Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/249992973
CITATIONS
1 author:
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Avimar Ferreira Junior on 17 May 2014.
Goiânia
Maio de 2004
1
festas e ritos, sendo cada orixá ligado a um atributo da natureza, tendo personalidades
distintas. Assim, Ogum, o jovem oboró – orixá masculino – senhor do ferro, rei de Togo,
era tido como guerreiro, impulsivo, mulherengo. Já Exú, senhor do dendê, do fogo e do ogó
– o pênis –, era tomado também como impulsivo, mulherengo, porém ardiloso, inteligente e
brincalhão, sendo tomado por Bastide (2001) e seus informantes como um trickster, tal qual
loki, o deus nórdico, um pregador de peças. Entre as iabás – orixás femininos – Iemanjá,
muito cultuada tanto pela umbanda como pelo candomblé, é a senhora das águas salgadas,
vaidosa, sensual, amante exigente e guerreira – Iemanjá Ogunté –. Iansã – mulher búfala –
senhora dos raios e tempestades, não é tão vaidosa quanto Iemanjá, pois é chegada mais a
batalha, a disputa, assim como Ogum – um de seus vários maridos e amantes. As
coreografias de suas danças rituais, refletem essas características: rápidas e encenando uma
luta, no caso de Ogum – assim como no de Iansã e Obá –, sensual e feminina, como no caso
de Oxun, alegres como no caso de Ibeji – os orixás crianças. Se uma Oba e uma Iansã estão
incorporadas, as duas simulam uma luta entre si – repetindo o conflito que ambas viveram
nos mitos.
Outra característica dos cultos africanos é a relação direta dos orixás com os fiéis, em
que cada homem e mulher nascem regidos por um ou vários orixás, legando-lhes
características físicas e psicológicas, influenciando-lhes diretamente o ori – cabeça – e seu
odú – caminho, destino –. Os féis são arrebatados pelos seus eledás – pais de cabeça, seus
pais espirituais, orixás de frente – que vem ao ilê axé – casa da força, local de culto – para
dançar e compartilhar com seus protegidos, durante os xirês – festa publica do candomblé –
. Assim, os deuses interagem diretamente com os fiéis, seja a partir da incorporação, seja
através dos búzios, Opelê Ifá ou orobôs – jogos de adivinhação, onde quem responde é
Exú, o mensageiro dos orixás, aquele que intermedia a comunicação entre os orixás e os
humanos.
Contudo, nos cultos aos orixás, pode-se perceber as relações de gênero já posta, ou
seja, homens e mulheres têm seus lugares bem definidos, apesar desse limite não ser rígido,
muito pelo contrário. Augras (2000) demonstra a força que os orixás femininos – iabás –
tinham na África, sendo não apenas respeitadas como também temidas, chegando a ser tabu
a pronúncia de alguns de seus nomes – como o das Iyá mi Oxorongas, por exemplo. Diz a
autora que o Gèlèdè, festival ocorrido entre março e maio, antes do começo das chuvas, tem
3
por objetivo reverenciar as mães ancestrais para que o campo possa ser fecundado com
êxito. Assim, durante o Gèlèdè,
a comunidade masculina abdica de suas prerrogativas de homens (dançam
vestidos de mulher) para agradarem totalmente as mães ancestrais (...) Há uma
grande licença verbal. Adultos e crianças falam livremente dos enormes pêlos, da
imensa vulva da Iami” (...) Vale dizer: o poder da mãe é tão terrível, que só pode
ser evocado pela sátira ou pela mascarada. Afirmar sua realidade implica a
desvalorização do poder masculino. (Augras, 2000, p. 19)
É o retorno ao útero original, ao indiferenciado, a simbiose mãe-bebê, à ausência de
limites e da linguagem. E isso, tanto para homens como para as mulheres, é assustador. Lá,
o sujeito não nasceu, não individualizou-se, muito menos individuou-se, é ainda o desejo da
mãe e não sujeito desejante, como disse Lacan (1985) no seu seminário “Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise”. Contudo, esse medo não é apenas dos africanos,
mas sim de toda humanidade, mais evidente em sociedades patriarcais. Um outro exemplo
é a cultura Greco-Romana, na figura das fúrias, deusas ancestrais que defendem a
importância das mulheres na cultura.
Augras, no entanto, vai ressaltar que somente quando os poderes feminino e masculino
atuam em comum acordo é que o sexo pode assumir a sua posição correta. Explico. A
autora vai citar Waldeloir Rego,
que conta uma história do odu Òsá Meji que conta como Iyá Mapo, a “Mãe da
Vagina”, recorreu aos bons ofícios de Iyá mi Oxorongá – que constitui um dos
aspectos mais aterradores da Grande Mãe –, para colocar o sexo “no devido lugar
na mulher”. Várias partes do corpo tinham sido experimentadas como localização
da vagina, mas todas se revelaram inconvenientes. Foi Exú que, mediante ebó
“feito com duas bananas e um pote”, acertou o lugar definitivo, “bem como o do
pênis do homem, do qual Exú é o dono”.
É, então, Exú quem vai acertar o sexo dos humanos e dos orixás, sendo a ele oferecidos
ebós – oferendas mágicas – para que a vida sexual de homens e mulheres sejam
satisfatórias. Aliás, é Exú o que propicia o nascimento dos humanos, uma vez que sem
sexo, a cegonha não chega. Assim, enquanto Exú é o sexo, o coito, é Oxum quem gesta,
cuidando das crianças até a idade dos sete anos, quando Iemanjá assume enquanto Iya Ori,
4
história brasileira.
Apesar da umbanda ter seu início datado de 15 de novembro de 1908 – tendo no
fluminense Zélio de Morais tomado por seu fundador –, é a partir da década de 50, quando
o Brasil passou pelo processo de urbanização acelerado, com o esvaziamento do campo e o
inchaço das cidades, fazendo com que a periferia – e o negro e sua religiosidade – fosse
integrada a urbis. Nesse contexto histórico, surge e desenvolve-se a umbanda, expressão
religiosa eminentemente urbana, fruto do sincretismo entre o catolicismo, o kardecismo, o
candomblé e o catimbó.
Contudo, devemos nos deter aqui, por um instante, para analisarmos as contingências
nas quais o nascimento da umbanda se dá.
Roger Bastide, foi um dos primeiros a perceber a importância da umbanda cuja
inserção entre a população branca e urbana foi tida como sintoma da desarticulação da
religiosidade tradicional africana, típica do candomblé, em função do ambiente urbano e
industrial. Espaço esse típico da modernidade, do capitalismo e do desencantamento do
mundo, no sentido weberiano.
Nesse sentido, disse Isaia (s.d.) que é muito sintomático que a fundação da umbanda se
dê no aniversário da ainda engatinhante república brasileira. O autor cita Diamantino
Trindade, que contextualiza o surgimento da umbanda:
Gradativamente, as Entidades integrantes da Corrente Astral da Umbanda
(governo da Terra, segundo o autor) foram, através de seus médiuns, lançando as
bases do Movimento Umbandista, que numa primeira fase, visa abarcar o maior
número de pessoas, no menor espaço de tempo possível. O final do século XIX é
marcado no Brasil por um grande balanço social devido a libertação dos escravos e
a instauração da República, uma forma mais justa de governo que iniciava sua
peregrinação no Brasil. A Corrente Astral de Umbanda aproveita esta reviravolta
social e, por volta de 1889, lança o vocábulo Umbanda em vários pontos do país.
A essa altura o mediunismo já invadira os cultos deturpados e miscigenados
entre os indígenas e os escravos africanos (Trindade, 1991, p. 54, apud Isaia,
s.d.)
Assim, a umbanda surge imbuída dos ideais iluministas da modernidade: desde à
libertação dos escravos, como no projeto político republicano, até o racionalismo-cientifico
6
inferioridade: se a raça negra "est vouée par Dieu à une éternelle inferiorité", a
consequência seria pura e simplesmente aceitar a impossibilidade de "civilizar" os
negros, de ajudá-los a trilhar um processo evolutivo inexistente, o que equivaleria
a aceitar "qu’il faut se borner à faire du nègre une sorte d’animal domestique." O
artigo em questão enfoca o lugar dos negros frente ao ocidente, concluindo que, se
a situação vivida pelos mesmos denotava um "inferior modo de vida" em relação
aos "civilizados", isso não era decorrência de uma inferioridade imanente. Apenas
era sintoma de seu devir evolutivo, trazendo os negros, igualmente, a
potencialidade ao progresso e ao aperfeiçoamento.
O papel dos povos "civilizados" em relação aos negros seria, portanto, o de
levar-lhes as "luzes" do aperfeiçoamento moral, auxiliar-lhes a trilhar o seu plano
evolutivo. À população branca, "qui a donné peuvres de la supériorité de sa
intelligence" era destinado um trabalho educador por excelência, "libertando" os
negros dos "maus hábitos", que, caracterizando seu "inferior" estágio evolutivo,
granjeavam-lhes cada vez mais dívidas kármicas, dificultando seu progresso.
Ato falho ou não, o importante é que fica clara a posição superior dos brancos sobre os
negros, legando a estes o papel de retirar os negros de sua ignorância espiritual, fazendo-
lhes ascender ética, estética e moralmente.
Esse é o projeto umbandista iniciado por Zélio de Morais: a criação de uma nova
religião onde os negros e índios, assim como aqueles que não conhecessem a verdade da
evolução, pudessem prestar a caridade, o amor e os bons costumes cristãos.
mostra, também, como a umbanda cria a Pomba-Gira, o Exú feminino, como que o
negativo de Iemanjá: a ultima é a representante da mãe caridosa, da mulher da casa, digna,
enquanto a primeira é a representação da prostituta, da mulher da rua, da vulgaridade,
porém poderosa, desejada e temida.
Nesse sentido, é interessante notar que na África ancestral, não existe o Exú mulher,
sendo esta uma criação tipicamente brasileira, datada do século passado. Pomba-gira é
derivada do Bombogira, o equivalente a Exú na nação Congo.
O mesmo ocorre com a dupla Oxalá – Exú. De acordo com Bastide (2001), a umbanda
coloca Oxalá e Exú em oposição, como se estes fossem o principio do bem e do mal, que na
África não se dava, até porque o candomblé não conhece esse maniqueísmo, sincretizando
erroneamente, assim, Exú com o diabo cristão e Oxalá com Jeová – se é que existe
sincretismo certo.
No tocante a sexualidade de Oxalá, este é representado como um velho, Oxalufã,
bonzinho – quando sincretizado com Jeová – ou como um homem jovem, Oxaguiã –
quando sincretizado com Jesus Cristro –, ambos dessexualizados, e sempre, assim como
com Iemanjá, representados por imagens católicas, logo brancos, vestidos dos pés a cabeça,
em nada lembrando os orixás sensuais e mulherengos dos mitos. Tanto Oxalufã quanto
Oxaguiã foram amantes de quase todas as iabás e seus mitos estão repletos de romances e
estratagemas para conquistar amantes, como na lenda em que Oxalufã se veste de mulher
para poder entrar no reino de Nanã, onde nenhum homem entrar, e assim pode seduzi-la.
Como conseqüência, até hoje usa saias.
Um outro mito que a umbanda fez questão de esquecer é aquele que envolve Ossanhã –
orixá dono das folhas – e Oxossi – sincretizado com São Sebastião e São Jorge, muito
cultuado em umbanda – e que diz da relação amorosa entre eles. No tocante a
homossexualidade, em entrevista, Luiz Mott, Doutor em Antropologia e Presidente do
Movimento Gay da Bahia, diz que
Logun-Edé e Oxumaré são "transexuais" ou "hermafroditas sociais",
incorporando ao longo do ano, os dois sexos. O próprio Oxalá também participa
desta dualidade, pois segundo alguns mitos yorubás, reúne em si o lado masculino
e feminino. Aliás, como muitos outros deuses antigos. Iansã é mulher-macho,
veste calça e tem cavanhaque, além de ser forte e poderosa "como um homem".
10
Oxóssi, caçador, consta em alguns mitos antigos que manteve relação amorosa e
sexual com o orixá das folhas, Ossaim ou Ossanha. (Mott, s.d.)
Na mesma entrevista, quando perguntado sobre a identificação dos homossexuais com
o candomblé, responde Mott que
Os gays estão presentes em todas religiões, mesmo nas mais homofóbicas.
Não é segredo para ninguém o batalhão de homossexuais na Igreja Católica e em
número menor nas Protestantes: como porém o cristianismo condena o amor entre
pessoas do mesmo sexo, tudo acontece de baixo do pano, na hipocrisia. Há
estimativas de que 40% do clero católico brasileiro é homossexual. O número alto
de padres com Aids e padres gays assassinados comprova a veracidade desta
presença. Quanto à presença maior de gays e lésbicas no candomblé se explica por
ser uma religião que não interfere na vida sexual de seus adeptos (não há noção
explícita de virtude e pecado, muito menos a condenação dos pecados contra a
castidade); há Orixás que têm vida sexual bastante irregular de acordo com os
padrões oficiais de nossa cultura sexual (Iemanjá casou-se com o irmão e foi
violentada por seu próprio filho de quem teve outro filho); há Orixás que são
transexuais, isto é, mudam de sexo, como Logun-Edé e Oxumaré, que uma metade
do ano são homens, a outra metade, mulher. (Mott, s.d.)
A umbanda, ao contrário do candomblé, justamente por se pretender cristã, assim como
o kardecismo, possuem uma tolerância bem menor para com os homossexuais e, por isso
mesmo, esquecendo ou escondendo os mitos que tratam da homossexualidade.
bem, ou para o mal – para ter efeito, tem que pagar homenagem a ele primeiro, de Ogum a
Oxalá – ou seja, todos os orixás – a ele devem referencia, pois enquanto mensageiro,
“ligador” das forças cósmicas, sem Exú, o senhor do ogó – pênis –, o senhor dos
impossíveis, não há magia possível, não há candomblé, não há alegria, nem tristeza, porque
sem ele, não há universo.
Os africanos, com seus ebós – ritos mágicos, que utilizam os mais variados matérias,
desde ervas ao sacrifícios de animais – tentavam deixar Exú satisfeito para este não apenas
ajudasse, mas também não atrapalhasse as suas vidas. Contudo, esse orixá – reforçamos,
temido e amado – era tomado como compadre, tamanha a intimidade como é tratado, quase
da família. E na verdade o é, uma vez que cada orixá tem a sua companhia um Exú que lhe
serve de mensageiro e, por conseqüência, cada humano, sendo filho de um orixá, “carrega”
um exú que lhe é próprio, a quem deve prestar reverência. Entretanto, uma vez não
agradado, Exú pode se revelar um adversário poderoso e ardiloso.
Essa ambivalência de Exú é bem mostrada por Jorge Amado em vários romances,
como Tenda dos Milagres, em que Mestre Arcanjo é ajudado por Exú a se livrar de uma Ia
mi, uma Iabá, que lhe desafia para um embate sexual, prometendo lhe deixar “brocha”.
Através de um ebó, Mestre Arcanjo sai vencedor, e a mulher se faz no santo, tornando-se
filha de Iansã. Por outro lado, o próprio Jorge amado mostra o lado mais brincalhão e
zombeteiro de Exú em O Compadre de Ogum, onde Exú se faz passar por Ogum, padrinho
de uma criança que vai ser batizada, aprontando as mais hilárias confusões, inclusive
flertando “descaradamente” com as mulheres, como lhe é próprio. Vale ressaltar que ele o
fez porque lhe foi negligenciado o ebó pedido.
Assim, diante deste orixá tão complexo, a umbanda lhe legou o lugar de ser inferior,
pouco evoluído, relacionado-o ao diabo cristão e aos sofredores, como dizem os kardecista,
necessitando serem guiados e introduzidos nos ensinamentos cristãos, catequizando-os,
oferecendo-lhes a oportunidade de praticarem o amor e a caridade. Muitos centros
umbandista chegam ao limite de não trabalharem mais com Exús, ou, em muitos casos, os
trabalhos são restritos aos médiuns da casa, em trabalho de descarrego, de limpeza da casa,
pois ai necessita-se dos poderes de Exú, o faxineiro por excelência.
Contudo, diz-nos Isaia que
No caso do relacionamento específico da Umbanda com a Quimbanda, os
12
Referências bibliográficas