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Fernando Pessoa
Ó sino da minha aldeia,

Ó sino da minha aldeia,


Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,


Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto


Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua


Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

s. d.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995): 93.

1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.

Obra Aberta · 2015-06-08 00:56


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Fernando Pessoa
I — A criança que fui chora na estrada.

A criança que fui chora na estrada.


Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou


A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar


Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,


E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem


Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem


Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:36


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São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.


E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai
crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,


E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço


O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

22-9-1933
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário
Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993): 90.

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Fernando Pessoa
Pobre velha música!

Pobre velha música!


Não sei porque agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te.


Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva


Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.

s. d.
Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995): 96.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

Obra Aberta · 2015-06-08 00:56

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