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A dessexualização dos orixás: ou a morte branca do feiticeiro negro

Chapter · January 2006

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Avimar Ferreira Junior


Universidade Federal da Bahia
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Universidade Católica de Goiás
Centro Afro-brasileiro de Estudos e Extensão

A dessexualização dos orixás:


ou a morte branca do feiticeiro negro
Autor: Avimar Ferreira Júnior

Artigo apresentado ao concurso “Negros na


Sociedade e na Cultura Brasileira”, promovido
pelo Centro Afro-brasileiro de Estudos e
Extensão.
Orientadora: Prof.ª Drª Delza Maria Ferreira
de Araújo

Goiânia
Maio de 2004
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O ocidente cristão nunca “transou” bem as questões referentes à sexualidade. Desde o


pecado original, o sexo e o conhecimento sexual sempre foram expressões de pecado,
decadência e do diabo, ao contrário dos povos orientais e africanos – inclusive na Roma
antiga –, que tinham uma relação menos “complicada” com o sexo.
Berger e Luckman dizem que
“o desfecho histórico de todo choque entre deuses foi determinado por aqueles
que impunham as melhores armas e não por aqueles que possuíam os melhores
argumentos”. Assim, nas situações de culturas em contato, as concepções
divergentes tendem a ser incorporadas, liquidadas ou segregadas (1985, p. 148,
apud Ferreti, 1995, p. 17)
Assim, o presente artigo visa entender os processos de dessexualização dos Orixás,
principalmente em umbanda, a partir dos meados do século passado, e as vicissitudes desta
para os cultos afro-brasileiros, bem como para o povo negro e, em especial, para Exú, o
mais humano, mal entendido e marginalizado dos Orixás, que de mensageiro dos Orixás e
compadre dos humanos, passou a ser sincretizado com o diabo judaico-cristão –
catolicismo – ou espírito inferior, pouco evoluído – kardecismo.

Os cultos aos orixás


O que costumou ser chamado de candomblé é, na verdade, uma generalização dos
vários ritos dedicados aos vários deuses africanos, provenientes das mais variadas regiões
da África, trazidos ao Brasil durante o período escravista. Assim, estão sobre uma mesma
denominação ritos Nagôs, Jeje, Banto, Ketu, Mina, etc. Faremos, aqui, então, um apanhado
geral, não nos detendo em uma tradição especifica, até porque essas tradições no Brasil
estão muito próximas, apesar de manterem suas especificidades.
Ao fazermos um estudo antropológico e histórico dos cultos africanos, devemos ter em
mente que na África mãe, o próprio conceito de tempo e história, como o entendemos, não
se aplica. O tempo africano é mais lento, regido pelas chuvas, sem a contagem dos anos,
séculos e idades. É o tempo típico do pré-capitalismo, onde a divisão social do trabalho
ainda é inexistente. É o tempo da narrativa, no sentido benjaminiano. As relações sociais
ainda se dão pelo contato e não pelo contrato social, como o serão a partir da modernidade.
Assim, os cultos africanos seguiam as estações da natureza para organizar as suas
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festas e ritos, sendo cada orixá ligado a um atributo da natureza, tendo personalidades
distintas. Assim, Ogum, o jovem oboró – orixá masculino – senhor do ferro, rei de Togo,
era tido como guerreiro, impulsivo, mulherengo. Já Exú, senhor do dendê, do fogo e do ogó
– o pênis –, era tomado também como impulsivo, mulherengo, porém ardiloso, inteligente e
brincalhão, sendo tomado por Bastide (2001) e seus informantes como um trickster, tal qual
loki, o deus nórdico, um pregador de peças. Entre as iabás – orixás femininos – Iemanjá,
muito cultuada tanto pela umbanda como pelo candomblé, é a senhora das águas salgadas,
vaidosa, sensual, amante exigente e guerreira – Iemanjá Ogunté –. Iansã – mulher búfala –
senhora dos raios e tempestades, não é tão vaidosa quanto Iemanjá, pois é chegada mais a
batalha, a disputa, assim como Ogum – um de seus vários maridos e amantes. As
coreografias de suas danças rituais, refletem essas características: rápidas e encenando uma
luta, no caso de Ogum – assim como no de Iansã e Obá –, sensual e feminina, como no caso
de Oxun, alegres como no caso de Ibeji – os orixás crianças. Se uma Oba e uma Iansã estão
incorporadas, as duas simulam uma luta entre si – repetindo o conflito que ambas viveram
nos mitos.
Outra característica dos cultos africanos é a relação direta dos orixás com os fiéis, em
que cada homem e mulher nascem regidos por um ou vários orixás, legando-lhes
características físicas e psicológicas, influenciando-lhes diretamente o ori – cabeça – e seu
odú – caminho, destino –. Os féis são arrebatados pelos seus eledás – pais de cabeça, seus
pais espirituais, orixás de frente – que vem ao ilê axé – casa da força, local de culto – para
dançar e compartilhar com seus protegidos, durante os xirês – festa publica do candomblé –
. Assim, os deuses interagem diretamente com os fiéis, seja a partir da incorporação, seja
através dos búzios, Opelê Ifá ou orobôs – jogos de adivinhação, onde quem responde é
Exú, o mensageiro dos orixás, aquele que intermedia a comunicação entre os orixás e os
humanos.
Contudo, nos cultos aos orixás, pode-se perceber as relações de gênero já posta, ou
seja, homens e mulheres têm seus lugares bem definidos, apesar desse limite não ser rígido,
muito pelo contrário. Augras (2000) demonstra a força que os orixás femininos – iabás –
tinham na África, sendo não apenas respeitadas como também temidas, chegando a ser tabu
a pronúncia de alguns de seus nomes – como o das Iyá mi Oxorongas, por exemplo. Diz a
autora que o Gèlèdè, festival ocorrido entre março e maio, antes do começo das chuvas, tem
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por objetivo reverenciar as mães ancestrais para que o campo possa ser fecundado com
êxito. Assim, durante o Gèlèdè,
a comunidade masculina abdica de suas prerrogativas de homens (dançam
vestidos de mulher) para agradarem totalmente as mães ancestrais (...) Há uma
grande licença verbal. Adultos e crianças falam livremente dos enormes pêlos, da
imensa vulva da Iami” (...) Vale dizer: o poder da mãe é tão terrível, que só pode
ser evocado pela sátira ou pela mascarada. Afirmar sua realidade implica a
desvalorização do poder masculino. (Augras, 2000, p. 19)
É o retorno ao útero original, ao indiferenciado, a simbiose mãe-bebê, à ausência de
limites e da linguagem. E isso, tanto para homens como para as mulheres, é assustador. Lá,
o sujeito não nasceu, não individualizou-se, muito menos individuou-se, é ainda o desejo da
mãe e não sujeito desejante, como disse Lacan (1985) no seu seminário “Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise”. Contudo, esse medo não é apenas dos africanos,
mas sim de toda humanidade, mais evidente em sociedades patriarcais. Um outro exemplo
é a cultura Greco-Romana, na figura das fúrias, deusas ancestrais que defendem a
importância das mulheres na cultura.
Augras, no entanto, vai ressaltar que somente quando os poderes feminino e masculino
atuam em comum acordo é que o sexo pode assumir a sua posição correta. Explico. A
autora vai citar Waldeloir Rego,
que conta uma história do odu Òsá Meji que conta como Iyá Mapo, a “Mãe da
Vagina”, recorreu aos bons ofícios de Iyá mi Oxorongá – que constitui um dos
aspectos mais aterradores da Grande Mãe –, para colocar o sexo “no devido lugar
na mulher”. Várias partes do corpo tinham sido experimentadas como localização
da vagina, mas todas se revelaram inconvenientes. Foi Exú que, mediante ebó
“feito com duas bananas e um pote”, acertou o lugar definitivo, “bem como o do
pênis do homem, do qual Exú é o dono”.
É, então, Exú quem vai acertar o sexo dos humanos e dos orixás, sendo a ele oferecidos
ebós – oferendas mágicas – para que a vida sexual de homens e mulheres sejam
satisfatórias. Aliás, é Exú o que propicia o nascimento dos humanos, uma vez que sem
sexo, a cegonha não chega. Assim, enquanto Exú é o sexo, o coito, é Oxum quem gesta,
cuidando das crianças até a idade dos sete anos, quando Iemanjá assume enquanto Iya Ori,
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Mãe das cabeças.


Mesmo assim, e a despeito de todo poder que no Brasil foram investidos e exercidos
por grandes ialorixas, como Mãe Menininha, Olga de Alaketu, Mãe Senhora, Estela de
Oxossi, os cultos afro-brasileiros são pautados no patriarcado. Isso é especialmente
verdadeiro no culto do Babá Egun, na ilha de Itaparica, na Bahia, onde as mulheres não
participam dos rituais internos, restrito aos homens iniciados em seus cultos. Outros
exemplos podem ser dado: somente homens podem ser Ogãs – pessoas iniciadas mas que
não “rodam no santo”, incorporam – responsáveis pela matança dos animais nos rituais,
pelo toque dos atabaques, pela abertura dos búzios usados na adivinhação, etc. As mulheres
exercem outros papeis importantes na hierarquia do Ilê Axé, como cozinheiras – Iya Kekerê
–, Iyá Cotas – mães criadeiras dos filhos da casa durante o período de iniciação –, Iyá Ebé –
título de grande importância no culto dos Eguns – e, principalmente, de Iyalorixá – mãe de
santo, ou numa tradução mais rigorosa, Zeladora de Santo, responsável pela iniciação dos
abyians – não iniciados – no culto dos orixás, tornando-se voduncis. O correlato masculino
de Iyalorixa é o Babalorixá.

A umbanda, o kardecismo e a urbis


Nos mais de 400 anos de escravidão no Brasil os negros, proibidos de exercer
livremente sua religião, refugiaram-se no sincretismo religioso, onde santos católicos foram
ligados aos orixás africanos. Reza a lenda que os negros colocavam os santos católicos em
cima das mesas e embaixo, as oferendas aos orixás. Assim, Xangô foi sincretizado com São
João Batista, Oxalá com Jeová e Exú, sem uma representação direta no panteão católico, foi
injustamente ligado ao diabo.
Começa ai, o processo de embranquecimento do negro, projeto esse em curso, até hoje.
Com o advento da lei áurea, os cultos africanos continuaram não apenas proibidos
como também perseguidos. Legados a sua sorte, sem um projeto político de integração
destes a nova realidade – a dita liberdade – os negros foram expulsos das senzalas e
segregados as favelas, nas periferias das cidades. Fundaram os Ilê axé, as casas da força de
seus orixás, locais de culto aos seus antepassados, porém, ainda, em segredo, pois a polícia,
descobrindo, violavam seus espaços sagrados, batendo nos fiéis e prendendo os seus
sacerdotes. Jorge Amado, em seus vários romances – Tereza Batista cansada de guerra,
Jubiabá, Tenda dos Milagres, entre outros –, relata belamente esse período trágico da
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história brasileira.
Apesar da umbanda ter seu início datado de 15 de novembro de 1908 – tendo no
fluminense Zélio de Morais tomado por seu fundador –, é a partir da década de 50, quando
o Brasil passou pelo processo de urbanização acelerado, com o esvaziamento do campo e o
inchaço das cidades, fazendo com que a periferia – e o negro e sua religiosidade – fosse
integrada a urbis. Nesse contexto histórico, surge e desenvolve-se a umbanda, expressão
religiosa eminentemente urbana, fruto do sincretismo entre o catolicismo, o kardecismo, o
candomblé e o catimbó.
Contudo, devemos nos deter aqui, por um instante, para analisarmos as contingências
nas quais o nascimento da umbanda se dá.
Roger Bastide, foi um dos primeiros a perceber a importância da umbanda cuja
inserção entre a população branca e urbana foi tida como sintoma da desarticulação da
religiosidade tradicional africana, típica do candomblé, em função do ambiente urbano e
industrial. Espaço esse típico da modernidade, do capitalismo e do desencantamento do
mundo, no sentido weberiano.
Nesse sentido, disse Isaia (s.d.) que é muito sintomático que a fundação da umbanda se
dê no aniversário da ainda engatinhante república brasileira. O autor cita Diamantino
Trindade, que contextualiza o surgimento da umbanda:
Gradativamente, as Entidades integrantes da Corrente Astral da Umbanda
(governo da Terra, segundo o autor) foram, através de seus médiuns, lançando as
bases do Movimento Umbandista, que numa primeira fase, visa abarcar o maior
número de pessoas, no menor espaço de tempo possível. O final do século XIX é
marcado no Brasil por um grande balanço social devido a libertação dos escravos e
a instauração da República, uma forma mais justa de governo que iniciava sua
peregrinação no Brasil. A Corrente Astral de Umbanda aproveita esta reviravolta
social e, por volta de 1889, lança o vocábulo Umbanda em vários pontos do país.
A essa altura o mediunismo já invadira os cultos deturpados e miscigenados
entre os indígenas e os escravos africanos (Trindade, 1991, p. 54, apud Isaia,
s.d.)
Assim, a umbanda surge imbuída dos ideais iluministas da modernidade: desde à
libertação dos escravos, como no projeto político republicano, até o racionalismo-cientifico
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pregado pelo cristianismo kardecista.


Nesse sentido, faz-se primorosa a citação de Aluízio Fontenelle sobre qual é o projeto
de umbanda que estava em curso com Zélio de Morais, sendo este egresso do kardecismo.
Leiamos:
...não a essa Umbanda mistificada e misturada com os diversos credos
fetichistas hoje conhecida no Brasil inteiro. Será uma Umbanda codificada,
uma Umbanda pura, na qual se aproveitará de todas as religiões existentes na
terra somente aquilo que for sublime e perfeito(...)Quanto aos praticantes dos
candomblés e aos que praticam a magia negra, estes serão devidamente orientados
e instruídos em novas práticas, abandonando por completo os rituais bárbaros que
os identificam. O Espiritismo na Lei de Umbanda em sua nova fase, surgirá
com o progresso do mundo; novos horizontes nos serão apresentados e o
mundo marchará de fronte erguida na direção do aperfeiçoamento universal.
(Fontenelle, 1953, p. 76, apud Isaia, s.d.)
A umbanda, assim, é regida por uma estética urbana – moderna e civilizada –
afastando-se, por completo, das praticas africanas – rurais, tradicionais e primitivas –, e
assim “lançavam seu interdito às práticas ‘em completo contraste com a evolução moral,
material e espiritual’ da vida moderna”, até porque são "impraticáveis entre nós porque não
se coadunavam com nossos foros de civilização” (Freitas, apud Isaia, s.d.)
Nesse sentido, Emanuel Zespo pronuncia-se:
...suas práticas de religião primitiva estão incompatíveis com o mundo atual;
e, sua subsistência em nosso meio só seria possível mediante uma modernização e
adaptação no ritual externo. Não estamos mais em condições de sacrificar galos
vermelhos a Exu e largá-los na primeira encruzilhada de um centro urbano. Tal
rito, no mato, não estaria fora de ambiente, mas em plena Avenida Rio Branco...
isto não é mais exeqüível. Os próprios orixás não aceitam estas violências de rito
primitivo. (Zespo, 1951, pp. 53-54, apud Isaia, s.d.)
Para sobreviver num mundo tecnocrata, moderno e cristão, o negro pagão teria que
ceder a urbis, à branquitude.
Martha Justina, durante o primeiro congresso brasileiro de espiritismo de umbanda,
disse no tocante aos ritos africanos na umbanda que:
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Isto no Brasil já dista de mais de meio século; e como nada estaciona no


mundo, obedecendo à lei imutável do Criador, a Lei de Umbanda também segue
seu curso evolutivo, saindo das grotas, das furnas, das matas, abandonando os
anciões alquebrados, fugindo dos ignorantes, quebrando as lanças mãos dos
perversos, vem nessa vertigem louca de progresso, infiltrando-se nas cidades
para receber o banho de luz da civilização, e em troca nos oferece a sua
utilidade que não é mais do que suas obras de Caridade praticadas pelos espíritos
que formam as grandes falanges dos africanos, digo, os que tiveram por berço
material a África; eles trabalham no grande laboratório de Universo, manipulando
os fortes remédios para curar as terríveis enfermidades da humanidade. (apud
Isaia, s.d.)
Ainda no mesmo congresso, Diamantino Fernandes fala sobre a África. Leiamos:
Morta, porém, a antiga civilização africana, após o cataclismo que destruiu a
Lemúria, empobrecida e desprestigiada a raça negra, - segundo algumas opiniões,
devido à sua desmedida prepotência no passado, em que chegou a escravizar uma
boa parte da raça branca - os vários cultos e pompas religiosas daqueles povos
sofreram então os efeitos do embrutecimento da raça, vindo, de degrau em degrau,
até ao nível em que a Umbanda se nos tornou conhecida. Desde, porém, que
estudiosos da doutrina de Jesus se dedicaram a pesquisar os fundamentos desta
grande filosofia, que é, ao mesmo tempo, luz, amor e verdade, e a praticam hoje,
sincera e devotadamente em sua alta finalidade de congregar, educar e encaminhar
as almas para Deus, o Espiritismo de Umbanda readquiriu o seu prestígio milenar,
assim como o acatamento e respeito das autoridades brasileiras...(apud Isaia, s.d.)
Interessante notar que a umbanda só adquiriu o respeito das autoridades a partir da sua
cristianização, de seu embranquecimento, ou, nas palavras de Augras (2000), de sua
pasteurização.
Isaia (s.d.) vai tecer alguns comentários sobre o pensamento de kardec, porém,
inexplicavelmente, ou propositalmente, ele o deixou as citações em francês. Ato falho?
Impossível dizer, mas leiamos o trecho.
Sobre esse assunto referiu-se especificamente a "Revue Spirite", resumindo a
doutrina kardecista, em artigo que tratava sobre a raça negra e sua pretensa
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inferioridade: se a raça negra "est vouée par Dieu à une éternelle inferiorité", a
consequência seria pura e simplesmente aceitar a impossibilidade de "civilizar" os
negros, de ajudá-los a trilhar um processo evolutivo inexistente, o que equivaleria
a aceitar "qu’il faut se borner à faire du nègre une sorte d’animal domestique." O
artigo em questão enfoca o lugar dos negros frente ao ocidente, concluindo que, se
a situação vivida pelos mesmos denotava um "inferior modo de vida" em relação
aos "civilizados", isso não era decorrência de uma inferioridade imanente. Apenas
era sintoma de seu devir evolutivo, trazendo os negros, igualmente, a
potencialidade ao progresso e ao aperfeiçoamento.
O papel dos povos "civilizados" em relação aos negros seria, portanto, o de
levar-lhes as "luzes" do aperfeiçoamento moral, auxiliar-lhes a trilhar o seu plano
evolutivo. À população branca, "qui a donné peuvres de la supériorité de sa
intelligence" era destinado um trabalho educador por excelência, "libertando" os
negros dos "maus hábitos", que, caracterizando seu "inferior" estágio evolutivo,
granjeavam-lhes cada vez mais dívidas kármicas, dificultando seu progresso.
Ato falho ou não, o importante é que fica clara a posição superior dos brancos sobre os
negros, legando a estes o papel de retirar os negros de sua ignorância espiritual, fazendo-
lhes ascender ética, estética e moralmente.
Esse é o projeto umbandista iniciado por Zélio de Morais: a criação de uma nova
religião onde os negros e índios, assim como aqueles que não conhecessem a verdade da
evolução, pudessem prestar a caridade, o amor e os bons costumes cristãos.

Umbanda e dessexualização dos orixás


Um dos efeitos mais óbvios e imediatos da cristianização e urbanização da umbanda
foi a dessexualização dos orixás. Ora, santos não podem ser sexuados, principalmente as
santas, representações de Maria, mãe de Cristo.
Assim, Augras (2000), em seu belo texto, mostra como ao ser identificada com a
Imaculada Conceição, Iemanjá foi paulatinamente perdendo suas características de mulher
sexuada e, inclusive, de negra – hoje a imagem mais conhecida como a mulher branca, de
longos cabelos, toda vestida, mas com vestido colado, como que índice de uma
sensualidade e sexualidade existente, apesar de recalcada –. E, por outro lado, a autora
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mostra, também, como a umbanda cria a Pomba-Gira, o Exú feminino, como que o
negativo de Iemanjá: a ultima é a representante da mãe caridosa, da mulher da casa, digna,
enquanto a primeira é a representação da prostituta, da mulher da rua, da vulgaridade,
porém poderosa, desejada e temida.
Nesse sentido, é interessante notar que na África ancestral, não existe o Exú mulher,
sendo esta uma criação tipicamente brasileira, datada do século passado. Pomba-gira é
derivada do Bombogira, o equivalente a Exú na nação Congo.
O mesmo ocorre com a dupla Oxalá – Exú. De acordo com Bastide (2001), a umbanda
coloca Oxalá e Exú em oposição, como se estes fossem o principio do bem e do mal, que na
África não se dava, até porque o candomblé não conhece esse maniqueísmo, sincretizando
erroneamente, assim, Exú com o diabo cristão e Oxalá com Jeová – se é que existe
sincretismo certo.
No tocante a sexualidade de Oxalá, este é representado como um velho, Oxalufã,
bonzinho – quando sincretizado com Jeová – ou como um homem jovem, Oxaguiã –
quando sincretizado com Jesus Cristro –, ambos dessexualizados, e sempre, assim como
com Iemanjá, representados por imagens católicas, logo brancos, vestidos dos pés a cabeça,
em nada lembrando os orixás sensuais e mulherengos dos mitos. Tanto Oxalufã quanto
Oxaguiã foram amantes de quase todas as iabás e seus mitos estão repletos de romances e
estratagemas para conquistar amantes, como na lenda em que Oxalufã se veste de mulher
para poder entrar no reino de Nanã, onde nenhum homem entrar, e assim pode seduzi-la.
Como conseqüência, até hoje usa saias.
Um outro mito que a umbanda fez questão de esquecer é aquele que envolve Ossanhã –
orixá dono das folhas – e Oxossi – sincretizado com São Sebastião e São Jorge, muito
cultuado em umbanda – e que diz da relação amorosa entre eles. No tocante a
homossexualidade, em entrevista, Luiz Mott, Doutor em Antropologia e Presidente do
Movimento Gay da Bahia, diz que
Logun-Edé e Oxumaré são "transexuais" ou "hermafroditas sociais",
incorporando ao longo do ano, os dois sexos. O próprio Oxalá também participa
desta dualidade, pois segundo alguns mitos yorubás, reúne em si o lado masculino
e feminino. Aliás, como muitos outros deuses antigos. Iansã é mulher-macho,
veste calça e tem cavanhaque, além de ser forte e poderosa "como um homem".
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Oxóssi, caçador, consta em alguns mitos antigos que manteve relação amorosa e
sexual com o orixá das folhas, Ossaim ou Ossanha. (Mott, s.d.)
Na mesma entrevista, quando perguntado sobre a identificação dos homossexuais com
o candomblé, responde Mott que
Os gays estão presentes em todas religiões, mesmo nas mais homofóbicas.
Não é segredo para ninguém o batalhão de homossexuais na Igreja Católica e em
número menor nas Protestantes: como porém o cristianismo condena o amor entre
pessoas do mesmo sexo, tudo acontece de baixo do pano, na hipocrisia. Há
estimativas de que 40% do clero católico brasileiro é homossexual. O número alto
de padres com Aids e padres gays assassinados comprova a veracidade desta
presença. Quanto à presença maior de gays e lésbicas no candomblé se explica por
ser uma religião que não interfere na vida sexual de seus adeptos (não há noção
explícita de virtude e pecado, muito menos a condenação dos pecados contra a
castidade); há Orixás que têm vida sexual bastante irregular de acordo com os
padrões oficiais de nossa cultura sexual (Iemanjá casou-se com o irmão e foi
violentada por seu próprio filho de quem teve outro filho); há Orixás que são
transexuais, isto é, mudam de sexo, como Logun-Edé e Oxumaré, que uma metade
do ano são homens, a outra metade, mulher. (Mott, s.d.)
A umbanda, ao contrário do candomblé, justamente por se pretender cristã, assim como
o kardecismo, possuem uma tolerância bem menor para com os homossexuais e, por isso
mesmo, esquecendo ou escondendo os mitos que tratam da homossexualidade.

Exú e a volta do recalcado


Diz-nos Batisde (2001) que Exú não é um orixá semelhante aos outros e, por isso
mesmo, “devemos estuda-lo à parte” (p. 161)
Contudo, ao longo deste artigo, Exú apareceu em cada tópico por mim levantado,
decorrente das funções e importância deste orixá. No dizer de Bastide (2001), Exú é aquele
quem faz um furo na ordem cósmica, causando movimento no universo, sendo acima de
tudo um mensageiro, aquele que liga os contrários, que aproxima os distantes, que articula
humanos e orixás. É, assim, mais que um trickster, fanfarrão, mas um orixá temido e
adorado, tendo um lugar especial no panteão africano, sendo que todo feitiço – seja para o
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bem, ou para o mal – para ter efeito, tem que pagar homenagem a ele primeiro, de Ogum a
Oxalá – ou seja, todos os orixás – a ele devem referencia, pois enquanto mensageiro,
“ligador” das forças cósmicas, sem Exú, o senhor do ogó – pênis –, o senhor dos
impossíveis, não há magia possível, não há candomblé, não há alegria, nem tristeza, porque
sem ele, não há universo.
Os africanos, com seus ebós – ritos mágicos, que utilizam os mais variados matérias,
desde ervas ao sacrifícios de animais – tentavam deixar Exú satisfeito para este não apenas
ajudasse, mas também não atrapalhasse as suas vidas. Contudo, esse orixá – reforçamos,
temido e amado – era tomado como compadre, tamanha a intimidade como é tratado, quase
da família. E na verdade o é, uma vez que cada orixá tem a sua companhia um Exú que lhe
serve de mensageiro e, por conseqüência, cada humano, sendo filho de um orixá, “carrega”
um exú que lhe é próprio, a quem deve prestar reverência. Entretanto, uma vez não
agradado, Exú pode se revelar um adversário poderoso e ardiloso.
Essa ambivalência de Exú é bem mostrada por Jorge Amado em vários romances,
como Tenda dos Milagres, em que Mestre Arcanjo é ajudado por Exú a se livrar de uma Ia
mi, uma Iabá, que lhe desafia para um embate sexual, prometendo lhe deixar “brocha”.
Através de um ebó, Mestre Arcanjo sai vencedor, e a mulher se faz no santo, tornando-se
filha de Iansã. Por outro lado, o próprio Jorge amado mostra o lado mais brincalhão e
zombeteiro de Exú em O Compadre de Ogum, onde Exú se faz passar por Ogum, padrinho
de uma criança que vai ser batizada, aprontando as mais hilárias confusões, inclusive
flertando “descaradamente” com as mulheres, como lhe é próprio. Vale ressaltar que ele o
fez porque lhe foi negligenciado o ebó pedido.
Assim, diante deste orixá tão complexo, a umbanda lhe legou o lugar de ser inferior,
pouco evoluído, relacionado-o ao diabo cristão e aos sofredores, como dizem os kardecista,
necessitando serem guiados e introduzidos nos ensinamentos cristãos, catequizando-os,
oferecendo-lhes a oportunidade de praticarem o amor e a caridade. Muitos centros
umbandista chegam ao limite de não trabalharem mais com Exús, ou, em muitos casos, os
trabalhos são restritos aos médiuns da casa, em trabalho de descarrego, de limpeza da casa,
pois ai necessita-se dos poderes de Exú, o faxineiro por excelência.
Contudo, diz-nos Isaia que
No caso do relacionamento específico da Umbanda com a Quimbanda, os
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estudos de George Lapassade indicam, para a última, uma identidade especial, em


contraste, tanto com a cultura dominante, quanto com a Umbanda. Para o autor, a
Quimbanda representaria "le retour du refoulé". Ou seja, a Quimbanda, estaria
ligada a um código simbólico muitíssimo próximo à história do negro brasileiro e
de suas lutas. Assim, enquanto a Umbanda afastar-se-ia das raízes africanas, na
Quimbanda dar-se-ia, uma aproximação com as mesmas, endossando uma
negritude próxima dos valores e lutas dos brasileiros pobres e marginalizados. Ao
invés de cultuar o negro como um "preto velho", ou seja, um escravo ancião,
familiar e submisso ao senhor branco e a seus valores, como acontece na
Umbanda, a Quimbanda incorporaria um outro estereótipo, o negro contestador,
capaz de assumir a luta por seus direitos contra o opressor. Para Lapassade, que
estudou, sobretudo, macumbeiros e quimbandeiros no eixo Rio-São Paulo, a maior
evidência desse fato seria a presença, ainda em nossos dias, do mundo islâmico, na
memória de numerosos adeptos da Quimbanda. (Isaia, s.d.)
Assim, o exú é o retorno do recalcado, assim como é Pomba-gira, a mulher
contestadora, sexualizada, que domina, amante voraz – pomba-gira é, mulher de sete
maridos, não brinca com ela, pomba gira é um perigo (cantiga entoada nos terreiros de
umbanda) – e por isso mesmo perigosa, assim como as Iya mi, de quem, alias, exú é amigo
e amante.

A morte branca do feiticeiro negro


Augras (2000) diz que a umbanda sincretiza, absorve, vários elementos das mais
variadas tradições religiosas e que no decorrer do tempo foi se transformando, inclusive
num sentido de ser valorizado a partir do kardecismo, como forma de se adequar ao valores
da classe media emergente. Contudo, esse processo resultou não apenas na perda dos
valores e tradições africanas, como também na incorporação dos ideais de branquitude da
sociedade brasileira, a partir daquilo que Augras (2000) chama de pasteurização ou, como
prefiro, higienização de seu culto.
A esse processo, Ortiz (apud Augras, 2001) chamou de morte branca do feiticeiro
negro: A erradicação da memória dos afro-descendentes e brancos praticantes da umbanda,
da sua origem africana e, num certo sentido, recalca a possibilidade de gozo, de uma
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sexualidade mais “natural” e mais saudável.


É nesse sentido que Foucault (1997) vai dizer que enquanto no oriente se construiu
uma ars erotica, onde o sexo é tomado como mistério e passível de aprendizagem e
iniciação, donde a verdade é advinda do próprio prazer. Ao contrário, o ocidente cristão
criou uma scientia sexualis para que se possa ditar o que é certo ou errado, normal ou
patológico, “ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a
verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma
forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte e ao segredo magistral, que é a
confissão.” (pp. 57-58)
No candomblé não há o que ser confessado, ate porque não há pecado no sexo, até
porque este é para os negros tão natural quanto comer ou dormir.
Assim, negar a sexualidade é negar-lhes a identidade, que no limite, é negar a própria
negritude.
Augras (2000), no entanto, nos diz que existe um fenômeno contrario ao da
cristianização da umbanda, proposto por Zélio de Morais e seu grupo, onde os fiéis estão se
aproximando da umbanda e candomblé para se “reafricanizar”, aprender os feitiços e
mandingas, as danças, os rituais e os mitos negligenciados até então. Será obra de Exú?
Não sei. Mas para Exú nada é impossível, até porque como diz um de seus orikis –
saudação ritual –, ele é o que matou o pássaro ontem, com a pedra que vai atirar amanhã.
KOBALAROIYÊ EXU, MOJUBÁ! KOBALAROIYÊ POMBA-GIRA! AXÉ
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Referências bibliográficas

Augras, M. (2000). De Iyá mi a Pomba-Gira: transformações e símbolos da libido. In:


Candomblé: religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-
brasileiras. Moura, C. E. M. (org). Rio de Janeiro, Pallas.
Bastide, R. (2001). O Candomblé da Bahia: rito nagô. Ed. Revisada e Ampliada. São
Paulo: Companhia das Letras.
Ferreti, S. F. (1995). Repensando o Sincretismo: Estudos sobre a Casa de Minas. São
Paulo. Edusp.
Foucault, M. (1997). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro.
Graal
Isaia, A. C. (s.d.). O Elogio ao Progresso na obra dos Intelectuais de Umbanda.
Retirado dia 19 de maio de 2005, do site
http://members.fortunecity.com/prgalvao/Oelogioaoprogressonaobra.htm.
Lacan, J. (1985). O seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Mott, l. (s.d.) Entrevista. Retirado dia 19 de maio de 2005, do site
http://hosting.pop.com.br/glx/casadamaite/sexualidade/homo/entrevistas/entre4.
html
Ortiz, R. (1978). A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda, integração de uma
religião numa sociedade de classes. Vozes.

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