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Motriz, Rio Claro, v.14 n.3, p.361-370, jul./set.

2008

Relato de Experiência

O despertar da consciência corporal: um desafio para o futuro


profissional de Educação Física
Flávio Soares Alves
Faculdade de Educação Física e Esportes da USP, São Paulo, SP, Brasil

Resumo: Este trabalho relata uma experiência de ensino na graduação em Educação Física envolvendo
as Práticas Corporais Alternativas. Descrevemos os procedimentos através dos quais alcançamos os
objetivos assumidos no plano de ensino, o que permitiu lançarmos questionamentos sobre a
intencionalidade da ação educativa. A abertura à consciência corporal aconteceu através das permissões
corporais operadas durante as vivências. Foi este processo que nos instigou às considerações aqui
observadas.
Palavras-chave: Vivências corporais. Consciência corporal. Práticas corporais alternativas. Processo
pedagógico.

The awaken of corporal conscience: a challenge for the future professional of Physical
Education
Abstract: This article tells a teaching experience at Physical Education graduation involving the
Alternatives Corporal Practices. It was described the means from reach the objectives assumed at the
education plan, what allowed us to launch questions about the educative intent. The opening to the corporal
conscience happened through of the corporal allowance produced during the classes. It was this process
what gave us the motive to make this report.
Key Words: Corporal Experiences. Corporal conscience. Alternative corporal practices. Pedagogic
process.

Introdução uma compreensão mais profunda e ampla sobre


A disciplina de Vivências Corporais na o homem. Esta compreensão pode ser alcançada
graduação em Educação Física das Faculdades através de abordagens corporais (atividades)
Integradas de Botucatu – UNIFAC – busca uma guiadas pelos seguintes princípios: o suave, o
re-descoberta do corpo através de abordagens relaxamento, a lentidão, a valorização da
corporais que enfatizem a sensibilidade, o bem- sensação e a não competição.
estar e a criatividade. Essa disciplina é oferecida Lorenzetto e Matthiesen (2008, p. 12), no livro
aos acadêmicos do primeiro semestre do curso “Práticas Corporais Alternativas” apresentam
justamente por dar atenção à consciência métodos, origens, princípios e vivências que
corporal como princípio da atuação pedagógica, o servem como sugestões por meio das quais é
que garante a esta disciplina posição basilar na possível trabalhar a educação corporal sob uma
formação do licenciado em Educação Física. perspectiva globalizante que fusiona mente e
Ao assumir a responsabilidade por esta corpo, na busca por um contato do indivíduo
disciplina, tomei as Práticas Corporais consigo mesmo.
1
Alternativas (P.C.A.´s) – na leitura de Lorenzetto As sugestões apresentadas por Lorenzetto e
e Matthiesen (2008) e Coldebella (2003) – como Matthiesen – com base no estudo dos
conteúdo, por meio do qual, poderia alcançar os precursores das P.C.A´s – são descritas de uma
objetivos específicos do curso. A partir desta forma muito sutil e levam o leitor a observá-las
ótica, o planejamento do conteúdo da disciplina para além de suas prerrogativas procedimentais.
foi produzido. Aliás, os autores tomam muito cuidado para não
O principal objetivo das P.C.A.´s é fazer com contornar as sugestões sob esta ordem
que a pessoa tome consciência do próprio corpo. sistêmica. Assim, as sugestões propostas
Segundo Lacerda (1995) as P.C.A.´s buscam funcionam como uma alavanca para a
imaginação.
1
Segundo Lorenzeto e Matthiesen, “o berço das P.C.A.´s É justamente este exercício de imaginação,
reflete a medicina e as artes marciais orientais”. Estas práticas
posicionam-se contra o puro adestramento corporal inerente inspirado nas Práticas Corporais Alternativas que
as práticas tradicionais, “que buscam, defendem e exacerbam mobilizou minha atitude enquanto professor da
os valores da competição, da divergência e da comparação”
(2008, p.11).
F. S. Alves

disciplina de Vivências Corporais e impulsionou o Física – tentei introduzir um outro ponto de vista:
encaminhamento da mesma. fiz com que considerassem que, muitas vezes é
Em meio a este encaminhamento percebi que mais fácil culpar do que lembrar qualquer mínima
as sugestões tiveram que ser adequadas ao intenção que fosse de mudar a realidade. Frente
contexto da disciplina. Esta exigência atitudinal foi a possível intenção de ensino, a bola e o futebol,
essencial para sensibilizar os alunos a favor de muitas vezes pareciam mais interessantes. Ao
uma concepção diferenciada sobre as práticas professor cabia a habilidade de negociar, talvez
corporais. Foi no bojo deste percurso que sobre esta habilidade fosse justificável
observei uma ampliação na consciência corporal questionar, mas se foi esta a intenção, não
dos alunos. esclareceram. De qualquer modo, a questão era
O objetivo deste relato de experiência é complexa, o que impediu revolvê-la de imediato,
mapear este processo efetuado, evidenciando as portanto, voltei a dinâmica de apresentação.
marcas e os deslocamentos impulsionados pela Em outros momentos, em meio às falas, a
descoberta da consciência corporal durante as aproximação da atividade física com o prazer,
vivências na disciplina. É o traço eventual e com a saúde e com o esporte era evidente,
episódico do processo, portanto, que me leva à embora a articulação de tal discurso tenha sido
escrita. O que esta perspectiva tem a dizer sobre feita num plano reflexivo superficial, era o
a intencionalidade da ação educativa? bastante para sustentar uma visão prematura da
Educação Física que observava o corpo sempre
Conhecendo o grupo: uma avaliação em função de algo, como se a relação entre
prognóstica corpo e atividade física só se estruturasse tendo
Depois de traçado o planejamento dos
a funcionalidade desta relação como mediador
conteúdos de ensino, passei à aplicação do
fundamental.
mesmo no decorrer dos encontros semanais da
Deixe-me explicar melhor do que se tratou
disciplina. Como medida inicial, propus uma
esta dedução. Ao serem convidados a falar sobre
dinâmica de apresentação, na qual os
si próprios e sobre a motivação deles na opção
ingressantes puderam conhecer melhor seus
pela Educação Física, os alunos preferiram falar
novos colegas de classe e as intenções da
sobre os efeitos da atividade física sobre eles,
disciplina.
numa articulação funcional: a atividade física para
Neste primeiro contato percebi em meio aos
a promoção da saúde, a atividade física para o
relatos, indícios de um conceito bastante restrito
prazer, a atividade física para a promoção dos
sobre atividade física. Ao serem convidados a
ideais esportivos.
falar sobre si próprios e sobre a atividade física, o
Historicamente esta abordagem funcional
relato de muitos esbarrou em uma crítica acirrada
entre o corpo e a atividade física estruturou a
sobre seus professores de Educação Física do
visão tradicional das práticas corporais e a seu
ensino fundamental e médio. Ao observar suas
modo contribuiu na consolidação do ideário neo-
expressões pareceu que a opção deles por este
liberal2 vigente na sociedade. As novas
curso passava por uma motivação quase heróica
estratégias de acúmulo do capital na atualidade
na busca da transformação desta realidade
continuam a observar o corpo como operador
insatisfatória que tinha no professor de Educação
castrado de seus próprios desejos em função da
Física escolar seu grande vilão.
reprodução do capital. Sob esta perspectiva, o
Embora não me interessava entrar no mérito
corpo e a experiência nele revelada só se
desta questão, o apontamento me intrigou. Uma
justificam numa relação de funcionalidade. Sendo
mágoa tão explicitamente colocada logo na
assim, toda ação humana parte do corpo em
primeira dinâmica da disciplina foi algo para se
direção a um ideal situado fora dele próprio
preocupar, no entanto, naquele momento os
(ALVES, 2006).
alunos pareciam estar mais propensos a apontar
Ora, se o ideal não está no corpo, mas fora
o culpado do que reconhecer qualquer esforço
dele, o corpo deve se preparar para alcançá-lo.
contrário que possa ter vindo do acusado ou
deles próprios na busca por uma alteração 2
O ideário neo-liberal tem como características intrínsecas a
daquela realidade. racionalização, a cientifização e a competição. Qualquer
produto cultural observado em meio a esta ótica
Na intenção de fazê-los refletir mais inevitavelmente se transforma em mercadoria, como medida
profundamente sobre esta acusação – reprodutiva das estratégias de acúmulo do capital (Kunz,
1994). O movimento humano envolto sob a perspectiva
direcionada à figura do professor de Educação esportivista reproduz eficientemente este ideário.

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O despertar da consciência corporal

Todavia, se cada indivíduo se prepara em direção corporal tendo como referencial a ótica que
a tal ideal, a competição se acirra, o que exige a observa o corpo como máquina. E, de fato, só foi
otimização desta preparação, sem a qual o possível tocar graus mais elevados da
individuo leva desvantagens. É na busca desta consciência corporal quando operamos a
otimização, cada vez mais brutal e ostensiva que desconstrução desta perspectiva – e esta não se
o indivíduo constrói para si uma realidade fez sem uma boa dose de negociação5.
baseada na eficiência, no alto-redimento e na A marca dos padrões arbitrariamente impostos
funcionalidade, como se ele próprio só existisse sobre o corpo – sob a normatização de práticas
sob os crivos destes estímulos de sobrevivência como as P.C.T.´s – dificulta a descoberta da
na selvagem competição do viver. malha por eles tecida o que impede de
Não é por acaso que ao falar sobre estes alcançarmos nossa sensibilidade por sobre este
mecanismos pareceu que estive tratando do tear convencional instituído. A desconstrução das
corpo no esporte. Constatei tal aproximação ao marcas produzidas pelas P.C.T,´s passa por este
situar o ideal olímpico: citius, altius, fortius – mais esforço de descoberta. A experiência de ensino
rápido, mais alto, mais forte3. Sempre mais na deixou esta lição.
busca por décimos de segundo a menos, enfim, Percebi que para desbravar o caminho em
na busca pelo grau mais elevado do podium. Não direção a nossa própria descoberta era
há vida no esporte de alto rendimento sem a necessário intensificar gradualmente a
função que o corpo estabelece com o ideal da experiência de sensibilização e de fato assim foi:
vitória. Foi neste nível de percepção sobre o o corpo só permitiu uma maior escuta de si
corpo e a atividade física que o entendimento dos quando foi gradativamente sendo encaminhando
alunos pareceu estar sintonizado. para esta abertura. Foi este tempo de permissão
Como a fala sustentou uma relação funcional que tive que compreender na intervenção
entre o corpo e a atividade física, mudei para a pedagógica, sem o qual os esforços educacionais
prática propriamente dita, no entanto, mesmo aí, poderiam ter sido sumariamente liquidados.
foi possível encontrar marcas profundas Pensando neste eminente perigo trabalhei
produzidas pelas Práticas Corporais Tradicionais com os alunos um melhor caminho em direção a
(P.C.T.´s)4. Tais efeitos foram verificados em este fim. Desta maneira, a prática foi estruturada
vários âmbitos: na relação do aluno com seu em três fases: a primeira se constituiu naquilo
próprio corpo (quando, por exemplo, davam que chamei de “fase de contato”, na qual,
vazão ao riso forçado mediante uma experiência introduzi o aluno às experiências do toque. Num
de toque), na relação do professor com os alunos segundo momento, trabalhei a confiança dos
(quando, por exemplo, deixavam claro que suas alunos, como recurso para reconhecer a
experimentações só tinham como finalidade a importância do outro e, a responsabilidade na
busca pela nota na disciplina) e na relação entre relação com o parceiro de trabalho. Trilhado este
os alunos na sala de aula (quando a vivência caminho, foi possível alcançar um terceiro
beirava a baderna generalizada, por exemplo). momento de trabalho, no qual, já iniciados na
A intervenção pedagógica teve que se
concentrar nestas modalidades relacionais, na
5
O termo “negociação” será muito utilizado durante este
busca de uma desconstrução das mesmas. relato. Estou chamando de negociação as relações
Lorenzetto e Matthiesen (2008) nos alertaram estabelecidas durante o processo da disciplina como medida
para garantir um cuidado para com a escuta do corpo, nas
sobre esta necessidade ao observarem que não diversas possibilidades descobertas em meio as vivências. Tal
é possível operar uma ampliação da consciência medida, em última análise foi o que garantiu uma vivência
atenta à escuta do corpo, tendo como referência as P.C.A.´s.
Tais referências foram atravessadas, em meio ao processo,
3
Segundo Moltmann (1989) o ideal olímpico, não é o pelas demandas geradas pelas próprias vivências. A
congraçamento entre os povos através do esporte, antes experiência do encontro com o outro e o encontro com o
disto, este discurso é uma fachada sob a qual se reproduzem próprio corpo deixou marcas que interagiram com as
outros sentidos ligados ao idealismo e não à cooperação e à referências assumidas. É este processo de interação que está
integração humana. O ideal olímpico é a cerne da ideologia sendo aqui chamado de negociação – numa referência à
marcada pela oposição entre vencedor e derrotado. A Foucault quando este observa que a produção do saber – aqui
aspiração deste ideal é fábrica de sonhos e ópio do povo, circunscrita sob a perspectiva da sensibilização corporal – só
visto que a perigosa glorificação do esporte destitui o jogo se efetua mediante mudanças e negociações de poder
competitivo de sua humanidade. (Foucault, 2002), o que evidencia o ponto de vista constituído
4
Segundo Coldebella (2002), as Práticas Corporais não só a partir do olhar do corpo consigo próprio, mas também
Tradicionais (P.C.T.´s) são baseadas na repetição e no do corpo com o outro. A ruptura com a visão dicotomizada do
processo de mecanização dos gestos motores. Sob este olhar corpo, em função da promoção de uma outra perspectiva,
as atividades corporais visam a busca da eficiência motora e atenta ao corpo em sua totalidade, foi operada desta maneira
patamares mais evoluídos de execução. e é este percurso que interessa a este relato.

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F. S. Alves

busca pela consciência corporal, pude intensificar Yoga, as massagens orientais, a Biodança, entre
as vivências em direção a este fim. outras, o que não significa que negligenciei seus
Embora pareça, nesta planificação do conteúdos, ou mesmo fiz uso de seus conteúdos
processo, que a busca pela ampliação da sem o devido cuidado metodológico instituído na
consciência corporal tenha sido realizada de literatura específica.
forma fragmentada, contrariando, assim o próprio O que me incomodava era observar estas
deslocamento perspectivo oferecido pelas práticas como unidade objetal a ser reproduzida,
P.C.A.´s, estive atento a este perigo eminente. A tal como observado na literatura específica, pois
preocupação com a síntese do processo, tão se assim mediasse meu processo educativo não
avidamente exigido no discurso acadêmico leva a estaria fugindo do mesmo referencial dicotômico
esta injunção. Todavia, antes de figurar como um que guia as P.C.T.´s. Para evitar esta injunção
processo fragmentado é preciso considerar que o assumi como objetivo principal situar o
que aqui se constitui, na ordem do discurso é um acadêmico numa dimensão diferenciada de
esforço especular sobre um processo dinâmico já entendimento sobre a atividade corporal, através
constituído. Lá, em meio às vivências, o plano foi das vivências e das reflexões acerca destas
posto em prática, transformando o planejamento práticas, só então o deslocamento proposto na
em sua essência. Foi esta transformação que deu abordagem corporal fazia sentido. Afinal, estava
movimento ao que previamente foi planejado e tratando de alunos ingressantes do curso de
que, como efeito, possibilitou planificar o Educação Física que mostraram ter uma visão
processo realizado na ordem de um relato muito superficial sobre o corpo e sobre as
experimental. possibilidades de vivência e reflexão neste campo
Antes, porém, de se ater às estratégias e de conhecimento.
procedimentos em busca de um fim – o que, Visto desta forma, não cabia ler a obra de
fatalmente reitera o traço fragmentado do Lorenzetto e Matthiesen (2008), por exemplo,
processo – me preocupei, neste esforço como um manual prático a ser reproduzido sem a
especular, em observar o movimento dos devida pré-disposição à sensibilização, do
conteúdos mediante as demandas eventuais da contrário, a abertura à escuta de si ficaria
intervenção educacional. Foi aí que detectei uma comprometida.
necessidade motriz que marcou o processo de Sendo assim, nas fases iniciais de trabalhos
ensino: a intensificação gradual da experiência de foi necessária uma introdução ao universo das
sensibilização corporal. P.C.A.´s – a referência de Lorenzetto e
Visto sob este olhar, as fases de trabalho, aqui Matthiesen (2008) foi fundamental para nortear
selecionadas funcionaram como platôs, sobre os este processo – do contrário não atingiria em
quais foram se edificando um longo e gradual profundidade os objetivos de ensino da disciplina.
encaminhamento do aluno em direção à abertura Interessava-me, enquanto professor, oferecer
de si. Não que esta abertura estivesse no fim do uma vivência, senão plena, o mais próprio
processo, mas no percurso temporal percorrido, possível deste fim. É este contorno do
num direcionamento ascendente de evolução. entendimento – que mostrou ser necessário
Tal estratégia justifica-se quando levamos em durante o trabalho na disciplina – que justifica o
consideração o contexto hegemônico que esforço da reflexão aqui proposta.
enquadra a Educação Física sob o olhar das
P.C.T´s. Como já observado, as P.C.T´s atam o
Contato: entre o entusiasmo e a
conceito de atividade física num enquadramento
responsabilidade
Ao ser trabalhada no primeiro semestre do
que ofusca um contato mais profundo do corpo
curso, a disciplina de Vivências Corporais
com sua dimensão integral. Sendo assim, a
transcorreu paralela a um processo de
busca pela consciência corporal não é um
acomodação do aluno frente às novas
esforço gratuito, antes, esta busca exige uma
perspectivas trazidas pelo seu ingresso na
libertação, ou melhor, um tempo de permissão
faculdade. A confusão de sentimentos e de
nem sempre fácil de operar.
expectativas, comum nesta fase, se refletia
Sob esta ótica tomei as P.C.A.´s como
durante as vivências. Tudo isto era matéria prima
referencial a partir do qual a disciplina foi sendo
para a disciplina e dava-me conteúdo para
vivenciada, no entanto não estava preocupado
trabalhar um direcionamento de todo este
em dar conta de abordagens específicas como a
processo em função dos objetivos assumidos.

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O despertar da consciência corporal

Mediante este contexto, a timidez entre o grupo facilmente, como alegria incontida. É claro que
era evidente, uma timidez disfarçada, envolta em esta alegria foi possível em vários momentos,
meio a um entusiasmo incontido que, no fundo, todavia nem sempre era realmente dela que a
escondia certo receio da exposição frente aos sensação se tratava. Antes, um riso forçado nos
desconhecidos. Os primeiros trabalhos práticos levava a crer que a plena experimentação da
deveriam estar atentos à dissolução deste vivência lhes foi impedida mediante a invasão
bloqueio. impertinente do toque alheio. Complicando esta
Para tanto, propus um trabalho coletivo no situação, alguns insistiam em brincadeiras de
qual os alunos, dispostos no chão em duas mau gosto, aliciando indevidamente o corpo dos
colunas entrecruzadas na altura dos ombros, colegas à medida que iam passando no corredor.
deveriam usar os braços para passar uma Por várias vezes esta atitude beirou a indisciplina,
pessoa deitada por cima deles. Esta travessia transformando o clima de brincadeira em claro
deveria se estender de uma ponta a outra das desconforto.
colunas. Como pode o futuro professor de Educação
A vivência causou um grande entusiasmo e, Física ter receio do toque ou executá-lo com
por vezes, deu margem a expressões de euforia. excessivo apelo erótico? Na busca de
Cada pessoa expressou uma sensação ao caminhos para a abertura de si não se pode dar
passar por sobre os braços estendidos ao longo margem à euforia, pois esta atitude pode
do corredor de alunos. A coragem para a comprometer a ampliação da consciência
travessia permitiu-lhes experimentar. As corporal.
conseqüências que daí decorreram Percebi que era preciso pontuar a diferença
impulsionaram a uma reflexão posterior do que se entre a atuação entusiasmada e a atuação
sucedeu. operada nos domínios da euforia. A própria
Alguns indícios me levaram a constatar a vivência serviu como contexto à definição destes
dificuldade dos alunos na execução desta conceitos. Na euforia a energia corporal era
vivência. Inclusive o relato dos próprios alunos no instável, dando margem a uma intensificação da
final da vivência evidenciou esta dificuldade, o experiência sem que com isto um
que permitiu um espaço de discussão com os aprofundamento da consciência corporal fosse
alunos sobre o sucedido. No momento em que a operado. Observou-se aí gozações, as zombarias
pessoa se dava conta de que seria sua vez na e toda sorte de impertinências que intimidavam a
travessia um calafrio lhe atravessava o estômago sensibilidade. O entusiasmo, por outro lado,
revelando a animação pela atividade. Deparar-se atuava a favor da consciência corporal,
com a visão suspensa de todos no chão permitindo a canalização da energia em direção a
esperando pela passagem aguçava esta este fim, sem abrir mão da alegria e da
sensação, todavia, um súbito receio de entregar a espontaneidade na atividade.
integridade corporal à responsabilidade do outro Estive atento à qualidade do toque. Estava
trazia, ao fim, duas possibilidades: se entregar à convencido de que o respeito no toque deveria
experiência – o que aconteceu com a grande ser trabalhado – sem comprometer o entusiasmo
maioria – ou abortar, relutante à experiência. pela vivência – uma vez que profissionais de
Embora pareça que a segunda opção seja Educação Física muitas vezes precisam tocar no
uma atitude injustificada ela é ao menos corpo de seus alunos para ajudá-los nas
autêntica, visto que, ao se deparar com o medo o atividades corporais. Se esta tarefa fosse feita
aluno optou pela não experimentação. Sabia que sem o devido cuidado certamente o futuro
a não participação se acaso se repetisse com professor levaria este dificuldade para sua
freqüência poderia levar à irrelevância do aluno atuação profissional, comprometendo o ensino a
quanto ao conteúdo da disciplina, todavia, não que se propusesse realizar.
poderia descartar o medo como uma evidência Trabalhado a questão do toque passei para a
sincera da escuta de si. segunda fase, na qual estávamos preocupados
Quanto àqueles que aceitaram o desafio da com a conquista da confiança no trabalho consigo
travessia, tal dificuldade foi também observada, mesmo e com o outro.
embora disfarçada sob um riso forçado ou sob
uma euforia desmedida que, aos olhos de um
observador externo poderia ser interpretada

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F. S. Alves

Confiança: prerrogativa à abertura de traumatizantes o livre fluxo energético é


si bloqueado, dando origem a certos padrões
Uma vivência que mostrou bem a musculares. O bloqueio causa um enrijecimento
preocupação com a confiança foi o “João- crônico dos músculos, objetivando a proteção do
Balança” . Nesta atividade, distribuí os alunos em ser humano em relação às experiências
grupos de sete pessoas. Cada grupo se dispôs emocionais traumatizantes. A este enrijecimento,
em círculo, tendo um membro do grupo no centro Reich atribuiu o termo couraça muscular.
– que seria o “João-Balança”. Este, rodeado Movidos por esta couraça, alguns se
pelos colegas deveria oscilar em todas as recusavam às vivências. O entendimento parecia
direções, mantendo os pés fixos no chão, num se impor frente à espontaneidade, reclamando
jogo de transferência de peso monitorado pelo uma auto-exclusão do aluno na atividade por falta
grupo no círculo. Ao “João-Balança” cabia, de confiança ou por discriminação.
manter-se estático e firme e, com os olhos Sob os domínios deste entendimento
fechados, sentir a sensação do desequilíbrio (a arraigado nos músculos, os alunos se negavam a
queda eminente), da recepção (o acolhimento do tentar entender a vivência de outra maneira e
outro) e da condução (a transferência) do “João- ficavam de fora. Nestes momentos, o apoio dos
Balança” em direção à outra pessoa na roda. colegas de classe era decisivo. Cabia ao
As discussões sobre a importância do toque professor estimular este convite de um para com
surtiram efeito nesta fase. Mais conscientes da o outro, como que pedindo permissão – com uma
responsabilidade de cuidar pela integridade física dose sincera de entusiasmo – à vivência corporal.
do outro, os alunos permitiam uma abertura maior
Consciência corporal: entre o silêncio,
à escuta das sensações advindas desta vivência,
dando margem para trabalhar a confiança em si
a respiração e o esforço.
Os trabalhos com o toque e a confiança deram
próprio e a confiança no outro.
uma dimensão à consciência corporal na relação
Outras variações desta atividade foram
que se estabeleceu com o outro, no entanto, era
realizadas a partir de sugestões dos próprios
preciso alcançar uma outra dimensão da
alunos. Esta medida, na qual o professor delegou
consciência corporal, partindo da relação do
aos alunos a autoria de novas vivências foi
corpo consigo mesmo. Com este intuito, assumi
fundamental para testarmos até que ponto os
um estudo sobre a respiração, visto sua
alunos se permitiam à experimentação, revelando
importância vital nas funções do corpo.
os limites e as potencialidades, frente às
A respiração propicia ao corpo sua exigência
negociações com o outro e as negociações
mais básica – o oxigênio. Quando ampliamos a
consigo mesmo.
consciência sobre a respiração o suprimento das
O medo da negligência do outro ao entregar a
necessidades de oxigênio é otimizado, o que
este a própria integridade física – como no caso
permite alcançar um estado de relaxamento. É
da eminente queda no “João-Balança” – bloqueou
neste estado que as possibilidades de auto-
a experimentação de muitos. Foi aí que tive que
exploração se ampliam.
concentrar os cuidados para trabalhar o
Para Schneider, Lakin e Schneider (1998), a
ultrapassamento deste obstáculo a partir das
respiração é a chave para a auto-exploração. O
possibilidades que o indivíduo se permitia
cotidiano de nossas vidas gradativamente
experimentar. Qualquer esforço mal calculado
bloqueia o ritmo respiratório natural. Em meio às
para trabalhar esta dificuldade poderia ser fatal
dificuldades, aos medos e as aflições decorrentes
para o desenvolvimento da disciplina dentro da
de nosso viver, a respiração é aprisionada para
proposta de trabalhar a consciência corporal
dominar estas emoções. Com isto, a respiração
através das vivências.
se torna superficial, comprometendo a plena
Neste momento, muitos já se encontravam à
oxigenação dos órgãos. Este quadro ajuda a
beira de suas limitações. O bloqueio à
compor a estrutura das couraças musculares,
experimentação, em certos momentos, parecia
visto que o enrijecimento da respiração se reflete
ser maior do que a potência de seu
na musculatura.
ultrapassamento, o que deixava a mostras as
Os laboratórios sobre respiração produzidos a
couraças musculares dos alunos.
partir da leitura de Schneider, Lakin e Schneider
Segundo Reich (1995), quando o individuo
(1998), foram de grande importância na busca
passa por experiências emocionais
pela auto-exploração. Percebi que os estímulos

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O despertar da consciência corporal

sobre a respiração só foram efetivos de fato à reduzir o stress de várias articulações e apoiar
medida que o aluno desbravou a própria melhor todo o corpo” (SCHNEIDER; LARKIN;
percepção de si. A condução do professor serviu SCHNEIDER, 1998, p. 65).
como direcionamento, todavia se o aluno não Os laboratórios sobre coluna vertebral fizeram
assumisse os rumos desta direção, a auto- os alunos pensar sobre a importância da visão na
exploração ficava comprometida. Tal verificação mediação daquilo que permitem experimentar. É
corroborou com as análises de Bertherat e a visão que antecipa as ações a partir da
Bernstein (1985), sobre a intervenção do captação das situações e do ambiente que nos
professor na autoria de uma consciência de si. circunda. Muitas vezes deixamos de experimentar
A experimentação mostrou também que a certas situações por causa desta pré-seleção
busca pela auto-exploração só foi alcançada efetuada pela visão, com isto, formatamos nossos
através do silêncio. A atitude corporal silenciosa modos de ser e de agir a partir deste domínio
representa um esforço de concentração que sensorial. Não que um som desagradável, ou um
integra a experiência com as potencialidades odor repulsivo não nos afugente na mesma
corporais em benefício de uma consciência medida, mas se pensarmos que, mediante tal
ampliada sobre todas as ações realizadas pelo situação, é a visão quem nos direciona para
corpo. Tal integração impede de trabalhar o longe destes desagrados, temos aí, uma noção
silêncio injustificado, isto é, aquele silêncio da importância da visão na seleção das
imposto que cala as potencialidades corporais. experiências, uma vez que ela as antecipa.
Antes, o silêncio deve buscar uma sintonia rítmica Cientes disto realizei uma vivência
entre esforço e respiração. Na prática, guiei estas denominada “O guia e o vendado”. Em duplas,
intenções a partir do seguinte questionamento: enquanto um foi o vendado, o outro foi seu guia.
Como encaixar a respiração nas diversas fases Ao comando do professor, a dupla fez um
distinguidas de um movimento específico? Este reconhecimento do espaço. O contato das mãos
encaixe só foi possível estando em silêncio. e o diálogo entre a dupla eram os únicos
No Pilates, por exemplo, este encaixe é direcionamentos permitidos. Num segundo
trabalhado articulando-se a respiração com a momento, o professor solicitou para o guia mudar
fase concêntrica e excêntrica do movimento. Este a forma de contato. A condução deveria
procedimento é um dos fatores que garante a acontecer com uma das mãos espalmadas
consciência do esforço nesta abordagem corporal pressionando as costas do vendado. Num
específica. terceiro momento, sem qualquer contato, apenas
Para testar os princípios observados no comandos vocais, o vendado deveria se
trabalho com a respiração, parti para vivências aventurar no espaço, tentando vencer o medo e a
mais complexas. O Pilates foi um destes desconfiança.
trabalhos, no qual percebi claramente a A experimentação revelou que quando
operacionalização destes princípios. Um outro diminuímos os domínios da visão na captação
trabalho bastante significativo foi o laboratório sensorial, trabalhando, por exemplo, o toque e o
sobre coluna vertebral. diálogo, abre-se condições para explorar
Segundo Schneider, Lakin e Schneider (1998) sentimentos como a confiança, a coragem e o
há maior consciência da parte anterior de nossos desafio sob uma dimensão perceptiva
corpos do que na parte posterior. Isto acontece, diferenciada daquela cotidianamente mediada
principalmente porque respondemos aos pela visão. Assim, experimentamos outras
estímulos visuais à nossa frente. Esta ordem na temporalidades, atentas às captações da
percepção do mundo promove maior audição, do tato e do olfato. Este deslocamento
concentração de terminações nervosas na parte temporal obrigou a construção de outros
anterior do corpo. Além disto, a área cerebral parâmetros de seleção sobre aquilo que se
responsável pelas costas é menor, o que reduz experimentou. Foi aí que observamos uma
ainda mais a percepção que temos das costas. possibilidade de ampliação da consciência
Observa-se então um claro desequilíbrio na corporal, pois a re-estruturação da percepção de
consciência corporal. Restabelecer o equilíbrio si só se fez mediante uma revisão das
passa pela necessidade de se aprender a sentir potencialidades do corpo a partir de uma situação
as costas. Este aprendizado traz “maior de bloqueio da visão.
circulação e mais movimento às costas, além de

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F. S. Alves

É claro que o guia, antecipando as O que este processo tem a dizer sobre a
informações do ambiente acabou servindo como intencionalidade da ação educativa?
referencial visual para o vendado, no entanto, Absolutamente nada se o olhar que direciona o
este referencial era externo o que inevitavelmente entendimento da ação educativa não reconhece a
reclamou por uma re-construção dos parâmetros mutabilidade da intenção (que guia a ação
desta informação que não lhe era própria. educativa) mediante as demandas eventuais e
episódicas instaladas durante as vivências.
Considerações Finais Ora, é justamente aí, neste engodo, que os
As vivências durante a disciplina deixaram
conteúdos da disciplina criam relações dinâmicas
algumas lições. A reflexão sobre estas práticas
de ensino e aprendizado. Aquilo que se constitui
permitiu um direcionamento da ação pedagogia
nestas relações dinâmicas pode até admitir
no diálogo que se estabeleceu entre as
redução – num esforço, por exemplo, para
experiências de ensino e as intenções projetadas
destrinchar dos conteúdos, suas dimensões
no planejamento dos conteúdos de ensino.
constitutivas – todavia, neste trabalho, a
Através das vivências os alunos
experiência é desperdiçada, em função de outras
experimentaram sensações, sentimentos,
ordens, ávidas pela planificação do processo.
limitações e potencialidades, desta forma,
Antes de assumir uma verificação desta
voltaram o olhar em direção ao corpo e
tendência de planificação, mas, ao mesmo
observaram suas ações e reações mediante
tempo, não negando a legitimidade de seu fim,
estas situações experimentais. Foi desta maneira
convido o leitor a observar o processo e perceber
que os alunos foram ampliando a própria
as perturbações que deram à intencionalidade da
consciência corporal e trabalhando suas
ação educativa seu traço eventual.
limitações.
Vejamos: ao colocar em curso o que antes –
Se no início do curso, a preocupação com a
no planejamento – se sustentava enquanto
nota na disciplina, a baderna, o riso forçado e a
referencia, o professor e os alunos passaram por
euforia deram a tônica da atuação, em meio às
um encaminhamento que gradativamente foi
vivências, no final, os alunos puderam
transformando a concepção dos alunos sobre a
compreender estas atuações sob um ângulo
atividade física. Foi nesta transformação que os
perspectivo diferenciado. Aí, nas malhas de um
alunos tangenciaram graus mais elevados de
corpo descoberto e sensibilizado, puderam
sensibilização e consciência corporal.
observar uma outra dimensão de concepção da
atuação corporal, para além daquela mediada Como esta transformação foi sendo
sob os parâmetros da eficiência, da produção e operacionalizada? Nas negociações que os
da funcionalidade. alunos realizaram frente suas próprias marcas de
Ao serem convidados a realizar uma auto- limitação.
avaliação no final do curso, os alunos Na medida em que os alunos foram tendo
relembraram as experiências vividas na disciplina noção das limitações que impediam a
e foram se descobrindo como agentes ultrapassagem de obstáculos, as sugestões, os
constitutivos deste processo. Foi neste caminho métodos e os princípios oferecidos pelas P.C.A´s
retrospectivo que puderam comparar a qualidade foram dando linguagem para se trabalhar com
das vivências durante a evolução da disciplina, estas limitações6.
identificar as limitações e, no principal, identificar As experiências com o toque abriram
as potencialidades descobertas. caminhos à consciência corporal. A busca pela
A consciência de todo este processo permitiu confiança, no outro e em si próprio permitiram
aos alunos perceber mais claramente o ampliar ainda mais esta consciência, garantindo
deslocamento que direcionou seus olhares às um espírito aventureiro na busca pela auto-
suas próprias sensibilidades. Prova disto foram exploração e no descobrimento das
às entusiasmadas expressões de interesse, a potencialidades corporais. Todo este processo
busca espontânea pelo silêncio interior, a busca 6
Não esperava com isto encontrar uma intenção
pelo cuidado nas relações, que se estabeleciam genuinamente terapêutica na vivência. Embora estivesse
com o outro e com eles próprios, e tantos outros implícita aí uma medida nesta direção, não a tinha como fim
específico. Ao trabalhar o toque e a confiança queria que os
indícios que mostraram sinais de alunos aguçassem a habilidade docente, em função de uma
amadurecimento no final da disciplina. ampliação da consciência de si, visto que necessariamente o
profissional de Educação Física tem no toque e na busca da
confiança do aluno princípios específicos de trabalho.

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O despertar da consciência corporal

colocou os alunos em um contato mais profundo aulas propriamente ditas. Durante as aulas, se
com suas próprias sensibilidades. efetuou a negociação direta, ou seja, aquela
Ao verificar na experiência corporal, realizada no ato que as relações são instaladas.
sentimentos como a confiança, o toque, o No intervalo entre os encontros da disciplina, se
trabalho com o outro, o trabalho contra o outro, o efetuou um outro tipo de negociação que se
medo, a segurança, e o conhecimento do próprio referia às previsões de encaminhamento da
corpo, os alunos foram se abrindo à percepção disciplina, a partir do conteúdo já trabalhado. Aí o
das motivações que permitiram-lhes aceitar o professor se deparou com questionamentos do
desafio da experiência. A ação-reação de cada tipo: O que foi possível? De que maneira foi
um à estas motivações foram constituindo suas possível? Para então se perguntar: Qual será o
potencialidades corporais. Neste jogo entre próximo passo?
potencialidades e motivações se instalou o Feito este exercício durante certo tempo, o
processo de ensino e aprendizagem. A professor se deparou com uma nova negociação,
consciência corporal e, no principal, a na qual ele teve que analisar as possibilidades
consciência das potencialidades corporais foram reais de se atingir, ao fim da disciplina, os
prerrogativas para a otimização deste processo. objetivos traçados no plano de ensino. Neste
A disciplina de Vivências Corporais foi momento surgem as questões: Como os alunos
constituindo todo este processo durante as aulas, estão vivenciando a disciplina? Há progressos
ao mesmo tempo em que foi oferecendo ao evidentes na busca pela consciência corporal?
acadêmico uma compreensão da consciência Como está indo a relação professor-aluno e a
corporal como recurso fundamental à educação relação aluno-aluno? A negociação se evidenciou
do movimento. nas maneiras, através das quais, estas questões
Tal compreensão só foi possível quando os foram respondidas.
alunos foram assumindo um compromisso com a Enfim, a última negociação se referiu à
qualidade e com a profundidade da aplicação dos princípios aprendidos na disciplina
experimentação corporal. Não bastava jogar o às situações específicas de ensino. Embora aqui
conteúdo previsto na programação dentro do as relações se ampliam para além do contexto
enquadramento temporal instituído pelo laboratorial da disciplina, o que nos impossibilita
calendário escolar, sabendo que a abertura à de dar conta do processo daqui desencadeado,
consciência corporal seguia outras este nível de negociação é imprescindível e
temporalidades. Era preciso negociar o conteúdo desejável, se pensarmos que ação educativa só é
previsto frente a estas variáveis, foi aí, dando de fato efetiva quando se transforma em ações
privilégio ao aluno e a seu tempo de permissão, concretas de aplicação do conteúdo trabalhado.
que descobrimos as potencialidades corporais. Os reflexos desta negociação se desdobram
Quando a intervenção pedagógica se abre à infinitamente junto às ações por vir do futuro
exploração das potencialidades corporais, a profissional de Educação Física, o que garante a
situação de ensino deixa de ser operacionalizada esta negociação um direcionamento prospectivo.
sobre uma perspectiva tecnocrática – mediada a Estes níveis de encaminhamento da disciplina
partir da reprodução de técnicas instituídas – para deram o direcionamento da intervenção
se aventurar nos domínios laboratoriais do pedagógica. Encontrei aí, os limites, os pontos de
processo, nos quais impera a lei da negociação. tensão, as dificuldades, as discussões, o
Tal processo é sempre eventual, mediante as entusiasmo, a euforia e as situações eventuais
relações estabelecidas entre o professor e os que traçaram a história da disciplina: uma história
alunos, entre os próprios alunos e entre o aluno e marcada pela negociação entre os conteúdos
si próprio e obedece a um processo gradual de previstos e os conteúdos propriamente
intensificação, através do qual a ampliação da vivenciados nas relações estabelecidas entre o
consciência corporal é operada. Peguemos como professor e os alunos.
exemplo as relações produzidas durante a Ao analisar a história da disciplina sob esta
disciplina de Vivências Corporais. Foi possível perspectiva, lanço questionamentos sobre a
observar que o andamento da disciplina intencionalidade da ação educativa. Em que
obedeceu a uma ordem de negociação. medida se tem controle sobre o que é aprendido
Depois de assumir as intenções previstas no pelo aluno? Como o aluno responde a uma
plano de ensino, o professor se deparou com as intenção educativa prevista? Em que tempo o

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F. S. Alves

aluno aceita o desafio da ultrapassagem de suas


limitações? Se pensarmos o plano de ensino Nota sobre o autor: Formado em Educação Física
posto à prova nas infinitas possibilidades pela Unesp de Rio Claro, mestre em Artes pelo Instituto
de Artes da Unicamp, doutorando em Educação Física
eventuais em que pode se efetuar na relação
pela Escola de Educação Física e Esportes da USP –
entre o professor e seus alunos, talvez tenhamos área de concentração: Pedagogia do Movimento
material suficiente para dar conta do que se Humano.
intenciona fazer, desde que se assuma o
intempestivo desconforto da negociação como
fonte inesgotável de re-descoberta e re-invenção
da ação educativa. Endereço:
Flávio Soares Alves
Referências Rua Domingão Gonçalves, 109
ALVES, F. S. Face a ecaF: quando ”tu” dança. Vila dos Lavradores
2006. 166 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Botucatu SP Brasil
Instituto de Artes, Universidade Estadual de 18609-057
Campinas, 2006, Campinas, SP. Disponível em: Telefone: (14) 3882.5019 ou (14) 9728.2710
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