a fundo. Um paralelo entre os ideais de lealdade e a lealdade enquanto
materialmente expressa na realidade histórica também faz-se necessário, e o mesmo
portanto será esboçado. Conjuntamente, como ficará claro, a lealdade não é uma virtude
que possa ser vista em isolamento, mas faz parte de uma cadeia inquebrável de
preceitos, onde figuram a piedade filial, a honra, o dever, todas estritamente ligadas às
relações entre senhores e vassalos.

O Japão do Século XIV: um caótico contexto histórico


Após um século e meio de relativa estabilidade, onde salvo duas fracassadas
tentativas de invasão pelos mongóis (em 1274 e 1281) e alguns conflitos localizados, os
Hōjō foram capazes de se manter a frente do bakufu4 como mediadores e patronos
máximos dos guerreiros, o regime por eles encabeçado, e dirigido de sua capital em
Kamakura, teve um rápido e violento colapso. Em seu lugar, veio uma tentativa de
restauração do poder imperial direto e irrestrito pelas mãos do imperador Go-Daigo,
mas seu regime, fundado em 1333, não durou mais que três anos. Go-Daigo tinha
diversos problemas em mãos: desde 1274 o clã imperial estava dividido em duas linhas,
a Daikakuji (da qual fazia parte), e a rival Jimyōin, que por mediação do bakufu
passaram a alternar em sucessão. Era seu interesse ver o fim deste cisma. Fora isso, ele
precisava recompensar os soldados que o ajudaram a dar cabo do regime dos Hōjō, ao
mesmo tempo que precisava conter as investidas dos guerreiros às propriedades da
antiga aristocracia de Kyoto, necessária, a seu modo, para a legitimação do próprio
modo imperial de governar. Assim, não tardou para que um dos generais que o ajudaram
a derrubar o regime de Kamakura, Ashikaga Takauji, fundasse um novo bakufu,
declarando-se shōgun5 à revelia do Imperador, e instalando seu novo regime em Kyoto.
Os dois, todavia, não foram capazes de dividir o poder entre si, e seus desentendimentos
levaram o Japão a um período conhecido como Nambokuchō (1336-1392), ou “Período
das Cortes do Sul e do Norte”, onde Go-Daigo e seus descendentes mantiveram um
governo de exílio ao sul de Kyoto, em Yoshino, e Takauji e seus sucessores instalaram
na capital um imperador Jimyōin – talvez não mais que um fantoche político – como
forma de legitimar seu regime às custas do regime rival (SOUYRI, 2001, p. 110-120).
O regime dos Hōjō, que apesar de seu crescente despotismo nas últimas décadas
é hoje lembrado pela estabilidade, pela austeridade administrativa, e por seus avançados
códigos jurídicos, deu então lugar a uma guerra civil de mais de meio século. Findada
era a diarquia existente no período anterior, onde o bakufu e a Corte Imperial
governavam juntos o Japão, e findada era a relativa paz, onde guerreiros em disputa
resolviam boa parte de seus litígios nas cortes judiciais dos Hōjō. Agora, o campo de

4 Bakufu (幕府): literalmente “governo de tenda”, o órgão militar nascido em meados de 1185 para a chefia dos
samurais que futuramente viria a disputar o poder central com a corte imperial, e tornar-se governo nacional.
5 Shōgun (将軍): algo como “generalíssimo”, comissão militar antiga que no século XIII ganha conotação de líder
do bakufu.
batalha era uma vez mais o lugar propício para resolver disputas de terras, títulos e
jurisdições, e com a crise de legitimidade resultante de duas “autoridades máximas”
concorrentes, os guerreiros muitas vezes mudavam de lado quase de acordo com o
mudar dos ventos, conforme um ou outro lado os beneficiasse mais. É neste contexto
histórico que se desenvolverá o presente estudo.

Lealdade: expectativas e realidades


Já no século XVIII, no auge do período Tokugawa, Yamamoto Tsunetomo
declarou que o caminho do samurai se encontrava na morte (2004, p. 27), e que “Ser um
vassalo nada mais significa do [que] ser o defensor do seu senhor, deixando os assuntos
do bem e do mal para ele, e renunciando ao interesse próprio. Se existirem dois ou três
homens desse tipo, o feudo estará seguro” (TSUNETOMO, 2004, p. 31). Ele vai mais
além, no entanto, recomendando o seguinte: “Se uma pessoa colocar apenas seu mestre
como primeiro em importância, seus pais se regozijarão, e os deuses e os budas darão
seu consentimento” (TSUNETOMO, 2004, p. 35).
Curiosamente, Tsunetomo não estava sozinho dentre os defensores da lealdade
irrestrita, como podemos ver em um trecho de seu contemporâneo, Daidoji Yuzan: “um
samurai que presta seus serviços tem uma grande dívida para com o seu senhor e chega
a pensar que apenas com dificuldade poderá devolver o pagamento, exceto cometendo
junshi6 e seguindo-o até a morte” (YUZAN, 2004, p. 117).
No entanto, há um vão enorme entre estes homens do século XVIII e suas
contrapartes do século XIV, e uma enorme lacuna entre ideal e realidade. A lealdade,
como qualquer outro fenômeno, é também sujeita a toda uma evolução histórica, e por
mais que no campo dos ideais as afirmações de tais homens possam as vezes ostentar
grande semelhança a de seus distantes antecessores, a realidade histórica do fenômeno
da lealdade passou por mudanças profundas através dos séculos que separavam homens
como Yamamoto Tsunetomo e Daidoji Yuzan de homens como Hōjō Shigetoki e
Imagawa Ryōshun. Mais que isso, como veremos, a lealdade enquanto fenômeno
palpável estava sujeita às condições sociais, culturais, políticas, econômicas e militares
de seu tempo.
Comparemos o que foi dito acima ao que disse Hōjō Shigetoki, na sua Carta
Gokurakuji, no século XIII:

2. Quando servindo a seu senhor e estando em seu posto, não pense nos
assuntos de mais ninguém. Pense nos assuntos de seu senhor como sua maior
prioridade. Não negue a ele nada que você tiver de valor, muito menos sua
vida. Mesmo quando ele é descuidado e não o nota, lembre-se que sua
dedicação a ele irá, indubitavelmente, conquistar para você a proteção dos
deuses e budas. Tome ciência de que servir ao seu senhor é também um
exercício budista. Falhar em servi-lo fielmente, e ainda assim esperar por
receber seu favor é [tão impossível quanto] tentar cruzar um mar tempestuoso
sem um barco. (STEENSTRUP, 1977, p. 8)

6 Junshi (殉死): literalmente “seguir o mestre no túmulo”, prática que consistia em cometer suicídio após a morte
de seu senhor. Foi proibida durante o regime Tokugawa, mas continuou relativamente popular.
Hōjō Shigetoki (1198-1261), foi um importante membro do bakufu, chegando a
exercer a função de renshō7 entre os anos de 1247 a 1256 (STEENSTRUP, 1977, p. 3-
4). Sua família, os Hōjō, lideravam nominalmente o bakufu por conta de uma ligação de
casamento entre seu fundador, Minamoto no Yoritomo (1147-1199) com Hōjō Masako,
filha do então patriaca Hōjō. Dado seu baixo pedigree, os Hōjō contentaram-se com o
título de shikken, “regentes-shogunais”, enquanto a posição de shōgun tornava-se vazia
de poder, e ocupada por membros dos aristocratas Fujiwara e por príncipes da família
imperial8. Que sua justificativa no poder se dava pelo seu renome como hábeis
administradores era fato conhecido por Hōjō Shigetoki, e transparece claramente em sua
carta. O documento é ainda tomado por uma forte tônica budista, representativa, sem
dúvida, do período em que foi escrita: os anos finais de Shigetoki (entre 1256 e 1261),
que correspondem o período da aposentadoria – entrada para a vida monástica do autor
– até sua morte.
Deste modo, não é de se espantar que ele advogue a lealdade irrestrita. Afinal de
contas, se por um lado ele era um dos grandes representantes do establishment, por
outro, sua carta, legada aos seus filhos e todos seus descendentes futuros
(STEENSTRUP, 1977, p. 34), não deixa de lembrá-los que sua sorte também depende
da lealdade para com os líderes de seu clã. Em contraste com a segunda passagem de
Tsunetomo, no entanto, não podemos deixar de notar que a religião, para ele,
recompensaria um serviço leal. Por mais que Tsunetomo fale da satisfação dos budas e
divindades, a lealdade, para ele, era um fim por si só.
Adversamente, apesar de a estima de seu senhor ser importante para o sucesso,
isto não impede que Shigetoki recomende a conduta leal mesmo quando em prejuízo
próprio:

22. Se um dos seus companheiros vassalos for punido ou demitido por seu
senhor, você deve interceder em seu favor mais do que faria se tal problema
tivesse sido seu. Se o seu senhor dizer, “este homem agiu errado”, você deve
responder, “No entanto, ele tem boas qualidades.” Você pode contrariar seu
senhor neste momento, mas ele irá respeitá-lo no futuro. (STEENSTRUP,
1977, p. 13)

Implícito acima, o conceito de lealdade não pode ser disassociado do conceito de


serviço, e no caso dos guerreiros, especialmente do serviço em armas. O trabalho do
guerreiro é combater, isto é, “servir em armas” seu senhor. Afinal de contas, o próprio
termo samurai origina-se do verbo saburau, isto é, servir (VARLEY, 1994, p. 23). É,
deste modo, no cumprimento de suas obrigações que um guerreiro prova sua lealdade,
conforme fica claro no trecho a seguir:

87. Um guerreiro deve sempre pensar em suas obrigações. Valor marcial e


conhecer suas obrigações são como duas rodas de uma carroça. No que

7 Renshō (連署): “co-signatário”. Durante o regime dos Hōjō, servia de vice ao shikken.
8 Sobre a incrível trajetória política dos Hōjō e o estabelecimento e evolução do primeiro bakufu, ver capítulos 1 e
6 de Mass (1982).
concerne a conhecer suas obrigações, tenha isto em mente: um verdadeiro
guerreiro é um homem que, levando suas obrigações muito seriamente, não
compromete sua consciência mesmo que sua vida e linhagem estejam em
risco, nem vangloria-se de seus feitos. Um guerreiro que não conhece suas
obrigações mas ainda assim vence seus inimigos é um soldado bravo, mas
normal. Mas bravura e ciência de suas obrigações em igual proporção é o
melhor, da mesma forma que duas rodas numa carroça devem ser do mesmo
tamanho... (STEENSTRUP, 1977, p. 30)

Aqui é interessante notar que segundo Hōjō Shigetoki, a bravura em armas e o


senso de dever ou obrigação são dois lados de uma mesma moeda, ou, segundo sua
analogia, duas rodas de uma mesma carroça. Por “pensar em suas obrigações” e
“conhecer suas obrigações”, o autor quer dizer “estar ciente da dívida para com o seu
senhor”, “ser leal ao seu senhor”. A palavra “obrigação”, giri, é escrita com 義 理 ,
significando também “dever”, “senso de dever”, “honra”, “débito de gratidão”, ou
ainda, “obrigação social” (JISHO.ORG, 2018a). Vê-se, para além disso, que os
conceitos de “honra”, “dever/obrigação” e “lealdade” estavam intimamente ligados.
Que dizer, então, da representação dos guerreiros na literatura, da qual o gênero
mais importante para o tema abordado é o dos gunkimonogatari? De acordo com Varley,
a mudança de fidelidades e a deslealdade é comum até mesmo na literatura épica, no
entanto, “os contos são a principal fonte na história japonesa para o ideal de senhor e
vassalo” (VARLEY, 1994, p. 21). A lealdade do vassalo, de acordo com a literatura,
deriva e é indissociável do senso de on, ou obrigação, para com o seu senhor, pois como
declara Varley,

Se a sociedade guerreira é retratada nos contos de guerra como uma


sociedade de vergonha, ela também é uma sociedade de obrigação. Vassalos
incorrem em uma obrigação quase ilimitada para com seu senhor só por
serem seus vassalos e receberem sua suzerania – isto é, sua bondade,
generosidade, e zelo pessoal. O ideal kenshin demanda que um vassalo esteja
sempre preparado para pagar sua obrigação, embora a obrigação seja
comumente concebida como de magnitude tal que mesmo a própria morte
não é pagamento suficiente. (1994, p. 37)

Na literatura, portanto, a lealdade dos guerreiros dá-se em termo de kenshin,


“sacrifício pessoal absoluto”, e os guerreiros realmente heroicos são leais de forma
incondicional, nunca manchados por referências a ganho material e outras coisas desta
ordem. São os guerreiros menores, mesquinhos, que nos contos literários lutam por
promessas de recompensas. Por mais inviável que isto fosse em termos históricos,
Varley reconhece a força deste mito através dos tempos, e declara que mesmo nos
períodos de maior instabilidade, tais ideais continuaram imortalizados como a forma
pela qual um guerreiro deveria se portar (1994, p. 32-33).
A questão que cabe colocar no momento é o que motivava, na literatura, tal
lealdade e obrigação, senão as recompensas materiais? As respostas de Varley são
diversas: bravura em combate e aptidão no caminho do arco e cavalo, carisma,
generosidade, e zelo pessoal para com os vassalos (1994, p. 37), ao que podemos
acrescentar o fato de todos estes líderes serem homens de status incomparavelmente
superior, o que gerava por si só uma aura de admiração e respeitabilidade. Como lembra
Friday, afinal, já no período de formação dos samurais, as relações davam-se
majoritariamente de forma vertical, e a liderança caía quase sempre nas mãos de um
guerreiro cuja estirpe remontava à aristocracia da capital, geralmente à própria família
imperial (1992, p.88-91). Ele também nos diz o quanto impressionava aos guerreiros ver
um homem de alta estirpe distinguir-se nas artes da guerra, as suas artes (FRIDAY,
1992, p. 100). Nota-se, além disso, que a literatura representava as relações entre senhor
e vassalo como intimamente pessoais, fato exemplificado com louvor no trecho a
seguir:

Ōshu [Gosannen Ki] não foca-se tanto nas divinas habilidades de combate de
Yoshiie quanto em suas qualidades como um líder compassivo, sábio e
inspirador. Lemos no Ōshu, por exemplo, sobre Yoshiie aquecendo soldados
com seu próprio corpo durante os amargos invernos do norte na Guerra
Posterior dos Três Anos, mesmo revivendo alguns que aparentavam ter
morrido congelados. […] Tal conduta é outro exemplo de um tratar íntimo,
quase paterno para com os vassalos, que, de acordo com o ideal kenshin,
impôs um senso de obrigação tal aos vassalos que os inspirou a sacrificar-se
por completo no serviço a seu senhor. (VARLEY, 1994, p. 42)

Tal vínculo personalíssimo podia ter um fundo de verdade nos séculos X-XII, no
entanto, com o marchar dos séculos e o aumento dos corpos de vassalos fica cada vez
mais difícil acreditar em sua viabilidade. Independente disso, ele permanece forte como
imagem e ideal, assim como o paralelo entre senhor/vassalo e pai/filho:

O nexo de favor e obrigação pessoal que liga um senhor e um vassalo recebia


uma coloração particularmente íntima pelo costume de tratar a relação
senhor/vassalo em termos familiares: senhores concebidos como pais, e
vassalos como filhos. Em sua forma glorificada nos contos de guerra, a
lealdade vassálica é uma ética que guia o comportamento do vassalo em
serviço ao seu senhor de um modo que é, de fato, intensamente pessoal, como
o comportamento de um filho para com seu pai. (VARLEY, 1994, p. 37-38)

Tal paralelo também se faz presente no gênero buke kakun. Hōjō Shigetoki, por
exemplo, em diversos momentos coloca no mesmo nível o respeito e obediência devido
ao pai e ao senhor, incluindo também o sōryō – líder do clã – nesta tríade
(STEENSTRUP, 1977). Imagawa Ryōshun (1325-1420) coloca lealdade e piedade filial
no mesmo patamar quando diz que “Você [Nakaaki] permite-se esquecer da bondade
com a qual nosso pai e nosso senhor nos agraciaram; deste modo, você destrói os
princípios da lealdade e piedade filial” (STEENSTRUP, 1973, p. 302).
Como já visto num trecho acima por Hōjō Shigetoki, a lealdade ia ainda além do
serviço em armas. As recomendações dos buke kakun são inúmeras. Por exemplo, o
trecho a seguir é um guia de Hōjō Shigetoki sobre como viver cada estágio da vida,
formando um interessante paralelo com os dizeres de Confúcio nos Analectos (2011, p.
33)9. Embora não foque exclusivamente na lealdade, o serviço ao senhor é um ponto
importante em seu guia:

9 Trata-se da entrada 2.4. Possivelmente um dos trechos mais famosos dos Analectos, onde Confúcio reflete sobre o
que alcançou em cada um dos estágios de sua vida.
44. Um homem deve fazer certas coisas em certos estágios de sua vida. Ao
longo dos vinte, deve adquirir as habilidades e feitos à altura dos níveis
requeridos pela sociedade. Dos trinta aos cinquenta, deve servir ao seu
senhor, cuidar de seu povo, treinar seu caráter, desenvolver seu entendimento,
tentar ser honesto e humano, obedecer os Cinco Mandamentos em sua vida
privada, e promover os objetivos de uma sociedade ordeira...
(STEENSTRUP, 1977, p. 18)

Outros exemplos vêm de um outro Hōjō, Hōjō Sōun, em seus “21 Artigos para
os Odawara Hōjō”, escrito no século XVI. Na época de Sōun, a autoridade central dos
Ashikaga, assim como a corte imperial, estavam quase completamente exauridas de
poder. Poderosos locais começaram a emergir em todas as regiões do Japão e derrubar
os líderes guerreiros que os precederam, dando origem a um século de guerras civis
(SOUYRI, 2001, p. 166-170, 181-183, 202-209). Hōjō Sōun é um exemplo deste novo
tipo de guerreiro: homem de origens obscuras, foi capaz de tornar-se o líder de um
grande exército, tomar para si um grande território, e legar a seus descendentes uma
estrutura estável o suficiente para que pudesse ser expandida ao longo de quase um
século (STEENSTRUP, 1974, p. 283-286). Os laços que ligavam senhores e vassalos,
em seu tempo, eram muito mais dependentes da habilidade e carisma do senhor que do
status e cargos, e suas recomendações, na verdade, valem tanto para vassalos quanto
para senhores. Para Sōun, até a hora em que um samurai vai dormir e acorda são
importantes, e podem refletir em sua habilidade de servir apropriadamente a seu senhor
(STEENSTRUP, 1974, p. 289). Além disso, são inúmeras as menções que ele faz sobre
como portar-se perante seu senhor. Shigetoki, por sua vez, também dá recomendações
sobre o conselho ao senhor, etiqueta, e até mesmo sobre como despedir-se do mesmo
em viagem (STEENSTRUP, 1977, p. 21).
Se, no entanto, a literatura parece não cobrar do senhor mais que o zelo pessoal e
paterno a seus vassalos, a realidade histórica era diferente, e homens como Shigetoki,
Ryōshun e Sōun estavam cientes disso em suas recomendações. Hōjō Shigetoki, por
exemplo, recomenda não ser particularmente crítico com relação a quem se escolhe
como servo, advogando contra expectativas inatingíveis (STEENSTRUP, 1977, p. 25).
Em outra situação, fala que quando se é senhor de um determinado local, deve-se ser
cordial com todos (inclusive com camponeses), e recebê-los de acordo com seu status
(STEENSTRUP, 1977, p. 27). Ele ainda aconselha a nunca punir um servo enquanto se
está tomado pela raiva, mas fazê-lo posteriormente, após pesar seus méritos e deméritos
(STEENSTRUP, 1977, p. 14).
A Carta Imagawa é particularmente instrutiva sobre as obrigações de um senhor,
dado seu contexto de produção. Seu autor, Imagawa Ryōshun, serviu ao regime
Ashikaga em posições importantes, dentre elas a de Kyushu tandai, praticamente um
“vice-rei” para a região de Kyushu. No fim da vida, no entanto, sofreu revezes, sendo
exilado por conspirar contra o bakufu, mas posteriormente levou uma vida tranquila em
Kyoto, dedicando seus anos finais às artes e religião (STEENSTRUP, 1973, p. 297).
Nesta época, as cortes do Sul e do Norte já haviam sido unificadas, e o regime dos
Ashikaga estava em seu apogeu. A Carta Imagawa, redigida em 1412 ou alguns anos
antes, serve como admoestação a seu irmão mais novo e filho adotivo Nakaaki, sucessor
de alguns de seus títulos, exortando-o a corrigir suas falhas para o bem de seu clã
(STEENSTRUP, 1973, p. 297-298). É, de certa forma, quase um guia para a boa
conduta dos senhores.
Seus conselhos vêm, na verdade, primeiro em forma de acusações, com um
trecho posterior de comentários sobre o que foi dito. Dentre as acusações a Nakaaki,
ressalto as seguintes, pertinentes ao seu papel enquanto senhor: “I. Como você não
entende das Artes da Paz, suas habilidades nas Artes da Guerra não irão, no fim,
alcançar a vitória” (STEENSTRUP, 1973, p. 299), “(por “Artes da Paz” entende-se as
competências administrativas)” (STEENSTRUP, 1973, p. 306); “III. Você condenou à
morte ofensores menores sem julgamento” (STEENSTRUP, 1973, p. 301); “IV. Mas por
favoritismo, perdoou graves ofensores” (STEENSTRUP, 1973, p. 301); “VI. Em suas
ações, você ignora a lei moral ao evadir-se de seus deveres públicos e considerar seu
benefício privado em primeiro lugar” (STEENSTRUP, 1973, p. 301); “VIII. Você não
discrimina entre bom e mau comportamento de seus vassalos, mas os recompensa ou
pune sem justiça” (STEENSTRUP, 1973, p. 302); “XI. Você não entende a diferença de
status entre você mesmo e outros; algumas vezes, faz muito de outras pessoas, outras,
muito pouco” (STEENSTRUP, 1973, p. 303); “XII. Você não leva em consideração os
pontos de vista de outras pessoas; você as intimida e se apoia no uso da força”
(STEENSTRUP, 1973, p. 303); “XIII. Quando tomando decisões, você desdenha
vassalos sábios e favorece bajuladores” (STEENSTRUP, 1973, p. 303). Mais adiante,
sobre vassalos, ele faz a seguinte recomendação: “A coisa mais importante é certificar-
se se seus vassalos são leais ou não; além disto, é necessário recompensá-los de tempos
em tempos” (STEENSTRUP, 1973, p. 313).
Imagawa Ryōshun talvez fosse um homem mais pragmático, e mais ciente do
contexto histórico em que vivia. Durante o século XIII e XIV, a estrutura familiar dos
clãs samurais passou por grandes mudanças, tornando-se centralizada na figura dos
sōryō, líderes de clã. Quando a rebelião de Go-Daigo estourou em 1333, os clãs
samurais apresentaram-se como frentes unificadas, não mais dividindo familiares em
campos opostos, como era comum em eventos passados (por exemplo, a Guerra
Gempei, de 1180-1185). Por outro lado, conforme os clãs cresciam, ramos secundários
estabeleciam bases em terras distantes, e ao passar das gerações, tornavam-se
progressivamente independentes dos ramos principais. Estes ramos secundários, por sua
vez, as vezes formavam alianças e pactos com outros guerreiros de suas regiões,
formando organizações guerreiras em forma de cascata, onde o vassalo de um
determinado bando podia ter ele próprio um número de vassalos, e alguns dos seus
homens, por sua vez, também podiam possuir seguidores. Isso, no entanto, não
significava que os integrantes da base da pirâmide deviam lealdade direta aos
integrantes do topo: ela se dava em passos, cada homem devendo sua lealdade e serviço
ao seu superior imediato. O descompasso de poder entre diferentes estratos do
estamento guerreiro levou à formação de categorias sociais hereditárias, ficando os
guerreiros divididos entre os tōzama, samurais com grande número de posses e
dependentes, e por conta disso, autônomos, e os miuchi, samurais de poucas posses,
cuja prosperidade estava condicionada ao sucesso de seus senhores, que não deixavam
de agir como garantidores de seu bem-estar. Isso permitia que os tōzama tivessem muito
mais autonomia para escolher a quem seguir e contra quem lutar, enquanto os miuchi,
por seus laços de dependência material, permaneciam leais aos seus senhores diretos.
No entanto, conforme um tōzama aumentava em poder, o mesmo ocorria com seus
vassalos, gerando o risco de alguns destes tornarem-se poderosos o suficiente para agir
de maneira autônoma (FRIDAY, 2004, p. 59-60).
Os tōzama, autônomos como eram, lutavam por recompensas, e para que a
recompensa fosse grande o bastante para atrair um destes senhores junto de seu bando
de vassalos, o general que dependesse de seus serviços geralmente precisava contar com
apoio do poder central. Durante o meio século de cisma da corte imperial, a situação
tornou-se anárquica, com intensa competição entre o bakufu, legitimado pela corte do
Norte, e seus rivais na corte do Sul em Yoshino, ambos disputando o serviço dos tōzama
(FRIDAY, 2004, p. 60-61). Ciosos de sua dependência, os tōzama também recusavam-
se a servir sob a bandeira de um de seus pares, só aceitando submeter-se aos grandes
nomes de seu tempo, como os Ashikaga e seus ramos colaterais (CONLAN, 1997, p.
48-50). Para Thomas D. Conlan, o cerne da questão reside na interpretação correta do
termo que correspondia à lealdade, chūsetsu:
O termo chūsetsu – no geral definido como “lealdade” – aparece em uma
espantosa variedade de circunstâncias, a maioria das quais é apenas
tenuamente ligada à lealdade abstrata. Pode-se encontrar referências a kitō
chūsetsu, ou chūsetsu através de preces; chūsetsu para assuntos e festividades
religiosos; e até mesmo chūsetsu por administração idônea de um templo.
Guerreiros eram recompensados por “chūsetsu de batalha”, chūsetsu por
ferimentos, o chūsetsu de desmembrar um oponente, o chūsetsu de fazer
prisioneiros, o chūsetsu de comparecer a um acampamento, o chūsetsu de
causar a rendição de terceiros, o chūsetsu por desertar, e o chūsetsu por
construir um armazém de flechas.
[...]
Se chūsetsu é concebido como “lealdade”, então se assume que o serviço
militar era obrigatório; em outras palavras, um guerreiro era idealmente
obrigado a lutar por algum senhor, e falhar em fazê-lo constituiria traição. Se,
no entanto, entendermos chūsetsu como análogo a serviço, então a autonomia
daqueles que o prestarem deve ser tida como normativa; guerreiros que
prestavam chūsetsu não estavam submetidos a nenhuma obrigação
abrangente. Chūsetsu, previsto pelo recebimento de remuneração adequada,
constituía um compromisso estreitamente definido de lutar ou prover algum
outro serviço, que não pode ser igualado a obediência incondicional; em vez
de transcender o interesse pessoal, chūsetsu era sinônimo do mesmo. (1997,
p. 40-41)

A lealdade que um tōzama devia, portanto, era uma lealdade condicionada, uma
vez que chūsetsu era “menos uma abstração que uma descrição de serviços prestados”
(CONLAN, 1997, p. 41), ou se preferir, não uma dívida de serviço, mas o
reconhecimento por um serviço prestado. Como exemplo, Conlan cita as diferenças
entre as atitudes de Go-Daigo, imperador da corte do Sul, e o shōgun Ashikaga Takauji
no lidar com os tōzama, mostrando que enquanto Go-Daigo só recompensava guerreiros
que tomassem parte em batalha, Takauji recompensava-os separadamente por
apresentar-se ao campo de batalha e por lutar, declarando que desde o começo os
Ashikaga proviam compensações por uma variedade maior de serviços militares que
Go-Daigo, ao mesmo tempo que tinham expectativas mais baixas quanto à lealdade dos
tōzama (1997, p. 54). Quanto às recompensas em si, elas podiam variar entre posições
no governo, cargos administrativos nos shōen10, divisão dos espólios de campanha, ou
intercessão favorável em nome do vassalo perante os governadores provinciais, bakufu
ou outras autoridades (FRIDAY, 2004, p. 59). Curiosamente, Conlan afirma que para se
tornar um tōzama é preciso acumular terras e propriedades, mas para se tornar um
hegêmona, um “senhor de tōzamas”, por assim dizer, é necessário abrir mão delas
(1997, p. 53), por isso os únicos capazes de almejar a tais postos eram aqueles cujo
status e conexões permitiam o monopólio dos mecanismos de distribuição do Estado.
Quanto aos miuchi, que podiam servir a um senhor individualmente ou de modo
coletivo, em associações e ligas (tō e ikki), a lealdade estava condicionada à sua situação
econômica e aos parâmetros de comportamentos socialmente aceitáveis. Boa parte dos
miuchi eram vassalos hereditários, com longa tradição de serviço a um senhor e clã.
Diferentemente dos tōzama, que eram autônomos, os miuchi só podiam ser
recompensados diretamente por seu senhor, sendo vedada a recompensa por parte de
terceiros (CONLAN, 1997, p. 43-45). Não é de se espantar que sua lealdade fosse muito
mais segura, como mostra o seguinte exemplo:

O poderoso tōzama Utsunomiya Kintsuna juntou-se às forças de Ashikaga


Takauji após a derrota de Nitta Yoshisada, da Corte do Sul. Sem saber deste
fato, dois bandos de miuchi (tō) de guerreiros Utsunomiya, os Ki e os Sei,
marcharam com Kitabatake Akiie da Corte do Sul para a capital. Entretanto,
“quando ouviram que Utsunomiya [Kintsuna] havia juntado-se às forças [de
Ashikaga Takauji], eles todos retiraram-se [e] … foram para a Capital.” Estes
dois bandos de combatentes, após “galopar em direção ao seu senhor (shu no
moto),” construíram fortes e subsequentemente suportaram o peso da
ofensiva de Akiie. Miuchi seguiam seu senhor mesmo quando a escolha deste
envolvia grave sacrifício pessoal. (CONLAN, 1997, p. 43)

Para um miuchi, a rebelião – ou a simples desobediência – era muito mais


custosa. Ele precisaria não só lidar com a represália de seu senhor, geralmente muito
mais poderoso militarmente, como viver com o estigma da traição, que poderia
dificultar sua vida e serviço de inúmeras maneiras. Além disso, se tentasse se rebelar e
falhasse, deveria esperar punição severa, quem sabe completa aniquilação, posto que
seu comportamento transgredia os limites do socialmente aceitável (CONLAN, 1997, p.
43-44). Curiosamente, enquanto para os tōzama a obrigação era definida por chūsetsu, o
termo que definia as obrigações dos miuchi era gi, dever (CONLAN, 1997, p. 378, nota

10 Shōen ( 荘 園 ): senhorias privadas cujo direito aos seus rendimentos era partilhado em uma enorme cadeia de
relações. Costumavam ser grandes propriedades provinciais de posse de aristocratas ou grandes templos da
capital. Os samurais muitas vezes eram os administradores destas propriedades, com grandes poderes sobre tais
terras. Para o mais atualizado e abrangente estudo sobre o tópico, ver Goodwin & Piggott (2018).
14, referente à p. 43), mostrando que as expectativas sociais sobre eles eram totalmente
diferentes.
Caberia aqui uma breve análise dos termos utilizados para expressar lealdade, e
suas particularidades. Em primeiro lugar, Paul Varley pega emprestado o termo kenshin
de Watsuji Tetsurō, junto de sua definição de “sacrifício pessoal absoluto” para
classificar o ideal de lealdade imortalizado na literatura épica (1994, p. 32). Kenshin,
cujos ideogramas são 献 身 , pode significar mais comumente devoção ou dedicação
(JISHO.ORG, 2018b), enquanto separadamente, seus ideogramas representam
“apresentar, oferecer” – 献 (JISHO.ORG, 2018c) – e “pessoa” ou “fase da vida” – 身
(JISHO.ORG, 2018d), extrapolando para algo como “oferecer a si mesmo”. Trata-se
não de um termo em uso nas fontes, mas de um constructo de tipo ideal. Chūsetsu (忠
節 ), por sua vez, pode ser descrito como “lealdade”, “fidelidade”, “submissão”
(JISHO.ORG, 2018e), e como vimos pela análise de Conlan, tinha o significado
histórico estendido a algo como “lealdade por conta de um serviço prestado” ou
“lealdade na prestação de um determinado serviço”. Isoladamente, seus ideogramas
significam “lealdade, fidelidade” – 忠 (JISHO.ORG, 2018f) – e, dentre outras coisas,
“honra” e “integridade” – 節 (JISHO.ORG, 2018g). O termo utilizado na Carta
Imagawa para referir-se a lealdade é chū 忠(STEENSTRUP, 1973, p. 302, nota 64), do
qual deriva chūsetsu. Já as obrigações dos miuchi são definidas por gi (義), que pode ser
traduzido por “retidão”, “justiça”, “moralidade”, “honra” e “lealdade” (JISHO.ORG,
2018h), e que Conlan apresenta como “dever”. De gi (義) deriva giri (義理), que como
visto anteriormente neste artigo, tem o sentido de “dever” ou “obrigação”, “aquilo que
um guerreiro deve a seu senhor”, ou aquilo que motiva sua lealdade e serviço. Num
panorama tão complexo, não poderíamos esperar que a realidade histórica
correspondesse aos anseios de ideólogos.
Embora talvez não possa concordar com Karl Friday quando este declara que a
lealdade não era mais que uma commodity para os samurais, a ser vendida por
remuneração adequada, não há como discordar do que ele diz quando afirma que os
líderes guerreiros podiam contar com o serviço de seus vassalos contanto que fossem
capazes de atraí-los com recompensas ou impor sanções e punições em caso de recusa
ou desobediência (2004, p.59-61).
Uma nota interessante diz respeito ao conceito de honra dos samurais, tão
famoso quanto o de lealdade. Em primeiro lugar, Friday deixa claro que sua honra
estava ligada muito mais à capacidade de garantir vitória que a quaisquer preceitos
morais que possamos ver hoje como honrados, mas vai além disso quando afirma que a
honra, e seu par, a vergonha, eram as coisas mais importantes na vida de um samurai, e
podiam tomar precedência sobre todas as suas outras obrigações, podendo levá-los a
recusar ordens de seus superiores ou até mesmo assassiná-los (2004, p. 137). Por isso a
cortesia, incluindo a boa fala e etiqueta, eram tão importantes dentre os samurais: eram
formas seguras de evitar ofensas à honra. Conclui-se assim que a honra e lealdade
podiam estar alinhadas, no caso de a reputação de um samurai depender de vitórias
militares em nome de seu senhor, por exemplo, mas também podiam estar em completa
discordância. Para inverter a importância entre honra e lealdade, e eliminar quase de um
todo a lealdade condicional e restrita, seria preciso esperar até os séculos XVI e XVII,
quando os samurais foram paulatinamente sendo desligados da terra por seus senhores e
tornados estipendiários, totalmente dependentes das benesses concedidas por estes11, e
quando os Tokugawa restabeleceram o governo central e passaram a fornecer uma única
fonte de autoridade legítima final, pondo fim às guerras civis.

Conclusão: A lealdade em uma perspectiva histórica


A lealdade, como todo conceito, é marcada por particularidades no tempo e
espaço. No caso japonês, como pudemos ver, os conceitos medievais de lealdade eram
tão diversos que um samurai do século XIV poderia achar uma absurda afronta as
palavras de um compatriota do século XVIII tal qual Yamamoto Tsunetomo, quando
este diz que “se tivéssemos que dizer em poucas palavras o que é ser um samurai, a base
de tudo seria a devoção total do corpo e da alma a nosso mestre.” (2004, p. 88). Não que
nos tempos de Tsunetomo todos os samurais fossem invariavelmente leais até a morte,
mas sem dúvidas, até mesmo por questões materiais, estes eram muito mais fortemente
ligados a seus senhores que suas contrapartes do século XIV. Mais que isso, as
diferenças entre ideal e realidade impediriam os pragmáticos de levarem a sério até
mesmo os ideólogos de seu próprio tempo. Ainda assim, a semente dos valores pregados
por ideólogos como Tsunetomo já germinava bem antes do século XIV, seja na literatura
épica (os ditos gunkimono) e outras formas de arte, seja nas obras de ideólogos
anteriores, como é o caso de Hōjō Shigetoki e Imagawa Ryōshun.
À guisa da conclusão, fica claro que a lealdade no século XIV era parte de um
pacto bilateral, onde ambos os integrantes tinham partes a cumprir, e que as variantes
deste pacto eram múltiplas, da forte dependência dos miuchi à lealdade condicional,
voluntária, restrita dos tōzama. Ela também era condicionada por fatores sócio-
econômicos, como a posse de terras ou status social.
Sem dúvidas este breve artigo deu apenas apontamentos iniciais para uma real
investigação do tema. Possibilidades futuras incluem estudos sobre as mudanças nos
conceitos de lealdade em uma perspectiva temporal mais ampla, e uma exploração mais
profunda de intersecções como lealdade e serviço, dever, cortesia, etiqueta, status,
reciprocidade, ou ainda, uma análise criteriosa das influências diversas presentes em
todo este ideário, sobretudo o confucionismo, mas também o budismo, daoísmo,
legalismo, shintō e outras possíveis fontes nativas. Um estudo num viés de “história dos
conceitos” para investigar tanto o campo semântico acerca da lealdade como a
etimologia e historicidade destes termos mais a fundo seria um ótimo futuro passo. Para

11 A questão da desvinculação dos samurais à terra e sua transposição para as cidades casteleiras, com a
consequência de tornarem-se uma classe estipendiária, é abordada extensivamente em Birt (1985).
fazer jus a todas estas demandas, estudos muito mais amplos e aprofundados fazem-se
necessários, e muito teriam a acrescentar no entendimento das relações sociais entre os
guerreiros.

Referências

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